História da Mitologia/XXXI

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As Aventuras de Eneias[editar]

Eneias fugindo de Troia, carregando seu pai Anquises.
pintura de Federico Barocci (1528–1612)

Seguimos Ulisses, um dos heróis gregos, em suas peregrinações ao retornar de Troia, e agora estamos dispostos a partilhar o destino dos demais povos conquistados, sob o comando de Eneias, em busca de um novo lar, após a destruição da sua cidade natal. Naquela noite fatídica, quando o cavalo de madeira despejou seu conteúdo de homens armados, resultando na captura e assolamento da cidade, Eneias fugiu da cena de destruição, junto com seu pai, sua esposa e seu filho. O pai, Anquises, era velho demais para caminhar com a velocidade necessária, e Eneias teve de carregá-lo nos ombros.[1] Carregando o pai, conduzindo o próprio filho e seguido pela esposa, procurou se safar da cidade em chamas, mas, durante a confusão, sua esposa se perdeu e desapareceu.

Ao chegarem no lugar de encontro, ali se reuniam inúmeros fugitivos de ambos os sexos, que imediatamente se puseram a serviço de Eneias. Alguns meses foram gastos com os preparativos, e finalmente, eles embarcaram. O primeiro desembarque foi feito nas vizinhanças da costa da Trácia, e estavam se preparando para construirem uma cidade, quando Eneias se deteve por causa de um fato extraordinário. Ao se preparar para oferecer um sacrifício, Eneias arrancou alguns matos de uma touceira nas imediações. Para seu desalento, da parte ferida caíam algumas gotas de sangue. Ao repetir a ação, uma voz que vinha do chão gritou para ele, "Poupa-me, Eneias, sou teu parente, Polidoro, que aqui foi morto crivado de flechas, tendo aqui nascido este arbusto, que é alimentado pelo meu sangue." Estas palavras fizeram com que Eneais se recordasse de que Polidoro fora um jovem príncipe de Troia, a quem seu pai havia enviado às terras vizinhas da Trácia, portando valiosos tesouros, para que ali fosse educado, afastado dos horrores da guerra. O rei, a quem ele havia sido enviado, o assassinara e tomou posse de seus tesouros. Eneias e seus companheiros, considerando que a terra fora amaldiçoada pela mancha de tão hediondo crime, fugiu imediatamente dali.

Em seguida, desembarcaram na ilha de Delos, a qual a princípio tinha sido uma ilha flutuante, até que Júpiter a prendeu ao fundo do mar com correntes de diamantes. Apolo e Diana tinham nascido ali, e a ilha era consagrada a Apolo. Nessa cidade, Eneias consultou o oráculo de Apolo, e recebeu uma resposta, ambígua como sempre, -- "Procura a tua antiga pátria, e nesse lugar o povo de Eneias deverá habitar, obedecendo ao teu comando todas as outras nações." Os troianos ouviram isso com alegria e imediatamente começaram a perguntar uns para os outros, "Onde fica o lugar mencionado pelo oráculo?" Anquises então, se lembrou de que havia uma lenda que dizia que seus antepassados tinham vindo de Creta e para lá decidiram se dirigir.

Chegaram eles então a Creta e começaram a construir a cidade, mas a doença se infiltrou entre eles, e os campos que eles haviam plantado não produziram nem uma colheita. Com este quadro sombrio de preocupações, Eneias foi avisado num sonho para deixar o país e procurar uma terra no Ocidente, chamada Hespéria, de onde Dardano, o verdadeiro fundador da raça troiana, havia migrado originalmente. Para a região de Hespéria, hoje chamada de Itália, eles decidiram partir, e somente depois de muitas aventuras e um lapso de tempo dilatado o bastante para fazer com que um navegador moderno realizasse várias voltas ao redor do mundo, conseguiram eles chegar até o lugar.

As Harpias[editar]

O primeiro desembarque deles foi na ilha das Harpias. Estas aves eram nojentas e tinham cabeças de donzelas, com garras longas e semblantes pálidos como a fome. Elas haviam sido enviadas pelos deuses para atormentarem um certo Fineu, a quem Júpiter havia privado da visão, como punição pela sua crueldade, e sempre que um alimento era colocado diante dele, as Harpias se lançavam do ar onde estavam e o levavam embora. Elas foram expulsas pelos herois da expedição dos argonautas, e se refugiram na ilha onde Eneias as havia encontrado.

Quando eles entraram no porto, os troianos viram uma manada de gado perambulando pelas planícies. Eles mataram tanto quanto desejaram e se preparavam para festejar. Porém, mal eles haviam se sentado à mesa, e gritos assustadores se ouviram no ar, quando um bando dessas harpias odiosas avançou em direção a eles, levando em suas garras o alimento dos pratos e voando para muito longe. Eneias e seus companheiros desembainharam suas espadas e aplicaram golpes contra os monstros, que de nada adiantava, pois as aves eram tão ágeis, que era praticamente impossível atingi-las, e suas penas eram como armaduras impenetráveis pelo aço. Uma delas, empoleirou-se numa falésia das imediações, e gritava, "É dessa maneira, troianos, que tratais aves inocentes, primeiro matando nosso gado e depois declarando guerra contra nós?"

A ave, então, vaticinou augúrios para eles com duros sofrimentos no futuro, depois de ter ventilado toda sua ira, voou para longe. Os troianos se apressaram em deixar o país, e em seguida se viram costeando o litoral de Épiro. Ali desembarcaram, e para supresa deles souberam que alguns exilados troianos, que haviam sido trazidos até esse lugar como prisioneiros, haviam se tornado governantes daquele país. Andrômaca, viúva de Heitor, se tornou esposa de um dos vitoriosos chefes dos gregos, a quem dera um filho. Com a morte do marido, ela se tornou regente do país, bem como guardiã do próprio filho, tendo se casado com um companheiro de cativeiro, Heleno, que pertencia à raça real de Troia. Heleno e Andrômaca trataram dos exilados com a mais respeitável hospitalidade, tendo-se despedido deles carregados de presentes.

Dessa costa, Eneias margeou o litoral da Sicília, passando pelo país dos Ciclopes. Aí, foram saudados da praia por um andarilho, que pelas vestes, esfarrapadas como eram, perceberam que se tratava de um grego. Ele os notificou de que era um dos companheiros de Ulisses, deixado para trás por aquele líder, em sua apressada fuga. Ele contou a história das aventuras de Ulisses com o gigante Polifemo, e suplicou a eles para que o levassem consigo, pois não tinha meios de sobreviver naquele lugar, com exceção de frutas silvestres e raízes, vivendo constantemente assustado por causa dos Ciclopes.

E enquanto falava, Polifemo apareceu, como monstro terrível, disforme, gigantesco, e cujo único olho lhe havia sido arrancado. Ele andava com passos vacilantes, tocando o caminho com um cajado, até a costa do mar, para lavar com água sua cavidade ocular. Quando ele chegou na água, ele avançou em direção aos homens, pois a sua altura gigantesca lhe possibilitava avançar grandes distâncias mar adentro, de modo que os assustados troianos, pegaram seus remos para se afastarem do caminho. Ouvindo o barulho dos remos, Polifemo gritava para eles, tão alto que as praias ecoavam, e ao ouvirem o barulho de outros Ciclopes que saíam de suas cavernas e bosques, fazendo fila ao longo da praia, alinhados como uma fileira de majestosos pinheiros, os troianos puseram seus remos para funcionar e não demorou muito e já estavam longe dali.

Eneias tinha sido alertado por Heleno para evitar o estreito vigiado por Cila e Caríbdis. Lá Ulisses, o leitor irá se lembrar, perdeu seis dos seus homens, dominados por Cila enquanto os navegadores estavam totalmente decididos a evitar Caríbdis. Eneias, seguindo o aviso de Heleno, evitou a perigosa travessia e costeou ao longo da ilha da Sicília.

Juno, vendo que os troianos se apressavam em chegar rapidamente ao litoral de destino, sentiu renascer contra eles um velho rancor, pois ela não conseguia esquecer a desfeita que Páris lhe havia infligido, ao oferecer o prêmio da beleza para outra divindade. Nas mentes celestiais tais ressentimentos também podem habitar.<Monstrum horrendum, informe,ingens, cui lumen ademptum.</ref> Então, ela correu até Éolo, o governante dos ventos, -- o mesmo que dotou Ulisses com ventos propícios e o presenteou com ventos contrários contidos dentro de um saco. Éolo obedeceu a deusa e ordenou que seus filhos, Bóreas e Tifão, bem como outros ventos, sacudissem o oceano. Uma terrível tempestade então se levantou, e os navios dos troianos foram jogados para fora de seu curso em direção à costa da África. Eles estavam em perigo iminente de serem destruídos, e se separaram, então Eneias pensou que todos haviam se perdido menos ele.

Diante dessa situação desesperadora, Netuno, ouvindo o furor da tempestade, e sabendo que ele não havia dado ordens para ninguém, colocou a sua cabeça acima das ondas, e viu a frota de Eneias sendo arrastada pelo vendaval. Conhecendo a hostilidade de Juno, não lhe foi difícil saber quem era a responsável por tudo aquilo, mas sua ira não foi menor por essa interferência em seus domínios. Ele invocou os ventos e os dispensou com uma severa reprimenda. Depois, ele acalmou as ondas, e afastou as nuvens diante da face do sol.

Alguns dos navios que ficaram presos nos rochedos foram alçados por ele que usou seu próprio tridente, enquanto Tritão e uma ninfa do mar, colocando seus ombros debaixo dos outros, os fizeram flutuar novamente. Os troianos, depois que o mar se acalmou, procuraram a costa mais próxima, a costa de Cartago, onde Eneias ficou feliz ao verificar que um a um, todos os barcos chegavam a salvo, embora seriamente comprometidos. Edmund Waller (1602-1687), em seu "Panegírico ao Senhor Protetor" (Cromwell), faz alusão ao cessar da tempestade produzido por Netuno:

"Acima das ondas, Netuno mostrou o seu rosto,
Para censurar os ventos e salvar o povo de Troia,
Então a sua Alteza, se levantou acima dos demais,
E repreendeu as tempestades da ambição que se abateu sobre nós."

Dido[editar]

Eneias descreve a queda de Troia a Dido, rainha de Cartago.
pintura de Pierre-Narcisse Guérin (1774–1833)

Cartago, onde os exilados haviam agora chegado, era um lugar na costa da África de frente com a Sicília, onde naquela época uma colônia Tíria regida por Dido, sua rainha, estava lançando as bases de um estado destinado nos tempos futuros a rivalizar com a própria Roma. Dido era filha de Belo, rei de Tiro, e irmã de Pigmaleão, que sucedeu a seu pai no trono. O marido dela se chamava Siqueu, um homem com grandes riquezas, mas Pigmaleão, que cobiçava seus tesouros, mandou matá-lo. Dido, seguido por um grupo numeroso de amigos e seguidores, tanto homens como mulheres, conseguiram fugir de Tiro, usando para isso inúmeros navios, levando com eles os tesouros de Siqueu.

Ao chegarem ao local que haviam escolhido como a cidade que lhes seria o futuro lar, eles pediram aos nativos somente o montante de terras que pudesse caber dentro do couro de um touro. Eles foram prontamente atendidos, e Dido ordenou que o couro fosse cortado em tiras, e com elas cercou o lugar onde uma cidadela foi construída, dando a ela o nome de Birsa, que significa couro. Em torno deste forte nasceu a cidade de Cartago, que logo haveria de se tornar um lugar poderoso e florescente.

Esse era o estado de coisas quando Eneias com seus troianos chegaram naquele lugar. Dido recebeu os ilustres exilados com simpatia e cordialidade. "Não desabituada a conviver com situações críticas," disse ela, "aprendi a socorrer os que necessitam."[2] A hospitalidade da rainha se transformou em festividades, onde jogos de força e destreza foram exibidos. Os estrangeiros disputaram a palma com suas próprias habilidades, em condição de igualdade, tendo a rainha declarado que não faria diferença para ela caso os vitoriosos fossem troianos ou tírios."[3]

No banquete que sucedeu aos jogos, Eneias ofereceu, a pedido da rainha, um recital sobre os eventos finais da guerra de Troia incluindo suas aventuras após a queda da cidade. Dido encantou-se com o discurso dele e ficou muito admirada com as façanhas do herói. Ela se apaixonou ardentemente por ele, e ele, por sua vez, parecia estar muito satisfeito em aceitar o que a sorte estava a lhe oferecer naquele momento: um final feliz para suas peregrinações, um lar, um reino e uma noiva. Os meses se passaram desfrutando os deliciosos momentos de intimidade, parecendo que a Itália e o império que deveriam ser fundados em seu litoral haviam sido igualmente esquecidos. Ao perceber isso, Júpiter despachou Mercúrio com uma mensagem para Eneias, lembrando-o das responsabilidades que lhe estavam reservadas, e exigindo que ele retomasse a viagem.

Eneias se separou de Dido, embora ela tentasse todo tipo de sedução e convencimento para retê-lo a seu lado. O golpe que ela sofreu em seu afeto e no seu orgulho foi doloroso demais para ela suportar, e quando ela percebeu que ele havia ido embora, mandou que erguessem uma pira funerária, e apunhalando o próprio peito, foi consumida pela pira. As chamas que se levantavam sobre a cidade foram vistas pelos troianos que partiam, e, embora a razão fosse desconhecida, deram a Eneias a indicação do acontecimento fatídico.

Eneias apresenta Cupido a Dido.
pintura de Giovanni Battista Tiepolo (1696–1770)

O epigrama seguinte é encontrado em "Elegantes Extrações", traduzido do latim:

Cruel, Dido, foi o teu destino
No primeiro e no segundo matrimônio!
Um marido, ao morrer, te levou à fuga
O outro, ao fugir, te levou à morte.

Palinuro[editar]

Eneias apresenta Cupido a Dido.
ilustração de Wilhelm Gmelin (1760 - 1820)

Depois de chegar na ilha da Sicília, onde Acestes, príncipe com linhagem troiana, que tinha grande influência, ofereceu a eles uma recepção hospitaleira; os troianos, então, tornaram a embarcar, e rumaram em direção à Itália. Vênus, então, intercedeu junto a Netuno, para permitir que seu filho alcançasse a meta desejada e que os perigos das profundezas tivessem um fim. Netuno concordou, sedento ainda por uma vida como resgate para os demais. E decidiu-se que a vítima seria Palinuro, o piloto. Assim que o piloto se sentou para olhar as estrelas, com as mãos sobre o leme, o Sono, enviado por Netuno, se aproximou dele disfarçado de Forbas e disse: "Palinuro, a brisa está agradável, as águas tranquilas, e o barco segue calmamente o seu destino. Deite um pouquinho, e descanse o sono restaurador."

"Eu ficarei no leme em teu lugar." Palinuro respondeu, " Não me fales em mares tranquilos ou ventos favoráveis, -- a mim, que já vivi tantas situações perigosas. Deveria eu deixar Eneias ser levado pelas adversidades do tempo e do vento?" E Palinuro continou a segurar o leme, mantendo os olhos fixos nas estrelas. Mas o Sono brandiu sobre ele um galho umedecido com orvalho do Letes, e seus olhos se fecharam apesar de todos os seus esforços. Então, o Sono o empurrou para fora do barco e ele caiu, porém, segurando o leme com firmeza, se desprendeu junto com ele. Netuno estava ciente de sua promessa e manteve o barco em movimento sem leme, nem piloto, até que Eneias percebeu o desaparecimento de Palinuro, e lamentando profundamente pelo seu fiel timoneiro, assumiu ele próprio o comando do navio.

Há uma bela alusão para a história de Palinuro no poema épico "Marmion" de Walter Scott (1771-1832) Introdução ao Canto I, onde o poeta, ao falar da morte recente de William Pitt (1759-1806), diz o seguinte:

"Oh, imagine como, até o último dia,
Quando a morte pairou reivindicando sua presa,
Com o jeito tranquilo de Palinuro,
Permanecendo firme em seu perigoso posto,
Rejeitando toda chamada de descanso necessária,
Com a mão da morte segurando o leme,
Até que ao cair, na decisão fatal,
Cedeu ao comando do navio."

Os navios finalmente chegaram à costa da Itália, e com alegria os aventureiros saltaram para terra. Enquanto seus homens se preocupavam em montar acampamento, Eneias buscou a morada de Sibila. Era uma caverna com acesso para um templo e um bosque, sagrados para Apolo e Diana. Enquanto Eneias contemplava o local, uma Sibila se aproximou dele. Ela parecia entender o recado que ele trazia, e sob influência da divindade do lugar, se lançou a dizer profecias, fazendo sombrias sugestões a respeito dos trabalhos e perigos que lhe estavam reservados até o sucesso final.

Ela finalizou com palavras de estímulo que se tornaram famosas: "Não te entregues ao desalento, mas avança para a frente munido de coragem." Eneias respondeu que ele havia se preparado para qualquer situação que encontrasse pela frente. Mas ele tinha um pedido a fazer. Tendo se dirigido, durante um sonho, em busca da morada dos mortos para conversar com seu pai, Anquises, para receber da parte deste uma revelação sobre a sua sorte futura e também para o seu povo, ele pediu a ajuda dela para que lhe possibilitasse a realização da tarefa. A Sibila respondeu, " A descida até o Averno[4] é fácil: os portões de Plutão ficam abertos noite e dia, mas para refazer a caminhada e retornar à atmosfera superior, nisso reside o trabalho e a maior dificuldade."

Ela o instruiu a procurar na floresta uma árvore onde crescia um galho de ouro. Este galho tinha de ser arrancado e dado como presente para Proserpina, e se a sorte fosse propícia, ele cederia à força da sua mão, soltando-se do tronco de origem, mas, caso contrário, força alguma conseguiria arrancá-lo. Uma vez arrancado o galho, outro surgiria em seu lugar.

Eneias seguiu as instruções de Sibila. Sua mãe, Vênus, enviou dois de seus pombos para voar diante dele, mostrando-lhe o caminho, e com a ajuda deles, Eneias encontrou a árvore, arrancou o galho, e retornou apressadamente com ele para Sibila.

Notas e Referências[editar]

Citações de w:Virgílio:Virgílio usadas no texto:

  1. Seguitur patrem, nom passibus aequis (Segue o pai com passos desiguais.)
  2. Haud ignara mali, miseris succurrere disco.
  3. Tros, Tyriusve, mihi nullo discrimine agetur.
  4. Averno é um nome antigo para uma cratera perto do Cumas, na Itália, na região da Campânia, à leste de Nápolis. Tem aproximadamente 3,2 km de circunferência. Dentro da cratera fica o lago Averno. O Averno era considerado ser a entrada para o submundo.