Folhetim a proposito da carta que o senhor Anthero do Quental dirigiu ao senhor Antonio Feliciano de Castilho
- A carta do sr. Anthero do Quental ao sr. Castilho—Motivo por que tomo a palavra—O sr. Anthero apanhado em «negligé»—Vem a proposito o baixo-profundo Marinozzi, o Banco Ultramarino, D. Ignez de Castro e Camões—As novidades velhas—As porcelanas da Russia—Cita-se Nicoláo Tolentino—Entra-se na questão do ideal—Evocação perigosa—As escolas da decadencia—Não falta Victor Hugo—Para que servem as imagens—O manto de Hercules—As aguias e as galinhas.
Publicou-se ha tempo e tem-se espalhado em Lisboa uma carta dirigida pelo sr. Anthero do Quental ao sr. Antonio Feliciano de Castilho, carta em que o poeta das Odes modernas protesta violenta e virulentamente contra a censura, irrogada pelo cantor do Amor e Melancholia á desastrada escola, de que o sr. Anthero do Quental teve a triste honra de ser um dos fundadores. Fôra lavrada essa censura no artigo de critica litteraria com que o sr. Castilho acompanhou o pobre poema, que ahi publiquei, e que ficou d'essa fórma illustre. Marengo e Austertilz, diz Victor Hugo no prologo das Orientaes, eram duas ignoradas aldeias; immortalisou-as um dos lampejos victoriosos da espada de Napoleão.
Não intento responder á carta; ainda que a pessoa, a quem ella é dirigida, esteja dispensada de responder pela inconveniencia do ataque, não me compete a mim substituil-a. Penna mais competente e mais authorisada por todos os motivos se está preparando para isso; [1] mas eu, que fui um dos primeiros a accusar de falso, de affectado, de absurdo, de gongorico o estylo da escola de Coimbra, hoje, que uma das pythonizas desce da tripode, e vem, em linguagem accessivel aos mortaes, explicar os oraculos, e lançar a luva aos que zombaram dos livros sybillinos, não desamparo o meu posto, e apresso-me a descer á liça, onde encontro afinal um adversario. Não via até agora senão sombras impalpaveis, que fluctuavam nas brumas das abstracções, e se revestiam de um certo ideal, alugado a tanto por ode nos algibebes da Allemanha.
Linguagem accessivel aos mortaes, disse eu já, e repito agora.
«Uma das maiores provas do absurdo d'aquelle estylo, dizia-me um dia d'estes Bulhão Pato illuminando a questão com um dos admiraveis lampejos do seu espirito de poeta, é que até para o defenderem precisam de o abandonarem.» Mais ainda, digo eu; a prova de que esse estylo é affectado é que o sr. Anthero do Quental, quando o seu espirito, excitado pela critica justa ou injusta, que lhe foi feita, se levantou de um impeto para defender-se, quando a palavra lhe brotou espontaneamente dos labios, não procurou phraseado nebuloso, não adoptou fórmas arrevezadas, deixou-a irromper envenenada mas vehemente, resvalar pelo declive natural, reflectir na torrente espumosa o esplendor do sol claro e limpido, o desanuviado azul do nosso firmamento. Apanhámol-o em flagrante delicto de naturalidade. Surprehendemol-o antes de ir para o toucador, sem peruca, sem carmim, sem pó de arroz. É verdade que o vimos tambem em mangas de camisa, e de mangas arregaçadas. Mas antes isso, sr. Anthero do Quental, antes isso do que vestir aquella casaca allemã, tão safadinha já, e que nos quer dar por nova. Innovar, inventar, sr. Anthero do Quental! no tempo de Henrique Heine já essa casaca estava no fio, e ainda encontrou em Coimbra quem a arremendasse! Ah! Coimbra, terra de encanto, do Mondego amena flor o que te falta são alfaiates, que não tenham só obra feita, vinda pelo paquete de Bordeos.
A carta, abstrahindo da verrina indigna do sr. Anthero do Quental, revela um verdadeiro talento, infelizmente para o seu author. A unica desculpa, que tem quem põe cabelleira, é ser calvo. Agora póde o sr. Anthero do Quental voltar quando quizer ao seu tom de oraculo, póde trepar de novo aos pincaros inaccessiveis do seu estylo, vestir-se, compor-se, arrebicar-se, pôr a mascara de lata com que suppõe engrossar a voz, como os actores gregos a robusteciam com a mascara de bronze, esbravejar na tripode, imitar a aguia de Guernesey como o corvo da fabula, que tambem intentou seguir o exemplo da rainha dos ares e que se emmaranhou na lã de um carneiro, exactamente como o sr. Anthero do Quental se emmaranha nas suas lanzudas theorias; improvisar uma Pathmos da Ponte no O, ser o vidente do botequim do Throno, escrever um Apocalipse que se venda por 400 rs. nas lojas do costume, perceber o sr. Theophilo Braga e consentir que elle o perceba, chamar ode ao que nem é charada porque não tem conceito; mas não estranhe, quando estiver todo ufano com o grande uniforme de sybilla, que lhe puxem pelo rabicho e que lhe digam: «Larga a cabelleira.»
Não vou responder á carta, repito, vou apenas levantar as phrases, que foram dirigidas a todos quantos escrevemos n'esta profana Lisboa, para nosso ensino e aproveitamento. Oiçamos com o devido respeito.
Trata-se primeiro de saber qual é o motivo da crua guerra intentada por nós contra a escola de Coimbra, guerra, em que ousámos, sem sermos Titães, escalar o Olympo, o que nos ha de render o ficarmos ahi soterrados debaixo de um Etna de palavriado. O motivo nada tem de litterario, é simplesmente o despeito que nos causa a independencia de caracter dos escriptores da universidade, que não vem enfileirar-se nas nossas phalanges, nem jurar fidelidade aos nossos generaes, e a indignação que a estes inspira o verem aquelles refractarios vagueando independentes nos plainos do Mondego.
Esteve aqui em Lisboa um baixo-profundo Marinozzi, que, tendo sido applaudido no Porto, foi pateado em S. Carlos. Nunca o digno homem se pôde convencer de que essa pateada fosse dada sem segunda intenção, e que a originasse simplesmente ou o seu mau methodo ou a sua má voz. «Fui pagar em Lisboa, dizia elle voltando lacrymoso para a cidade invicta, a questão da dissidencia do banco ultramarino, a iniciativa tomada pelo Porto na idéa da exposição, e outras coisas que excitam os ciumes da capital.» O sr. Anthero tambem opina pelo banco ultramarino e pela iniciativa da exposição. Não o perturbemos n'essa illusão suave. Menos barbaro que Affonso IV com D. Ignez de Castro, deixemol-o passeiar pelos saudosos campos do Mondego.
N'aquelle engano d'alma ledo e cego!
Mas, meu caro sr. Marinozzi, seja menos injusto. Suspeita que essas ovelhas tresmalhadas produzam tamanha desordem no aprisco lisbonense? Julga que os pastores se ralam com a falta de rezes, que foram atacadas pela epizootia, que grassa para esses sitios? Essa razão, que o sr. Anthero allega, não direi que seja uma razão de cabo d'esquadra, mas, como tanto se affeiçoou aos allemães, não se offenderá que eu lhe diga que é... une raison d'allemand.
Qual é o outro merecimento, por causa de qual são lapidados estes prophetas? É porque elles não imitam, mas innovam e inventam.
Innovam o que? Inventam o que? A philosophia de Hegel? os systemas historicos de Vico? a symbolica pagã de Creuzer? o esclarecimento da historia pelo estudo da jurisprudencia de Savigny? a critica de Schlegel, do Raynouard, de Villemain, de Michelet, de Quinet, de Taine? Mas tudo isso já lá fóra desceu das mysteriosas alturas do saber de poucos para a erudição comesinha dos Diccionarios de Conversação. Applicaram pelo menos ao estudo das coisas patrias os novos pharoes accendidos pelos sabios estrangeiros, pharoes que projectam a sua immensa luz nos mares tenebrosos do passado? Não, nem isso, a menos que os artigos do sr. Theophilo Braga, que não dão um passo para além dos prologos de Garrett, não sejam considerados como equivalentes aos trabalhos dos eruditos francezes e allemães! E porque não ha de ser assim?
Eia ardor, coração, vaidade ao menos!
Ávante! Innovem, sem pagarem direitos d'alfandega. Os manufactores russos fabricam jarras de porcelana, pondo nas de Sévres um fundo, que occulta a marca franceza... Cautella, não lhes tirem o fundo, senhores innovadores e inventores! Escrevam livros, artigos
Cujos credores na Allemanha fervem
e fulminem com o seu despreso os que vão pelo trilho da vulgaridade. Venham as innovações requentadas, as invenções em segunda mão, a originalidade da feira da ladra, o ideal de contrabando! Assim fez a gralha, em quanto a não depennaram.
Mas o que tem inventado então? A fórma talvez, o estylo, o phraseado; essa farraparia creio que ninguem lh'a reclama. Essas lentejoulas que tomam por estrellas, essa missanga que impingem por diamantes, essa baeta vermelha com que arremedam purpura, tudo isso é seu, pertence-lhes... Que digo? Nem isso mesmo! nem na parodia foram originaes; já o latego de Nicolau Tolentino flagellava as costas aos patriarchas d'essa escola, no fim do seculo passado.
Aos novos ursos todo o povo acode
O estylo é sybillino, o nome é ode!
Um grito de consciencia obrigou o sr. Anthero do Quental a confessar o parentesco, dando ao seu livro o titulo de Odes modernas. O estylo é sybillino ainda, e parece que o nosso grande satyrico tinha as poesias do sr. Anthero do Quental diante dos olhos, quando escrevia:
As taes poesias (que a entender não chego)
Podres palavras teem desenterrado;
Se levam nó, é tão occulto e cego,
Que quem quer desatal-o vae logrado.
Dizem que imitam n'isto um certo Grego,
Gloria de Thebas, Pindaro chamado,
Se isto é assim, a sua lingua d'oiro
Seria grega, mas fallava moiro.
Mas não é esta ainda a pedra de escandalo; não é essa a grande virtude, que nos obrigou a crucificarmos o sr. Anthero do Quental entre o sr. Theophilo Braga, e o sr. Vieira de Castro. Que este ultimo já provavelmente é repellido como traidor, por que o sr. Vieira de Castro actualmente falla, com eloquencia ou sem eloquencia, não é essa a questão, mas pelo menos na linguagem terrestre. Esse renegou; mas ao sr. Theophilo Braga é que naturalmente o Christo coimbrão abre o seio carinhoso, a esse é que elle diz: Hodie mecum eris in paradiso.
A maxima virtude d'essa escola, a que excita as nossas iras, é a sua adoração pelo ideal, o sacerdocio augusto que esses poetas exercem. Isso sim, isso é que nós não percebemos, por isso é que os apedrejamos.
O ideal! mas o ideal deriva de idéa, e a idéa é o que eu em vão procuro por baixo da tumida crosta das suas poesias. Vejo o sr. Anthero do Quental ora abolir Deus, ora proclamar a obediencia dos astros á lei do infinito. Mas o que é o infinito? É a materia? Materia e infinito são duas palavras que andam aos pontapés uma á outra, como as rimas do sr. Anthero. Mas, admittindo a conciliação do inconciliavel, se é materialista, o que faz o distincto poeta ao ideal, que adora? É por fim de contas um ideal de convenção, bom para produzir effeito, mas em que o poeta não crê? Esse novo idolo teve a sorte de todos os idolos, e são os seus sacerdotes os primeiros que zombam d'elle, zombando do crédulo publico?
Ah! não profane esse nome sagrado, não beba nos vasos santos o vinho dos seus desvairamentos! E sobretudo não profira os grandes nomes de Dante e de Shakespeare, pallido Saul tremente perante as sombras que evoca! E se persistir n'isso, se quizer por força que desçam do altar dos seculos o velho florentino e o tragico britanno, acautele-se porque o bando pueril de que é chefe e que entrou sorrateiramente no templo do ideal por descuido dos sachristães, póde ser escorraçado e disperso, não pelo chicote, que serviu a Jesus para expulsar os mercadores, mas pela férula, que castiga as travessuras das creanças, que vão brincar com coisas de que nada entendem.
Dante era um barbaro, e Shakespeare tambem, diz o sr. Anthero do Quental, reclamando a confraternidade da barbaria. Engana-se; o sr. Anthero não é um barbaro, é um grego do Baixo Imperio. A sua escola é a turba de vermes, que brota da putrefacção de uma litteratura. É para os grandes homens do romantismo o que foi Claudiano para Virgilio, Marini para Tasso, Campistron para Corneille. A apparição da sua escola é um facto mil vezes repetido na historia litteraria, e a que inevitavelmente se segue uma reacção salutar. Cumpram a sua missão; mas, ao resvalarem no precipicio, não se aferrem a essas arvores gigantes, que resumem em si uma litteratura inteira. Parasitas do ideal, não se enrosquem nos robles; mosquitos do coche litterario, não queiram ser como a sua collega da fabula, que zunia em torno dos corseis que puxavam o vehiculo, e andava n'uma azafama constante, esfalfada e ufana, persuadindo-se a si, e querendo persuadir os outros de que era ella e ella só quem arrastava o carro.
Tambem Victor Hugo foi chamado a proteger as locubrações do sr. Anthero e as suas estolas do infinito. Se julgam encontrar nos livros de Victor Hugo authorisação para o emprego d'essas imagens absurdas, mostram mais uma vez que nem entendem os modêlos que tomam. As imagens do poeta exilado, por mais arrojadas que sejam, despertam sempre uma idéa no espirito dos leitores. A imagem (deixem-me fallar a sua lingua, e citar até, se me não engano, o sr. Theophilo Braga), é a expressão visivel do Sentimento. A imagem dá um corpo á idéa, e faz com que a vejam os olhos da phantasia. Quando Victor Hugo, n'uma synthese audaz, nos diz que a ave leva o infinito preso na ponta d'aza, vemos de relance a cadeia immensa dos seres, cujos fusis extremos se ligam; que idéa nos desperta a estola do infinito? quando encontrou o sr. Anthero do Quental, em Victor Hugo, uma imagem tão ôca de sentido como esta! E, se alguma vez a encontrou, foi de certo nos instantes em que a imperfectibilidade humana venceu a inspiração divina, foi nos momentos em que dormia Homero, e é uma covardia, sr. Anthero do Quental, aproveitar-se do somno do gigante, para lhe ir estampar na fronte o indelevel estygma da sua imitação.
Mas o gigante desperta; levanta-se o Hercules, e, ao sacudir o manto, deixa cair os pygmeus, que lá se esconderam, na lama d'onde brotaram. As aguias não saem das capoeiras, disse, com muita razão o sr. Anthero; mas tambem não basta não sair de uma capoeira para ser aguia. As gallinhas tresmalhadas, que se mettem nos ninhos dos alcantís, podem julgar-se similhantes ás aves de Jupiter; mas quando se trata de voar, sobem as aguias para o ceu, desabam as gallinhas... no quintal. Cacarejem embora vituperios; os genios, a quem insultam, e aquelles a quem imitam (insulto ainda maior), pairam enlaçados no firmamento, e os zoilos nem terão a triste gloria de ser amarrados por elles ao pelourinho da sua immortalidade.
- ↑ Referia-me ao sr. Julio de Castilho, cuja carta já foi publicada.