Guerra dos Mascates/I/I

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A tarde do dia 1º de outubro de 1710 não teve cousa de maior.

Foi uma tarde como qualquer, em fazendo bom tempo. O sol tinha a cara dos mais dias, aí pela volta das quatro horas que seriam então; nada mais, a não ser uma carapuça de algodão que lá as nuvens haviam encasquetado na cabeça do astro para guardá-lo de constipar-se com o relento.

E o mais é que assim encarapuçado, Febo, como ainda o chamavam então os poetas e os namorados, fazia a figura de um Xerxes trajado à moda de rei constitucional, de casaca e chapéu redondo.

O céu estava azul mais ou menos; o mar pelo mesmo teor; levanta-se a viração e as árvores tinham o verde do costume, misturado com alguns ramos secos e folhas murchas. Também deviam de cantar pelos arredores alguns passarinhos; não falando das flores que sem dúvida estrelavam o campo.

Agora, se era de cetim o manto do firmamento, e de safira a redoma do oceano; se as auras suspiravam amores nos seios das boninas, e arrulhavam saudades as rolas melancólicas, enquanto as açucenas abriam as suas caçoulas cheias de perfumes, não sei eu: que não o diz a crônica.

Mas por isso não haja queixa. Tome cada um de sedas, pedrarias, endeixas e fragrâncias, quanta porção queira, e vá enfeitando e arrebicando a minha descrição a seu gosto. Eu cá prefiro a simplicidade, que é o mais cômodo de todos os estilos; basta ver que forra-se a gente ao trabalho de fantasiar, e deixa isso ao leitor.

Há nada como aquele modo chão de principiar as histórias da carocha? - Foi um dia... E cada um que imagine o tal dia à sua feição, de inverno ou de verão, de outono ou primavera, como lhe saiba melhor.

Pois era uma tarde... e a janela do sótão, na casa do. Perereca, abria manso e manso fazendo uma fresta, onde se mostrou a medo a ponta arrebitada do mais lindo narizinho retorcido de que há notícia desde Aglaia, a qual o tinha de primor, valha a fábula, como a graça que era do chiste e da malícia, donde veio chamarem-na os gregos de esplêndida.

Agora vejo que não se conhece ainda a casa, nem o lugar em que estava situada, sem falar de outras particularidades, que não deixam de ser curiosas, com especialidade o dono; pois, e não digo novidade, se em geral os prédios são cousa de seu proprietário, também donos há que são acessórios de sua casa.

Estamos no Recife.

Andando a Rua da Praia dos Coqueiros, no bairro de Santo Antônio, quem ia naquele tempo do Colégio para as bandas das Cinco Pontas, quase a meio caminho encontrava um vasto edifício que ficava fronteiro à barra; ainda a Rua da Maré com sua casaria não se tinha prolongado até aquele ponto da ribeira.

Larga e baixa, a casa terreira acaçapava-se entre o arvoredo do quintal que a beirava de um e outro lado; mas dava logo nas vistas pela especialidade da pintura extravagante com que a haviam lambuzado, pois outra qualificação não quadraria à incrível borradela.

Tinha cerca de quatro anos o edifício. Acabada nele a obra de pedreiro e carapina, quando se teve de passar ao artigo pintura, vieram as tribulações para o dono, o digno Sr. Simão Ribas, mascate de peso e marca entre os principais do Recife.

Não sei se já ai por essa monarquia doméstica tinham inventado o governo pessoal, e usavam as calças responsáveis meterem-se por baixo da saia inviolável. Cá, no meu alfarrábio, só vejo que houve muita rezinga e altercação, acabando o bate-barba ou questão de alcova, como de costume, com o triunfo completo da trunfa, que era então, como o coque é hoje, a coroa doméstica.

Sabidas as contas, decidira a Sr.a Rufina Ribas que a fachada fosse de uma cor farfante e para ver-se a léguas, lá do alto-mar. Antes de surdir o navio pelo Lameirão adentro, queria a respeitável matrona que sua casa nova entrasse pelas vistas da gente que vinha da santa terrinha.

Nem por sombras ocorreu ao marido a idéia de opor-se à vontade de sua dona. Era um marido constitucional o Sr. Simão Ribas; e não há ai ministro cortesão, a que ele não levasse as lampas na arte insigne de fundir-se, como cera, em figurinhas moldadas ao capricho mulheril. Não foram, pois, assomos de resistência que perturbaram a paz doméstica; ao inverso, proveio tudo de excessos de zelo e obediência.

Chamado a conselho o exímio borrador a fim de dar alvitre sobre o caso, foi de voto que não havia como o zarcão, para fazer o gosto à Sr.a Rufina. Dito e feito: no dia seguinte amanheceu a parede assanhada com uma crosta do mais coruscante vermelho.

Muito ancho de si, o digno mascate já se regozijava de ter uma vez na a feito as cousas ao agrado da querida metade, quando lhe veio ela deitar água na fervura. Esguelhando à parede um olhar impertinente, espevitou o nariz, torceu o beiço, e deu um muxoxo, que erriçou os cabelos ao marido.

Barulh0 no caso: novo apelo ao borrador que gizou a combinação do verdete com o zarcão; e assim, de rezinga em rezinga, chegou-se àquele espalha. fato de todas as cores, onde o azul brigava com o encarnado, o verde com o vermelho, e o roxo-terra com o amarelo da oca. Era cousa indescritível, que o prospeto de algumas tabernas de hoje ainda não conseguiu imitar.

Nos primeiros dias esteve a casa de mostra aos basbaques e pascácios que por lá iam, para se pasmarem diante daquela maravilha. Por um mês não se falou no Recife doutra cousa; até que um dia lá apareceu pela manhã escrito a carvão, na frente, este dístico maligno - Perereca.

Lavou-se da parede a tisna, mas a alcunha ficou ai fisgada à casa, como se a tivessem gravado em bronze. Fora o brejeiro de um rapaz que, voltando a ave-maria da escola e ouvindo cantar a rã numa touça de bananeiras, lembrou-se da semelhança que tinha com a frente da casa, e escreveu-lhe o nome na parede. Ao outro dia, antes que apagassem as letras, sucedeu passarem ai um frade, uma comadre e um soldado. Leu o franciscano em voz alta, se julgando a sós, e riu-se: ouviram-no os dois que atinaram com a graça.

Tanto bastou para que ao meio-dia se soubesse em todo o Recife do acontecido; e, pelo plebiscito do motejo unânime, a casa sarapintada ficou sendo conhecida pelo nome expressivo de - Casa do Perereca.

Cobria o edifício um telhado de largas abas e alto cocuruto, que lançava em cada quina uma ponta de barro com pretensões a figura de marreca. Nas duas faces laterais erguiam-se as águas-furtadas do sótão, que rasgava duas janelas, uma para cada banda.

Na janela da direita, que durante o dia estava aberta sempre, de costume estendiam em um cordel passado de uma à outra ombreira certa colcha de chita de ramagens, que ao sopro do vento desfraldava-se à guisa de estandarte. Quem tinha a dita de conhecer a Sra. Rufina Ribas, acertando de passar por aqueles sítios e dando com o espantalho da tal coberta, adivinhava logo que era da garrida matrona essa janela.

Tinha outro ar e outros modos a janela da esquerda. Começava logo por uma latada que lhe haviam armado em volta, e lhe servia como de capuz, com as ramadas do maracujazeiro, entrelaçada pelos escaques do caramanchel. Dava-lhe isso, à tal janelinha, uns biocos de freira, mas de freira moça e bonita, que lá do remanso do claustro enfia pela grade uma olhadela curiosa e ávida do burburinho do mundo.

Outra diferença vinha de estarem as adufas da direita sempre cerradas, em horas soalheiras; nisso pareciam-se com o cálice de certas flores e com os cílios da juriti, que fecham-se pela muita luz e só abrem ao doce toque do crepúsculo. Todavia não eram elas tão recatadas do sol, que não se descerrassem lá uma ou outra vez, na calma do dia, sobretudo aos domingos, para deixar que entrasse algum raio fagueiro pela câmara do sótão.

No estreito eirado, rente com o peitoril, havia três vasos de barro onde cresciam várias plantas. A mão que reunira ai o alvo bogarim, a rubra cravina, o goivo amarelo e os bagos escarlates da pimenta, esse conjunto singular lhe estava denunciando a travessura. Se é verdade, e eu creio, que a alma imprime nos objetos que a cercam a sua própria feição, podia-se ver naquele grupo de plantas o enigma de um coração.

Não seria o alvo bogarim o reflexo da candidez, como as pétalas da cravina a imagem dos vivos rubores de uma petulante castidade? O goivo, ali na mansão da juventude, não exprimia a descuidosa alegria, que orvalha de risos até as horas aziagas? E naqueles bagos vermelhos e brilhantes da pimenta, não havia quiçá o emblema das unhas de nácar, habituadas a insinuar no afago o belisco traiçoeiro?

Afinal de contas, quem sabe se apesar de todas as suas mostras encantadoras não estava a tal sonsa da janelinha enganando a gente que passava, como certas moças do tempo de hoje, cujo fraco é porem-se às vessas; quero eu dizer, e sem malícia, que se empenham com todas as forças para fazerem-se outras, das que as criou a natureza.

Assim tosquia-se para fazer cachos, aquela que Deus ornou com a túnica mais bela, que é uma soberba madeixa. Se não a possuísse, havia de esmagar a cabeça com uma trouxa enorme de cabelos postiços. Estufa-se a magra com enchimentos para simular contornos, como a gorda se espartilha e acocha para figurar de esbelta. E nesse teor, enganando-se a si e aos outros, vai o mundo a rolar como uma bola que é, levantando estes e abaixando aqueles, mas por fim esmoendo a todos.

Eis porque não seria caso de espantar, se naquela janelinha tão louçã viesse a aparecer uma velha encarquilhada, descobrindo-se afinal que o nosso narizinho retorcido não passava da ponta fungada do cavalete setuagenário de um respeitável par de óculos de tartaruga.

Tudo pode ser.