Flor de Sangue/I/VIII

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Eram apenas 11 horas da manhã quando Corina se apeou do bonde à porta da casa de Santinha, na rua do Catete: uma bonita casinha assobradada, com duas janelas de frente sobre um minúsculo jardim bem tratado. Foi encontrar a amiga no seu gabinete de toalete, a arranjar-se para sair.

— Estou quase nua, filha. Mas entra, para não teres de esperar-me - gritou-lhe a mulher de Viriato.

Corina entrou, fechando sobre si a porta de vidros foscos, e quase a sufocou o cheiro forte e complexo de água de Lubin e sabão de amêndoas - esse cheiro úmido e capitoso do banho de uma mulher chique.

Santinha estava em camisa, que pouco abaixo lhe descia dos joelhos, mostrando as pernas nuas, grossas e muito brancas.

Sobre a pele fina dos seios fartos, protuberantes na cambraia da camisa pintalgada de florinhas, brilhavam ainda algumas gotas trêmulas de água. Como estivesse com as mãos brancas de espuma de sabonete, de pé em frente do toucador, estendeu apenas as faces, frescas do banho, aos lábios da amiga e retribuiu-lhe sonoramente os beijos.

Mas não estava só; tinha consigo a Matilde, uma mulatinha clara, trêfega, de olhos sonsos, que era sua criada de quarto.

— Vais sair?

— Vou, mas enquanto me visto podemos conversar.

— Sim; mas não tem pressa o que tenho a dizer-te - respondeu Corina com olhar oblíquo para o lado da Matilde, que ia arrumando sobre a cama as roupas que a ama devia vestir.

Tendo passado uma saia, Santinha envolveu as espáduas em uma toalha e sentou-se em frente do espelho, que lhe devolveu a imagem fielmente.

Matilde penteou-a com admirável presteza e habilidade; calçou-lhe as meias pretas de seda e os sapatinhos de pelica, e quando acabou de atacar-lhe o colete, Santinha despediu-a dizendo-lhe que acabaria a toalete sozinha.

Matilde saiu com um "sim, senhora" humilde, mas não sem um olhar de soslaio para as duas, cheio de malícia e curiosidade.

— Que apuro! - exclamou Corina. - Isto cheira-me a entrevista.

— Acertaste. Vou encontrar-me com o meu poeta. Não podes calcular como estou impaciente!

— Está se vendo. Se eu pudesse, dava-lhe os parabéns: estás realmente apetitosa.

— Lisonjeira! Estou mas é envelhecendo; por isso é que vou aproveitando o que posso. Mas, diz-me: o que há de novo? Tu por aqui, a esta hora, de sopetão, hum! é novidade... Conta lá.

Corina narrou-lhe a cena da véspera e a partida imprevista de Paulino e, por fim, pediu-lhe conselho sobre o que devia fazer.

— É evidente que te ama. Eu já o sabia desde a noite da chegada dele; - e, enquanto falava, ia perfumando com o pulverizador os selos, o pescoço, as axilas. - Não te deixava com os olhos; perturbava-se todo quando lhe falavas... Aquela timidez é um indício infalível de amor. Agora esta verdadeira fuga não deixa dúvida possível. Eu, no teu caso, adotaria o seguinte plano de campanha: quando ele voltasse, retraía-me, evitava-o, mostrava não me lembrar da cena do belvedere; faria enfim tudo para não assustá-lo, para que ele se fosse deixando ficar perto do fogo sem lhe sentir o calor. Mas, ao mesmo tempo, aumentaria o meu poder de sedução, disfarçadamente: hoje um vestido leve e justo, amanhã um decote mais fundo e os braços nus, depois um descuido que mostrasse o começo da perna, ou uma atitude mais lânguida. Desse modo, nada vendo de positivamente ameaçador e preso, por outro lado, quase sem o saber, por todas essas seduções, ele se deixaria ir ficando. E assim até que chegasse, finalmente, o dia da batalha campal decisiva; nesse dia, o grande golpe.

— E qual seria esse grande golpe?

— Ele é médico. Uma noite em que estivesses sozinha, em perfeita segurança, sentirias um incômodo, tonturas, falta de ar... A criada te afrouxaria as roupas e correria a chamá-lo... O resto... ao acaso, e não falha; asseguro-te. O acaso é um bom amigo dos amantes.

Corina tinha as faces afogueadas e os olhos ardentes. Levantou-se para disfarçar a comoção. A amiga estava pronta. No momento em que iam sair do quarto, Santinha deteve-a por um braço, como tocada por um idéia súbita:

— Uma idéia! Queres tu vir comigo, para conhecer o meu buen-retiro?

— Estás doida? E o teu poeta?

— Ele chega somente à hora e meia. Temos tempo.

— Mas para que hei de eu conhecer o teu buen-retiro?

— Oh! Filha, não desdenhes! Quero apresentar-te a dona Miquelina. É uma mulher seguríssima, de uma discrição de poço entupido. Pode ser-te útil um dia.

Corina corou levemente e recusou: a amiga não insistiu.

Saíram e tomaram juntas o bonde. Desceram no largo da Carioca e, na ocasião de se separarem, Santinha insinuou com muito jeito:

— É aqui pertinho. É um momento; vem...

Corina acompanhou-a sem dizer nada. Era na rua de Santo Antônio, próximo da da Ajuda.

Casa de rótula e janela verdes, aspecto pobre. Santinha bateu com o cabo da sombrinha devagar. A porta abriu-se mansamente, engolindo-as logo.

Uma mulher de 40 anos, magra, cara de sofrimento, apesar do sorriso forçado com que procurava alegrá-la constantemente, as recebia correndo o ferrolho à rótula:

— Sentem-se minhas senhoras. Esta choupana é sua; - e para Santinha: - Como tem passado, dona Carlotinha?

Corina olhou com espanto para a amiga, que lhe fez um sinal significativo, respondendo logo à velhota:

— Muito bem, dona Miquelina, sem novidade. E a senhora?

— Eu, como pobre... rolando, enchendo os meus tristes dias. É muito bonita esta sua amiga, benza-a Deus! Como se chama?

— Emília Passos - acudiu logo Santinha, lançando a Corina um olhar de inteligência. - Trouxe-a para lha apresentar, entendeu?

— Pois não, minha senhora; tenho muito gosto em conhecê-la. Esta casa é sua - e acentuou as últimas palavras.

Corina respondeu apenas com um gesto de cabeça. Cinco minutos depois saía apressada, com ar ligeiro e receoso de quem sai de um lugar escuro, onde foi pecar.

Meia hora depois batiam discretamente à porta da casinha. Santinha, que estava só, tendo a dona da casa ido dar umas voltas, foi quem abriu. Era o poeta.

Entrou com o chapéu numa das mãos e a bengala e as luvas na outra, muito tímido, e ficou tão atrapalhado quando deu de face com aquela mulher tentadora que o esperava, que deixou cair a cartola. Tinha-se vestido a capricho e rescendia a new mown hay.

— Entre, meu senhor, no tugúrio humilde onde a sua escrava o espera impaciente - exclamou Santinha, com proposital afetação cômica, para pô-lo à vontade; e tomou-lhe os objetos que tanto o embaraçavam.

— Demorei-me? - perguntou ele, para dizer alguma coisa.

— Não, foi pontual como um inglês.

— O poeta enxugava a fronte com fervor, enquanto pensava: "Sou uma besta. Já devia ter-lhe dado um beijo, ao entrar. Mas agora é ridículo. Daqui a pouco".

Aquele acanhamento encantava a experimentada senhora: gostava de iniciar neófitos nos mistérios venusinos.

— Então, não me dá um beijo? É preciso que eu lhe peça?

O pobre rapaz, que se sentara, decidiu-se então. Tomou-a sobre os joelhos e beijou-a longamente, demoradamente, nos olhos, nos cabelos, na boca, na parte nua do colo. Santinha fechava os olhos, quebrada, rendida, murmurando:

— Como eu te amo! Tu me matas, Ferry, tu me matas! Não imaginas, não podes imaginar como te quero, como te amo! És o meu primeiro amor, juro-te. Oh! Eu sou uma desgraçada! Fiz um casamento desastrado. Meu marido é um burguês grosseiro, materialão, que não compreende, que nunca suspeitou sequer as riquezas ocultas em meu coração. Tanto pior para ele! E a ti, meu adorado poeta, a ti somente que eu as desvendarei... Sou tua amante, tua escrava, uma coisa tua! Mas dize-me: amas-me também um pouco? Dize!

— Adoro-te, Santinha. És a minha luz, o meu sol, o fanal que me ilumina a vida. Queres uma prova? Ouve estes versos.

E sacou do bolso uma folha de papel cor-de-rosa com um friso dourado, dobrada ao meio. Desdobrou-a e começou a ler, com as pernas um pouco dormentes do peso do corpo amado:

Flor que te abriste, perfumosa e bela,

No areal adusto do meu peito enfermo,

Do meu céu negro radiosa estrela,

Que vens lenir o meu sofrer sem termo...

Cada estrofe era pontuada de beijos, a cada verso correspondia uma exclamativa de admiração de Santinha.

Fazia um calor de forno na salinha de dona Miquelina. E o trovador sem decidir-se... Por fim, Santinha observou-lhe:

— Como transpiras! Por que não tiras o paletó? Estamos completamente sós. Temos duas horas para estarmos juntos - as primeiras, meu amor!

Foi então que o poeta deu com a alcova aberta sobre a sala, mostrando uma velha marquesa, comum, sem dossel, com a sua colcha de chita verde e vermelha e as grandes almofadas brancas. Ergueu-se, erguendo a amante, e a foi levando docemente, trêmulo, com as pernas quase esquecidas, suando em bagas.