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Guerra dos Mascates/II/V

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Marcou-se para as bodas o dia 1º de setembro de 1709, que veio a cair em domingo.

Fora preciso a Vital a muita paciência que ele tirava de seu grande amor para suportar até aquele dia as impertinências e arrogâncias da família Holanda. Começara pelo sim, que só lhe deram depois de mil negaças, havendo o cuidado de encarecer-lhe sobre medida a honra que recebia com essa aliança à qual se tinham movido por comiseração às súplicas de Leonor.

Dissimulando a revolta de seus brios, soube Rebelo, todavia sem quebra da cortesia, rebater-lhes a arrogância.

— Podeis guardar esta certeza, senhores. Tão precioso tesouro é para mim, irmão de D. Leonor, que a nobreza de Pernambuco não tem cousa que o valha, nem eu o trocaria por todas as fidalguias do mundo. Por isso não canso de agradecer a Deus, Nosso Senhor, a ventura de ma ter concedido.

No dia marcado, e à noite, como era então o costume, celebraram-se as bodas nas casas de João Cavalcanti, com a pompa e luzimento adequados à fidalguia da noiva e riqueza do noivo.

Leonor estava deslumbrante sob os cândidos véus que lhe nublavam de tênue sombra diáfana a imagem formosa, tocada pelas vivas tintas do rubor, e lhe perfumavam a lindeza de uma graça angélica.

O nosso amigo Lisardo de Albertim, no epitalâmio que teve de recitar à mesa do banquete, na sua qualidade de poeta familiar da casa, comparou a gentil noiva com a Aurora, a deusa da luz descendo dos céus, aljofrada de orvalhos, para abrir com os clássicos dedos de rosa as portas do Oriente:

Envolta nos puros véus,
Qual Aurora prazenteira
Que meiga desce dos céus
Ao raiar da luz primeira,

De per'las vestindo o manto luzente
Para abrir as do Oriente
Rijas portas de rubim;
Ela, a dríade formosa destes prados,
Com seus dedos de rosa e de jasmim,
Abre os pórticos dourados
Do templo do himeneu.

Era feliz o Albertim nas suas comparações. Ali, no meio da sala, se repimpava D. Severa, a ninfa olindense, que esticada por um vestido verde-gaio a ponto de verter sangue da cara, estava retratando o madrigal do poeta, como a viva imagem de uma roseira de Alexandria.

Desde o principio da noite que se poderia observar na sala entre os parentes da noiva um continuo apuridar-se que não era consoante em companhia de amigos e para fim tão prazenteiro como aquele.

Não deixou Vital Rebelo de fazer esse reparo, assim como de notar que o centro daquela trama de cochichos que se estava urdindo ali, era o bacharel Filipe Uchoa, pessoa a quem apesar de camarada ele já não via com boa sombra pela indizível repugnância que lhe causavam aqueles ademanes refolhados.

Reclamado pela cerimônia religiosa, que ia fixar a sua sorte e prende-lo por laços indissolúveis, não prestou mais atenção àqueles manejos senão à hora do banquete em que eles se tornaram mais inquietos, porventura com a aproximação do momento esperado.

Sentiu o mancebo um vago e indizível receio travar-lhe do coração, que nesse instante se engolfava na ventura de achar-se unido para todo o sempre à sua Leonor. Era como o pressentimento de uma nuvem que pudesse toldar de repente o céu límpido dessa felicidade tão ansiada.

O Capitão-Mor João Cavalcanti, depois de ter rendido o preito que um bom fidalgo devia a tão suntuoso banquete, levantou aos noivos o brinde de honra fazendo voto para que lograssem unidos muitos e longos anos de felicidade; no que foi acompanhado por todos os convivas, mas sem efusão.

Preenchido esse ato do cerimonial que lhe competia de juro como chefe da linhagem, eclipsou-se o capitão-mor da casa do banquete e recolheu-se aos seus aposentos de dormir, pois era chegada a sua hora habitual.

Era então costume, que se acabou com a recente invasão das modas francesas, continuar a festa das bodas até ao romper da alvorada.

No maior calor do baile e das folganças, os noivos iludindo a vigilância e dicho dos convivas maliciosos buscavam esgueirar-se furtivamente, azo que nem sempre se lhes deparava.

Não sofria a gravidade dos Cavalcantis esses remoques ou. não o tinham por conveniente naquela ocasião. Assim que, pouco tempo não era passado desde a saída do capitão-mor, quando o Tenente-Coronel Antônio Tavares tomando a direção da festa, falou alto do meio da casa:

— É hora, senhores, de acompanharmos os noivos.

Chegou-se Vital Rebelo, que viu a todos os convivas em alas à espera que fosse ele dar o braço a Leonor, para tomar a frente do préstito.

— Não vejo à porta o palanquim de D. Leonor, nem os nossos cavalos.

Os parentes, a essa observação, entreolharam-se um tanto confusos, e Filipe Uchoa desdobrando pichosamente o seu fino lenço de batista, passou a limpar o vidro dos óculos, com o apuro que ele punha em todas as minudências.

Afinal, como Vital se não movia, à espera da resposta, decidiu-se Antônio Tavares a falar:

— E para que palanquins e cavalgaduras?

— Pois não vedes que a minha senhora D. Leonor e estas damas não podem ir a pé até o Recife? tornou o mancebo surpreso.

— Mas se não vamos ao Recife! acudiu o Tavares com despacho.

— Não vamos ao Recife?... E porventura não é aí que moro eu, senhores, e que tenho casa preparada para receber-nos? exclamou Vital que sentia aproximar-se a tormenta.

Nesse momento adiantou-se o licenciado José Tavares, que era o lampião da irmandade e tomou a palavra. O Filipe Uchoa deixou-se ficar na penumbra, pondo os óculos para apreciar o modo por que o primo ia desempenhar o seu papel.

— Assentamos, a senhora D. Antônia de Figueiredo Barbalho e seus irmãos, em que sua filha e nossa, pois como tios lhe fazemos as vezes de pai, ficasse estes primeiros tempos aposentada em nossa companhia, e nesta conformidade mandamos preparar na casa vizinha os alojamentos precisos, que estão prontos para recebê-la e a seu noivo.

— Ah! E a quem devo tão fina lembrança? Quero apostar que ao nosso amigo, o senhor bacharel Filipe Uchoa?

Proferindo estas palavras com um sorriso de ironia, Vital procurou com o olhar ao bacharel, o qual estava então muito entretido em provar a D. Severa que os encantos nela aumentavam com os anos e que em vez de invernos a ninfa podia afoitamente contar cinqüenta primaveras.

Não se enganara Rebelo. Fora com eleito Filipe Uchoa quem urdira essa conspiração nupcial, com aquela destreza que Sebastião de Castro tanto prezara outrora, quando não havia ainda bem experimentado a do Barbosa de Lima.

Obrigados da necessidade e respeito ao capitão-mor a consentir no casamento de Leonor com o filho do mascate, a mãe e tios da moça não podiam esconder o seu descontentamento. Deste se aproveitou o bacharel para tecer o seu plano cuja suma o José Tavares acabava de anunciar.

Fazendo que Vital Rebelo, rendido aos encantos da noiva, se deixasse ficar na companhia da sogra, seqüestrava-se o novo parente à ralé donde infelizmente procedia, e contava-se com a sedução de Leonor e os conselhos dos tios. para essa regeneração, que se podia consumar com a mercê régia de algum hábito de Cristo.

Desta sorte transformado o mascate do Recife em nobre de Olinda, não somente se apagava a mancha nos brasões da família, mas ainda por cima se ganhava um partidista de grande valia, por seus dotes pessoais, como por seus na veres; e assim pelejariam o inimigo com esse forte reduto, que ele não soubera defender.

A urdidura deste estratagema e o seu discurso foram, como dissemos, de Felipe. Uchoa que excedeu-se em pô-la por obra, encarecendo-lhe as vantagens e ensaiando os vários papéis. Mas a inspiração ou traça primeira parece ter saído do Paço de Santo Antônio.

Entre as boas manhas, de que era tão prendado Sebastião de Castro, uma em que muito se apurou, foi a de insinuar no ânimo de outrem uma idéia, mas de forma e com tal sutileza, que nem ele a exprimia, nem o seu interlocutor poderia asseverar que a ouvira.

Tinha ele diversos métodos para esta sorte, sendo mais freqüente o de por exclusão de partes sugerir no ânimo alheio, por modo que parecia espontâneo, aquilo que tinha em mente, e que não lhe convinha comunicar por palavras sempre arriscadas.

Assim, querendo nomear certo sujeito para algum ofício, se lhe não fazia conta mostrar sua predileção, entrava a achar pecha em todos os indicados, dando uns sinais de quem serviria ao caso, até que o Ajudante Negreiros soletrava-lhe o nome do tal, e ele o acolhia como uma surpresa.

A verdade é que foi na volta do palácio, uma noite, que Filipe Uchoa concebeu o seu engenhoso plano.

Apesar da raiva que tinham a Sebastião de Castro e da linguagem solta que usavam a seu respeito, não deixavam os principais de Olinda de comparecer uma vez por semana no Palácio das Duas Torres, para cumprimentar o governador, pelo qual eram acolhidos com as mostras do mais especial agrado.

Como bom político, pensava o fidalgo que a nau do Estado devia por sua grande monta andar sempre a duas amarras. Com esta máxima significava que se devem distribuir os favores entre os partidos, de modo que tocando a um as mercês, ao outro fiquem os afagos.

Por isso era o governador o primeiro antagonista dos mascates, de quem se rodeava, assim como o primeiro apologista dos nobres, que não perdiam ocasião de feri-lo.

Estando pois em palácio os principais de Olinda, acertou-se de falar do ajustado enlace de D. Leonor Barbalho com Vital Rebelo; e tomando o governador interesse na prática, alongou-se esta pela noite adiante.

Haverá quem repare em ocupar-se longamente do casamento de uma moça, um governador, cujo pensamento deve estar sempre preocupado de negócios de suma gravidade. Mas, além de contar-se o talento das minudências entre ápices régios, atenda-se a que naqueles tempos idos a arte da governança ainda se praticava por esse teor da política de aldeia.

Demais, tenho para mim que no alfarrábio donde se vai extraindo esta crônica anda metida muita alegoria, com que o letrado Carlos de Enéia, seu apócrifo autor, quis significar certos enredos de governo por contos de amor. figurando talvez interessado na sorte das damas quem somente se movia pela vaidade das honras e ambição do mando.

De envolta com boa cópia de banalidades, deixou Sebastião de Castro escapar a suposição de que Vital, aliando-se à família Holanda, seria atraído insensivelmente para o partido dos nobres com o que estes muito ganhavam.

Esta semente lançada em tão boa terra, e com o amanho de Filipe Uchoa, por força que havia de dar fruto. E a prova aí estava no plano tão bem tecido para reter em Olinda o noivo de Leonor.

Compreendeu Vital de pronto o desígnio dos novos parentes e a desvantagem de sua posição. Como última concessão ao orgulho dos nobres, e também para não expor ao desdém e motejo seus amigos mercadores, não os convidara o noivo a suas bodas, e se acompanhara nelas unicamente de um amigo, o Capitão Eusébio Monteiro, que estava a seu lado.

Não se deteve, porém, o brioso mancebo, e erguendo a fronte com serena altivez, atirou aos nobres estas palavras:

— Pois, senhores, com bastante mágoa vos digo eu que de D. Leonor Barbalho, enquanto donzela, podiam sua mãe e seus tios dispor a belprazer; de D. Leonor Rebelo, minha esposa e senhora, não dispõe ninguém mais senão ela, e porque dando-me sua mão, aceitou-se por minha companheira e dona de quanto me pertence, é de razão que a conduza a sua casa.

Voltando-se então para o amigo:

— Capitão Eusébio Monteiro, mandai vir o palanquim de D. Leonor e os cavalos que meus criados devem ter à mão aqui perto.

Enquanto saía o capitão a satisfazer o pedido, Leonor aproximou-se tímida e vergonhosa de seu noivo para suplicar-lhe que fizesse a vontade à mãe.

Pelos olhares que trocava a donzela com D. Lourença, enquanto balbuciava palavras trêmulas, se estava conhecendo que ela desempenhava uma parte que lhe fora destinada naquele drama de família.

Ao ver com que respeito Vital escutava Leonor e o mimo de suas maneiras buscando dissuadi-la da idéia de condescender com a vontade da mãe, os parentes tinham por certa a vitória. Cuidavam eles que às delícias de uma noite de noivado, não havia tenção que lhe resistisse.

Da porta, Eusébio Monteiro fez sinal ao amigo, que sua ordem estava cumprida.

— Vamos, D. Leonor! disse Vital oferecendo a mão à sua noiva.

Ainda chegou a donzela a roçar os dedos afilados na palma do cavalheiro: mas retraiu-se logo sob o olhar de sua mãe e a um movimento da tia D. Lourença, que lhe puxara pela manga.

Voltou-se o mancebo, sentindo que a donzela retraía-se:

— Então, senhora?

— Não posso! balbuciou Leonor.

— Não podeis acompanhar-me à vossa casa do Recife? insistiu Vital empalidecendo.

Pôs o mancebo os olhos cheios d'alma em sua amada e disse-lhe com a voz repassada de tristeza:

— D. Leonor, acabastes de jurar a Deus neste mesmo momento de me acompanhar por toda a vida, como eu a vós, e sermos eternamente um do outro; ainda se não apagou o eco destas palavras, e já em vossa alma se apagou a lembrança delas, que recusais seguir o esposo e entrar em vossa casa para ficar na alheia?

— Nunca lhe será alheia a casa em que nasceu, acudiu D. Antônia de Figueiredo.

— Sabe Deus, senhora, continuou Vital dirigindo-se à noiva, quanto me mereceis; sabe o quanto fiz para obter vossa mão e o muito mais que faria. Tudo pareceu-me pouco, e ainda me parece neste momento. Só uma cousa vos não dei nem a posso dar, que sem ela não seria digno de vosso amor. Mas essa, que é a honra, ninguém a deve mais resguardar do que a por quem, sobre todos e sobre mim, a prezo e estimo.

— Pretende o Senhor Rebelo que lhe é desonra nossa companhia! observou Felipe Uchoa.

— Desonra seria renegar dos meus e bandear-me a outros, tornou o mancebo indiferente à ironia. Não posso ficar em Olinda, D. Leonor, sem quebra de meu nome, que por não ser de nobre, não o é menos para mim, pois vos pertence. Deixar-me-eis partir só, e vos negareis desta sorte àquele a quem vos destinou e vós mesma vos concedestes?

Decorreu um instante no mais profundo silêncio. Com os olhos fitos em sua noiva, Vital esperava uma palavra, um gesto de aquiescência.

— Adeus, senhora! disse afinal com uma voz em que se lhe partia a alma.

E caminhou para a porta.

Este desfecho não o esperavam os parentes que tomados de surpresa, se foram ao primeiro assomo de despeito. Antônio Tavares, primeiro, e os outros após, arrancaram das espadas com brados de sanha:

— Daqui não saireis!

Lançou-lhes Vital um olhar de frio desprezo.

— Se eu não estivesse em casa de fidalgos, cuidara ter caído em uma emboscada. Quereis forrar-me ao desgosto de deixar-vos? Tendes um meio certo, que é tirar-me este resto de vida, com o que me fareis grande amizade, própria de parentes que sois.

Com estas palavras amargas, cruzara os braços o mancebo afrontando sereno as ameaças dos nobres, que já cobrados do primeiro arranco, se retraíam confusos e desconfiados.

A agitação que houvera na sala não deixou ver o arrebatamento de Leonor, a qual no momento de sacarem seus tios das espadas, se arremessou para defender com o corpo o peito do marido. D. Antônia e D. Lourença, lhe estavam ao lado, reprimiram este generoso movimento.

Como se tivessem de todo reportado os nobres, deixando-lhe franco o passo, atravessou Vital vagarosamente a sala, e voltou-se do limiar da porta para dizer ainda uma vez:

— Adeus, senhora!

Leonor desmaiara, mas não o viu o marido, que já tinha desaparecido no corredor da saída.