História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (grafia atualizada-a)/Tomo II

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ÍNDICE

LIVRO IV

Bula de perdão de 7 de abril de 1533. Apreciação dela. — Procedimento da corte de Portugal. — Negociações com o papa em Marselha. — Enviatura de D. Henrique de Meneses, e instruções dadas ao arcebispo do Funchal. — Diligências baldadas em Roma para anular o perdão. Insistências dos embaixadores. Protraem-se os debates. O papa resolve definitivamente manter a bula de perdão. Breve de 2 de abril de 1534. — Tentativas de transação propostas por D. Henrique de Meneses. — Procedimento do arcebispo do Funchal. Suas relações com Duarte da Paz, e traições deste. — Resistência em Portuga] ao cumprimento da bula de 7 de abril, e perseguições contra os conversos. — Breve de 26 de julho. — Morte de Clemente VII e eleição de Paulo III. Carácter do novo papa. — Renovam-se as negociações. — Intervenção do embaixador espanhol. — O papa manda suspender os efeitos dos breves de 2 de abril e 26 de julho. — Novos debates sobre a bula de 7 de abril. — Transação proposta pela corte de Portugal e bases oferecidas para ela. — Intrigas em Roma. Progresso da luta, e resolução final sobre as modificações do perdão e sobre o restabelecimento do tribunal da fé. — Conselhos de D. Henrique de Meneses e do arcebispo a elrei acerca desta matéria. — Dobrez da cúria romana. — Acusações de Sinigaglia contra o governo português. — Despeito mútuo das duas cortes. — Ajustes vergonhosos do núncio com os cristãos-novos — Elrei pensa em transigir com os conversos para que aceitem a Inquisição modificada. — Reação do espírito de intolerância. — Revalida-se por mais três anos a lei de 14 de junho de 1532. — Breve de 20 de julho de 1535 anulando os efeitos dessa lei. — Diligências da corte de Portugal para obter a revocação de Sinigaglia, e instruções aos embaixadores para repetirem as tentativas de um acordo. — Idéia de fazer com que Carlos V intervenha energicamente na questão. — Novas intrigas. — Deslealdade do arcebispo. — Irritação extrema do papa. — Bula de 12 de outubro revalidando e ampliando a de 7 de abril de 1532. — D. Martinho de Portugal é desmascarado. Mútua malevolência entre ele e D. Henrique de Meneses. — Influência da bula de 12 de outubro em Portugal.

LIVRO V

Providências da corte portuguesa para combater as vantagens obtidas pelos cristãos-novos. Revocação do arcebispo do Funchal. Intervenção eficaz e direta de Carlos V no negócio da Inquisição. Tentativa de assassínio contra Duarte da Paz. — Questões vergonhosas entre os conversos e o núncio na ocasião da saída deste de Portugal. Efeitos dessas questões em Roma. Triunfo completo do fanatismo. Bula de 23 de maio de 1536 estabelecendo definitivamente a Inquisição. Primeiros atos desta. Monitório do bispo de Ceuta, inquisidor-mor. Procedimento moderado do novo tribunal. — Diligências dos agentes dos conversos em Roma. O papa começa a mostrar-se-lhes favorável. — Enviatura do núncio Capodiferro, e objeto da sua missão. Tendências da cúria romana. Manifestações dessas tendências no breve de 31 de agosto de 1537. Considerações políticas que as atenuavam. — Procedimento do núncio. — Enviatura de D. Pedro Mascarenhas à corte pontifícia. — Escritos blasfemos afixados publicamente em Lisboa, e conseqüências desse fato. O infante D. Henrique substituído ao bispo de Ceuta no cargo de inquisidor-mor. — Negociações de D. Pedro Mascarenhas em Roma. Carácter e dotes do novo embaixador. Corrupções na cúria romana. — Mudanças no tribunal da fé. — Hostilidades entre o infante e Capodiferro. Processo de Ayres Vaz. Luta com o núncio. — Elrei exige a revocação deste. Discussões violentas e protraídas entre o embaixador português e o papa, tanto acerca da Inquisição como do núncio. Acordos vantajosos e transtornos inesperados. D. Pedro, não podendo obstar às providências favoráveis aos conversos, obtém, contudo, a revocação de Capodiferro. — Bula declaratória de 4 de outubro de 1539.

LIVRO VI

Agência dos cristãos-novos em Roma. Substituição de Duarte da Paz. — Últimos atos deste. — Inutiliza-se a expedição da bula de 12 de outubro, deixando de publicar-se em Portugal. Causas deste fato. Situação desvantajosa dos conversos. — Prossegue-se na contenda acerca da nomeação do infante D. Henrique para inquisido-mor. — Carta notável d’elrei ao embaixador em Roma, e alegação dos inquisidores contra a bula de 12 de outubro. Negociações diretas entre D. Pedro Mascarenhas e Paulo III. Discussões e cenas dramáticas entre o embaixador e o papa. — Parecer da junta dos cardeais encarregada de examinar as réplicas do governo português. Destreza do embaixador, e vantagens que obtém. Sua partida para Portugal. — Situação crítica dos cristãos-novos. A Inquisição começa a desenvolver maior violência. Cessação temporária das negociações em Roma. — Discórdias d’elrei com o bispo de Viseu D. Miguel da Silva. Causas e progresso dessas descórdias. Fuga do bispo para Itália. Enganos mútuos, e tentativas de assassínio. Diligências em Roma contra o foragido prelado, eleito já ocultamente cardeal. — A questão da nunciatura em Portugal renova-se entretanto. Negociações de Christovam de Sousa, sucessor de D. Pedro Mascarenhas. Violentas discussões com o papa. Esforços dos agentes dos conversos. — Viagem de Paulo III, e prosseguimento das negociações. — Acordo para se adiar a resolução definitiva acerca da nunciatura. — D. Miguel é proclamado publicamente cardeal. Carta régia fulminada contra ele. — Rompimento entre as duas cortes. Retirada de Christovam de Sousa. — Manifesto do cardeal da Silva, que se liga com os conversos em ódio d’elrei. Epílogo deste livro

LIVRO IV

Bula de perdão de 7 de abril de 1533. Apreciação dela. — Procedimento da corte de Portugal. — Negociações com o papa em Marselha. — Enviatura de D. Henrique de Meneses, e instruções dadas ao arcebisto do Funchal. — Diligências baldadas em Roma para anular o perdão. Insistência dos embaixadores. Protraem-se os debates. O papa resolve definitivamente manter a bula de perdão. Breve de 2 de abril de 1534. — Tentativas de transação propostas por D. Henrique de Meneses. — Procedimento do arcebispo do Funchal, suas relações com Duarte da Paz, e traições deste. — Resistência em Portugal ao cumprimento da bula de 7 de abril, e perseguições contra os conversos. — Breve de 26 de julho. — Morte de Clemente VII e eleição de Paulo III. Carácter do novo papa. — Renovam-se as negociações. — Intervenção do embaixador espanhol. — O papa manda suspender os efeitos dos breves de 2 de abril e 26 de julho. — Novos debates sobre a bula de 7 de abril. — Transação proposta pela corte de Portugal e bases oferecidas para ela. — Intrigas em Roma. Progresso da luta, e resolução final sobre as modificações do perdão e sobre o restabelecimento do tribunal da fé. — Conselhos de D. Henrique de Meneses e do arcebispo a elrei acerca desta matéria. — Dobrez da cúria romana. — Acusações de Sinigaglia contra o governo português. — Despeito mútuo das duas cortes. — Ajustes vergonhosos do núncio com os cristãos-novos. — Elrei pensa em transigir com os conversos para que aceitem a Inquisição modificada — Reação do espírito de intolerância — Revalida-se por mais três anos a lei de 14 de junho de 1532. — Breve de 20 de julho de 1535 anulando os efeitos dessa lei. — Diligências da corte de Portugal para obter a revocação de Sinigaglia, e instruções aos embaixadores para repetirem as tentativas de acordo. — Idéia de fazer com que Carlos V intervenha energicamente na questão. — Novas intrigas. — Deslealdade do arcebispo. — Irritação extrema do papa. — Bula de 12 de outubro revalidando e ampliando a de 7 de abril de 1532. — D. Martinho de Portugal é desmascarado. Mútua malevolência entre ele e D. Henrique de Meneses. — Influência da bula de 12 de outubro em Portugal.

A suspensão do estabelecimento do tribunal da fé em em Portugal era apenas um alívio temporário que se concedia aos desditosos hebreus. Como vimos, a bula pontifícia indicava de modo assaz explícito que, dadas certas circunstâncias, a anterior concessão se renovaria. A espada de Dâmocles ficara pendente sobre a raça proscrita. Assim, embora procurasse conciliar a benevolência d’elrei traindo a causa em que estava empenhado e, até, para melhor disfarçar a sua deslealdade e conduzir os ocultos meneios em que se embrenhara, Duarte da Paz devia dedicar-se ativamente a solicitar o perdão dos seus correligionários pelo que respeitava ao passado. Fora o que fizera, e, embora repelido por Santiquatro, obtivera, conforme dissemos, a decisiva proteção da maioria dos cardeais. Obstava a resistência de Pucci(195) e a do embaixador português, a quem, pelo menos, cumpria guardar as aparências do zelo, se na realidade o não tinha. Uma circunstância, porém, veio fazer triunfar a causa dos cristãos-novos, e foi o ausentar-se temporariamente de Roma o cardeal Santiquatro. Aproveitou-se o ensejo. Num consistório celebrado nesse meio tempo deu-se deferimento às súplicas dos conversos, recusando o papa admitir como parte neste negócio o embaixador português(196), e a 7 de abril de 1533 expediu-se, enfim, a bula de perdão, que completava e parecia verificar definitivamente o favor transitório obtido pelo diploma de 17 de outubro do ano anterior.

Na bula de 7 de abril o papa rememorava a do estabelecimento da Inquisição e os fundamentos propostos pela corte de Portugal, em que ela se estribava, e aludia ao breve de 17 de outubro, sem expressar os seus motivos; porque esse ato ficava virtualmente justificado pelas razões que legitimavam as providências agora tomadas. O primeiro fato que se estabelecia como base para as provisões da bula era o da conversão forçada dos judeus, fato sobre que se guardara silêncio na súplica para se concederem os poderes de inquisidor-mor ao mínimo Fr. Digo da Silva, e que, portanto, invalidava a bula de 17 de dezembro de 1531, pelo vício de subrepção. Clemente VII dividia em duas categorias os judeus e mouros portugueses; uma daqueles que haviam sido obrigados à força a receber o batismo; outra dos que tinham voluntariamente entrado no grêmio da igreja, ou que, filhos de conversos, haviam sido batizados na infância com anuência de seus pais. Quanto aos primeiros, a bula de perdão reproduzia no seu preâmbulo as doutrinas dos antigos conselheiros de D. Manuel, e nomeadamente do bispo do Algarve, D. Fernando Coutinho. «Não devem — dizia o papa — ser contados como membros da igreja os que foram batizados violentamente, e eles teriam todo o direito de se queixarem de ser corrigidos e castigados como cristãos, com quebra dos princípios da justiça e equidade». Quanto aos outros espontaneamente convertidos, ou procriados por pais cristãos, considerado o trato em que viviam com aqueles cuja conversão fora fingida, e o poder das sugestões diabólicas, entendia que, no caso de serem verdadeiras as acusações levantadas contra eles, convinha que fossem tratados com a brandura e comiseração próprias do espírito evangélico, antes de serem punidos com o rigor do gládio espiritual, ao passo que reputava cousa atroz tolerar perseguições e insultos contra os que, sinceramente entrados no grêmio católico, se tinham tornado suspeitos só pela circunstância de procederem de pais ou avós judeus. À vista destas ponderações, cuja solidez era indisputável, Clemente VII avocava a si todas as causas de heresia, fossem elas quais fossem, e em qualquer estado que estivessem, sem exceção de nenhum foro ou tribunal, e anulava todos os processos, salvo os de condenados como relapsos, que não seriam fáceis de achar, dado o pouco tempo que a Inquisição tinha de existência. Declarava (aliás com bem pouca verdade) que procedia assim de motu-proprio e espontânea vontade, sem que nisso interviessem súplicas dos cristãos-novos, nem instâncias de ninguém. Para se verificarem os efeitos da bula, estabelecia-se a forma de obter o perdão. Marco della Ruvere era incumbido de publicar solenemente em Portugal, por si ou por seus delegados, aquela resolução pontifícia em todas as dioceses e povoações do reino e conquistas. Depois da publicação, durante três meses para os presentes e quatro para os ausentes (ficando aliás ao arbítrio do núncio encurtar ou estender este prazo), seriam recebidos à reconciliação todos e quaisquer culpados de crimes contra a fé, confessando as suas culpas ao representante da corte de Roma ou aos sacerdotes que ele para isso deputasse. Os nomes e apelidos dos reconciliados deveriam ser escritos pelos respectivos confessores num livro ou caderno. Aqueles registros ficavam constituindo, digamos assim, para esses culpados, quer cristãos-novos quer não, o livro da vida. Qualquer deles que fizesse esta demonstração seria por esse fato absolvido. Designavam-se cuidadosa e especificadamente as diversas situações em que poderiam achar-se aqueles a quem a concessão era aplicável, para que ninguém fosse excluído do benefício do perdão. Naturais ou estranhos domiciliados no país, homens ou mulheres, seculares ou eclesiásticos de qualquer graduação, pessoas livres ou encarceradas, réus sentenciados ou não, acusados ou simplesmente difamados de heresia, por mais condenável que ela fosse, blasfemos, sacrílegos, a todos e a tudo se estendia a absolvição pontifícia. Como, porém, para se cumprirem as condições do perdão era necessário que os que dele careciam estivessem no pleno uso dos seus direitos civis, ordenava-se na bula a imediata soltura dos presos e detidos, e a faculdade de voltarem à pátria os degredados e banidos, não começando a correr o prazo de reconciliação para os encarcerados senão do dia em que fossem postos em liberdade, e para os desterrados senão daquele em que se lhes expedissem os salvo-condutos precisos para poderem voltar aos seus lares. Os que se aproveitassem do benefício da bula ficariam hábeis para conservarem quaisquer dignidades eclesiásticas, ainda as mais elevadas, se delas estavam ou tinham ficado revestidos, e também para as obterem de futuro, devendo ser admitidos sem embaraço algum às ordens sacras. Sendo seculares, tiravam-se-lhes todas as notas de infâmia, de modo que igualmente ficassem hábeis para servir cargos públicos e receber honras, distinções e mercês. Uma das provisões mais importantes da bula era a que se referia aos bens dos processados. Anulando quaisquer sentenças proferidas contra os cristãos-novos, e com elas os seus efeitos, restituia aos réus os bens que lhes houvessem sido sequestrados ou confiscados e que ainda não estivessem definitivamente incorporados no fisco. O núncio ou os seus delegados deviam passar certidões dos registros dos perdoados aos que as pedissem, recomendando-se que tais cédulas fossem gratuitas, e não servissem de pretexto a exação alguma. Aquelas cédulas seriam um título para o reconciliado não ser perseguido. O que antes de vir buscar o perdão tivesse já sido culpado e penitenciado ou reconciliado pela Inquisição, e depois houvesse recaído na heresia e o confessasse agora, não deviam por isso reputá-lo relapso, porque toda a criminalidade anterior ficaria completamente expungida. Aos próprios relapsos julgados como tais dava-se ainda um meio de salvação, a revista do processo pelo núncio. Só depois de confirmada a sentença nesta última instância se lhes aplicaria a pena. Não o sendo, reduzia-se tudo para o réu a uma penitência secreta, pela qual, do mesmo modo que nos outros casos também já definitivamente julgados, devia ser substituída a penitência pública, abjurando primeiramente o confesso os seus erros conforme as leis da igreja. Se depois do perdão reincidissem, aplicar-se-lhes-iam as devidas penas; mas, provando eles que o batismo fora forçado, essas penas nunca seriam as decretadas contra os relapsos. Aqueles de quem constasse ao núncio que eram publicamente infamados, posto que não convencidos, do crime de heresia, podiam justificar-se perante ele secretamente com duas ou três testemunhas idôneas, sem fórmulas judiciais, e, se entendessem que deviam abjurar, podiam fazê-lo do mesmo modo em segredo. Finalmente, se houvesse alguns que deixassem passar o prazo do perdão sem o solicitarem e quisessem depois obtê-lo, tomar-se-ia conhecimento do negócio na nunciatura, e deferir-se-ia este à cúria romana para o resolver, ficando tanto os inquisidores como os ordinários inibidos por um ano de procederem contra tais culpados. Para que todas estas providências tivessem o devido efeito, o papa fulminava a excomunhão, a suspensão e o interdito contra todos os juízes, de um e de outro foro, e contra todas as dignidades eclesiásticas, sem exceção de jerarquia, ou contra outros quaisquer indivíduos que obstassem direta ou indiretamente à execução da bula, proibindo que a esta se atribuísse o defeito de subreptícia, e negando desde logo a validade a quaisquer exceções e limitações que se lhe pusessem, ainda quando emanassem da sé apostólica. Recomendava o pontífice ao seu representante na corte de Lisboa que, se lhe fosse necessário auxílio do braço secular para remover quaisquer obstáculos à plena execução daquelas providências, invocasse o dito auxílio, e exortava D. João III para que, obedecendo à santa sé, desse todo o favor ao bispo de Sinigaglia no cumprimento da sua missão. Derrogava, enfim, para este caso, todas as provisões de direito canônico e de quaisquer letras apostólicas opostas às atuais, bem como os privilégios civis dos inquisidores em que eles pudessem estribar-se para procederem de modo contrário às resoluções pontifícias(197).

Tais eram os pontos mais notáveis da bula de 7 de abril. Particularizámos as disposições especiais nela contidas, porque a sua matéria, como é fácil de prever, despertou sérias resistências e deu origem a vivos debates. O pensamento geral dessa bula é indubitavelmente honroso para a memória de Clemente VII, porque representa a proteção aos oprimidos e condiz com o espírito de tolerância evangélica. O desenvolvimento, porém, da idéia fundamental daquele ato do primaz da igreja nem sempre resiste à análise. A cúria romana punha-lhe o selo da sua individualidade. Constituía-se o núncio, e núncio tal como Sinigaglia, árbitro supremo das questões sobre os desvios em matérias de fé, e os bispos ficavam equiparados, sob esse aspecto, aos demais poderes, funcionários e magistrados eclesiásticos ou civis. O carácter e os direitos inauferíveis do episcopado confundiam-se nesta parte com outras quaisquer funções de delegação ou concessão pontifícia. Pelo que tocava aos cristãos-novos, Marco della Ruvere podia considerar-se como o bispo universal de todas as dioceses do reino e conquistas, imediata e exclusivamente sufragâneo da santa sé. Na verdade, desde que havia a fazer distinções entre os réus; desde que se tratava de confissões, de abjurações, de penitências e ainda de condenações em certos casos, era necessário submeter isso tudo a alguma magistratura independente de um rei absoluto e fanático, de quem eram servos os bispos de Portugal. Mas tudo procedia de serem as provisões da bula em grande parte ilógicas em relação aos seus fundamentos. Desde que o papa altamente proclamava o princípio de que um indivíduo constrangido a receber o batismo não ficava por esse fato mais cristão do que outro que nunca fosse batizado, desprezando as ridículas distinções de violências precisas e de violências condicionais, inventadas pelos teólogos e canonistas para darem plausibilidade às mais absurdas tiranias; desde que dessa máxima indubitável resultava outra igualmente certa, a de que não era passível de nenhuma lei contra os hereges quem não adotara espontaneamente a fé cristã, a conseqüência seria ordenar ao núncio que aceitasse aos membros das famílias hebraicas a livre declaração da sua verdadeira crença, e proibir severamente ao rei, cominando-lhes graves penas, que tomasse a religião por pretexto para perseguir os seus súditos, advertindo-o de que, se lhe convinha legar à história mais um nome de tirano, o fizesse em nome das conveniências civis, e não caluniasse o cristianismo. Aqueles que declarassem que a sua conversão fora espontânea e sincera, devia deixá-los entregues, não às fórmulas singulares e anti-canônicas da Inquisição, mas ao direito comum da igreja, à ação legítima do episcopado, cuja integridade cumpria restabelecer. Como primaz do orbe católico, era o que incumbia ao papa, e a sua responsabilidade acabava aí. Se, porém, os bispos se mostrassem depois ou subservientes à crueldade do poder civil, ou remissos no desempenho dos seus deveres, a ele, também como primaz, tocava revocá-los ao espírito do evangelho, ou suprir a negligência dos prelados pelos meios que as leis da igreja lhe facultavam. O ilógico da bula ia até o absurdo. Havia, por exemplo, nada mais monstruoso, suposta a doutrina que o papa invocava, do que deixar subsistir penas, embora menos rigorosas, contra os chamados relapsos, ainda mostrando que haviam sido compelidos a receber o batismo? Não declarava a própria bula que semelhante procedimento seria intolerável?

D. Martinho de Portugal, que, depois da partida de Brás Neto, ficara único representante da corte portuguesa em Roma, e que fora confirmado em fevereiro desse ano na dignidade de arcebispo do Funchal, metrópole das conquistas(198), não tendo podido obstar à resolução do pontífice, também não podia, sem denunciar certa conivência, naquele negócio, deixar de escrever a elrei acerca de um sucesso de tanta monta. O que sabemos é que pouco tardou em chegar a Portugal aquele importante diploma. Fosse, porém, que atuassem ainda as mesmas causas que até aí parece terem gerado o inexplicável silêncio da corte de Lisboa; fosse que houvesse algumas desconfianças de D. Martinho, apesar da profunda impressão que semelhante fato devia produzir, o arcebispo embaixador não recebeu resposta ou instruções algumas que servissem de norma ao seu procedimento ulterior(199). Elrei, a quem não era possível ocultar o estado a que as cousas tinham chegado, queixou-se amargamente ao núncio da resolução do pontífice e exigiu dele que fosse o orgão do seu vivo sentimento(200). Existe um memorial em nome de D. João III, evidentemente redigido nesta conjuntura(201), no qual se apresentavam a Clemente VII muitas das ponderações que depois mais extensamente veremos alegadas contra a bula de 7 de abril, cuja revogação aí se pedia. O que não veremos é renovarem-se, ao menos tão amplamente, as concessões que durante a primeira impressão de desalento a intolerância julgava necessário fazer para salvar o resto das suas conquistas. Propunha-se naquela súplica ou memória que, mantida a Inquisição como fora concedida, se modificassem os terríveis resultados que tinham para as vítimas as suas fatais sentenças; que os condenados como hereges não fossem entregues ao braço secular, evitando assim a morte, e sendo apenas desterrados para fora do reino; que se lhes não confiscassem os bens, e que estes ficassem para os seus herdeiros cristãos, ou, quando não os tivessem, para obras pias; que os reconciliados, isto é, os confessos que obtivessem perdão dos inquisidores, não fossem penitenciados com cárcere perpétuo, nem também se lhes confiscassem os bens, mas que, tirando-se-lhes os filhos, para se não corromperem com o trato e conveniência paterna, se reservassem esses bens para eles, ficando os réus privados dos direitos civis, e não podendo exercer outras profissões senão as de trabalho manual; que os filhos e netos dos sentenciados, uma vez que se mostrassem estranhos aos crimes dos progenitores, não padecessem nota de infâmia, e ficassem habilitados para usarem de todos os seus direitos e para obterem quaisquer honras e dignidades(202).

Chegou semelhante súplica às mãos de Clemente VII? Ignoramo-lo. O que é certo é que nas ulteriores negociações não se acha a menor referência às propostas largamente favoráveis aos cristãos-novos que nela se continham. A estes, por vantajosíssimas que fossem essas condições, era, sem comparação, mais útil a pronta execução da bula de 7 de abril. Por outra parte, fácil é de imaginar se o bispo de Sinigaglia se conformaria de boa vontade com as exigências d’elrei. Os proventos incalculáveis e a influência que lhe resultavam da missão que se lhe conferira são evidentes. Marco della Ruvere não era homem que de bom grado cedesse de tais vantagens, e as informações particulares com que havia de acompanhar a pretensão, se é que o memorial chegou a Roma, mal podiam ser favoráveis a essa pretensão. Assim, o único resultado da demonstração d’elrei foi expedir-se nos fins de julho um breve ao bispo de Sinigaglia para que levasse a efeito as decretadas providências, recomendando-se-lhe ao mesmo tempo que fizesse todos os esforços para o poder civil abrogar a lei que proibia aos cristãos-novos a saída do reino(203).

Postas as cousas em tais termos, não era possível aos ministros portugueses dissimular por mais tempo. Expediram-se, enfim, ordens e instruções ao arcebispo do Funchal, nas quais se lhe ordenava seguisse o papa até a cidade de Marselha, onde os negócios gerais da igreja e as circunstâncias políticas da Europa o obrigavam a residir por algum tempo. A pretensão d’elrei reduzia-se agora à suspensão da bula e à revogação do breve relativo à sua pronta execução, até que chegasse à cúria um embaixador extraordinário, que para lá se destinava, e que de acordo com o arcebispo, proporia as razões que o governo português tinha a opor contra as amplas concessões feitas aos conversos(204). Dirigiu-se, portanto, o arcebispo a Marselha, aonde chegara o papa a 12 de outubro(205). Um dos primeiros atos, porém, de Clemente VII, depois de se achar em França, fora revalidar a bula de 7 de abril e escrever energicamente a D. João III para que obedecesse às provisões nelas contidas(206). Nascia este procedimento das sugestões do núncio. Dando conta da sua missão, avisava o papa de que pedira a elrei facilitasse a execução dos mandados apostólicos; mas que as suas diligências haviam sido baldadas, bem como o tinham sido as súplicas dos cristãos-novos, que, para obterem o mesmo fim, não haviam poupado esforços. Segundo se dizia, D. João III estava persuadido de que o pontífice acedera às solicitações de Duarte da Paz, sem as necessárias informações, por peitas que recebera, e a ele próprio núncio dava mostras de lhe ser odiosa a sua estada em Portugal(207). Terminava o bispo de Sinigaglia recapitulando todos os escândalos que se tinham praticado nesta matéria, e aconselhando o procedimento que acerca da execução da bula se devia ulteriormente seguir.

Com a chegada do arcebispo do Funchal a Marselha, a ira, que no ânimo de Clemente VII deviam ter produzido as informações de Marco della Ruvere, parece haver abrandado. Ou que o embaixador, compelido pelas instruções que enfim recebera, procedesse com mais energia, ou porque se empregassem meios ocultos para tornar propícias algumas influências poderosas na cúria, é certo que o papa conveio afinal em ceder, quanto à pronta execução da bula de 7 de abril, e em esperar dous meses, até que chegasse o novo agente que se anunciava e que, de acordo com o arcebispo, devia apresentar e explanar as graves objeções que elrei tinha a opor contra o perdão. Em conseqüência disso, expediram-se a 18 de dezembro dous breves, um ao núncio, para que suspendesse a execução dos mandados apostólicos, e outro a elrei, avisando-o da resolução tomada(208).

Estes fatos passavam nos últimos meses de 1533. Em dezembro desse mesmo ano tinha já o papa voltado a Roma(209). Transmitido à corte o êxito da negociação em Marselha, foi encarregado D. Henrique de Meneses da missão extraordinária junto à cúria romana. Cumpria, porém, preparar todas as armas para combater o perdão de 7 de abril; coligir todos os fatos e argumentos que pudessem invalidá-lo. Não era negócio fácil. Clemente VII tinha de antemão mandado examinar as doutrinas da bula e os seus fundamentos na universidade de Bolonha, e dous dos mais célebres professores daquela escola de jurisprudência, Parisio, depois elevado ao cardinalato, e Veroi, tinham redigido duas extensas dissertações nas quais as providências do pontífice a favor dos cristãos-novos eram plenamente justificadas(210). Consultava-se entretanto em Portugal sobre as instruções que se deviam dar de viva voz e por escrito ao novo agente que se enviava a Roma e ao que já lá se achava. Assentou-se em que a primeira cousa que cumpria estranhar no procedimento do papa era que, tendo sido concedida a Inquisição havia tão pouco tempo, agora, sem se darem novas circunstâncias, se anulasse esse ato anterior; que, atendendo-se para isso às súplicas dos cristãos (embora na bula se dissesse falsamente o contrário) nunca se quisera dar ouvidos ao embaixador português. Julgou-se também necessário recapitular com clareza as causas que houvera para a instituição do tribunal da fé, e ponderar-se que, à vista dessas causas, devera ter sido o papa quem trabalhasse no estabelecimento da Inquisição, em vez de se lhe mostrar adverso; que, admitindo ter havido no princípio da conversão dos judeus alguma violência, se devia advertir que esta não fora precisa, mas condicional, e que, portanto, para os conversos, os quais, aliás, tinham freqüentado depois por muitos anos os sacramentos da igreja, dando-se por cristãos, era obrigativo o batismo; que o rei godo Sisebuto forçara os judeus a converterem-se, e, todavia, fora elogiado de religiosíssimo pelos padres do XII concílio toledano, e que igual louvor mereciam os príncipes que o imitavam; que os judeus tinham tido tempo de saírem do reino, e muitos o haviam feito; que os que ficaram com capa de cristãos não eram provavelmente nem uma cousa nem outra, escarnecendo por incrédulos dos sacramentos que recebiam; que a bula estendia o perdão aos obstinados, cousa proibida pelos cânones, e que perdoar no foro externo por confissões secretas, que podiam ser fingidas, era absurdo; que semelhante perdão seria um escândalo para o orbe católico; que para os arrependidos serem perdoados bastavam as provisões canônicas e o tempo de graça que a Inquisição costumava conceder; que se, apesar de todas estas considerações, o papa insistisse no perdão geral, este negócio deveria ser cometido ao inquisidor-mor e aos seus delegados, limitando-se o dito perdão aos que, arrependidos, viessem especificadamente confessar seus erros, substituindo-se para esses as penas de direito por penitências arbitrárias, públicas ou ocultas, e escrevendo-se as confissões, assinadas pelo confessor e pelo confitente, em registros, por onde depois se pudessem saber os delitos que lhes haviam sido perdoados, ficando em todo o caso excluídos do perdão os relapsos. Sobretudo, devia insistir o embaixador em que de nenhum modo este negócio se cometesse ao núncio, mas sim a uma pessoa que o rei designasse, declarando-se que sem esta condição se não podia admitir nenhuma resolução pontifícia relativa ao assunto. Cumpria exigir a conservação do tribunal da fé como fora concedido e agora se propunha de novo, suspendendo-se quaisquer provisões passadas a favor dos judeus, e, finalments, insinuar-se a Clemente VII ser voz pública em Portugal que todas essas providências contrárias à Inquisição eram obtidas por avultadas peitas dadas na cúria romana, dando-lhe também a entender que novos atos no mesmo sentido não fariam senão confirmar semelhantes acusações(211).

Tais foram em substância as instruções enviadas ao arcebispo do Funchal. Análogas deviam ser as que se deram a D. Henrique de Meneses acerca da bula de 7 de abril, embora mais desenvolvidas(212). Como, porém, se queria salvar a todo o custo a Inquisição, e era necessária nova concessão por causa de Fr. Diogo da Silva ter recusado o cargo de inquisidor-mor, redigiram-se uns apontamentos especiais sobre esse objeto. Neles, pressupondo-se a revogação da bula de 7 de abril, o rei propunha modificações, não na idéia fundamentai da instituição, mas sim no modo de regular os seus primeiros atos. Era uma verdadeira transação que se oferecia. Imaginavam-se meios de satisfazer em parte aos fins que o papa tivera em mente nas amplas concessões do perdão. À matéria da bula de 17 de dezembro de 1531 acrescentavam-se vários artigos. Estatuir-se-ia que qualquer indivíduo, de qualquer parte do reino e seus dominios, que no tempo de graça, que os inquisidores haviam de dar, viesse perante eles pedir perdão dos crimes que, em geral, houvesse cometido contra a fé, fosse absolvido sem o obrigarem a especificá-los. Isto seria aplicável só aos que não estivessem acusados judicialmente ou presos, embora corresse voz e fama contra eles, e ainda que a seu respeito houvesse inquéritos e provas de heresia, não podendo em tempo algum fazer-se-lhes cargo dos crimes perpetrados antes do perdão. Os assim reconciliados, cumpridas as leves penitências secretas que se deixaria ao arbítrio dos inquisidores impor-lhes, ficariam no gozo de todos os seus direitos e plenamente reabilitados. Aos ausentes conceder-se-ia um ano de espera. Contra os culpados e presos, e contra aqueles que não viessem no tempo de graça implorar o perdão proceder-se-ia segundo o costume e direito. Registrar-se-iam os nomes dos reconciliados, assinando estes nos registros, e com eles os inquisidores da respectiva localidade e duas testemunhas obrigadas a guardar segredo absoluto sob pena de excomunhão. O inquisidor-mor e seus delegados, cujas largas atribuições se particularizavam, ficariam, como em compensação, autorizados para procederem, derrogadas nesta parte as disposições do direito canônico, a todos os atos inquisitoriais sem intervenção dos bispos, podendo avocar a si todas as causas de heresia, ainda que corressem perante juízes apostólicos, e até perante os núncios e legado à latere. Prevenindo-se o caso de não convir o papa no que se apontava de novo, em vez de se recuar insistir-se-ia pura e simplesmente na renovação da bula de 17 de dezembro de 1531, mudado o nome do inquisidor-mor, o qual em lugar do confessor d’elrei, o mínimo Fr. Diogo da Silva, seria o capelão-mor D. Fernando de Meneses Coutinho, bispo de Lamego. Ultimamente, a nova bula devia conter a derrogação expressa e particularizada da de 7 de abril e de quaisquer outras letras apostólicas que pudessem impedir a livre ação do tribunal da fé(213).

Munido com estas instruções, com cartas para Santiquatro e para o próprio Clemente VII, e, além disso, com o mais que se julgara necessário para o bom desempenho daquela missão, D. Henrique de Meneses chegou a Roma em fevereiro de 1534(214). Apresentada ao papa a credencial do novo agente(215), os dous embaixadores trataram o assunto com o cardeal Pucci. Entendia o protetor de Portugal, que o terem-se demorado tanto as diligências que se faziam agora tornava o empenho dificultosíssimo; porque, expedida a bula de perdão, Clemente VII repugnaria fortemente a voltar atrás, sendo, em regra, mais fácil na cúria impedir qualquer negócio do que desfazê-lo depois de concluído(216). Entretanto, associando os seus esforços aos dos ministros portugueses, ele obteve do papa uma longa audiência em que o assunto foi miudamente debatido. Três dias durou a discussão, que teve por único resultado mandar Clemente VII redigir a minuta de um breve, em que severamente se ordenava a D. João III cessasse de pôr obstáculos à plena e inteira execução da bula de 7 de abril(217). À vista de tal resolução, a causa da tolerância e da humanidade parecia haver triunfado, embora, como se acreditava em Portugal, essa vitória houvesse custado aos cristãos-novos grandes sacrifícios pecuniários. Não desanimaram, todavia, nem Pucci nem D. Henrique de Meneses. À força de considerações e súplicas, obtiveram uma nova revisão da matéria. Os cardeais De Cesis e Campeggio, homens de cuja ciência o papa especialmente confiava, foram nomeados para tratarem o assunto com Santiquatro e com os representantes do governo português, intervindo nas conferências, como consultores, eminentes teólogos e canonistas(218). Uma longa exposição, redigida em conformidade das instruções vocais e escritas que D. Henrique recebera, serviu de base aos debates. Esta exposição encerrava todas as considerações e argumentos que podiam salvar o edifício vacilante da Inquisição, e anular as providências benéficas com que o papa quisera remediar o erro de a haver concedido. Insistia-se aí na fútil distinção da força precisa e da força condicional em relação ao batismo dos judeus, pintando-se como doce violência as atrocidades de 1497, e apelando-se para o consentimento tácito dos convertidos por trinta e cinco anos, durante os quais não haviam sido perseguidos, podendo ter-se confirmado, em tão largo período, nas doutrinas do cristianismo. Dizia-se que o governo os tratava, honrava e protegia como outros quaisquer indivíduos, e que nenhuns ódios alimentavam contra eles os cristãos-velhos, afirmativa cuja impudência seria incrível, se não existisse essa singular exposição. Asseverava-se que na probidade das pessoas que se elegiam para exercerem os cargos da Inquisição estava a melhor garantia dos cristãos-novos, em cuja conservação no reino o estado altamente interessava, por exercerem, a bem dizer exclusivamente, a indústria fabril e o comércio. Deste fato se pretendia deduzir também argumento contra a acusação, que, segundo parece, nas anteriores discussões o papa fizera ao governo português, de que o zelo da fé não significava da parte deste senão o desejo de os espoliar, por via dos confiscos, das avultadas riquezas que possuíam; porque, além de não se dever supor tal da piedade e catolicismo d’elrei, sendo essas riquezas em jóias e dinheiro, e não em propriedades, eles punham tudo a salvo fora do reino, apenas se conheciam culpados(219). Entravam depois os embaixadores em largas considerações sobre os inconvenientes que resultavam do teor da bula de 7 de abril e da forma do perdão nela estabelecida. A primeira ponderação era dirigida contra a parte menos defensável da bula. Refletia-se que, pressupondo-se os batismos violentos, e concluindo-se d’aí que os indivíduos violentados não podiam ser tidos por cristãos, nem estar portanto, sujeitos à penalidade contra os hereges, parecia absurdo facilitar-se-lhes por outro lado a confissão sacramental, para obterem um perdão que, como judeus, não era aplicável, convertendo-se assim em burla o ato da confissão; que este absurdo trazia conseqüências mais absurdas, e tal era a de ficarem d’aí avante esses judeus confessos, não só recebendo os sacramentos, mas até administrando-os, havendo muitos que tinham recebido ordens sacras. Se esta ponderação era grave, outras havia que estavam longe de ter a mesma força. Observava-se, por exemplo, que, não podendo ser perseguidos depois do perdão os não-processados que o viessem pedir, confessando em termos gerais que tinham delinquido contra a fé, seguir-se-ia que qualquer delito religioso que houvessem anteriormente perpetrado, e que só depois viesse a descobrir-se, ficaria impune, sem que, todavia, dele tivessem especialmente podido perdão. Muitas outras disposições da bula eram combatidas com mais ou menos plausibilidade por assegurarem a impunidade aos que, a troco de uma comédia de arrependimento, quisessem continuar ocultamente no erro, conservando bens, cargos e dignidades civis e eclesiásticas, sem responsabilidade pelos atos da sua vida passada. Como se aos cristãos-novos fosse a cousa mais fácil do mundo sair do reino, contrapunha-se à providência pela qual se mandavam soltar os presos, para irem fazer as confissões perante o núncio, o inconveniente de que esses indivíduos se poriam a salvo fora do país, sem se aproveitarem do concedido benefício. Lembravam-se ao papa os resultados políticos que nas relações entre Portugal e Castela podia ter o estender-se o perdão aos estrangeiros residentes no reino. Muitos dos chamados cristãos-novos eram judeus espanhóis, que, processados e condenados em Espanha, haviam buscado asilo em Portugal, ofendendo as provisões da bula, não só a Inquisição daquele país, mas também os interesses da coroa castelhana pela exempção dos confiscos, além do que, seria este o meio de fugirem muitos hereges daquelas províncias para Portugal, vista a facilidade de mostrarem com testemunhas falsas, longa residência neste país, sobre o qual recaíria a infâmia de ser um receptáculo de hereges. Esta mesma circunstância, de se estenderem aos estrangeiros todas as condições do perdão, o tornava duplicadamente perigoso na questão dos réus julgados. A permissão de se fazerem julgar de novo perante o núncio trazia o odioso sobre a Inquisição e sobre os prelados de Castela, contra os quais lhes seria fácil provar quanto quisessem, longe dos delatores e das testemunhas que o tinham feito condenar. Depois destas considerações, a exposição dilatava-se pelos lugares comuns a que a intolerância costuma socorrer-se contra o espírito da mansidão e indulgência evangélicas. Insistia-se nos efeitos fatais da falta de castigo; nos abusos que havia de trazer a certeza da impunidade; nas fingidas declarações de arrependimento, e na impossibilidade de avaliar até que ponto as reconciliações eram sinceras. Dous objetos, além de tudo o mais, reputavam gravíssimos os agentes de D. João III. Era um abranger o perdão os cristãos-velhos, especificando-se, até, para maior escândalo, as mais elevadas jerarquias eclesiásticas, afronta profunda à nação portuguesa, tão pundonorosa em matérias de religião, e que, portanto, não tinha de aproveitar perdões de tal natureza. Outro era o cometer-se ao núncio, sendo estrangeiro, o encargo de regular e aplicar as concessões da bula, contra todos os usos estabelecidos, visto que só uma pessoa natural do reino estaria no caso de apreciar as circunstâncias que se davam acerca de cada um dos indivíduos que viesse solicitar o perdão(220).

O resto da exposição, partindo do pressuposto de se revogar a bula de 7 de abril, não era mais do que a paráfrase das instruções que acima substanciámos sobre as mudanças que elrei propunha se fizessem na nova bula, pela qual, reconstituída a Inquisição, devia ser nomeado inquisidor-mor o bispo de Lamego. A única circunstância que se omitia era a ordem secreta de pedir, dado que vigorasse a bula de 7 de abril, e quando outra cousa se não vencesse, a futura reprodução, pura e simples, da bula de 17 de dezembro de 1531, com a única alteração do nome do inquisidor-mor(221).

Tais foram, em suma, os pontos sobre que versou o novo debate perante os cardeais De Cesis e Campeggio, a quem Clemente VII cometera a definitiva decisão deste negócio. Protraiu-se a contenda por muitos dias. De parte a parte, faziam-se esforços incríveis para obter a vitória. Se o que se dizia em Portugal era verdade; se o ouro dos hebreus aviventava na cúria romana o espírito da caridade evangélica, deve-se confessar que eles não o haviam poupado. As diligências de Santiquatro e dos embaixadores eram incessantes. D. João III obtivera anteriormente do seu cunhado, Carlos V, cartas para o papa, nas quais o imperador recomendava vivamente o negócio(222). A grande maioria, porém, dos cardeais e outras pessoas influentes na cúria ou protegiam abertamente a causa dos cristãos-novos ou inclinavam-se à indulgência. Ainda antes da enviatura de D. Henrique de Meneses, o embaixador espanhol e o cardeal de Sancta-Cruz, acompanhando o arcebispo do Funchal ao Vaticano, para entregarem as cartas do imperador acerca deste negócio, tinham falado ao pontífice de um modo inteiramente contrário às recomendacões escritas de Carlos V, louvando a resolução que o papa tomara de conceder o amplo perdão de 7 de abril(223). Eram instruções secretas que para isso tinham, e não passavam as rogativas da corte de Castela de uma decepção, ou haviam sabido os cristãos-novos chamar ao seu partido o representante do imperador? Ignoramo-lo. Entretanto, D. Henrique recebera em Lisboa ordem positiva para conduzir o negócio de acordo com o agente de Castela(224), poderoso apoio, na verdade, atenta a influência de Carlos V em Roma, se a proteção fosse sincera.

Nem as razões que os ministros de Portugal apresentavam contra a política de tolerância adotada pelo pontífice, nem os seus esforços indiretos, nem o apoio moral de Carlos V, se existia, tiveram, todavia, força bastante para alterar essa política. Em resultado dos debates, os teólogos que haviam assistido como consultores às conferências dos ministros portugueses com os cardeais Santiquatro, De Cesis e Campeggio, redigiram uma larga defesa da bula de 7 de abril em que se analisavam e refutavam os argumentos opostos. Além desta, apresentou-se em nome do papa outra dissertação não menos extensa, e cujo intuito era o mesmo. Porventura, a sua redação pertencia aos dois cardeais comissários e resumia as ponderações a que haviam recorrido na discussão oral(225). Posto que, como já advertimos, a bula, pelo ilógico das suas deduções preceptivas, em relação aos seus fundamentos teóricos, e pelo desprezo das verdadeiras doutrinas da igreja acerca da autoridade episcopal, que as atribuições conferidas ao núncio nesta parte anulavam, fosse, absolutamente falando, fácil de combater não o era, relativamente, para homens que lhe opunham pretensões muito mais absurdas, e essencialmente contrárias, não só à disciplina da igreja, mas também à índole do cristianismo e às tradições evangélicas. Na essência, a razão estava do lado do papa, e embora, numa ou noutra particularidade, às ponderações feitas em nome d’elrei não se pudessem opor decisivos argumentos, é certo que o todo das respostas dadas pelos cardeais e pelos consultores produz a convicção. Rememorando as palavras e obras de Cristo, dos apóstolos e dos padres primitivos; a doçura com que se devia inculcar o cristianismo, o respeito que cumpria ter-se à liberdade do alvedrio humano na adoção de uma crença nova, e a indulgência de que antigamente se usava para com as fragilidades e desvios dos neófitos, que vinham, aliás, espontaneamente e sem nenhuma coação alistar-se então debaixo das bandeiras da cruz, os defensores da bula de 7 de abril punham em contraste com esse admirável quadro de tolerância e de moderação nos primeiros séculos da igreja as cenas de bruta tirania com que se procedera em Portugal à conversão dos judeus. Ao quadro do abandono em que os prelados e clero de Portugal tinham deixado homens trazidos sem vocação ao grêmio da igreja, eles contrapunham o zelo modesto, mas incessante, a paciência e brandura com que na origem do cristianismo os apóstolos e os seus imediatos sucessores iam guiando os débeis passos dos convertidos, e alimentando com a instrução religiosa os ânimos vacilantes dos que, abrindo os olhos à luz da eterna verdade, ainda não tinham a robustez precisa para suportar todo o seu esplendor, sacrificando até, às vezes, a disciplina cristã a hábitos arreigados que não era possível extirpar de repente, quando esses hábitos não feriam a pureza do cristianismo. Este contraste, estribado de um lado no Novo Testamento e nos monumentos primordiais da igreja, e do outro nos fatos que se haviam passado em Portugal nos últimos quarenta anos, era fulminante. «Se, porém — diziam — as tradições e a prática da mansidão e indulgência da igreja para com aqueles que de livre vontade entravam no seu grêmio eram tais, quanto maior devia ser a brandura e a caridade para com homens violentados ao batismo e abandonados nas trevas dos seus erros»? Os teólogos de Clemente VII vinham depois à concessão da bula de 17 de dezembro de 1531 e à inconsistência que se notava entre esse fato e a bula de perdão. Nesta parte a resposta não era menos fulminante. «Sua santidade — diziam eles — entende que é melhor referir ingenuamente a verdade, do que recorrer a sutilezas. Levaram-no a conceder a Inquisição por meio de informações sinistras, persuadindo-lhe cousas que prefere calar, para não fazer os que a solicitaram odiosos a seus próprios naturais, infamando-os perante o orbe cristão com o ferrete da deslealdade. Seria essa a conseqüência de se patentearem as mentiras que forjaram para perder esta mísera gente. Só depois, sua santidade soube que os fatos eram pela maior parte mui alheios do que se pintava, e isto por informações de diversos indivíduos, dadas por escrito e vocalmente. As barbaridades que se praticam são tais que custa a perceber como haja forças humanas que possam sofrer tanta crueldade». — Passavam depois a fazer o extrato de uma dessas informações dignas do maior crédito. — «Se é delatado, às vezes por testemunhas falsas, qualquer desses malaventurados, por cuja redenção Cristo morreu, os inquisidores arrastam-no a um calabouço, onde lhe não é lícito ver céu nem terra e, nem sequer, falar com os seus para que o socorram. Acusam-no testemunhas ocultas, e não lhe revelam nem o lugar nem o tempo em que praticou isso de que o acusam. O que pode é adivinhar e, se atina com o nome de alguma testemunha, tem a vantagem de não servir contra ele o depoimento dessa testemunha. Assim, mais útil seria ao desventurado ser feiticeiro do que cristão. Escolhem-lhe depois um advogado, que, freqüentemente, em vez de o defender, ajuda a levá-lo ao patíbulo. Se confessa ser cristão verdadeiro e nega com constância os cargos que dele dão, condenam-no às chamas e os seus bens são confiscados. Se confessa tais ou tais atos, mas dizendo que os praticou sem má tenção, tratam-no do mesmo modo, sob pretexto de que nega as intenções. Se acerta a confessar ingenuamente aquilo de que é culpado, reduzem-no à última indigência e encerram-no em cárcere perpétuo. Chamam a isto usar com o réu de misericórdia. O que chega a provar irrecusavelmente a sua inocência é, em todo o caso, multado em certa soma, para que se não diga que o tiveram retido sem motivo. Já se não fala em que os presos são constrangidos com todo o gênero de tormentos a confessar quaisquer delitos que se lhes atribuam. Morrem muitos nos cárceres, e ainda os que saem soltos ficam desonrados, eles e os seus, com o ferrete de perpétua infâmia. Em suma, os abusos dos inquisidores sãos tais, que facilmente poderá entender quem quer que tenha a menor idéia da índole do cristianismo, que eles são ministros de Satanás e não de Cristo». — Tal era o extrato. Acrescentavam os teólogos que, certificado por testemunhos indubitáveis destes fatos, convencido de que o dever de pontífice era edificar e não destruir, e vendo que os inquisidores tratavam os conversos, não como pastores, mas como ladrões e mercenários, não só suspendera a Inquisição, mas também, conhecendo que contribuira, por falta de são conselho, para tais horrores, quisera dar uma reparação às vítimas, concedendo aquele amplo perdão; que não lhe importava se os seus predecessores tinham, acaso levianamente, concedido ou tolerado tais cousas nos outros reinos de Espanha: importavam-lhe os exemplos dos apóstolos, que o espírito divino alumiava; porque ele não supunha ser vigário de Inocêncio VIII, de Alexandre VI ou de outro qualquer papa, mas sim daquele de quem, conforme o sentir da igreja, era próprio compadecer-se e perdoar. Notava-se, enfim, que elrei estranhasse tanto esta indulgência e tolerância do pontífice, quando seu pai havia concedido aos cristãos-novos privilégios e exempções que ele próprio confirmara, ao passo que o pontífice, absolvendo-os agora, não fazia, propriamente, senão dilatar por um prazo demasiado curto os efeitos das concessões havidas por eles da benevolência real(226).

Todas as considerações oferecidas por parte d’elrei eram contraditas com igual energia, se não sempre com a mesma felicidade de doutrina e raciocínios, nos dous memorandos da cúria romana. Vendo o negócio perdido na comissão escolhida para o tratar, os agentes de Portugal redobravam de instâncias para com Clemente VII, a fim de obterem uma resolução menos desfavorável. O resultado, porém, dos seus esforços não chegou a mais do que a propor-lhes ele uma transação, que aliás, à vista das suas instruções, não podiam aceitar. Era voltar tudo ao antigo estado, revogando-se a bula de 7 de abril, suprimindo-se inteiramente a Inquisição, e começando-se de novo a tratar de raiz o assunto. Debaixo destas condições, o papa não duvidava de vir a conceder uma Inquisição ainda mais rigorosa(227).

Não restava, pois, meio algum de esquivar por então o golpe. O mais que se pôde alcançar foi que, em vez do breve, cuja minuta estava redigida, para compelir elrei a aquiescer à bula de perdão, se escrevesse outro mais moderado na forma, mas, porventura, no essencial ainda mais enérgico. Nesse breve, expedido a 2 de abril, o papa indicava sumariamente o processo da negociação e declarava a D. João III que, embora não fosse obrigado a dar-lhe satisfação da maneira por que procedia como supremo pastor, contudo, por deferência com ele, dar-lhe-ia razão de si, apontando-lhe os motivos que tivera para rejeitar as súplicas dos seus embaixadores. Estes motivos eram em substância os mesmos dos memorandos dos cardeais e teólogos, expostos com admirável lucidez, simplicidade e elegância, sem perderem um ápice da sua força. Concluía o pontífice asseverando que estava certo da obediência d’elrei e assegurando a este que, se tivesse de fazer novas ponderações, a corte de Roma estava pronta a ouvi-las uma e mil vezes(228). Poucos dias depois, Clemente VII escrevia ao núncio, avisando-o da expedição deste breve. Esperava o papa que, respondendo-se aí a todas as objeções, elrei não poria mais obstáculos à execução da bula. Ordenava-lhe, portanto, que cumprisse o que nela se estatuía, repetindo-lhe, contudo, a advertência que já por muitas vezes lhe fizera, advertência que, aliás, não provava demasiada confiança nas qualidades morais do bispo de Sinigaglia, de que nem ele, sob pena de suspensão, nem os seus ministros e familiares, sob pena de excomunhão, se aproveitassem das circunstâncias para fazerem extorsões aos cristãos-novos, fosse com que pretexto fosse, sem excetuar o de supostas dádivas voluntárias, ou o de despesas pela feitura de quaisquer diplomas(229).

Na mesma conjuntura escreviam os agentes d’elrei para Portugal dando conta do infeliz resultado da negociação. O arcebispo do Funchal sustentava que o mal procedera principalmente de se ter pedido o favor de Castela, divulgando-se assim o negócio, e aconselhava elrei sobre o procedimento que devia adotar. Desgostoso, porque sabia que a missão de D. Henrique de Meneses nascera de se desconfiar dele, nem por isso se tinha mostrado mais frouxo(230). O cardeal Santiquatro e o embaixador extraordinário, D. Henrique, escreveram também. A carta deste último, que ainda existe, e que foi enviada pelo mesmo mensageiro que trouxe o breve, é um documento importante, porque nos mostra como, apesar desse breve, ainda não estava tudo irremediavelmente perdido. Havia pontos em que o papa parecia inabalável, e a opinião geral na cúria ia conforme com ele: no resto era fácil vir a um acordo. D. Henrique lembrava a exequibilidade da transação que Clemente VII propunha de se revogarem absolutamente os dous atos de 17 de dezembro de 1531, que criara a Inquisição, e o de 7 de abril, que virtualmente a anulava, tratando-se de novo o assunto, ou sobrestando por enquanto na resolução dessa matéria. Acerca disto remetia a elrei um projeto de breve que o pontífice lhe ordenava comunicasse ao seu soberano. Como é de crer, o embaixador achava que elrei teria razão de se ofender do procedimento do papa; mas advertia que meditassem bem os seus conselheiros na resolução que deviam e podiam adotar, de modo que depois se não vacilasse, e, posto que pouco explicitamente, sugeria como possível a idéia de se quebrarem as relações com a corte pontifícia, mandando-os retirar de Roma, a ele e ao arcebispo. Quanto ao negócio em si, havia a escolher entre duas soluções, ambas as quais o papa aceitaria. Consistia a primeira no que já se apontara, de voltar tudo ao estado anterior à concessão do tribunal da fé: consistia a segunda em substituir-se a bula de 7 de abril por outra, onde se fariam as modificações que o papa aceitava, figurando-se que era solicitada pelo próprio rei, e que seria minutada por Santiquarto. Adotado este expediente, obter-se-ia com vantagem o posterior restabelecimento da Inquisição, ainda quando fosse preciso derrogar para isso alguma provisão de direito canônico. D. Henrique parecia inclinar-se para a primeira solução. Voltando tudo ao estado antigo, sairia de Portugal o núncio, cuja persistência neste país era o mais duro obstáculo à boa conclusão do negócio. Ganhar-se-ia assim tempo, mudariam os homens e as cousas, e elrei teria tempo de tornar favorável o ânimo do papa. Seguindo o outro arbítrio, o embaixador oferecia a D. João III um conselho sugerido por Santiquatro. Era que não ficassem de graça aos hebreus as supostas solicitações do monarca; e que, por modo de penitência, se lhes extorquissem vinte ou trinta mil cruzados ou, enfim, outra qualquer soma, que seria repartida com Clemente VII, descontente d’elrei por não lhe ter acudido em diversas circunstâncias apuradas(231). Assegurava ser geral na cúria a opinião de que, sobretudo, interessava à honra d’elrei e à memória de seu pai conceder-se o perdão, e lembrava que em Roma não se queria senão dinheiro(232). Remetia de novo cópia dos memorandos a favor da bula de 7 de abril, aos quais, dizia, talvez ironicamente, fácil era responder, posto que ele para isso não estivesse habilitado. O resto da carta referia-se ao acabamento da sua missão, à brevidade com que pedia novas instruções, e a certas mercês que o cardeal Sancta-Cruz solicitava d’elrei. Por fim, recomendava que no caso de se adotar a segunda solução que propunha, se obtivesse de Carlos V que fizesse novas instâncias ao papa sobre o assunto. Uma carta de Santiquatro para elrei acompanhava a do embaixador extraordinário, tendo por objeto reforçar as considerações que nela se faziam(233).

Vê-se que havia um ponto em que discordavam os dous ministros portugueses. Era o da intervenção do gabinete de Castela neste negócio. Enquanto o arcebispo indicava como fatal essa intervenção e atribuía a ela principalmente os maus resultados da empresa, D. Henrique de Meneses aconselhava novas e apertadas instâncias, para obter o favor de Carlos V, no caso de se quererem continuar as negociações. É óbvio que a proteção decisiva do imperador era assaz forte para coagir Clemente VII, que, por motivos estranhos ao nosso assunto, a nenhum príncipe da Europa devia temer tanto como ao poderoso monarca da Espanha: a manifestação clara e precisa dos seus desejos nesta matéria equivaleria sem dúvida a uma ordem formal. Embora o arcebispo alegasse o dúplice procedimento anterior do ministro espanhol em Roma, ainda supondo que tal procedimento fosse resultado de insinuações secretas, a conseqüência não era, como ele entendia, inutilizar essa arma irresistível; era fazer diligências para a tornar de fina têmpera, buscando por todos os modos que a proteção de Castela fosse eficaz e sincera. Porque, pois, pretendia afastá-la o arcebispo, homem astuto, e que a si próprio se gabava de que só algum negócio impossível seria o que ele não soubesse levar a cabo(234)? É lícito supor que desejava prolongar a luta, porque interessava em residir na corte de Roma, e porque, apesar das exagerações que lemos na correspondência que dele nos resta acerca dos próprios serviços, o arcebispo traía o seu dever, acaso porque dessa deslealdade tirava os meios para realizar os desígnios que nutria. Documentos posteriores revelam-nos a este respeito uma vergonhosa história, um desses quadros que não raro passarão ante os olhos do leitor, e que provam o erro dos que supõem que o século XVI, inferior sob tantos aspectos ao nosso, valia mais do que ele pelo lado moral.

D. Martinho era um grande ambicioso. Não contente com achar-se elevado à dignidade de embaixador e de arcebispo primaz do Oriente, punha a mira na púrpura cardinalícia, contando com o favor de Clemente VII(235). Para isto carecia de não alienar o ânimo do pontífice, firme no seu propósito de favorecer os cristãos-novos; precisava, além disso, de conciliar a benevolência dos indivíduos mais influentes na cúria, que, como temos visto, os protegiam energicamente. Depois, se era verdade, como dizia D. Henrique de Meneses, que em Roma o que se queria era dinheiro, um homem a quem os escrúpulos não incomodavam devia, para chegar aos seus fins, aproveitar todos os meios de o obter. Sabemos pela boca dos conselheiros de D. João III que em Portugal se acreditava geralmente que a benevolência da cúria para com os cristãos-novos não era gratuita, e o próprio papa não estava exempto de tais suspeitas. Nessa hipótese, comprar um simples arcebispo não seria cousa que excedesse os recursos dos conversos. Fosse como fosse, é certo que, ao chegar D. Henrique a Roma, existiam já relações ocultas entre D. Martinho e Duarte da Paz, os quais todos os dias tinham conferências secretas(236). Tratava naquele tempo o arcebispo de remover uma grande dificuldade que se opunha às suas miras. Era a da bastardia, por ser filho do bispo de Évora e de uma certa Briolanja de Freitas(237), o que o excluía do cardinalato. Clemente VII não o ignorava, mas indiferente a essa circunstância(238), conveio em representar um papel na farsa que, para obter os seus fins, o enviado português imaginara. Uns certos Correias, que se achavam em Roma, fingiram, de acordo com este, demandá-lo em razão de alguns bens, verdadeiros ou supostos, em que diziam não dever D. Martinho suceder por ser bastardo. O embaixador negou a exceção, e o papa nomeou juízes para dirimirem a contenda. O arcebispo acumulou então toda a casta de documentos falsos, e fez instituir quantos inquéritos quis de testemunhas compradas, com que provou judicialmente que era legítimo. Os registros da cúria estavam cheios de súplicas em que por diversas vezes e em diferentes épocas D. Martinho reconhecera a sua bastardia e dela pedira dispensa; mas como o processo não passava de uma comédia, nem a parte adversa impugnou as provas, nem os juízes fizeram caso do fato sabido, e a legitimidade do arcebispo foi julgada por sentença(239). Assim preparado, só restava esperar pela conjuntura de alguma criação de cardeais, e ter a seu favor os conselheiros do papa, no que Duarte da Paz, que soubera captar-lhes a benevolência, lhes poderia ser grandemente útil. Em todas estas cousas procedia o astuto prelado com segredo e disfarce, de modo que D. Henrique de Meneses só mais tarde veio a descobrir o alvo a que o arcebispo mirava. Assim, vendido no meio daqueles torpes enredos, e enganado com as aparências de zelo do seu colega, contribuía involuntariamente para iludir elrei, exagerando os serviços de D. Martinho e a sua incansável atividade(240).

Se o embaixador ordinário em Roma traía a confiança do seu soberano, provavelmente para se ajudar em proveito das suas ambições particulares do agente dos cristãos-novos, este não desmentia por sua parte o carácter com que já o leitor o viu aparecer no fim do precedente livro. Se as suas ofertas para vender os hebreus portugueses, que nos atos externos servia com tanto zelo, tinham sido formalmente aceitas, ou se apenas a esse infame tráfico se dera um assenso tácito, não saberíamos dizê-lo. É certo, porém, que, ao mesmo passo que parecia obter para os seus tão assinalado triunfo na cúria romana, ele denunciava para o reino, por intervenção do arcebispo, os mais notáveis entre os pseudo-cristãos que tratavam de se pôr a salvo fugindo de Portugal, e indicava quais seria conveniente prender e processar, sugerindo as providências que reputava convenientes para obstar à sua fuga e oferecendo-se para a isso pôr obstáculos em Itália(241). Se outr’ora Duarte da Paz, mandando a elrei a cifra por meio da qual deviam corresponder-se, exigia o maior segredo, recomendando que nem o próprio embaixador Brás Neto soubesse das suas relações com o soberano, como escrevia agora por intervenção de D. Martinho? Forçoso é supormos que entre estes dous homens havia laços misteriosos, que o prelado não podia quebrar sem se perder a si próprio. Fora disto, a confiança do astuto hebreu seria inexplicável. O que é certo é que ambos os dous ganhavam na prorrogação da luta. Por um lado o arcebispo, que tinha a chave do negócio da Inquisição, mal poderia ser substituído, e a prova era que D. João III, em vez de o remover se limitara a colocar ao pé dele um homem ou mais ativo ou de maior confiança. Por outro lado Duarte da Paz, por cujas mãos corriam os recursos de que os cristãos-novos dispunham para escaparem ao extermínio, quantas mais dificuldades suscitasse à definitiva realização das vantagens que ele próprio obtinha, mais proventos podia auferir das tenebrosas negociações que lhe eram confiadas. Esta hipótese, que se estriba em grandes probabilidades, dado o carácter dos dous agentes, explica de modo assaz plausível esses fatos de repugnante imoralidade.

Que era o que se passava em Portugal entretanto? A bula de 7 de abril continha as disposições mais explícitas, as cominaçõea mais severas, e precavia, quanto a previdência humana o podia alcançar, todas as resistências. Numa corte, que se dizia tão profundamente possuida das crenças católicas, como a portuguesa, a linguagem do supremo pastor, as ameaças terríveis com que sancionava as suas providências deviam fazer curvar todas as cabeças. Supondo que as disposições daquela bula não se estribassem, como estribavam, nas doutrinas irrefragáveis do cristianismo, e que fosse controversa a conveniência do concedido perdão, é claro que o papa, de quem o próprio D. João III reconhecera depender o estabelecimento da Inquisição, solicitando-o dele, podia anulá-la do mesmo modo que a instituirá. As censuras, portanto, fulminadas no diploma de 7 de abril caíriam justissimamente sobre a cabeça daqueles que desobedecessem. Não importava a existência do breve de 2 de abril de 1534. Embora Clemente VII deixasse aí a porta aberta às tergiversações, prometendo ouvir todas as queixas que elrei quisesse fazer contra o perdão ou contra as condições dele; isso não obstava ao cumprimento, porque a bula invalidara de antemão quasquer atos pontifícios posteriores que pudessem servir de obstáculo à sua execução(242). Estas óbvias considerações, capazes de conter os espíritos timoratos ou sinceramente crentes, não fizeram, todavia, a mínima impressão em Portugal, e esse diploma, cujas provisões pareciam irresistíveis, foi, nos resultados, nulo ou insignificante. Tanto 6 certo que o fanatismo nos seus furores não sabe recuar diante de negação das doutrinas que propugna, e que a hipocrisia faz joguete até da própria máscara, quando lhe não resta outro meio de ludibriar o céu e a terra.

Enquanto os hebreus portugueses buscavam abrigo contra as perseguições no seio de Clemente VII, e parecia aos olhos do mundo que enfim lhes raiara o dia da redenção, eles gemiam, sem descanso nem tréguas, no meio dos martírios que os seus amigos lhes haviam preparado. Já vimos quais eram as informações obtidas em Roma sobre o sistema de perseguição adotado pelos inquisidores portugueses, sistema que na essência vinha a ser o seguido em Castela. Aos horrores praticados dentro dos muros do lúgubre tribunal e que já naqueles princípios, conforme se depreende dos fatos mencionados nos memorandos da cúria romano, eram semelhantes aos de que nos restam tantos vestígios em tempos posteriores, ajuntava-se a perseguição civil, que, dando impulso aos processos contra os hereges, convertia os tribunais eclesiásticos ordinários numa espécie de Inquisições suplementares. Às vezes, o rei mandava proceder a inquéritos nos distritos mais remotos, onde a Inquisição não tinha delegados. À vista desses inquéritos, expediam-se ordens régias dirigidas aos respectivos prelados para fazerem capturar tais ou tais indivíduos e processarem-nos como judeus. Os tribunais eclesiásticos transmitiam então essas ordens aos magistrados do lugar onde as vítimas residiam. Estes magistrados eram, porventura, os mesmos que os haviam culpado. Para prenderem os suspeitos e conduzirem-nos à cabeça da diocese, nomeavam-se, não os oficiais de justiça da comarca ou concelho, mas aguazis e guardas extraordinários, para o que se escolhiam, às vezes, inimigos pessoais dos presos. Pelos bens destes, que imediatamente se punham em almoeda, se pagavam a esses esbirros postiços grossas subvenções, e exemplos houve de comprarem a vil preço os próprios magistrados os bens dos réus, com o pretexto de que era urgente, para ocorrer às despesas do trânsito, realizar dinheiro de contado. Assim, ficavam os que eram mais pobres reduzidos à miséria antes de condenados. Os maus tratamentos que padeciam pelo caminho, rodeados de guardas ferozes, e expostos ao fanatismo da gentalha, fáceis são de imaginar. Sabendo da existência da bula de 7 de abril, as vítimas interpunham recurso para o núncio; mas, reduzidos à indigência, poderiam esperar proteção eficaz de um homem como Sinigaglia? Teria ele força para lh’a dar? Neste concerto fatal entre o poder civil e a Inquisição, todas as denúncias, ainda as fundadas nos pretextos mais frívolos, eram avidamente acolhidas, e assim acontecia virem a provar alguns indivíduos, retidos nas masmorras anos e anos, que os seus acusadores eram os verdadeiros culpados nos delitos que lhes atribuíam a eles, e que só para lh’os imputarem haviam perpetrado. A obscuridade da pobreza e o esplendor da opulência eram igualmente inúteis para os indivíduos da raça proscrita. Bastaria para perder qualquer deles ter um inimigo; quanto mais odiando-os a grande maioria da população(243). Como se isto não bastasse, os processos da Inquisição de Castela vinham pelos seus efeitos refletir em Portugal. Em conseqüência das relações entre os cristãos-novos dos dous paises, os hebreus portugueses achavam-se, às vezes, gravemente comprometidos, ou porque eram, posto que estrangeiros e ausentes, condenados lá como hereges, ou porque os inquisidores espanhóis enviavam transumptos dos respectivos processos aos prelados e depois aos inquisidores de Portugal. Existe uma súplica em que um mancebo desta raça infeliz descreve com rápidos traços a sua história. Era um desses valentes que diariamente combatiam pela fé nas praças d’África, praças que D. João III, entretido em acender as fogueiras da Inquisição, pensava já em abandonar covardemente aos infiéis. Ali fizera estremados serviços e fora armado cavaleiro ainda na flor da juventude. Envolvido, não sabemos como, num processo remetido de Castela, e condenado a cárcere perpétuo, fora arrastado durante sete anos de masmorra em masmorra, até que à força de rogos, obtivera como alívio a reclusão no convento da Trindade de Lisboa. Dous anos depois, o desgraçado mancebo, que durante esse periodo padecera de contínuo o martírio da fome, lançando os olhos aterrados para um longo futuro, pedia a el-rei que, levando-lhe em conta os seus serviços e o padecer de nove anos, o deixasse ir morrer nas plagas da África em defesa do cristianismo, vilipendiado em Portugal pelas atrocidades dos inquisidores(244).

Quando a bula de 7 de abril de 1533 chegara a Portugal, Marco della Ruvere transmitira aos metropolitanos e aos demais prelados cópias autênticas dela, sem disso dar parte ao governo. Esta circunstância obstava à execução das letras apostólicas pelo lado civil. Assim, os bispos limitaram-se a aceitá-las sem procederem à sua promulgação. Sabía-se da existência da concessão; os cristãos-novos invocavam-na; mas os seus efteitos não podiam realizar-se na prática. À vista, porém, do breve de 2 de abril de 1534, o próprio núncio entendeu que devia dor tempo a elrei para apresentar em Roma novas ponderações, refutando, se pudesse, as que se ofereciam por parte da santa sé. Gonseguintemente, dirigiu aos prelados do reino uma circular para que sobrestivessem na publicação oficial do perdão e suspendessem qualquer ato tendente à execução da bula(245). Neste estado de cousas, a corte de Portugal não carecia de se apressar extraordinariamente, além de que as respostas às considerações do breve de 2 de abril não eram fáceis de achar. As consultas a este respeito protraíram-se por alguns meses, durante os quais a situação de D. Henrique de Meneses e de Santiquatro se tornava cada vez mais espinhosa pela falta das instruções e dos esclarecimentos indispensáveis para poderem aproveitar os últimos raios de esperança que ainda lhes restavam(246). Assim, D. Henrique, ofendido com as imoralidades que via praticar na corte de Roma, insistia com elrei para que o mandasse retirar dela(247). Uma circunstância, já de antemão prevista, veio entretanto aumentar os embaraços que rodeavam os agentes de Portugal.

Desde a sua volta de Marselha, Clemente VII não gozara de um momento de saúde. Ele próprio parecia persuadido de que a morte se avizinhava. Com a vinda do estio, os padecimentos axacerbaram-se-lhe. Não era a velhice que o conduzia ao túmulo, porque tinha apenas cinqüenta e seis anos. Dores violentas no estômago eram, sobretudo, o seu mal. Havia quem acreditasse que morria envenenado. Segundo alguns escritores, a cúria romana detestava-o, os príncipes desconfiavam dele, e a sua reputação era geralmente má. Foi tido na conta de avaro, desleal, pouco bemfazejo, posto que não vingativo, o que talvez se deve atribuir à sua natural timidez. Em compensação, passava por sagaz, circunspecto e atilado, de modo que o seu juízo era sempre o melhor, quando o temor ou outras paixões não o ofuscavam(248). Os últimos meses da sua vida foram uma dilatada agonia. Vindo a falecer nos fins de setembro, já em julho o consideravam como moribundo e lhe subministravam os últimos sacramentos(249). Naquela situação angustiada do espírito, em que a consciência põe diante do homem a verdade em toda a sua nudez, e em que os afetos mundanos recuam à voz imperiosa da convicção ou dos remorsos, Clemente VII mandou expedir em 26 de julho um breve, no qual, recapitulando sumariamente o estado da questão, e ponderando que por quatro meses esperara debalde uma resolução da corte de Lisboa, ordenava ao bispo de Sinigaglia fizesse vigorar a bula de 7 de abril, estatuindo que, se D. João III ou os seus ministros pusessem tais obstáculos, que as solenidades da publicação não pudessem realizar-se, ficassem os culpados livres de todas as penas canônicas impostas nos tribunais eclesiásticos, e considerados como absolvidos, independentemente das formalidades prescritas naquela bula, aplicando, aliás, as censuras ali fulminadas para domar todas as resistências(250). No preâmbulo do breve, Clemente VII aludia ao seu estado, à vizinhança da morte e ao brado da própria consciência. Esse diploma era, digamos assim, uma verba do seu testamento como pai comum dos fiéis. Fossem quais fossem os abusos e corrupções que acerca deste negócio se houvessem dado na cúria romana, admitindo, até, que motivos menos puros tivessem (como se dizia em Portugal, e era verdade)(251) influído no ânimo do papa, é certo que naquele momento solene a sua resolução exprimia um sentimento legítimo e a convicção sincera, alheia a todas as considerações terrenas, de que na causa dos cristãos-novos interessavam igualmente a religião, a justiça e a humanidade.

Falecido Clemente VII a 25 de setembro, e reunido o conclave, começaram os enredos eleitorais. Nessa conjuntura escrevia D. Henrique de Meneses a elrei, fazendo votos para que subisse à cadeira pontifícia algum indivíduo cujo ânimo fosse favorável às pretensões da corte portuguesa. «Mas — acrescentava ele — hão-de escolhê-lo trinta e seis diabos, que tantos são os cardeais eleitores.» Apesar, porém, da qualificação que dava aos membros do conclave, pedia a Deus que os alumiasse naquele empenho(252). Afinal saiu eleito, a 23 de outubro, o cardeal Alexandre Farnese, decano do sacro colégio, com o nome de Paulo III. Eis como o arcebispo do Funchal, homem cujo defeito não era por certo a falta de capacidade, pintava a D. João III o novo pontífice. Paulo III tinha setenta anos, e afirmava que havia de viver ainda sete, mas que, se passasse além deles, viveria outros tantos. Cria o vulgo que este vaticinio o fazia por ser astrólogo, ao passo que o papa dava a entender que era por divina revelação. Nobre e rico, a sua eleição não encontrara resistência, nem fora nem dentro do conclave. A reunião de um concílio, onde se procurasse pôr termo às dissidências suscitadas por Lutero e por outros reformadores, era idéia geralmente bem aceita na Europa, mas a que sempre Clemente VII repugnara. Paulo III, que a adotara enquanto cardeal, não podia deixar de mostrar-se empenhado em que se realizasse aquele pensamento. Assim, apressou-se em enviar para diversas partes núncios que tratassem o assunto com os príncipes católicos. Um dos seus primeiros atos foi nomear uma comissão de vários cardeais para procederem à reforma dos abusos introduzidos na cúria romana. Dizia estar resolvido a restabelecer o império da rigorosa justiça, desprezando todas as influências e esmagando todas as reações. Afirmava que não queria aumentar a própria fortuna, e que duas netas que tinha as casaria, não com membros de famílias reais, mas sim com indivíduos iguais a elas em condição. Aproveitando, todavia, os exemplos dos seus predecessores, promoveu ao cardinalato dous netos que também tinha, posto que nenhum excedesse a quinze anos de idade, abuso extremo, que aliás ele reconhecia e de que prometia abster-se logo que estivessem concluídas as reformas que meditava. Não se conhecia pessoa que o dominasse, e todas as resoluções tomava de seu motu-proprio. Era prolixo e pouco prático em relação às fórmulas de chancelaria, adotando de preferência as do século anterior. Tratava com menos consideração os embaixadores, dando-lhes raramente audiência, e valia mais para ele um cardeal do que todos os ministros estrangeiros juntos. Gozava da opinião geral de incorruptível, e estabelecera como regra respeitar os atos do seu predecessor, para tirar o costume inveterado, dizia ele, de destruir um papa o que outro havia feito. Isso, porém, não obstava a que fosse grandemente cioso da autoridade e regalias da sé apostólica, quebrando quaisquer exempções ou privilégios concedidos por esta, fosse a que príncipe fosse, quando esses privilégios feriam de algum modo as prerrogativas legítimas e os direitos da cúria romana(253).

Tal era o homem que ia agora ser árbitro na contenda entre D. João III e os seus súditos de raça hebréia. As instruções da corte de Portugal só haviam chegado a Roma a 24 de setembro, véspera da morte de Clemente VII(254). Eleito o novo papa, os agentes de D. João III trataram sem demora de aproveitar a nova situação, visto que o pontífice estava desligado dos compromissos do seu antecessor. O essencial era suspender-se a execução dos diplomas precedentemente expedidos. Punham nisto todo o empenho; porque, munidos de novos argumentos, e sabendo o procedimento que lhes mandavam adotar, importava-lhes principalmente reduzir de novo tudo à tela da discussão(255). O conde de Cifuentes, embaixador de Carlos V, recebera afinal instruções precisas para favorecer energicamente as pretensões da corte de Portugal, e o próprio imperador escrevera sobre isso ao novo papa, que em duas audiências sucessivas concedidas aos ministros de D. João III, nos dias subseqüentes à eleição, tomou conhecimento do estado daquele espinhoso negócio. Santiquatro, a quem Duarte da Paz tentara comprar com a oferta de uma pensão de oitocentos cruzados anuais, e que a rejeitara, tomou a defesa do rei de Portugal nessas conferências, a que haviam sido chamadas diversas pessoas. Um certo Burla, que exercia o cargo de redator dos diplomas pontifícios e que favorecia os cristãos-novos, foi aí violentamente agredido pelo cardeal, que lhe lançou em rosto os seus ocultos meneios, e nessa conjuntura soube D. Henrique de Meneses da concessão do breve de 26 de julho cuja existência Clemente VII proibira se fizesse conhecer em Roma antes da sua morte. Estavam também presentes na sala, posto que não interviessem no debate, Duarte da Paz e outro cristão-novo, chamado Diogo Rodrigues Pinto. D. Henrique de Meneses, que por muito tempo guardara silêncio, declarou positivamente a Paulo III que não trataria de cousa alguma enquanto visse ali aqueles dous homens. Replicou-lhe o papa que, posto que não houvessem sido chamados, e que ele estivesse pronto a mandá-los sair do aposento, não era possível deixar de ouvi-los num assunto que tanto interessava aos seus clientes. Assentou-se afinal em que se nomeasse uma comissão para examinar o negócio, a qual o exporia ao pontífice, para com justiça se tomar sobre a matéria uma resolução definitiva(256).

Em resultado do que se passara na última conferência e dos esforços combinados do cardeal Pucci e do conde de Cifuentes, que nesta conjuntura tinha mostrado os maiores desejos de fazer triunfar a causa em que D. João III estava empenhado(257), o papa ordenou a feitura de um breve dirigido ao núncio, em que se lhe ordenava a suspensão da bula de 7 de abril de 1533, ou da execução dela, se já estivesse publicada, dando-se por de nenhum efeito o breve que Clemente VII fizera expedir antes de morrer. Mandou igualmente redigir outro endereçado a elrei, no qual o avisava de que, tendo-lhe os embaixadores apresentado as réplicas ao diploma de 2 de abril de 1534 enviadas de Portugal, suplicando-lhe que as fizesse maduramente examinar, ele instituira uma comissão para este fim, ordenando entretanto a suspensão da bula, mas ordenando também que os inquisidores, e ainda os ordinários se abstivessem de qualquer procedimento judicial contra os suspeitos ou acusados de heresia, soltando-se os presos com fiança, ou sem ela, se os seus bens estivessem sequestrados, sendo unicamente excluídos do benefício os relapsos(258). Para fazer cumprir essas providências Paulo III reconduzia interinamente no cargo de núncio o bispo de Sinigaglia(259).

A situação deste em Portugal não era menos dificultosa do que a dos agentes de D. João III o havia sido até aí em Roma. Com o breve de 26 de julho viera a notícia da morte provável de Clemente VII, notícia que não tardou em se realizar. Queria Marco della Ruvere cumprir os mandados pontifícios: opunha-se elrei. Já anteriormente o monarca via com maus olhos o núncio, e não lh’o escondia(260). Aumentava esse fato a mútua indisposição. D. João III proibiu expressamente que tivessem efeito a bula de perdão e o breve que a revalidava; mas o representante de Roma, desprezando a cólera d’elrei, mandou-os publicar e intimar por notários apostólicos em todas ao dioceses do reino(261). Chegadas as cousas a tais termos, às suas solicitações na cúria o governo português tinha de ajuntar outra não menos instante, a da imediata remoção de Sinigaglia. Entretanto este, resolvido a proteger os conversos até onde lhe fosse possível fazê-lo sem grave comprometimento, apenas recebeu de Roma o breve inibindo-o a ele e aos ordinários de qualquer procedimento ulterior acerca dos cristãos-novos, intimou aos prelados a resolução pontifícia, fazendo-lhes ao mesmo tempo sentir que, se não lhes era lícito cumprir a bula do perdão, também o não era ofendê-la, e advertindo-os de que essa resolução de modo nenhum prejudicava ao fato da intimação, publicação e promulgação da mesma bula, não se devendo, portanto, reputar infirmada nas suas disposições ou nos seus futuros efeitos(262).

Em conformidade com o arbítrio que adotara, Paulo III escolheu por comissários para examinarem de novo e resolverem a questão que se ventilava com a corte de Portugal dous dos homens mais hábeis que havia na cúria, e de quem o papa confiava os mais árduos negócios, o bispo milevitano Jerônimo Ghinucci, auditor da câmara apostólica, e o bispo pisauriense Jacob Simonetta, auditor da Rota, ambos elevados ao cardinalato poucos meses depois(263). Os embaixadores e Santiquatro, como protetor de Portugal, tinham a combater não só as razões que haviam servido para corroborar o breve de 2 de abril e a bula de perdão geral, mas também as limitações com que Clemente VII prometia restabelecer a Inquisição, depois de reduzidas a efeito as providências daquela bula. Quanto aos fundamentos em que os cardeais e teólogos da anterior comissão estribavam a manutenção dessas providências, opunham-se-lhes considerações que os conselheiros de D. João III julgavam assaz fortes para os invalidar. Entendiam os canonistas e teólogos portugueses que, dada a hipótese de ter sido a conversão forçada, passara isto havia tantos anos que a maior parte dos então batizados eram falecidos, muitos expatriados, e outros que ainda viviam tinham aceitado o fato, ficando no país e vivendo com exterioridades de cristãos, não sendo, em todo o caso, esta razão da violência aplicável aos refugiados espanhóis: que a força, a tê-la havido, fora condicional, e segundo a doutrina canônica, esta não podia servir de escusa ao crime de heresia; que os filhos e netos dos primeiros conversos, embora educados a ocultas por seus pais na lei de Moisés, podiam ter-se convencido da verdade do cristianismo, seguindo-o na aparência por tanto tempo, assistindo aos atos do culto, aprendendo a doutrina católica, e ouvindo os pregadores. Discutiam depois os princípios invocados em Roma acerca da liberdade e espontaneidade da compulsão condicional, isto é, doutrinas mais ou menos exageradas de intolerância e fanatismo, e tornavam a citar em abono da compulsão exemplos de príncipes piedosos, argumento a que já tinham recorrido, aludindo a Sisebuto. Quanto a eles, o sangue e as tribulações dos hebreus, longe de mancharem a memória d’elrei D. Manuel, deviam ser para o falecido monarca um título de glória; porque os que haviam perdido suas almas por contumazes tinham-no feito apesar dele, e os sinceramente convertidos deviam agradecer-lhe o ganharem o céu. Vê-se que a acusação do desleixo que houvera em doutrinar os conversos ferira vivamente os defensores da intolerância, e que procuravam por todos os modos provar que nesta parte o papa fora mal informado; mas limitavam-se a vagas negativas. Entrando no exame da defesa das provisões especiais para se verificar o perdão, agrediam vantajosamente os seus adversários, sustentando que a bula não providênciava acerca daqueles que, indo manifestar perante o núncio que haviam sido batizados a força, se apresentassem francamente como sectários da lei de Moisés. Era, talvez, esse o lado mais vulnerável da bula. Debalde tinham querido os teólogos de Clemente VII aplicar aos pseudo-conversos certas provisões daquele diploma. Todas versavam sobre as condições e formas do perdão, e, segundo as doutrinas em que a bula se estribava, os que nunca haviam consentido em serem cristãos não podiam ser perdoados, porque não eram passíveis de pena alguma. Supondo, porém, que devessem ser incluídos na categoria daqueles acerca dos quais o papa se reservava prover, à vista das suas declarações e dos informes do núncio, entendiam, e entendiam bem, que nenhuma outra solução razoável havia, se não ordenar que os deixassem sair do reino com seus bens a viverem onde quisessem como judeus. Mas ponderavam que nesta hipótese, todos diriam ter sido batizados à força, e iriam muitos levar para a Turquia e para outros países d’infiéis as suas avultadas riquezas, deixando Portugal empobrecido. Nesta parte o pensamento dos fanáticos revela-se com uma inocência quase pueril. O remédio aos males que receavam seriam a tolerância; seria repor as cousas no estado em que se tinham conservado durante quatro séculos. Essa solução simples, razoável, cristã, era a que não lhes ocorria. Queriam perseguição e ouro. Como, porém, as provisões da bula de 7 de abril eram às vezes ilógicas, em relação aos princípios gerais que nela se estabeleciam, a defesa, poderosa, irresistível na doutrina geral, era não raro fraca nas particularidades. À objeção de que, dando-se como meio de obter o perdão a confissão auricular, viriam, para se porem a salvo, os que ainda eram judeus ocultos, a abusar de um sacramento em que não criam, tinham respondido em Roma que não era de presumir procedessem assim os que fossem sinceramente sectários da lei de Moisés. A réplica dos teólogos portugueses era nesta parte decisiva. Que tinham os psendo-cristãos feito durante mais de trinta anos, senão demonstrar a vaidade de semelhante suposição, abusando de todos os sacramentos? Os que quisessem ficar no reino, e seriam muitos, porque o governo não lhes havia de tolerar que levassem consigo as suas riquezas, procederiam infalivelmente assim. Proseguiam discutindo de novo, com mais ou menos felicidade, as fórmulas e condições do perdão, reforçando as ponderações sobre os inconvenientes anteriormente lembrados, e apontando outros não propostos nas conferências passadas. Versaram principalmente sobre a certeza da impunidade que se dava aos culpados de heresia, ainda admitido o pressuposto de que não eram aqueles que não tinham aceitado voluntariamente o batismo. Depois, mostravam por novas faces a impropriedade de ser um estrangeiro, o núncio, quem julgasse de novo os já sentenciados, e que se concedesse a estes a revisão dos processos, tornando a insistir na injúria à Inquisição e prelados de Castela que ia envolvida em semelhante disposição, da qual podiam, aliás, resultar graves perturbações entre as duas coroas. Esforçavam-se, finalmente, em atenuar o terrível argumento dos cardeais De Cesis e Campeggio e dos teólogos seus adjuntos nas primeiras conferências, deduzido dos atos de D. Manuel e do próprio D. João III, atos pelos quais tinham assegurado aos cristãos-novos a impunidade, não só quanto ao passado, a que exclusivamente dizia respeito a bula de 7 de abril, mas também quanto ao futuro, e futuro assaz dilatado. A réplica era nesta parte deplorável. Ousavam alegar que não cabia na autoridade temporal dar aquele perdão, senão pelo que tocava aos efeitos civis, e que o rei não podia obstar a que os tribunais eclesiásticos perseguissem aos que delinquissem em matérias de fé. Entendiam que os inquéritos, contra os quais nos diplomas de D. Manuel e de seu filho se assegurava a imunidade aos cristãos-novos, vinham a ser os das justiças seculares, inquéritos que efetivamente, diziam eles, não eram aplicáveis às questões de heresia. Esses privilégios, porém, não se opunham a que os prelados diocesanos procedessem canonicamente contra os suspeitos, e se os bispos não o tinham feito, a culpa não era do monarca(264). Assim, declarava-se em nome de D. João III que os privilégios dos hebreus, na aparência tão amplos e precisos, não eram, em virtude da restrição mental do soberano, senão uma perfeita bulra. Que diferença essencial havia em serem os conversos perseguidos, presos, e castigados em nome das leis temporais ou das leis eclesiásticas? A doutrina que se invocava agora era em geral exata, mas havia aí outra questão. O sentido óbvio, indubitável daqueles privilégios, consistia na garantia contra a opressão material. Qualquer interpretação diversa seria uma deslealdade, um sofisma indigno. A esta opressão podia o rei obstar em todas as hipóteses. Bem pouco importava aos pseudo-conversos que os bispos os julgassem judeus ou hereges, e que os condenassem às penas espirituais. O que eles não queriam era ser metidos em calabouços, atormentados no potro, lançados nas chamas, entaipados em cárceres perpétuos, espoliados e reduzidos à miséria, eles e seus filhos. Tais violências e atrocidades, por uma ridícula ficção jurídica, por uma sutileza insignificante de fórmulas, ficavam a cargo do poder temporal; eram o resultado do auxílio do braço secular, pelo qual a autoridade pública se convertia em executora de alta justiça das sanguinárias decisões tomadas no tribunal da fé. O que não tinha dúvida era que ou se recorrera a um atroz engano para adormecer as vítimas à borda do abismo, ou a interpretação que se dava agora aos privilégios da gente hebréia equivalia a uma negação atraiçoada da palavra real, a uma vergonhosa desculpa dos esforços que subrepticiamente se haviam empregado, três anos antes, para estabelecer a Inquisição em Portugal.

A impugnação às alegações feitas na cúria a favor das providências tomadas por Clemente VII era acompanhada das bases em que elrei entendia dever assentar o perdão, se o papa insistisse em concedê-lo. Estas bases, que, em harmonia com as considerações oferecidas pelos teólogos e canonistas portugueses, excluíam a intervenção do núncio, presupunham o restabelecimento da Inquisição, e que seria aplicada pelos inquisidores a indulgência que se pretendia ter com os conversos. Sustentava-se nessas bases a doutrina de que o perdão não devia ser dado por confissão auricular, mas por via de reconciliação solene. Cedia-se no ponto de se aplicar o benefício da bula de 7 de abril aos acusados e presos, mas com a limitação de se excetuarem aqueles cujos delitos houvessem já sido provados e sentenciados. Propunha-se que fossem os inquisidores quem designasse o prazo que se havia de dar aos ausentes para virem gozar daquele benefício. Excluiam-se deste todos os que delinquissem posteriormente à concessão. Aceitava-se a modificação feita no breve de 2 de abril de 1534, de que os simplesmente infamados ou suspeitos fossem obrigados a justificar-se judicialmente (embora o não fossem a abjurar e reconciliar-se, como elrei anteriormente queria) e não por duas ou três testemunhas extrajudiciais, como se estatuía na bula. Acerca dos bens dos cristãos-novos, buscava-se evitar a odiosa suspeita que havia em Roma de quanto zelo da fé não passava em Portugal, do mesmo modo que se dizia suceder em Castela, de um baixo intuito de espoliação, convindo elrei em que não houvesse confisco para os culpados, incluídos os próprios relapsos, e isto durante o espaço de sete anos. Excetuavam-se os que morressem impenitentes, os ausentes, que por contumácia não viessem defender-se pessoalmente, e os que delinquissem depois de publicada a nova bula. Com estas modificações, e concedendo-se tudo o mais que D. Henrique de Meneses levava apontado, D. João III não só admitia o perdão, mas ainda o solicitava(265).

Numa instrução secreta autorizavam-se os embaixadores para transigirem com a cúria romana, quando não fossem plenamente aceitas as condições que D. Henrique levara com as modificações que se enviavam agora. A transigência era na questão dos relapsos que o fossem na conjuntura de se decidir a contenda. Concedia-se-lhes, em geral, o benefício da segunda reconciliação, evitando eles assim a pena de morte e as demais conseqüências de um crime reputado sempre capital, mas impondo-se-lhes, a arbítrio dos inquisidores, uma penitência mais dura do que a dos semel-relapsos, isto é, dos que só uma vez tinham sido acusados e processados. As exceções, porém, eram tais, que a bem dizer, apenas aqueles cuja reincidência estava oculta poderiam tirar desta concessão, na aparência tão generosa, alguma vantagem real(266). Afora essa instrução, D. João III enviava aos embaixadores cartas de crença especiais para exigirem oficialmente do papa a remoção de Marco della Ruvere, cujas hostilidades patentes tinham, como já vimos, chegado ao último auge(267).

Habilitados assim os agentes de Portugal em Roma para obterem melhores condições, remeteram-se-lhes juntamente cartas para o papa, em que elrei, abstendo-se de discutir a matéria, pedia se determinasse tudo conforme as bases que anteriormente propusera e agora modificava, e isto pura e simplesmente, como graça especial do pontífice. Evidentemente queria-se evitar assim a situação humilhante de pleitearem os representantes da coroa portuguesa com os procuradores dos cristãos-novos perante delegados apostólicos, o que tinha convertido uma negociação diplomática em questão quase judicial. Em harmonia com esta idéia, escrevia-se a D. Henrique uma carta cuja matéria os embaixadores comunicariam ao papa, e outras secretas, mas idênticas, dirigidas a cada um deles, em que se lhes advertia que o papel redigido pelos canonistas e teólogos portugueses não o deviam mostrar absolutamente a ninguém, mas estudá-lo eles, propondo essas razões nas conferências como cousa própria, à medida que o julgassem oportuno, e sem que nunca dessem a entender que lhes haviam sido sugeridas de Portugal. Esperava elrei que Roma cedesse, vistas as concessões mútuas que já se haviam feito; mas ordenava-lhes que, no caso de não chegarem a acordo, lhe dessem disso pronto conhecimento, para receberem novas instruções, e que, se Álvaro Mendes de Vasconcellos os avisasse de que Carlos V recomendava de novo o negócio ao seu embaixador em Roma, tratassem com este a questão, aceitando quaisquer serviços que lhes fizesse, bons ou maus, e conservando-se em perfeita harmonia com ele. Estas cartas eram acompanhadas de outras dirigidas a diversos cardeais, ou que tinham favorecido as pretensões d’elrei, ou que se esperava atrair por esse meio a protegê-las nos futuros debates(268).

Nestes, a vantagem era igual para a causa dos cristãos-novos e para as pretensões d’elrei. Os mútuos acordos entre Duarte da Paz e o arcebispo do Funchal podiam atuar secretamente na decisão final do papa; mas na comissão havia duas influências igualmente fortes que se contrapunham. Santiquatro, que geralmente se dizia estar a soldo de D. João III, e a quem muitos dos seus colegas no sacro colégio não duvidavam de lançar em rosto esta suspeita(269), fazia todos os esforços para que triunfassem os desejos do seu protegido, e a sua situação de cardeal e penitenciário-maior dava-lhe uma preponderância tal, que era considerado na comissão mais como juiz do que como procurador(270). Ghinucci, porém, patrocinava abertamente a causa dos cristãos-novos. Tinha escrito um livro a favor deles e feito imprimir a sua obra(271). Este favor não era provavelmente gratuito; mas é certo que se dava em Ghinucci uma circunstância que legitimava a sua má vontade às cousas da Inquisição. Contavam-se com horror as atrocidades daquele tribunal em Espanha, atrocidades que já em outro tempo haviam obrigado Leão X a tomar, ou a fingir que tomava, severas providências contra ele. O nome de Lucero tinha-se tornado proverbial em Roma como compêndio de crueldades, e Ghinucci estivera embaixador em Castela, d’onde trouxera uma espécie de memorando dos abusos que a Inquisição aí praticava(272). Como fiel da balança, restava o auditor Simonetta, acerca de cuja probidade e inteligência há testemunhos insuspeitos(273). Foram em várias conferências ouvidos os embaixadores, e das suas alegações mandava a comissão dar sempre vista a D. Duarte da Paz, que continuava a sustentar com perfeição o seu papel. O conde de Cifuentes empregava toda a influência, como enviado de Carlos V, a favor de D. João III(274), e a preponderância do ministro de Castela inquietava seriamente os agentes dos cristãos-novos, a ponto que Duarte da Paz lhe dirigira uma exposição dos fatos, e procurara movê-lo, senão a tomar o partido dos oprimidos, ao menos a mostrar-se-lhes menos adverso(275). Além disso, no meio das vivas discussões, que não podia deixar de suscitar o complexo da negociação, o destro hebreu, em vez de alegar vagamente, como até aí fizera, os privilégios dos conversos concedidos por D. Manuel e revalidados por seu filho, apresentou, enfim, aos comissários apostólicos traslados autênticos dos respectivos diplomas e, além disso, certidões dos testemunhos dados a favor dos mesmos conversos pelo bispo de Silves D. Fernando Coutinho, quando fora obrigado a manifestar o seu voto acerca dos crimes do judaísmo(276). Foi decisivo o golpe. Meses antes, sabendo que existiam estes documentos em Roma, D. Henrique de Meneses tinha obtido cópia deles (talvez havida pelo arcebispo da mão de Duarte da Paz) e enviado essa cópia para Portugal. Duvidava da sua genuinidade, porque elrei nunca lhe falara sobre tal assunto. Apesar, porém, de pedir instruções a semelhante respeito, não recebera resposta(277). Assim, Ghinucci e Simonetta impunham silêncio, tanto aos embaixadores como a Santiquatro, dizendo que, se mostrassem serem falsos os privilégios, estariam por tudo quanto elrei desejava; mas que, se não o eram, a corte de Roma não devia tomar sobre si o odioso de invalidar os efeitos da clemência dos príncipes portugueses, senão quando se convencesse de que d’aí resultavam vantagens para a religião. Era visível a ironia do dilema. A princípio, os comissários pontifícios acediam de modificar alguns pontos à bula de perdão, mas recusavam formalmente convir em que se revalidasse o estabelecimento do tribunal da fé. Depois de muitos debates cederam afinal. Acerca do perdão, a modificação principal que adotaram foi estabelecer uma distinção entre os hebreus que haviam sido convertidos à força por D. Manuel e os que não podiam alegar violência. Os primeiros não deviam ser considerados como relapsos se, depois de perdoados, reincidissem: os segundos sê-lo-iam. Convieram em que da enumeração que se fazia na bula de 7 de abril dos indivíduos a quem se estendiam os seus benefícios, se expungisse a designação de bispos, cônegos, etc, aos quais ali se fazia a afronta de supor capazes de judaizarem, substituindo-se aquela enumeração por termos genéricos. Quanto à execução da nova bula consentiam em que fosse encarregada a um indivíduo designado por elrei, uma vez que não estivesse publicada a de 7 de abril, porque, nessa hipótese, deveria vigorar esta, e ser executor dela o núncio. Quanto à Inquisição, convinham em que se mantivesse; mas insistiam sobretudo em dous pontos capitais: em não haver cárceres incomunicáveis, por espaço de oito anos, e em ficarem, durante doze, os bens dos sentenciados aos seus legítimos herdeiros cristãos. Destas e de outras condições menos importantes não houve demover Simonetta e Ghinucci(278). Levada a decisão dos comissários ao conhecimento do papa, os agentes de D. João III tentaram todos os meios de melhorar a sua causa. Recorreram ao embaixador de Carlos V, e D. Henrique de Meneses, que esperava proteção dos cardeais Travi e Cesarino, teve de submeter-se com bem pouco resultado a freqüentes humilhações da parte deles. Nos debates perante Paulo III, Simonetta, cujos austeros princípios eram conhecidos, chegou a manifestar duramente a sua indignação, ouvindo os agentes portugueses insistirem na idéia de que fossem excluídos os prelados diocesanos de intervirem nos processos da Inquisição, ainda quando pretendessem usar desse inauferível direito. À força de negociações e de insistência, o mais que obtiveram foi que o papa, tendo convindo no restabelecimento do tribunal da fé, reduzisse os dous períodos de oito anos para serem os cárceres acessíveis e de doze para não haver confiscos a sete e a dez. Quanto a esta última cláusula, a corte de Roma reservava para si, passado aquele prazo, apreciar a legitimidade ou conveniência de tais confiscos, restrição proposta pelos comissários, e acerca da qual Paulo III se mostrou inflexível apesar dos esforços dos embaixadores e do cardeal Santiquatro(279).

Ao passo que se redigiam as minutas das novas bulas, que se deviam expedir depois de aceitas por D. João III, e de que por isso se mandaram cópias para Portugal, Duarte da Paz e os protetores dos cristãos-novos redobravam de atividade para obstarem às conseqüências que anteviam. Tinha-se declarado oficialmente que, em referência à bula de 7 de abril, se entenderia dar-se nela a circunstância de já publicada, se o núncio a houvesse comunicado aos bispos, ou lh’a tivesse notificado por algum modo, hipótese na qual as recentes modificações ficariam de nenhum efeito(280). Anteriormente viu o leitor que esse fato se verificara. Assim, a redação daquela minuta podia considerar-se antes como uma espécie de satisfação ao rei do que como cousa positiva. O que se tornava mais grave era o restabelecimento do tribunal da fé, embora com restrições importantes, mas que estavam longe de poderem coibir todas as tiranias dos inquisidores. Se acreditarmos o testemunho dos cristãos-novos, as suas diligências para minorarem o perigo que os ameaçava não foram inteiramente infrutuosas. Paulo III prometeu dar-lhes ainda outras garantias na bula da Inquisição. Tais seriam a de haver sempre recurso para Roma, e a de se proibir os inquisidores que fizessem aos réus, durante os tratos, perguntas acerca dos crimes de outros indivíduos, meio atroz de que eles freqüentemente se valiam para multiplicarem o número das suas vítimas(281).

Desde o começo das negociações, D. Henrique de Meneses previra, apesar dos esforços do cardeal Pucci e da proteção do conde de Cifuentes, que o resultado não havia de corresponder inteiramente ao que se pretendia. Aconselhava por isso que de parte a parte se fizessem concessões. Para dar em Roma uma demonstração pública de desagrado contra Duarte da Paz, e em harmonia com os conselhos que ele próprio lhe dera oferecendo-se para espia, D. João III ordenara ao arcebispo do Funchal que o exautorasse do hábito de Cristo; mas D. Martinho nada fizera, ignoramos com que pretexto. D. Henrique recebeu então novas instruções a este respeito. Quis cumpri-las; mas como para isso era necessário atrair à embaixada Duarte da Paz, e o agente dos hebreus estava prevenido, soube este evitar os laços que o embaixador lhe armara com semelhante intuito. No meio das resistências que encontrava por toda a parte, o embaixador extraordinário reprimia a custo os ímpetos da sua cólera acerba contra Duarte da Paz, e na impossilidade de se vingar dele, escrevia para Portugal, aconselhando que se perseguissem e atemorizassem com a perspectiva das fogueiras da Inquisição os chefes dos conversos que subministravam dinheiro aos agentes em Roma(282). Não sabemos até que ponto foram tais conselhos seguidos; mas vemos que nem por isso os resultados foram excessivamente vantajosos.

Remetendo as resoluções definitivas do pontífice, tanto os embaixadores como Santiquatro escreveram a elrei. Inquietava-os o descontentamento que receberia com o resultado daquela missão; mas era preciso fazer-lhe compreender bem o estado das cousas, e mostrar-lhe que eles, no desempenho das suas funções, não tinham omitido diligência alguma para as levar a bom termo. O cardeal protetor, historiando rapidamente as fases por que passara o negócio, acusava o desleixo com que o governo português tratara este a princípio, atribuindo exclusivamente a insistência no perdão geral e as restrições que se punham aos futuros inquisidores à impressão que haviam produzido na cúria os privilégios concedidos aos conversos por D. Manuel e por ele rei atual. Ponderava-lhe, além disso, a necessidade da indulgência para com homens violentados a receber o batismo, e consolava-o das restrições impostas à Inquisição, sobretudo no que tocava ao prazo da suspensão dos confiscos, lembrando-lhe quão rápidos fugiam os anos(283). A carta do arcebispo do Funchal era noutro estilo e redigida com arte. Mostrava-se profundamente irritado com a conclusão do negócio; mas ao mesmo tempo assegurava que seria impossível obter novas concessões. Para convencer disto o rei, pintava-lhe Paulo III como homem de carácter indomável e tenaz nas suas convicções. Do mesmo modo que Santiquatro, atribuía principalmente o mau resultado do empenho aos privilégios de D. Manuel; mas dava juntamente a entender que as alegações mal pensadas remetidas de Portugal, e a proposta para não haver confiscos só por sete anos, que parecia inspirada pela ânsia de espoliar os cristãos-novos, muito haviam contribuído, também, para a resolução menos favorável. Lançava suspeitas sobre o embaixador espanhol por admitir em sua casa Duarte da Paz e ouvi-lo publicamente, ele que tinha todos os dias conferências secretas com o procurador dos conversos. Dilatava-se acerca das humilhações que lhe faziam tragar e a D. Henrique, não só os curiais, mas até o agente de Carlos V, e tornava a insistir na idéia de que fora grande erro não se lhe haver entregado este negócio só a ele sem se comunicar a mais ninguém. Confessava, todavia, os numerosos serviços que D. Henrique de Meneses fizera, elogiando a sua incansável atividade, acaso porque essa carta devia ser vista pelo seu colega. Lembrava a elrei três expedientes que havia a adotar. Era o primeiro abandonar a empresa, e deixar esquecer tudo quanto se tinha passado, para o que julgava seriam necessários muitos anos. O segundo, que revelava a astúcia e a imoralidade do arcebispo, era curiosíssimo. Consistia em mostrar elrei que mudara de opinião; escrever para Roma solicitando um perdão incondicional para todos e para tudo, redigido em meia dúzia de linhas, ficando depois livre aos prelados inquirirem, se quisessem e como quisessem, conforme o direito comum, dos delitos contra a fé; pedir conjuntamente ao papa que admoestasse os bispos para que ensinassem as suas ovelhas e fossem vigilantes contra as heresias; e declarar depois disto que não queria Inquisição. A conseqüência seria fazerem os prelados o que até ali tinham feito, que era faltar ao seu dever; e tanto mais que, sendo irmãos do próprio monarca ou criaturas suas, não se atreveriam a desobedecer-lhe(284). Passados dous anos, acusá-los-ia daquilo mesmo que lhes mandara praticar, e pediria então a Inquisição, que lhe concediriam com as condições que ele quisesse. O terceiro arbítrio era imitar Henrique VIII de Inglaterra e negar a obediência ao papa, com a diferença de que o príncipe inglês o fizera só por impulso das próprias paixões, e o de Portugal fa-lo-ia por motivos justos. Pelo que tocava aos confiscos, talvez por compromissos com Duarte da Paz, ou talvez porque ele próprio interessava na doutrina da inviolabilidade da palavra real, o arcebispo ia mais longe do que se devia esperar da sua dissimulação. Era de voto que elrei desistisse absolutamente de haver os bens dos condenados, vistas as solenes promessas de seu pai, revalidadas por ele; porque em Roma todos se assombravam de que pretendesse trai-las. Afirmava que não se intrometia a avaliar semelhante procedimento por serem cousas de príncipes; — «mas nós outros — acrescentava ele — quando aí prometemos alguma cousa, fazem-no-la cumprir nos tribunais de vossa alteza. Se a fé pública e real se não guardar, que haverá neste mundo que tenha firmeza? Assim, poder-se-ão anular os privilégios, tenças e doações». — Contava D. Martinho com que essas frases fossem lidas pelos validos e ministros, locupletados e engrandecidos por mercês régias? O modo como terminava a carta não era menos notável. Tinha-o avisado seu irmão, o conde de Vimioso, de que em Portugal se conheciam já as suas ocultas maquinações e das inferências que d’aí se deduziam(285). Estava, portanto, na borda de um abismo, de que só a audácia podia salvá-lo. Escrevera logo ao conde, vindicando a sua inocência. Simulara nessa carta uma indignação que subia a ponto de insultar a pessoa do soberano. — «Não acho infâmia maior — dizia ele — que um príncipe possa praticar, do que saber que se dizem cousas tais de um ministro seu, e não o punir ou aqueles que as inventam». — Dadas estas explicações, se não recebesse condigna satisfação, «estava resolvido — acrescentava — a proceder de modo que constasse ao mundo como sabia cumprir com o que devia a si próprio». — Para arcebispo, D. Martinho esquecera demais em Roma os preceitos do evangelho. — «Dissimular injúrias e desonras — observava o altivo prelado — é cousa que não fazem senão aqueles que as merecem». — Atribuia a D. Henrique de Meneses as acusações que lhe faziam em Portugal. — «O meu colega — concluía D. Martinho — é excessivamente desconfiado. Não falo, por isso, ao papa nem a ninguém, sem ele estar presente. Há nisso vergonhas que, concluído este negócio, eu não sofreria, nem ser pontífice. Um de nós há-de deixar o cargo(286)». — Com a mesma audácia escrevia agora a D. João III, repelindo as suspeitas de deslealdade. Queixava-se dos enredos da corte e do mau despacho que tinham os seus negócios particulares, consolando-se com a esperança de que um dia elrei lhe faria justiça, conhecendo a sua inocência, e aludia aos documentos que anteriormente dera da sua lealdade. Mostrava-se insolente, para fingir que era vítima dos seus inimigos. — «Não me pesara — dizia — que vossa alteza mandasse queimar vivo a mim ou a qualquer outro embaixador que faltasse ao seu dever, mas que o mesmo se fizesse aos acusadores quando não provassem seu dito. Rugia-se em Lisboa que eu recebia dinheiro dos judeus que tinha de sentenciar(287): o mesmo se disse já de vossa alteza. Culpam-me de novo agora: também culpam a vossa alteza de que não tem em mira senão arrebatar-lhes os bens. E deve crer-se tal falsidade»? — Esta linguagem insolente derrama luz sobre os sucessos anteriores. Vê-se que a voz pública tinha estampado na fronte do monarca o ferrete da corrupção. Provavelmente era calúnia; porque reputamos D. João III um fanático sincero, e portanto, incapaz de se deixar corromper em detrimento das suas idéias exageradas. Entretanto, não se podendo explicar plausivelmente o abandono em que estiveram os negócios da Inquisição na mais difícil conjuntura, senão pela poderosa influência do ouro dos cristãos-novos, cremos que essas vozes populares não seriam absolutamente infundadas, e é possível que se houvesse atribuído ao rei a corrupção dos seus ministros. Mas as outras suspeitas tinham melhor fundamento. Que, atuado pelo ódio contra uma parte dos seus súditos, D. João III se lembrasse também às vezes dos proventos que o fisco tiraria de eles serem exterminados; e que ao fanatismo se associasse no seu espírito uma cobiça que não o excluía, é fato altamente provável.

A carta de D. Henrique de Meneses, em que dava particularmente conta ao rei do menos feliz resultado da sua missão, tinha carácter diverso da do seu colega. Aí a mágoa e o despeito são evidentemente sinceros. Revela-se no estilo dela certa rudeza de pensamento e de frase própria de uma índole irritável e impetuosa, mas franca e leal. Descrevia os invencíveis obstáculos que encontrara, e expunha resumidamente as concessões que se tinham podido obter. Queixava-se amargamente de não lhe haverem dado instruções acerca dos privilégios dos cristãos novos. Insistia no que já por mais de uma vez pedira; em que o mandassem sair de Roma, porque estava saciado de desprezos e humilhações. — «Empregue-me vossa alteza noutras partes e em outros negócios para que eu possa prestar. Os meus desejos são servir-vos de alma e vida; mas não me retenha aqui vossa alteza um único dia, que o tomarei por agravo, e morrerei de paixão». — Enfurecia-se com a importância que davam na cúria romana a Duarte da Paz, e, no seu orgulho de nobre, via uma ofensa mortal em lh’o terem dado por competidor, consentindo-lhe que interviesse numa questão entre príncipes. — «Mas estes — acrescentava D. Henrique, aludindo aos cardeais — não são príncipes, nem são nada. São mercadores e bufarinheiros, que não valem três pretos(288); homens sem educação, a quem só movem ou o medo ou o interesse temporal, porque o espiritual cousa é de que não curam.» — Em harmonia com a idéia que concebera acerca da corte pontifícia, também indicava os expedientes que D. João III tinha a adotar, concordando em parte com o arcebispo, mas sem aconselhar o sistema de perfídia que o seu colega propunha. Na sua opinião, tinha elrei a escolher entre dous arbítrios: negar de todo a obediência ao papa como Inglaterra(289), ou aceitar a Inquisição do modo que lh’a concediam, havendo-se depois com justiça e moderação o novo tribunal; porque, logo que se visse que em Portugal não havia Luceros, e que os inquisidores procediam honestamente, dentro em pouco se obteria tudo. Terminava reiterando as súplicas para que se lhe permitisse voltar quanto antes a Portugal(290).

Remetidas a D. João III as minutas das últimas resoluções acompanhadas destas cartas, Paulo III dirigiu-lhe também um breve, no qual, por intervenção do núncio, lhe comunicava oficialmente cópia das mesmas resoluções. Neste breve, redigido por Santiquatro e aprovado depois pelo papa(291), aludia-se em suma aos anteriores debates, e observava-se que, por maiores que fossem os desejos do pontífice de dar satisfação a elrei, todavia, tratando-se dos bens e da vida de tantos indivíduos, a vontade de Deus era que ele se inclinasse antes à misericórdia do que ao rigor; que, não obstante poderem as convenções e pactos celebrados entre os conversos e D. Manuel considerar-se em alguns pontos como contrários às leis canônicas, importando a revogação deles uma quebra da palavra real, cousa que sobre todas devia ser estável, a santa sé preferira respeitá-la e mantê-la a condescender absolutamente com os desejos dele rei, a quem admoestava para que se contentasse com as modificações propostas, únicas compatíveis com a dignidade da coroa portuguesa e com a honra da mesma sé apostólica(292).

Como dissemos, não se ignorava em Roma que a bula de 7 de abril havia sido notificada aos prelados e, portanto, sabia-se bem o valor que tinham as alterações feitas na minuta da que devia substituí-la se não estivesse publicada. Era ocasião oportuna para um ato de dobrez, e a cúria romana aproveitou-a. Pelo mesmo correio, e porventura junto com a cópia daquela minuta enviada ao núncio, escreveu-se a este, avisando-o de que o papa, tendo-se acingido ao parecer dos comissários que haviam examinado a questão, indeferira as pretensões dos agentes de Portugal, e que por isso lhe ordenava desse inteira execução à bula de 7 de abril, considerando como anulado o breve pelo qual tinham sido suspensos os seus efeitos(293). Conforme, porém, acabamos de ver, os comissários, e ainda mais o papa, haviam aceitado modificações importantes àquela bula e, posto que os efeitos dessas modificações tivessem de ser nenhuns, o resultado que se atribuía à negociação, e em que se estribavam as provisões do breve ao núncio, era suposto(294). As narrativas dos cristãos-novos explicam-nos esta alteração dos fatos e a mútua negação dos dous diplomas que se expediam, ambos com a data de 17 de março. Redigidas e entregues aos embaixadores as minutas, chegaram a Roma informações que autorizavam o pontífice para revogar todas as concessões feitas aos agentes de Portugal. A impaciência do fanatismo subministrara novos fundamentos para a cúria romana favorecer os conversos e resistir às pretensões de D. João III. O bispo de Sinigaglia remetia instrumentos autênticos de como notificara aos prelados a bula de perdão, e conjuntamente fazia o relatório do que se passara em Portugal desde as primeiras providências tomadas por Paulo III na sua acessão ao pontificado. Além de se haver oposto à publicação da bula de 7 de abril, o governo português, longe de obedecer ao breve de 26 de novembro, mandando pôr em liberdade os indivíduos presos nos cárceres da Inquisição, procedera ultimamente a novas capturas(295). Irritado com a desobediência, o papa enviou desde logo novas instruções ao núncio. Devia este exigir d’elrei uma declaração categórica sobre a aceitação ou não aceitação das condições impreteríveis com que nas minutas dadas aos embaixadores ele declarava conceder a Inquisição. Informado igualmente acerca da injustiça e nulidade jurídica da lei de 14 de junho de 1532, pela qual haviam sido inibidos os cristãos-novos de saírem do reino, ordenava ao bispo de Sinigaglia que insistisse na revogação dessa lei ou, pelo menos, em que se não renovasse, findo o prazo durante o qual se mandara vigorar. Com estas instruções ao núncio expediram-se dous breves, um dirigido a elrei, outro ao cardeal infante D. Afonso, em que o papa lhes significava o seu vivo desgosto pelos atos praticados em contravenção das determinações da santa sé(296). Assim os cristãos-novos obtinham neutralizar, até certo ponto, o efeito moral dessas poucas concessões que a tanto custo haviam obtido os agentes de Portugal.

De feito, se o desfecho da negociação devia causar vivo dissabor a D. João III, esses queixumes do papa e o breve em que se ordenava a inteira e imediata execução da bula de 7 de abril, ao passo que na mesma data se lhe propunham modificações a ela, haviam forçosamente de levar o seu despeito ao último auge. Dado o carácter imperioso de Paulo III, quaisquer manifestações de irritação da parte da corte portuguesa trariam maiores embaraços às ulteriores pretensões, e, retardada assim a época de um acordo definitivo, ganhariam tempo os conversos para se melhorarem na luta. Não se descuidavam eles. Provavelmente por insinuações de Duarte da Paz, tão conhecedor dos hábitos e idéias da cúria romana, os chefes da raça hebréia em Portugal redigiram nos fins de abril, de acordo com o núncio Sinigaglia(297), um singular documento. Era uma obrigação em que se comprometiam a dar ao papa trinta mil ducados, se ele conviesse em aceder às propostas que anexavam ao contrato. Esta soma, porém, diminuiria, dadas diversas hipóteses(298). Eram as principais condições, que fosse absolutamente suprimido o tribunal da fé como instituição independente, ficando o conhecimento das culpas de judaísmo pertencendo aos bispos; que se decretasse para tais culpas o processo ordinário dos delitos civis; que se não aceitasse a querela passados vinte dias depois de perpetrado o crime; que não houvesse confiscos; que pudessem os réus dar os juízes por suspeitos; que lhes fosse lícito escolher por advogados ou procuradores quem quisessem; que se lhes comunicasse a matéria da acusação; que não se instruíssem previamente as testemunhas sobre os atos que podiam ser taxados de heréticos ou não, mas pura e simplesmente se lhes exigisse a declaração exata do que haviam presenciado ou ouvido; que não se admitisse o testemunho de escravos e gente vil, nem o dos co-réus, nem de indivíduos culpados ou já sentenciados pelo mesmo crime; que se publicassem os nomes dos delatores; que houvesse apelação para Roma das sentenças definitivas ou que tivessem força de definitivas; que não se intentassem processos contra pessoas falecidas; que se estabelecesse como doutrina de direito comum a liberdade para os conversos de saírem do reino com todos os seus bens. Na hipótese de não querer o papa denegar inteiramente a Inquisição, mas adiando a questão do seu estabelecimento para ser ventilada no futuro concílio (de cuja convocação se tratava naquela conjuntura) ou no tribunal da Rota, lhe dariam desde logo dez mil escudos e os outros vinte mil depois, no caso de uma resolução conciliar conforme com as condições propostas. Supondo, porém, que no concílio se resolvesse o contrário, dariam outros dez mil escudos, mandando o pontífice expedir a bula com as limitações que propunham. Finalmente, se Paulo III quisesse por si conceder a Inquisição com as condições relativas à forma do processo, e ficando os culpados exemptos por doze anos dos confiscos, e, depois disso, dependendo estes da aprovação pontifícia, uma dádiva de quinze mil escudos seria a prova da gratidão dos conversos(299).

Enquanto se faziam estes vergonhosos contratos, as últimas comunicações vindas de Roma produziam em Portugal os efeitos que eram de esperar. Se por uma parte o núncio, em virtude do breve de 3 de novembro de 1534, intimara, como vimos, os prelados diocesanos para que suspendessem qualquer procedimento relativo à bula de 7 de abril, por outra parte, quando fizera a intimação já havia dado toda a possível publicidade àquele diploma para ser executado conforme os desejos do moribundo Clemente VII. Acrescia agora a inteligência lata que se atribuía à condição de estar publicado o perdão, fato que no sentir da cúria se devia reputar existente, se daquela bula se houvesse dado conhecimento aos ordinários. Suposto o antagonismo que se estabelecera entre elrei e o bispo de Sinigaglia, estas circunstâncias, até certo ponto contraditórias, prestavam-se a mil sutilezas diplomáticas com que o governo podia sustentar por algum tempo a opressão contra a raça hebréia, adiando de dia para dia o cumprimento da bula de perdão. De feito, o governo português parece ter obstado às diligências do núncio para cumprir as últimas instruções que recebera, estribando-se principalmente nas intimações feitas aos prelados diocesanos em conseqüência do breve de 3 de novembro(300).

No meio das dilações que forçosamente nasciam das contendas com o bispo de Sinigaglia, D. João III fazia examinar atentamente as propostas definitivas da corte de Roma. Às pessoas escolhidas para esta grave comissão propunham-se diversas hipóteses: se conviria aceitar a Inquisição com as modificações novamente impostas, ou se porventura seria preferível deixar provisoriamente a cargo dos ordinários o perseguir os delitos contra a religião, procedendo-se entretanto nas negociações com o papa de um modo mais enérgico, e até que ponto seria conveniente levar a severidade: se, no caso de não se aceitarem as propostas da cúria, ou de se mostrar frouxa a autoridade episcopal, o poder civil tinha o dever ou o direito de a substituir nessa parte: se, finalmente, dada a rejeição de todos aqueles arbítrios, conviria expulsar do reino os cristãos-novos, ou unicamente aqueles que à força de dinheiro impediam o estabelecimento da Inquisição, também necessária para manter os cristãos-velhos(301). Estas consultas indicam que os fautores da intolerância, embora dessem mostras externas de energia, trepidavam diante dos obstáculos que lhes opunha a perseverança da raça hebréia em defender as vidas, fazenda e liberdade. Chegou-se a termos de convidar elrei os indivíduos mais influentes entre os conversos para lhe proporem as condições com que se poderia pedir a Inquisição, de modo que cessassem as resistências em Roma(302). À vista da exposição que lhe fizeram, prometeu-lhes mandar ordem aos embaixadores para admitirem na bula da Inquisição três das condições mais importantes que em seus capítulos apontavam, e que até certo ponto condiziam com as que o papa impunha na minuta remetida a elrei. Eram elas que os confiscos ficariam suspensos por dez anos; que durante o mesmo prazo se comunicariam aos réus os nomes dos acusadores e das testemunhas adversas, quando esses réus não fossem pessoas poderosas, que, enfim, pelos ditos dez anos se concederiam aos processados, confessando-se eles incursos em todos os crimes que lhe tivessem sido atribuídos, o direito de pedirem reconciliação, ainda depois de sentenciados, evitando assim o horrível suplício das chamas. Com tais concessões, não haveria razão para os conversos abandonarem Portugal(303).

Mas, se o efeito moral produzido pelas comunicações de Roma fizera pensar no primeiro momento em recorrer a promessas de indulgência para obstar a uma emigração fatal para o país, pouco tardou a reação do arrependimento. Havia meio mais eficaz e mais conforme com a política intolerante daquela época para reter os hebreus. Era a renovação por um novo período de três anos da lei de 14 de junho de 1532. Adotou-se o arbítrio(304). Aquela lei era uma das tiranias que mais impressão tinham feito na cúria romana e que mais suspeitas tornavam as intenções d’elrei. O rigor com que nela se procurava obstar à saída dos conversos e, sobretudo, à dos seus bens, parecia justificar as acusações de desenfreada cobiça que tantos criam descortinar debaixo do excesso de zelo religioso. Sendo a abrogação dela um dos pontos em que com mais instância a corte de Roma insistira, o revalidá-la era lançar a luva ao pontífice. Marco della Ruvere, cujas hostilidades com D. João III, posto que veladas debaixo das fórmulas cortesãs, eram cada vez mais violentas, e que não cessava de pintar para Roma com sombrias cores o que se passava em Portugal(305), devia aproveitar habilmente este fato ofensivo para exacerbar o ânimo de Paulo ih. Assim, o pontífice não tardou em responder à lei de 14 de junho com um breve, cujas disposições indiretamente a anulavam e contradiziam os seus fundamentas. Neste breve tratavam-se as acusações de judaísmo feitas contra os conversos como inventos dos seus inimigos(306), que, além de fazerem processar os acusados, lhes perseguiam os pais, filhos e parentes e, até, os seus advogados, pondo-lhes a nota de fautores de hereges, o que importava para estes, conforme o direito canônico, a participação no crime com identidade de penas. A este abuso ocorria o papa autorizando todas as pessoas, sem distinção de classe ou jerarquia, para defenderem e advogarem as causas dos réus de judaísmo em quaisquer tribunais e instâncias, não só dentro do reino, mas também na cúria romana, indo lá seguir as apelações, sem que a ninguém fosse lícito, com pretexto algum, persegui-los por cumplicidade ou obstar-lhes a saída de Portugal, sob pena d’excomunhão(307). Assim, supondo que o breve tivesse execução, ficaria fácil a qualquer converso exercer o ofício de procurador ou de advogado de algum preso, saindo do reino com esse fundamento. Até que ponto o despeito ou a obrigação assinada pelos chefes dos hebreus portugueses, Tomé Serrão e Manuel Mendes, tinham influído na expedição deste diploma não podemos dizê-lo. O que é certo é que a liberdade de nomearem os réus quem quisessem por seus advogados ou procuradores, e o direito de saírem do reino quando lhes aprouvesse figuravam, como vimos, entre as principais condições do proposto contrato.

Em virtude das intruções que recebera, o bispo de Sinigaglia, ao passo que forcejava para fazer cumprir as disposições da bula de 7 de abril e publicava as providências ultimamente tomadas pelo pontífice, exigira uma solução categórica sobre a aceitação ou não aceitação das bases oferecidas para a nova bula da Inquisição. Às suas solicitações, tanto antes como depois da prorrogação da lei de 14 de junho, não se deu, porém, resposta alguma(308). Tinha-se adotado, enfim, o arbítrio de tentar ainda uma vez os esforços diplomáticos, apesar do desengano dado, não só por D. Martinho, em quem pouco fundamento se podia fazer, mas também por D. Henrique e pelo cardeal Pucci, de que todas as ulteriores tentativas seriam inúteis. Escreveu-se aos embaixadores, ordenando-se-lhes que de novo exigissem de Paulo III a remoção de Marco della Ruvere, cuja residência em Portugal era inútil para a sé apostólica e danosa ao país pelas perturbações que suscitava, e que se o papa não despachasse prontamente aquela justa súplica, lhe apresentassem os capítulos de queixa contra o seu representante que se lhes remetiam e em que se expunham os desconcertos por ele praticados. Recomendava-se-lhes que por todos os modos obtivessem prontamente uma resolução favorável, enviando por expresso as ordens para a saída do núncio(309). Rejeitando as minutas das novas bulas de perdão e da Inquisição, o governo português subministrava aos seus agentes pretextos especiosos para se protraírem indefinidamente os debates. Como nas minutas se dizia que os hebeus portugueses tinham solicitado perdão, começava-se por negar que eles o quisessem ou solicitassem, e que para o obter tivessem dado procuração a Duarte da Paz, convindo-se em que, se alguns disso o tinham encarregado, a esses se concedesse absolvição, confessando individualmente cada um deles os seus erros. Nesta parte, as instruções referiam-se evidentemente aos chefes da gente hebréia, que corriam com as negociações em Roma e que o próprio D. João III reconhecera como órgãos e representantes dos outros conversos, mandando-os ouvir como tais na questão que se ventilava. Era o cúmulo da impudência; porém não se parava aí. Não podendo já recusar a autenticidade dos privilégios de D. Manuel, os fautores da intolerância pretendiam que essas amplas garantias, a que chamavam alguns favores, embora fossem plausíveis nos primeiros tempos de conversão, tinham caducado com o decurso dos anos, visto que depois os conversos pecavam, não por ignorância, mas por malícia. Ponderava-se largamente que o perdão não devia ser havido por publicado, nem cometida a execução dele ao núncio. Combatia-se a substituição feita na minuta enviada pelos embaixadores, por ser ainda mais favorável aos conversos do que o era a bula de 7 de abril, concedendo-se agora aos réus, sem excetuar os condenados como relapsos, maior soma de garantias e abrindo-se caminho à intervenção mais ampla dos prelados nas causas do judaísmo. Observava-se que, pelo que toca aos suspeitos, a minuta ia muitíssimo além das concessões de Clemente VII, e que, quanto aos reconciliados, substituía as penitências, que se lhes deviam impor, por uma comutacão em obras pias secretas. Finalmente, entendia elrei que, a conceder-se o perdão naquela forma, seria melhor revogar-se este como propusera Clemente VII, embora também se acabasse com a Inquisição, devolvendo-se o conhecimento das causas em matéria de fé aos bispos, conforme o direito comum. Preferia-se a supressão absoluta do novo tribunal, não só porque o perdão concedido do modo proposto quase o inutilizava, mas igualmente porque, estabelecendo-se durante sete anos para os delitos religiosos o processo ordinário dos crimes civis, com um grande número de apelações e recursos, e ordenando-se que se publicassem os nomes dos delatores e testemunhas, se assegurava por esse meio a impunidade dos delinqüentes. Tais eram os pontos essenciais que D. João III submetia à consideração do papa(310). Remetendo-se estas instruções aos embaixadores, ordenava-se em especial a D. Martinho que, insistindo por todos os modos na matéria delas, certificasse, todavia, o pontífice da obediência d’elrei no caso de ele não ceder, mas que a responsabilidade de quaisquer conseqüências que d’aí provissem ficaria pesando sobre a cúria romana. Recomendava-se-lhes também que, no caso de se obter alguma cousa favorável, se expedissem os necessários despachos para Portugal; mas que procurassem protrair as negociações por três meses mais, com dissimulação tal, que não se desconfiasse disso. Esta ordem, sobre que se mandava guardar rigoroso segredo, nem sequer devia ser conhecida de Santiquatro, a quem também se escrevia sobre o assunto. Às instantes solicitações de D. Henrique para sair de Roma respondia elrei com a promessa de que no fim de três meses, tempo suficiente para se obter do papa uma resolução definitiva, se lhe daria por acabada a missão e ficaria livre para voltar à pátria(311)

Se o rei de Portugal, desejando, como vimos, resistir por todos os meios a que se realizassem as esperanças de perdão quanto ao passado e de garantia quanto ao futuro, que os seus súditos hebreus haviam concebido, fingia ter o firme propósito de obedecer afinal à vontade do pontífice expressamente manifestada, a cúria romana, resolvida também a satisfazer até onde fosse possível os postulados juntos ao contrato simoníaco que os conversos lhe haviam oferecido por intervenção dos seus chefes, nem por isso, segundo parece, deixava de proceder de modo que parecesse querer vir a acordo com a corte de Portugal. Restam vestígios de uma carta de Paulo III, provavelmente dirigida nesta época ao bispo de Sinigaglia, em que o pontífice reduzia a termos simples as derradeiras condições que propunha para uma transação definitiva. Era a primeira cessarem os confiscos e proceder-se nos crimes de heresia como nos de homicídio e semelhantes. Não se aceitando esta, propunha conceder a Inquisição na forma que elrei queria, mas dando-se aos réus o direito de apelarem para o núncio. Se estes dous arbítrios, que o papa comunicara aos embaixadores e que haviam sido rejeitados por eles, o fossem também por elrei, oferecia-se uma terceira solução, a qual os embaixadores declaravam seria aceita pela sua corte. Vinha a ser conceder-se um perdão geral e absoluto a todos os conversos, tanto soltos como presos, dando-se-lhes o espaço de um ano para saírem do reino, e estabelecendo-se depois a Inquisição com todas as cláusulas que se quisessem. O papa declarava que deixaria a elrei a opção entre qualquer dos três arbítrios, mas que cumpria aceitar forçosamente um deles(312).

Estas propostas iam até certo ponto de acordo com os conselhos de um português que vivia em Roma, adito à família Farnese, e que, segundo parece, conservava relações e influência com os ministros de D. João III e igualmente com os chefes da raça hebréia. Acaso era aquele mesmo Diogo Rodrigues Pinto cuja presença nos debates acerca da Inquisição repugnara a D. Henrique de Meneses nas primeiras conferências que tivera com Paulo III(313). Fosse quem fosse, é certo que esse indivíduo aconselhara o papa a proceder assim, augurando-lhe feliz resultado. Ouvido sobre a matéria, insinuara a expedição dos últimos breves enviados a Portugal para a execução da bula de 7 de abril e para que a livre ação dos advogados e procuradores dos réus de judaísmo fosse respeitada e protegida. Na sua opinião, a negativa absoluta de conceder o tribunal da fé não era possível sem quebra da lealdade da sé apostólica, mas cumpria atender às circunstâncias que tornavam necessário impedir que a Inquisição se convertesse em instrumento da mais brutal tirania. Estas circunstâncias eram, não só a violência da conversão primitiva, mas também as conseqüências que, reconhecido esse fato, d’aí derivavam, tais como a de se declararem judeus forçados ao batismo todos os conversos perseguidos, visto que, segundo as doutrinas canônicas, nada teria com eles neste caso a Inquisição, e o direito de saírem do reino para irem viver noutra parle como sectários da lei de Moisés. Isto equivalia a obrigá-los a fugirem, abandonando para sempre a religião cristã, o que muitos já teriam feito, se não fossem as rogativas e promessas do bispo de Sinigaglia. Entendia que convinha também atender-se à tendência dos portugueses para jurarem falso, fato que se provava com a própria legislação do país, a ter Clemente VII revogado a Inquisição depois de a haver concedido, às recomendações deixadas por ele ao seu sucessor para que amparasse esta mísera gente, às dádivas feitas pelos conversos à santa sé(314), e enfim ao estado deplorável de opressão em que viviam os hebreus portugueses; tudo razões para se excogitarem com prudência e atividade os meios de conciliar as promessas feitas a elrei com a justiça devida às vítimas. Entre esses meios, apontavam-se como principais o não aceitarem a proposta para inquisidor geral do bispo de Lamego, em substituição de Fr. Diogo da Silva, homem de virtude e bondoso, rico e sem filhos, caso em que o bispo de nenhum modo estava(315). Seguindo-se na organização do tribunal as resoluções tomadas por Simonetta e Ghinucci depois dos debates com os embaixadores, adotando-se para os delitos contra a fé o sistema de processo usado nos tribunais seculares para os crimes de morte, não com limitação de tempo, mas perpetuamente, e afiançando-se aos cristãos-novos a liberdade de saírem do reino, comprometia-se ele a fazer com que estes ficassem satisfeitos, dando integralmente a soma oferecida no contrato proposto pelos seus chefes com mais graves condições do que estas(316), obrigando-se ele ao mesmo tempo a alcançar que elrei aceitasse ou, pelo menos, não opusesse resistência à deliberação do pontífice. Assegurava, além disso, que, obtidas tais concessões, os hebreus portugueses conviriam em não passar à Turquia, para aí seguirem a religião judaica. Animando-se o núncio com mostras de benevolência, e mostrando-se atividade e bons desejos, o autor destes diversos arbítrios não reputava impossível obter dos conversos uma dádiva mais avultada do que a anteriormente prometida(317).

À vista desta perspectiva, não deve admirar que os cristãos-novos alcançassem decisivas vantagens; mas davam-se, além disso, outras circunstâncias que conspiravam para o seu triunfo. A não aceitação das propostas de Roma pela corte de Portugal, posto que indireta era clara e indubitável. Ao passo que se recusava uma resposta oficial, guardando-se obstinado silêncio para com Sinigaglia, vemos que se enviavam aos embaixadores novas instruções para renovarem uma contenda diplomática já terminada, e debatida até à saciedade. Por outra parte, a irritação do fanatismo e da hipocrisia manifestava-se em rugidos de cólera, que soavam até do alto do púlpito, com aprovação do infante cardeal D. Afonso. Nestas prédicas nem sequer era respeitada a sé apostólica; e as comunicações do núncio, nas quais porventura se exageravam esses protestos audazes da intolerância, vinham exacerbar o despeito do papa contra o aparente desprezo da corte portuguesa para com ele, e cobrir com o manto da dignidade ofendida as corrupções e simonias da cúria(318). Para cúmulo de embaraços, quando as novas instruções dos embaixadores chegaram a Roma nos princípios de setembro, o papa havia partido para Perugia, aonde o chamavam negócios políticos, e d’onde só devia voltar em outubro. Assim, a demora de três meses em vir a uma conclusão final, demora que se recomendava de Lisboa, seria ainda mais longa, tendo de passar um mês antes de se entabolarem novos debates. Mas que intuito havia em tal recomendação? Elrei não confiara o seu segredo de D. Martinho. Provavelmente era por que se tratava, conforme os fatos posteriores o estão indicando, de salvar uma situação quase desesperada, fazendo intervir nela de modo decisivo a irresistível influência de Carlos V. Achava-se este em Sicília, aonde chegara depois da conquista de Tunes, na qual se distinguira o infante D. Luiz, irmão de D. João III. De Sicília devia vir a Nápoles, e d’aí a Roma, para resolver com Paulo III os graves assuntos religiosos e políticos que então agitavam a Europa(319). Deram-se instruções a Álvaro Mendes de Vasconcellos, o qual acompanhava o imperador como representante da corte portuguesa(320). Os serviços que a armada de Portugal fizera na empresa de África e a estreita amizade que Carlos V contraíra com o infante D. Luiz eram, além dos instantes rogos de D. João III, motivos poderosos para impelirem o imperador a entrar seriamente nesta questão. Os fatos tinham provado que, a não ser a intervenção do monarca espanhol, nenhum expediente havia seguro para vencer na contenda, e quanta razão tinha D. Henrique de Meneses quando, no princípio da sua embaixada, inculcava a eficácia daquele meio, que o seu astucioso colega fingia considerar como inconveniente.

Mas enquanto se preparava o novo terreno para o combate, o negócio seguia cada vez mais rapidamente o pendor que havia tomado. Foi nos princípios de setembro que o arcebispo do Funchal e D. Henrique de Meneses receberam as últimas instruções de que anteriormente falámos. Era tarde. Simonetta, elevado ao cardinalato, governava Roma na ausência do papa, e este mostrava-se tão persuadido da justiça das suas últimas resoluções que afirmava merecer por isso a apoteose(321). Do cardeal Simonetta, homem de princípios severos, e que havia tratado longamente o negócio dos cristãos-novos, nada havia, portanto, que esperar, e ambos os embaixadores eram concordes em reputar Paulo III como inteiramente adverso às pretensões d’elrei. D. Henrique, especialmente, pintava com sombrias cores a irritação do pontífice e a malevolência de Simonetta e de Ghinucci, também feito agora cardeal, contra tudo o que dizia respeito ao governo português(322). Entretanto, D. Martinho mostrava nesta conjuntura a astúcia de que era dotado. Ou fosse que seu irmão o houvesse avisado de que na corte prevalecia a idéia de recorrer a Carlos V, ou fosse que as suas conveniências particulares o induzissem a obstar ao triunfo completo da causa dos hebreu, é certo que, esquecendo as repugnâncias passadas, apontava como único remédio heróico para a gravidade do mal a intervenção do imperador, indicando o conjunto de circunstâncias políticas que tornavam provável os bons efeitos de semelhante intervenção. Insistia, contudo, em que seria judicioso aceitar a Inquisição com quaisquer modificações, esperando-se com paciência as concessões futuras. Por fim, aconselhava que se removesse o mais duro contrário com que havia a lutar em Roma, isto é, Duarte da Paz. Pedia o prelado que ou elrei procurasse atraí-lo a si por qualquer modo, perdoando-lhe os passados desserviços, ou que o mandasse assassinar; porque tinha sabido obter o favor, não só da cúria, mas também de todas as pessoas influentes de Roma. Ponderava que, na verdade, durante essas discussões sobre a Inquisição, em que sempre o Papa o mandava ouvir, poderiam os agentes portugueses travar-se de razões com ele e matá-lo; mas que nunca se praticaria tal ato senão por ordem delrei, em cujo dano redundaria o crime, além da desonra, dos remorsos e dos riscos que d’aí haviam de resultar. Na remoção de Duarte da Paz, por qualquer modo que fosse, consistia, na opinião do metropolita, o principal meio de espalhar o terror e o desalento nas fileiras inimigas(323). Aconselhando o assassínio de um homem com quem tinha estreitas, posto que ocultas relações, o arcebispo cria, provavelmente, afastar de si as suspeitas de uma criminosa convivência com os cristãos-novos, e mostrando-se convencido da necessidade de recorrer à poderosa proteção do imperador d’Alemanha, não só lisonjeava as intenções da corte, mas também inculcava pelo estabelecimento definitivo da Inquisição um zelo que não tinha. Por outro lado, havendo o papa voltado a Roma nos princípios de outubro, o arcebispo persuadiu o seu colega de que não convinha usar por enquanto das últimas instruções enviadas de Portugal, nas quais, segundo depois afirmava o cardeal Santiquatro, havia concessões e propostas que tornariam possível o vir o pontífice a um acordo favorável(324). Porventura, contava com que a demora de três meses, que secretamente se lhe recomendara pusesse na conclusão do negócio, supondo que o pontífice acedesse às novas súplicas, lhe serviria de desculpa da demora, ao passo que na realidade desservia a causa em que estava oficialmente empenhado. Quanto mais Santiquatro assegurasse a pronta aquiescência de Paulo III às novas instruções, melhor se defenderia, depois, de ter retardado a época de comunicar a matéria delas. Assim, fingindo o excesso de zelo na sua correspondência com elrei, mostraria, por outro lado, obediência cega às ordens secretas que recebera.

Este procedimento era tanto mais torpe quanto é certo que estava iminente uma importante peripécia daquele variado drama. Irritado com as tergiversações e com as resistências da corte portuguesa, moderadas nas fórmulas, mas ousadas e tenazes na substância, o pontífice tomara, enfim, uma resolução decisiva a favor dos cristãos-novos, resolução que, revalidando em geral as providências de 7 de abril de 1533, equivalia, ao mesmo tempo, à condenação, mais ou menos explícita, dos atos do rei de Portugal em relação aos seus súditos de raça hebréia. Com a data de 12 de outubro redigiu-se, de feito, uma bula(325), onde, recordando as principais disposições da de 7 de abril, e compendiando a história das resistências à sua execução e da condescendência que mostrara em atender a todas as objeções da corte portuguesa, o pontífice punha em novo vigor as provisões de Clemente VII, com as modificações que o decurso do tempo aconselhava e que, sobretudo, a resolução que tomara de revocar o bispo de Sinigaglia, nomeado executor da bula de 7 de abril, tornava indispensáveis. Assim, em lugar das fórmulas estabelecidas anteriormente para os cristãos-novos obterem o benefício do perdão, estatuía-se agora um método diverso. A simples confissão auricular e a absolvição de quaisquer sacerdotes escolhidos pelos culpados pô-los-iam ao abrigo de ulteriores perseguições, sem que lhes fosse necessário sujeitarem-se a penitência alguma pública, entendendo-se estar para esse efeito em pleno vigor a bula de 7 de abril, e aplicando-se as disposições da atual a todos os réus ou suspeitos a que ess’outra se referia. Deviam cessar todos os processos por crime de heresia, tanto no foro secular como no eclesiástico, soltando-se os presos, revocando-se os desterrados, facultando-se a entrada na pátria aos foragidos e suspendendo-se os confiscos. O papa fulminava os raios da igreja contra os que se opusessem à execução dos seus mandados, e derrogava todas as disposições de direito canônico, constituições civis e privilégios apostólicos contrários à nova bula. Quanto aos réus processados e julgados pela Inquisição, obrigava-os à abjuração perante qualquer eclesiástico, escolhido por eles, mas eximia-os da penitência pública, e ordenava que fossem restituídos à liberdade(326).

Apesar da firmeza e decisão que transluziam nas provisões da bula de 12 de outubro, o papa, segundo parece, hesitava ainda em promulgá-la. A aquiescência de D. Martinho veio aplanar as últimas dificuldades. A ocultas de D. Henrique e do cardeal Santiquatro, o arcebispo instou com o pontífice para que mandasse publicar o perdão em Portugal, porque, conforme asseverava, seria isso o único meio de terminar as tediosas contendas entre a corte e a cúria romana(327). Assim, as dúvidas cessaram, e a bula, antes de se expedir para Portugal, foi solenemente afixada, a 2 de novembro de 1535, nos lugares públicos de Roma por ordem de Paulo III, habilitado assim para justificar o seu modo de proceder com o voto do próprio arcebispo do Funchal(328).

Como, porém, se arriscava o astuto prelado a subministrar ao papa um meio de justificação que serviria ao mesmo tempo de prova fortíssima, posto que indireta, das ocultas relações dele com os cristãos-novos? Era que D. Martinho acreditava ter, enfim, tocado a meta dos seus ambiciosos desígnios. Antes da partida de Paulo III para Perugia, durante a sua residência ali, e depois de voltar a Roma, o arcebispo trabalhara ativamente para obter enfim a realização das promessas de Clemente VII, a concessão da púrpura cardinalícia, e supunha ter conduzido as cousas a termos tais, que o resultado não podia ser duvidoso. D. Henrique de Meneses, que lhe observava os passos, recebera freqüentes avisos, não só acerca dos seus meneios com Duarte da Paz, mas também sobre os esforços que fazia para alcançar o cardinalato. Além de advertir direta e indiretamente elrei do que se tramava, estando ainda o papa em Perugia escrevera a Santiquatro para que vigiasse ali o progresso das pretensões do arcebispo e lhe obstasse, evitando o dissabor que daria a elrei ver um súdito ombrear em jerarquia com seu próprio irmão, o infante cardeal D. Afonso. Na volta de Paulo III a Roma, D. Henrique, nas primeiras vistas que teve com Santiquatro, exigiu dele uma declaração franca e precisa acerca do que se passara sobre aquela matéria. Trazido a um campo em que não eram possíveis subterfúgios, Pucci, que parece não ia longe de favorecer a pretensão de D. Martinho, confessou tudo. O negócio estava muito adiantado. Representou-lhe D. Henrique o desgosto que tal sucesso devia produzir no ânimo do príncipe, cujo protetor na cúria o cardeal era, e convenceu-o de que a sua situação lhe impunha o dever de obstar às miras do arcebispo. Posto que achasse difícil o empenho, Santiquatro comprometeu-se a trabalhar contra as pretensões de D. Martinho. Acordes neste ponto, ambos escreveram a D. João III, sendo desde logo vertida em português por D. Henrique de Meneses a carta em que o cardeal narrava as intrigas do prelado. Assim traduzida, não seria elrei constrangido a confiar de intérpretes o seu conteúdo. D. Henrique escreveu também largamente, com a rudeza sincera que o caracterizava(329). Ambas as cartas deviam ser entregues a elrei pela própria mão do embaixador, o qual pedia que depois de lidas fossem inutilizadas, e na verdade as revelações nelas contidas eram perigosas, sobretudo para D. Henrique de Meneses, cujas apreensões a este respeito se manifestavam sem rebuço. Significando as diligências que fazia para baldar as pretensões do seu colega, aludia assim aos perigos políticos que lhe podiam resultar da influência e poder dos parentes e amigos do arcebispo, como aos pessoais, procedidos da vingança deste, se transpirasse a notícia do que escrevia, «porque — acrescentava ele — com o favor de Deus, em nada mais os temo, ao menos de cara a cara.» Pedia não só segredo a elrei, mas também que o mandasse voltar a Lisboa, porque em Roma corria risco de ser envenenado(330). Apesar de crer que tinha suscitado todos os possíveis obstáculos às ambições do seu colega, recomendava a D. João III escrevesse diretamente ao papa e a Santiquatro sobre o assunto, declarando-lhes categoricamente a própria vontade naquela questão do cardinalato.

Traindo os seus desígnios pela vontade cega de os realizar em breve, o arcebispo do Funchal favorecia por mais de um modo a causa dos cristãos-novos. Aquele incidente absorvera toda a atenção de Santiquatro e do embaixador extraordinário, de maneira que este somente soube com certeza da existência da bula de perdão na véspera do dia em que foi afixada nos lugares públicos de Roma. Os esforços combinados dos dous tinham inutilizado os de D. Martinho, e o pontífice mostrava-se, enfim, firmemente resolvido a não o admitir no sacro colégio, mas a questão principal estava perdida. Além disso, a situação de D. Henrique tornava-se demasiado perigosa, porque o seu colega suspeitara ou soubera o que contra ele se tramara(331). Escrevendo de novo a elrei no princípio de novembro, o embaixador não ocultava os temores que o afligiam, nem o resultado fatal da dilatada luta com os cristãos-novos. Na própria questão do cardinalato não supunha impossível um revés, dada a corrupção da cúria e dos mais próximos parentes do papa(332). Tendo chegado as cousas a tais termos entre ele e D. Martinho, receava também que este o mandasse assassinar e lançá-lo no Tibre, ou que o envenenasse, fatos de que sobejavam em Roma mais estrondosos exemplos, acrescentando que se poriam depois as culpas aos cristãos-novos(333). Em conseqüência disto, pedia a elrei que ordenasse quanto antes a sua retirada de uma corte, onde não só faltava a segurança pessoal, mas também se fazia tudo descaradamente por dinheiro, sendo os menos esbulhados os que sabiam conduzir os negócios com maior astúcia(334). Rompendo, enfim, os diques a um silêncio, que, levado mais longe, seria criminoso, D. Henrique, instruído naquele mesmo dia de que a bula de perdão a favor dos conversos se passara e ia expedir-se para Portugal por um mensageiro de Duarte da Paz, a fim de ser promulgada, denunciava explicitamente os meneios ocultos do arcebispo com o procurador dos hebreus, cousa que, aliás, D. João III parecia não dever ignorar, porque era fato sabido em Roma, Castela e Portugal. Na sua opinião, o negócio dos conversos estava irremediavelmente perdido, não só pela conivência do seu colega, mas ainda mais pela decisiva parcialidade do papa, que dava conta a Duarte da Paz de quanto se passava com os agentes da coroa, enquanto nada transmitia a estes do que com ele tratava(335).

Efetivamente, a bula de 12 de outubro apareceu em Portugal. Os raios do Vaticano caíam enfim sobre a intolerância, e a causa da humanidade e da justiça triunfava ainda uma vez, embora por meios que não ousavam aparecer à luz do sol. A vigorosa resolução do pontífice produziu nos ânimos uma impressão profunda. Os tenazes mantenedores da Inquisição viam frustrada a sua incansável perseverança, e o desalento espalhou-se nas fileiras do fanatismo e da hipocrisia. O vulgo exprimia o receio que lhe inspirava o papa com o anexim grosseiro, em que se comparava a condescendência de Clemente VII com o carácter indomável de Paulo III(336). A bula aparecia numa conjuntura em que a luta entre o poder civil e o núncio Sinigaglia chegara aos maiores extremos. Um clérigo, encarregado por ele de fazer certas intimações necessárias para o cumprimento daqueles breves e instruções que recebera de Roma, fora preso, não obstante haver o infante cardeal D. Afonso ajustado com o núncio a celebração de um compromisso, para se proceder, segundo parece, com menos rigor de parte a parte. Aquele ato do poder civil a respeito de um agente seu levara ao último auge a irritação do prelado italiano, que fulminou censuras contra os juízes da coroa. Debalde elrei, que estava em Évora, procurara por cartas acalmar o despeito do núncio. Este dera em resposta que para servir o príncipe cederia em tudo, menos em castigar os desembargadores, porque, recuando neste ponto, perderia toda a força moral(337).

Neste estado de cousas, fácil é de supor se Marco della Ruvere se apressaria a fazer saber a elrei da existência da bula do perdão. D. João III vacilou ou fingiu vacilar. O próprio cardeal D. Afonso mandou abrir as portas dos calabouços a muitos, enquanto o núncio ordenava desde logo que fossem postos em liberdade aqueles acerca dos quais lhe tinham sido feitas de Roma recomendações particulares. Procurava, todavia, elrei pôr ainda diques à torrente, convidando o bispo de Sinigaglia para se dirigir a Lisboa e Évora a conferenciar com ele, e pedindo-lhe que na execução da bula respeitasse ao menos a dignidade da realeza. Na resposta a esta carta, posto que declarasse aquiescer aos desejos do monarca, o núncio exprimia-se com uma altivez que tocava as raias da insolência, e indicava as poucas vantagens que se podiam esperar da solicitada conferência(338). Os fautores da Inquisição, o vulgo e o próprio D. João III pareciam desanimados, receando um combate em que o supremo juiz dele, o dispensador da vitória, se lhes afigurava como inteiramente dedicado a dar o triunfo aos adversários(339). A bula de 12 de outubro, concedendo um perdão que abrangia todos os réus do judaísmo, dava-lhes o espaço de um ano para dele se aproveitarem, e anulava assim virtualmente a Inquisição. A existência ou não existência futura dela, eis o campo onde devia continuar a contenda. Impedir que o tribunal da fé adquirisse novo vigor era empresa a que podiam abalançar-se os conversos, não só pelas esperanças que nasciam naturalmente de uma primeira vitória, mas também porque, asserenada a tempestade da perseguição por muitos meses, tirariam para a defesa novos recursos de ação que podiam empregar as vítimas libertadas dos ferros dos inquisidores. O fanatismo, porém, que, salteado de repente, titubeara e recuara, ou que, pelo menos, o fingira, não tardou em recobrar novos brios para a luta de morte em que se empenhara. No seguinte livro iremos, de feito, ver a renovação do combate, e assistir a novas peripécias desse longo drama, que, tão variado, até aqui temos visto passar.

LIVRO V

Providências da corte portuguesa para combater as vantagens obtidas pelos cristãos-novos. Revocação do arcebispo do Funchal. Intervenção eficaz e direta de Carlos V no negócio da Inquisição. Tentativa de assassínio contra Duarte da Paz. — Questões vergonhosas entre os conversos e o núncio na ocasião da saída deste de Portugal. Efeitos dessas questões em Roma. Triunfo completo do fanatismo. Bula de 23 de maio de 1536 estabelecendo definitivamente a Inquisição. Primeiros atos desta. Monitório do bispo de Ceuta, inquisidor-mor. Procedimento moderado do novo tribunal. — Diligências dos agentes dos conversos em Roma. O papa começa a mostrar-se-lhes favorável. — Enviatura do núncio Capodiferro, e objeto da sua missão. Tendências da cúria romana. Manifestação dessas tendências no breve de 31 de agosto de 1537. Considerações políticas que as atenuavam. — Procedimento do núncio. — Enviatura de D. Pedro de Mascarenhas à corte pontifícia. — Escritos blasfemos afixados publicamente em Lisboa, e conseqüências desse fato. O infante D. Henrique substituido ao bispo de Ceuta no cargo de inquisidor-mor. — Negociações de D. Pedro de Mascarenhas em Roma. Carácter e dotes do novo embaixador. Corrupções na cúria romana. — Mudanças no tribunal da fé. — Hostilidades entre o infante e Capodiferro. Processo de Ayres-Vaz. Luta com o núncio. — Elrei exige a revogação deste. — Discussões violentas e protraídas entre o embaixador português e o papa, tanto acerca da Inquisição como do núncio. Acordos vantajosos e transtornos inesperados. D. Pedro não podendo obstar às providências favoráveis aos conversos, obtém, contudo, a revocação de Capodiferro. — Bula declaratória de 4 de outubro de 1539.

Ao passo que chegava a Portugal a bula de 12 de outubro, chegavam também as cartas de Santiquatro e de D. Henrique de Meneses. D. João III via-se a um tempo menoscabado pela corte de Roma, contrariado na sua paixão dominante, a perseguição dos judeus, traído pelo arcebispo do Funchal, e ameaçado no seu orgulho pela possibilidade de ser elevado ao cardinalato, e de ombrear com o irmão o próprio homem que o traira. Eram motivos sobejos para despertar toda a energia do príncipe, aliás instigado, no que tocava à Inquisição, pelos clamores dos fanáticos e hipócritas, que exerciam sobre o seu espírito triste predomínio. Na questão do cardinalato importava primeiro que tudo fazer sair de Roma D. Martinho, revocando-o à corte, e elevando assim uma barreira insuperável às suas ambições. Pelo que, porém, respeitava aos negócios da Inquisição, era necessário contrapor às simpatias que os conversos haviam conciliado na cúria, às poderosas proteções que tinham comprado e às convicções do pontífice sobre a justiça da sua causa uma influência que, sobrepujando todos esses elementos de resistência, os vencesse e inutilizasse. Às intrigas e astúcias diplomáticas estava provado que podiam os cristãos-novos opor outras intrigas e astúcias, às corrupções outras corrupções e à máscara do zelo religioso a realidade das doutrinas evangélicas de tolerância e de humanidade. O único arbítrio que se oferecia para achar uma alavanca poderosa, capaz de aluir e derribar esse conjunto de obstáculos, era fazer intervir seriamente na questão a onipotente vontade de Carlos V. Como vimos, já se havia recorrido a este arbítrio, mas frouxamente e com infeliz sucesso. Ou os cristãos-novos tinham sabido dobrar o ânimo do embaixador espanhol em Roma, ou o próprio imperador não servira nesse ponto o cunhado com sincera vontade. Todavia, este meio era aquele em que sobretudo insistia desde muito D. Henrique de Meneses que o próprio arcebispo do Funchal, de boa ou de má vontade, reconhecera como o único eficaz, e que, segundo parece, já anteriormente se havia resolvido adotar. A impotência de todos os outros recursos, provada agora de um modo tão significativo, aconselhava, portanto, o governo português a seguir ativamente aquele caminho. Era uma das condições indispensáveis para o facilitar a retirada de Roma de D. Martinho, de um agente desleal, consideração que reforçava os outros motivos, se não mais graves, mais urgentes, que havia para a sua exoneração. Com o pretexto de se obterem informações precisas sobre o estado dos negócios da inquisição, expediram-se ordens terminantes para voltar pela posta a Lisboa o arcebispo, o qual efetivamente saiu de Roma no meado de dezembro(340). Porventura ele não teria obedecido, se não visse transtornados os seus planos pelo cardeal Pucci, o qual, escrevendo nessa conjuntura a D. João III, lhe dava, gracejando, a certeza de que, na volta, D. Martinho lhe beijaria a mão com capelo de cor verde e não de cor escarlate(341). Pucci descobrira que as esperanças do arcebispo se fundavam numa promessa escrita de Clemente VII, pela qual se lhe assegurava a promoção ao cardinalato, com a obrigação de partir para a Abissínia como legado pontifício, obrigação a que ele tencionava esquivar-se com quaisquer pretextos(342). Acompanhavam a demissão de D. Martinho instruções a D. Henrique para se dirigir a Nápoles aonde Carlos V havia chegado. Tinha D. Henrique de tratar aí com o imperador os negócios da Inquisição portuguesa, acerca dos quais o príncipe castelhano havia sido prevenido e instado. O embaixador junto à corte de Castela, Álvaro Mendes de Vasconcellos recebera novas recomendações para ajudar naquele empenho o seu colega de Roma, devendo ambos juntos seguir Carlos V de Nápoles até aquela cidade, aproveitando todas as conjunturas de adiantar a pretensão, a qual, para evitar embaraços, se reduzia a obter do papa que, tanto acerca do perdão como da organização definitiva do tribunal da fé, se estatuísse o mesmo que se estabelecera em Castela. Nisto estava de acordo o imperador, prometendo ao cunhado fazer todas as diligências para se conseguir o fim proposto, o que esperava com inteira confiança depois da demissão de D. Martinho, de cuja deslealdade, bem como de tudo o mais que ocorrera, estava plenamente instruído(343). Efetivamente, em resultado de várias conferências entre o secretário d’estado, Covos, e os dous ministros portugueses, ordenou-se ao conde de Cifuentes, embaixador em Roma, pedisse preliminarmente ao papa a revogação da bula de 12 de outubro, ao passo que Carlos V escrevia diretamente a Pier Ludovico, filho do papa, exigindo dele influísse naquela revogação. Às representações, porém, de Cifuentes replicou o pontífice que, se na matéria da Inquisição estava pronto a fazer tudo quanto aprouvesse aos dous príncipes, não o estava na do perdão. Além de insistir nas razões gerais que o leitor já conhece, mostrava-se mais que tudo queixoso da desconsideração com que o governo português tratara as concessões e propostas da cúria romana, não respondendo oportunamente cousa alguma, ao passo que os seus agentes se mostravam altivos e descomedidos. A resposta de Pier Ludovico foi análoga à de seu pai; mas dava esperanças de que finalmente o papa faria tudo quanto fosse possível para contentar os dous monarcas. Antevendo que Carlos V pouco se demoraria em Roma, Álvaro Mendes e D. Henrique de Meneses, animados com aquelas esperanças, souberam convencer o secretário Covos de quanto importava que de Nápoles se fizessem todas as diligências possíveis para mover o ânimo de Paulo III, de modo que se chegasse a uma conclusão definitiva nos primeiros dias da residência do imperador na capital do orbe católico(344). Convieram em que, para obter semelhante fim, Carlos V falasse ao núncio Paulo Vergerio sobre o assunto com eficácia tal, que este não pudesse recusar associar-se aos seus desígnios. Assim se fez. Numa longa conferência com os ministros portugueses e o secretário Covos, o núncio, depois de examinar o estado da questão e os documentos que lhe diziam respeito, comprometeu-se a intervir nela para com a sua corte. Entretanto, o imperador dirigia ao papa uma carta, que devia ser-lhe entregue por Cifuentes, a quem, aliás, se recomendava fizesse a favor daquele empenho as demonstrações mais enérgicas. Desse modo se esperava ficassem aplanadas as maiores dificuldades dentro em breve tempo(345).

Enquanto estas cousas se passavam em Nápoles, sobrevinha inopinadamente em Roma uma singular coincidência. Certo dia, em que Duarte da Paz acabava de estar com o papa, recebeu por mão da um agressor desconhecido quatorze punhaladas, das quais se acreditou ficaria morto. O precavido converso nunca, porém, se esquecera de que vivia em Roma, e debaixo das vestiduras trazia armas de fina têmpera. O crime, como é fácil de imaginar, atribuiu-se a influências ocultas, e o próprio Duarte da Paz, acusando o rei de Portugal e os seus ministros de um assassínio premeditado, pretendia prová-lo em juízo(346). Todavia, meses depois, respondendo a ama carta de Santiquatro, em que se aludia a este atentado e à indignação do pontífice, por ter sido cometido quase diante dos seus olhos, D. João III desculpava-se, atribuindo o delito a uma vingança particular. Estava persuadido de que, se o crime fosse praticado por ordem sua, o houvera sido de modo que a vítima não escaparia(347). O fanatismo gloriava-se de poder contar com a firmeza do braço dos próprios sicários, quando julgasse conveniente empregar na execução dos seus designios o ferro do assassino.

O temor e os remorsos deviam dilacerar o coração de Duarte da Paz, vendo que a morte era a recompensa final que lhe reservavam pelas suas vilanias. Não se achava, portanto, na situação mais própria de espírito para conservar cordura e audácia durante a nova luta que se preparava, e na qual, aliás, tinha de entrar com forçada lealdade, supondo que as provas de ódio mortal que recebera vinham d’elrei. Em todo o caso, nas próprias apreensões achava, digamos assim, um adversário que lhe apoucava a energia. Por outro lado o imperador, ao chegar a Roma, embora ali o levassem negócios de suma gravidade e houvesse de demorar-se apenas treze dias(348), não se esqueceu das suas promessas. Tinham-no convencido de que os fundamentos para haver Inquisição tanto em Castela como Portugal eram idênticos, e de que, estabelecendo-a neste país com as mesmas condições da de Castela, se faria uma cousa conveniente e justa(349). Ainda, porém, admitindo a legitimidade da intolerância, nem assim se dava semelhança. Em Castela houvera, ao menos, lealdade: longe de se obrigarem diretamente os judeus a receberem o batismo, tinham-se expulsado os que preferiam o exílio ao nome de renegados, e não se traira a palavra real asselada pela fé de diplomas solenes. Vendo a questão a uma luz falsa, e tendo vendido a sua influência ao cunhado a troco de socorros marítimos de que carecia(350), Carlos V insistiu por tal maneira a favor das pretensões da corte portuguesa, que o papa, colocado numa situação melindrosa, e até certo ponto dependente, para com ele, viu-se constrangido a adotar uma política diversa da que inspirara a resolução de 12 de outubro, cedendo, a despeito da própria consciência, aos furores da intolerância(351).

Mas os piores adversários da causa dos cristãos-novos eram, acaso, naquela conjuntura, eles próprios; eram-no as avaras propensões de uma raça envilecida pela opressão e pelo desprezo. O leitor está por certo lembrado das ofertas pecuniárias feitas pelos chefes da gente hebréia, em virtude das quais se obrigavam ao pagamento de quantias mais ou menos avultadas, conforme o grau de favor que encontrassem nas resoluções pontifícias acerca das matérias da Inquisição. Ou fosse que se esperasse pelos efeitos das novas intrigas que se urdiam, ou fosse pela impressão que produziu o último perdão, é certo que as perseguições tiveram um termo. Eles mesmos confessavam os benéficos resultados da bula de 12 de outubro. Tendo de partir para Roma, aonde era chamado, o bispo de Sinigaglia exigiu, portanto, o cumprimento dos contratos ocultos e simoníacos em que ele próprio tinha intervindo, e das promessas que Duarte da Paz fizera na cúria, anteriormente. Com a previsão própria de um agente da corte mais astuta da Europa, o núncio foi diferindo a publicação e a intimação da nova bula até concluir aquele negócio. Numa carta que dele nos resta, dirigida a pessoa interessada nestas transações ignóbeis (talvez o filho de Paulo III) nos ficaram vestígios profundos de alguns dos fatos que nas trevas acompanhavam as peripécias daquele drama, e que, se fossem todos conhecidos, explicariam as que parecem inexplicáveis(352). Consta dessa carta que às exigências do núncio os cristãos-novos de Lisboa responderam que estavam prontos a pagarem aquilo que por escrito se haviam obrigado; mas que recusavam cumprir as promessas de Duarte da Paz. As instâncias, as ameaças, feitas de modo que ficassem as aparências salvas(353), não puderam fazer-lhes mudar de resolução. Diziam que lhes faltavam os recursos; que o seu agente procedera sem autorização; que quisera indispô-los com o papa(354), prometendo cousas acima das possibilidades dos seus comitentes. Invectivavam acremente Duarte da Paz, afirmando que os tinha roubado, do que eram prova quatro mil ducados que metera no banco em Roma, os quais pediam a sua santidade mandasse alevantar, porque deles lhe faziam presente. Replicava Sinigaglia, defendendo o procurador dos conversos, e ponderando-lhes que, se fosse verdade o que afirmavam, seria isso mais uma razão para se mostrarem bizarros, baldando-lhe por tal modo as danadas tenções. Lembrava-lhes que o pontífice se julgaria enganado(355), vendo-os ficar satisfeitos com a bula e recusar o preço dela; que, pressuposto não se haver por isso de torcer a justiça da sé apostólica, todavia era possível virem eles a achar de futuro certa frieza no papa e nas pessoas influentes da cúria(356). Propunha-lhes por fim que representassem ao sumo pontífice a insuficiência dos próprios recursos; mas nem sequer este partido aceitaram. Partindo para a corte, que se achava em Évora, Sinigaglia ventilou a matéria com os cristãos-novos ali residentes; mas achou da parte deles as mesmas repulsas. Vendo o espírito que predominava entre os comerciantes de origem hebréia, com quem especialmente tratara, recorreu a três letrados que exerciam poderosa influência entre os conversos, e que por eles eram consultados em tudo o que tocava à luta com a Inquisição. A estes procurou atemorizar o núncio com a intervenção de Carlos V, de que já havia notícia. Concordando em que as pretensões de Marco della Ruvere eram justas, eles prometeram convencer os seus clientes da necessidade de vir a um acordo, o qual se tomaria numa conferência celebrada longe da corte, para o que foi escolhida Santarém. Mas todos estes planos se transtornaram. Enquanto o núncio tratava de obter letras de câmbio pela soma de cinco mil escudos, que os cristãos-novos estavam comprometidos a pagar, mestre Jorge de Évora, homem de proverbial avareza(357), que tinha entrada com elrei e que era um dos chefes dos conversos, ou revelou o que se passava, ou, colhido de súbito, confessou o que, talvez, elrei descobrira por diversa maneira. A cólera de D. João III subiu ao maior auge. Os três jurisconsultos que haviam aconselhado o acordo com o núncio foram obrigados a persuadir o contrário aos seus clientes, tarefa mais fácil, dadas as propensões destes. Procurava-se ao mesmo tempo assustar os cristãos-novos com a perspectiva de se renovarem as cenas horríveis de 1506; e da própria boca do cardeal infante D. Afonso se ouviu o brutal gracejo de que, dando dinheiro à corte de Roma, ficariam os conversos habilitados para pedir socorro ao papa no primeiro tumulto popular que contra eles houvesse(358). Assim se empregavam todos os meios para que o dinheiro dispendido com mão larga não servisse, naquela conjuntura tão propícia, de obstáculo, talvez insuperável, aos esforços de Carlos V a favor da Inquisição portuguesa.

Escrevendo para Roma de Braga, onde parara alguns dias na sua volta a Itália, Marco della Ruvere expunha estes sucessos, o estado dos negócios, e o que havia a fazer. Tinha destinado ir por Flandres, onde esperaria a resposta dos chefes dos conversos, anuindo eles ao pagamento de todas as quantias. Se não o fizessem, era que estavam seguros de outra parte quanto ao futuro, aliás seria preciso supô-los dementes(359). A ida a Flandres tinha por objeto falar com Diogo Mendes, o mais rico e respeitado hebreu português, e com a viúva de seu irmão Francisco Mendes, a qual subministrara já a maior quantia para a solução dos cinco mil escudos recebidos. Convinha, portanto, que se esperasse pela sua chegada a Roma sem se tomar nenhum arbítrio novo; porque, se a obstinação dos conversos continuasse, dependendo tudo direta ou indiretamente do papa, cumpria provar-lhes que eram uns loucos se à força de dinheiro haviam procurado assegurar-se de quem não podia salvá-los, em vez de o dar a quem podia. «Então — dizia o núncio — justa e santamente se poderia tirar a máscara(360)». Era de opinião que, se o pontífice desse mostras de querer admitir a Inquisição com o rigor com que se pedia, acabariam todas as hesitações e repugnâncias. Desconfiava, por outra parte, Marco della Ruvere que estivessem à espera dos resultados da ida do imperador a Roma, suposto o que, não mudando a política da cúria por esse fato, pagariam prontamente. No que respeitava a Duarte da Paz, advertia que o mais que se podia esperar era que lhe arbitrassem um ordenado fixo, e isto pelas instâncias dele núncio, sem as quais já o teriam demitido de seu procurador, pelos muitos escândalos que lhes havia dado. Era necessário que ele procedesse honestamente e se abstivesse de excessivas despesas; porque já lhes tinha gasto dez mil escudos. Lembrava que se o agente era largo no prometer, os constituintes eram parcos no cumprir, e que em Roma não deviam nestes negócios fiar-se em promessas vocais, mas exigi-las por escrito. Pelo que pertencia à execução da bula de 12 de outubro, acrescentava que vários conversos tinham solicitado do cardeal infante D. Afonso a sua notificação definitiva aos prelados; mas o infante a havia restituído sem a fazer notificar, por insinuações d’elrei seu irmão, segundo se dizia; que então tinham recorrido a ele núncio para a mandar, enfim, publicar solenemente; que, vendo a estreiteza em que se achavam, aproveitara o ensejo para se obrigar a abrirem as bolsas, respondendo-lhes que não lhe parecia prudente dar esse passo decisivo, acendendo com ele ainda mais a cólera d’elrei, mas que, desempenhando a palavra do seu procurador, e pagando tudo, poderiam mandar por um expresso suplicar a sua santidade ordenasse a pronta notificação daquele importante diploma; que, além deste, lhes sugerira outro alvitre, sempre suposta a base do prévio pagamento: era enviar a cada bispo transumpto autêntico do processo para a publicação da bula, e escrever ele núncio ao rei, dizendo-lhe que, tendo sabido como proibira ao cardeal infante fazer aquela publicação, do mesmo modo que já obstara a que se fizesse pela nunciatura, não podia deixar de comunicar isso ao papa, a fim de este dar as providências. De tal modo, não haveria motivo para elrei os acusar. Os que tratavam do assunto em Braga aprovaram este último conselho, rogando-lhe que não escrevesse para Roma até o fim de fevereiro, para terem tempo de tratar com os chefes dos conversos, e virem a um acordo sobre o negócio fundamental, o do dinheiro. Não se cumpriram, porém, estas belas promessas, e Marco della Ruvere, perdidas já as esperanças, remetia a 1 de março apenas as letras dos cinco mil escudos, mesquinho resultado de tráfico tão indecente(361).

Assim, o excessivo apego às riquezas, que sempre distinguiu a raça hebréia, ia em auxílio dos esforços que se empregavam para a esmagar. Álvaro Mendes e Santiquatro tinham chegado a ponto de prometer dinheiro ao próprio papa, promessas que se não cumpriram depois de obtida a Inquisição, mas que Paulo III teve o brio de não recordar(362). No meio da imensa corrupção daquele tempo, só o ouro derramado com mãos largas poderia contrastar na cúria romana a conveniência de satisfazer os desejos de Carlos V, tão energicamente manifestados. Imagine-se, porém, qual seria o efeito da carta de Sinigaglia em ânimos pervertidos. A primeira vantagem que obtiveram os adversários dos cristãos-novos, a pedido do imperador, foi a exoneração do cardeal Ghinucci de membro da junta ou comissão a cujo cargo estava consultar sobre a longa e variada contenda da Inquisição, sendo substituido por Santiquatro, que, protetor declarado, e a bem dizer oficial, de D. João III, vinha a ser ali ao mesmo tempo juiz e parte(363). Não tendo de lutar com Ghinucci, que sempre se mostrara favorável aos conversos, o hábil Pucci soube em breve modificar as idéias de Simonetta, que, tempos depois, confessava ter-se deixado iludir nesta conjuntura(364). Ao mesmo tempo, Álvaro Mendes, que ficara em Roma depois da saída do imperador, continuava a insistir com ele por cartas para que recomendasse a rápida conclusão do negócio(365). Era impossível resistir a tal conjuntura de incentivos. A 23 de maio expediu-se uma bula, pela qual se instituía definitivamente a Inquisição em Portugal, e virtualmente se anulava nos seus efeitos a de 12 de outubro do ano anterior, sem todavia a ofender na aparência. Por ela se nomeavam inquisidores gerais os bispos de Coimbra, Lamego e Ceuta, aos quais seria adjunto outro bispo, frade ou clérigo constituído em dignidade e doutor em teologia ou em cânones, escolhido por elrei. Eram estes encarregados de proceder contra todos os que houvessem delinqüido em matérias de crença, depois do último perdão, e contra quem quer que os seguisse, protegesse ou advogasse a sua causa, pública ou secretamente, não sendo dos que o haviam feito em virtude do breve de 20 de julho de 1535, e em harmonia com as suas disposições. Ressalvava-se, até certo ponto, a jurisdição dos bispos, autorizando-os a intervirem nos processos da Inquisição, quando se tratasse de alguma das respectivas ovelhas, ainda que disso se houvesse abstido no começo da causa. Ordenava-se que, durante os primeiros três anos depois da publicação desta bula, se adotassem as fórmulas de processo civilmente usadas para os crimes de furto e homicídio, seguindo-se tão somente d’aí avante os estilos da Inquisição. Excetuavam-se, todavia, os delitos perpretrados dentro dos mesmos três anos, acerca dos quais continuaria a subsistir o processo civil. A faculdade concedida aos ordinários de tomarem conhecimento dos atos dos inquisidores era compensada com ficarem estes habilitados para fazerem o mesmo nas causas de heresia intentadas pelos bispos. Durante os primeiros dez anos, os bens dos condenados ao último suplício deviam passar aos seus herdeiros mais próximos, ou aos imediatos, se aqueles fossem inábeis para suceder, e não haveria confiscos. Os inquisidores ficavam revestidos do poder de nomearem procurador fiscal, notários e agentes seculares ou eclesiásticos, sem dependência dos respectivos prelados; de fazerem exautorar os criminosos, sendo clérigos de ordens sacras, por qualquer bispo ajudado por dous abades(366), ou por outros indivíduos revestidos de dignidades eclesiásticas, relaxando depois os culpados aos tribunais seculares; de removerem todas as resistências com os meios canônicos; de receberem a abjuração dos réus não relapsos e de os admitirem ao grêmio da igreja sem dependência da intervenção dos ordinários; de exercerem, em suma, todos os atos pertencentes por direito ao ministério de inquisidores, delegando os seus poderes, com as devidas limitações, em quaisquer sacerdotes, bacharéis em teologia, em cânones ou em direito e de idade de trinta anos, pelo menos, quando não fossem pessoas revestidas de alguma dignidade eclesiástica, ficando todos estes ministros e agentes, sem exceção, sujeitos à jurisdição dos inquisidores pelos delitos que cometessem no desempenho do seu cargo. Criava-se um conselho geral nomeado pelo inquisidor-mor, e regulava-se o sistema das apelações, que deviam subir dos inquisidores delegados para o inquisidor-mor e deste para o conselho. Simulava-se, até certo ponto, o desejo de proteger os cristãos-novos, declarando-se nulas e de nenhum efeito quaisquer letras apostólicas ou leis civis que os mandassem considerar a todos como pessoas poderosas para se lhes não revelarem, quando réus, os nomes dos denunciantes e das testemunhas, devendo-se manter acerca deles a distinção de direito comum entre poderosos e não poderosos, revelando-se a estes últimos os nomes dos seus acusadores e dos que depusessem contra eles, para poderem impugná-los e defender-se. A bula terminava abrogando todos os privilégios e resoluções pontifícias que obstassem à sua execução(367).

Apesar de ser expedida a 23 de maio, e das instâncias que faziam os agentes de D. João III e de Carlos V, a bula da Inquisição só se chegou a enviar nos meados de julho(368), provavelmente pelos embaraços que os numerosos protetores dos cristãos-novos em Roma lhe deviam suscitar. Afinal, D. Henrique de Meneses, que, como vimos, havia muito que insistia na sua exoneração, regressou a Portugal, trazendo consigo o resultado definitivo de uma negociação que tantas fadigas e desgostos lhe causara. Terminada na chancelaria romana a expedição da bula, Santiquatro escrevera a elrei nos princípios de junho, explicando algumas das provisões dela, e manifestando-lhe o pensamento e intenções do papa naquela concessão. Na verdade, Paulo III criava quatro inquisidores-mores, mas com o intuito de que só exercesse o cargo Fr. Diogo da Silva, bispo de Ceuta, indivíduo que não fazia temer aos conversos as injustiças e violências, que aliás esperavam do bispo de Lamego, o qual D. João III insinuara no ano anterior para aquele cargo, e cujo nome se incluira na bula com o do bispo de Coimbra por simples formalidade e para não o vexar com uma exclusão ofensiva(369). Álvaro Mendes e D. Henrique de Meneses tinham-se comprometido a isso com o papa em nome d’elrei. O cardeal recomendava a este a moderação, sobretudo acerca daqueles que haviam sido violentados a receber o batismo, e aconselhava-lhe que se contentasse por enquanto do que se lhe concedia, com a esperança de que de futuro se acederia aos postulados que não haviam sido satisfeitos. Intercedia, finalmente, a favor da família e parentes de Duarte da Paz, a quem o papa ia expedir um breve para poderem sair do reino, breve que ele pedia fosse respeitado. Respondendo a esta carta, D. João III mostrava-se resignado a aceitar a Inquisição com as restrições impostas aos seus mais largos desígnios, a realizar as promessas dos embaixadores sobre a nomeação do bispo de Ceuta, e a respeitar a vida e a liberdade dos conjuntos de Duarte da Paz, embora merecessem, na sua opinião, bem diverso tratamento, pelas culpas desse homem, em cujo regresso à pátria protestava que não consentiria jamais(370).

No meio do seu triunfo, a corte de Portugal quis guardar a princípio as aparências de moderada. A aceitação oficial do cargo de inquisidor-mor pelo bispo de Ceuta só se verificou a 5 de outubro, e só a 22 se publicou solenemente em Évora a bula que instituía o terrível tribunal(371). O ano concedido aos conversos que houvessem delinquido contra a fé, para se reconciliarem, estava completo, e, nessa parte, ficavam mantidas as provisões da bula de 12 de outubro de 1535. Na realidade, porém, isso pouco embaraçava as futuras perseguições. Com os ódios acumulados que ameaçavam por toda a parte os cristãos-novos, não faltariam delações e depoimentos para se lhes provar a existência dos delitos de judaísmo cometidos posteriormente a essa data, e até era natural que eles existissem, se pode chamar-se delito seguir a ocultas uma religião perseguida. Pouco importava que a bula mantivesse a distinção de réus poderosos e de réus não poderosos, para aos segundos se revelarem os nomes dos seus acusadores e das testemunhas do crime. Como a distinção ficava a arbítrio dos inquisidores, é evidente que essa revelação, muitas vezes indispensável para a defesa, só se daria quando eles não estivessem resolvidos a condenar o réu, que nem sequer tinha a garantia da opinião pública para opor a quaisquer irregularidades, por mais monstruosas que fossem, de um processo inteiramente secreto. Ao passo que se expediam ordens aos magistrados civis de todo o reino para protegerem os inquisidores e seus agentes, e mandarem prender quaisquer pessoas por eles designadas(372), o bispo de Ceuta publicava um monitório em que se estabelecia e regulava o sistema de delações acerca dos crimes contra a pureza da fé. Este monitório era um tremendo roteiro que assinalava os parcéis onde se tornaria fácil o naufrágio. Os atos aí especificados, que deviam servir de indício de heresia, eram tantos, e alguns tão insignificantes e até ridículos, que ninguém se podia considerar seguro de não ser acusado de erro em matérias de fé, quanto mais aqueles que a malevolência geral trazia vigiados. Não eram só a celebração dos ritos e festas judaicas, a circuncisão e as doutrinas manifestamente opostas ao catolicismo, que pelo monitório do inquisidor-mor deviam ser denunciadas dentro de trinta dias por quem quer que soubesse que alguém havia praticado aquelas ou propagado estas depois do perdão de 12 de outubro; era, também, um sem número de atos inocentes em si e que, embora coincidissem com superstições judaicas, os mais puros cristãos podiam praticar sem malícia, como ainda hoje subsistem entre o povo usanças cuja origem remonta às superstições do politeísmo romano, sem que por isso o povo se haja de reputar pagão. O modo de matar as reses ou as aves, o provar o fio das facas ou cutelos na unha do dedo polegar, o não comer certas variedades de carne ou de peixe, a altura das mesas em que se tomavam as refeições, a natureza destas, o lugar do aposento onde se estava por ocasião da morte de qualquer indivíduo, o porem os pais as mãos sobre a cabeça ou no rosto dos filhos, o renovar as torcidas dos candieiros ou limpá-los à sexta-feira, e outros atos semelhantes obrigavam em consciência, e sob pena de excomunhão, quem quer que os visse praticar, ou deles tivesse notícia, a denunciá-los à Inquisição. Não só se ficava obrigado a acusar como herege todo aquele que negasse a imortalidade da alma e a divina missão de Jesu-Cristo, mas também cumpria delatar os que andassem de noite, como as bruxas ou como os feiticeiros, em companhia do demônio, ou que chamassem por este para o haverem de interrogar acerca dos sucessos futuros(373).

Antes, porém, de se abrir tão vasto campo às delações e à perseguição, tinha-se publicado a 20 de outubro um edital em que se marcavam trinta dias para o chamado tempo de graça(374). Por esse edital eram admoestados todos os que houvessem errado contra a fé a irem confessar suas culpas perante o inquisidor-mor, delatando ao mesmo tempo os delitos alheios, sem excetuar os dos próprios progenitores ou de pessoas falecidas. Não se aludindo aí nem levemente à distinção entre os atos anteriores à bula de 12 de outubro e os posteriores a ela, e exigindo-se denúncias até contra os mortos, começava-se desde logo por quebrar as terminantes provisões da bula de 23 de maio, onde se quisera evitar do modo possível as aparências de uma contradição flagrante nas resoluções pontifícias. Naquele edital a Inquisição prometia aos que se reconhecessem culpados, com ânimo puro e sincero, o perdão do passado a troco de leves penitências. Deste modo essas expressões de caridade, mansidão e doçura evangélicas, em que o edital abundava, convertiam-se numa cousa irrisória, visto que, devendo ser os inquisidores os juízes da sinceridade ou do fingimento das declarações dos réus, a garantia que se dava a estes vinha a ser o mero arbítrio dos seus inimigos. Sacrificadores e vítimas, todos entendiam de antemão que o tempo de graça era uma simples fórmula. A humanidade e a tolerância da Inquisição nesta conjuntura eram assaz problemáticas, não havendo ninguém tão insensato que fosse fazer contra si próprio uma confissão inútil.

A previsão mais natural; o que parecia inevitável, depois das tenazes resistências opostas ao estabelecimento do tribunal da fé e dos extremos esforços que ultimamente se haviam empregado para o criar, era que desde logo começasse uma dessas épocas de terror e de sangue, um desses acessos de frenética intolerância que tantas vezes ensombram duplicadamente as páginas sempre negras dos anais da Inquisição. Não cremos, porém, que sucedesse assim, e as instituições mais absurdas, os maiores criminosos têm direito de exigir a imparcialidade da história. Faltam-nos provas diretas da moderação do novo tribunal nos primeiros tempos da sua existência, e a índole e fins dele impeliam-no para a atrocidade: todavia, as maiores probabilidades persuadem que não se tentou dar à bula de 23 de maio uma interpretação demasiado desfavorável aos conversos, ou pelo menos, que o procedimento dos inquisidores não ultrapassou, como aconteceu depois tantas vezes, a meta da legalidade. Lendo-se as alegações feitas em diversos tempos pelos agentes dos cristãos-novos perante a cúria romana, não se encontram, relativamente ao período imediato à nomeação do bispo de Ceuta, senão acusações vagas, que mais vão ferir as provisões da bula de 23 de maio do que os seus executores(375). Entre os membros do conselho geral, instituído imediatamente por Fr. Diogo da Silva, achavam-se caracteres dignos daquele odioso cargo. Tal era, como adiante veremos, o de João de Mello, inquisidor especial de Évora. Mas havia outros que, sem devermos acreditar fossem modelos de tolerância, sabiam moderar os ímpetos do fanatismo pelo sentimento da justiça. Entre estes contava-se Antonio da Mota, que dous anos depois tinha de lutar contra os excessos do sucessor de Fr. Diogo, o infante D. Henrique(376), Pelo que, porém, respeita ao inquisidor-mor, existe o testemunho insuspeito dos próprios conversos, que, segundo já vimos, o reputavam homem honesto e moderado(377). Por outra parte, dada a curta inteligência de D. João III, o capricho ofendido devia ter entrado por grande parte no empenho que elrei mostrara em obter a Inquisição, e a vaidade satisfeita pelo triunfo abrandava-lhe naturalmente a irritação do fanatismo. Acresciam as recomendações do papa e de Santiquatro sobre a necessidade da moderação, e o considerar-se que um proceder demasiado violento daria força às representações dos agentes dos cristãos-novos em Roma contra uma instituição que não podiam tolerar, que era guerreada pelos poderosos protetores dos mesmos cristãos-novos, e que o papa só concedera constrangido pela necessidade de condescender com as repetidas instâncias de Carlos V.

Mas, além destas razões, que persuadem não terem sido os primeiros atos do novo tribunal assinalados por excessos de perseguição, havia outras que mais diretamente para isso deviam contribuir. Sem deixarem de prosseguir nas diligências em Roma, os hebreus portugueses procuravam minorar o perigo da sua situação, tentando modificar o despeito de D. João III. O edital do inquisidor-mor, enumerando os atos considerados como indício de judaísmo, tinha-os enchido de terror. Por intervenção de pessoa adita ao infante D. Luiz, os chefes da gente hebréia, Jorge Leão e Nuno Henriques, propuseram uma transação que o infante se encarregou de comunicar a elrei, favorecendo-a com o seu voto. Ponderavam eles o que é óbvio para o leitor; que os atos apontados como indício de heresia eram tais e tantos, que seria impossível evitar constantemente o praticar algum desses atos. Culpados e inocentes, todos corriam risco. Eles, porém, sob pena das multas que se lhes quisessem impor por cada contravenção, comprometiam-se a fazer com que nenhum cristão-novo fugisse do reino com família e cabedais, se elrei lhes obtivesse do papa a prorrogação por mais um ano do prazo concedido pela bula de 12 de outubro de 1535, dando-se-lhes assim o tempo necessário para se coibirem de futuro dos atos reputados suspeitos, ficando exemptos de denúncias, pelos que, talvez inocentemente, houvessem praticado depois da época do perdão. Os dous chefes declaravam que, sem isto, poucos deixariam de tentar a fuga. Posto que o infante não cresse que Jorge Leão e Nuno Henriques exercessem tanta influência como supunham, aconselhava, todavia, ao irmão que viesse a um acordo, ponderando-lhe a perda imensa que resultaria para o país da fuga de tantos vassalos ricos e industriosos, e a impossibilidade de obstar a essa fuga, por mais severas que fossem as leis e providências destinadas a impedi-la(378). Não moveram as largas ponderações do infante o ânimo d’elrei a convir na proposta; mas os conselhos daquele príncipe, que, pela superioridade da inteligência e pela energia da vontade, sabia muitas vezes fazer triunfar a sua opinião nos negócios mais graves(379), contribuíram, por certo, poderosamente para a moderação comparativa, da qual nos parece descobrir vestígios durante o tempo em que o bispo de Ceuta exerceu o cargo de inquisidor geral.

Entretanto, passados os primeiros dias de desalento, os agentes dos conversos em Roma preparavam-se para recorrer de novo aos meios que haviam oposto aos esforços dos fautores da Inquisição e à influência d’elrei, que, aliás, sem o auxílio de Carlos V não teria obtido triunfo tão decisivo. As circunstâncias tornavam a favorecê-los. Com a partida do imperador e dos dous ministros portugueses, a pressão imediata e violenta exercida sobre o ânimo do papa cessava, ficando apenas Santiquatro para proteger a causa da Inquisição. Entre as pessoas que se inclinavam a favor da raça hebréia tinha-se distinguido sempre o cardeal Ghinucci, e a afronta de haver sido expulso da junta, a cujo cargo estava o exame e solução daquele intrincado negócio, devia irritá-lo, tornando-o mais aferrado à sua opinião e mais ativo em fazê-la prevalecer. Apenas a bula de 23 de maio foi publicada em Portugal, e chegou a Roma a notícia dos editais mandados afixar em Évora, os agentes dos hebreus recorreram ao papa com enérgicas súplicas. Repetiam por diverso modo as considerações que tantas vezes tinham já oferecido contra o estabelecimento da Inquisição, e acrescentavam outras novas contra o teor da bula e contra as ilegalidades e absurdos dos editais. Observavam que, expedindo-se aquela a 23 de maio, se havia falseado, ao menos intencionalmente, o disposto na de 12 de outubro, em que se concedia aos suspeitos e aos réus de heresia um ano para obterem o perdão; que o cardeal Santiquatro, sendo agente de D. João III, havia substituído o cardeal Ghinucci na junta encarregada de resolver a questão, ficando assim ao mesmo tempo juiz e parte; que, contra direito divino e humano se expedira definitivamente e se mandara executar a bula da Inquisição, sem estar abrogada a lei que obstava à saída do reino das famílias hebréias; que se deixara ao arbítrio dos inquisidores-mores e à influência d’elrei a escolha e nomeação dos inquisidores subalternos e dos oficiais e familiares do tribunal, que, aliás, deviam ser aprovados pelos ordinários, e nomeados individualmente pelo pontífice. Assinalavam, além disso, como víciosas muitas provisões daquele diploma. Tais eram estabelecer o processo ordinário só por três anos, e suprimir os confiscos só por dez; estatuir como facultativo o dever restrito que os bispos tinham de intervirem nas causas da heresia; conceder que tivessem trinta anos os juízes da Inquisição quando o direito canônico lhes exigia quarenta; não providenciar para que os cárceres fossem acessíveis, servindo de custódia e não de castigo, e para que os inquisidores não procedessem às capturas sem regra alguma e a seu bel-prazer: deixar de exigir que fosse bem provado o carácter das testemunhas, e de regular os casos em que se dariam tratos, que, aliás, cumpria fossem moderados e em virtude de resoluções conformes do inquisidor e do ordinário, excetuando-se deles os que a lei civil excetuava, como doutores e cavaleiros; finalmente, não ampliar e precisar bem o sistema das apelações, o que, na opinião dos conversos, era o ponto capital daquele complicado negócio(380). Nalguns dos seus memoriais ao papa os conversos chegavam a ser eloqüentes: Se vossa «santidade — diziam eles — desprezando as preces e lágrimas da gente hebréia, o que não esperamos, recusar prover ao mal, como cumpre ao vigário de Cristo, protestamos ante Deus e a vossa santidade, e com brados e gemidos, que soarão longe, protestaremos à face do universo, que, não achando lugar onde nos recebam entre o rebanho cristão, perseguidos na vida, na honra, nos filhos, que são nosso sangue, e na própria salvação, tentaremos ainda abster-nos do judaísmo, até que, não cessando as tiranias, façamos aquilo em que, aliás, nenhum de nós pensaria, isto é, voltemos à religião de Moisés, renegando o cristianismo, que violentamente nos obrigaram a aceitar. Proclamando solenemente a força precisa de que fomos vítimas, pelo direito que esse fato nos dá, direito reconhecido por vossa santidade, pelo cardeal protetor e pelos próprios embaixadores de Portugal, abandonando a pátria buscaremos abrigo entre povos menos cruéis, seguros, em qualquer eventualidade, de que não será a nós que o Onipotente pedirá estreitas contas do nosso procedimento». Quanto aos editais, ponderavam-se os absurdos que neles se descobrem à simples leitura, e apontavam-se, além disso, outras disposições aí contidas inteiramente contrárias não só ao direito comum, mas ainda ao espírito e à própria letra da bula de 23 de maio(381).

Estas alegações eram fortificadas por outras diligências que se faziam, diligências mais ou menos ilegítimas, mas que os costumes devassos do tempo até certo ponto desculpavam. Tinha chegado a Roma o núncio Marco della Ruvere, cujas idéias morais o leitor já conhece e os cristãos-novos deviam por experiência própria conhecer ainda melhor. O seu despeito contra eles por questões de dinheiro estava modificado, e a razão disso fácil é de supor. O que é certo é que o bispo de Sinigaglia foi encarregado de peitar Ambrosio Ricalcati, secretário particular do papa, e, segundo parece, alguma outra pessoa influente, para inclinarem o ânimo de Paulo III a proteger de novo a causa daqueles que pouco antes entregara aos ódios dos seus perseguidores(382). Não se limitava o prelado italiano a dar estes passos ocultos. Ele próprio expunha ao pontífice com vivas cores (no que não cremos lhe fosse necessário exagerar ou mentir) o que havia inconveniente, injusto e anticristão nas últimas concessões feitas ao fanatismo por motivos políticos(383). Temia o pontífice indispor contra si os dous príncipes, mas incomodavam-no as instantes súplicas dos conversos, e faziam-no vacilar as sugestões dos que o rodeavam. Adotou um arbítrio: nomeou os cardeais Ghinucci e Jacobacio para examinarem se a bula de 23 de maio devia ser modificada. A nomeação de Ghinucci era sintoma evidente de que a política da cúria romana tomava novas direções, nem o era menos ser chamado às conferências o ex-núncio em Portugal. O resultado foi entenderem os dous cardeais que a bula tinha sido indevidamente concedida e convencerem disso Paulo III, que não duvidou de manifestar aos cardeais Simonetta e Pucci o seu arrependimento. Debalde Santiquatro forcejava por desvanecer os remorsos do pontífice, e conservar Simonetta nas idéias que lhe inculcara. Arrastado pelos argumentos de Ghinucci e Jacobacio, este confessou, com frases grosseiras mas sinceras, haver sido iludido, e escusando-se de entender mais naquele negócio, declarou que ao papa tocava remediar o mal que se tinha causado(384).

Nesta situação a corte pontifícia resolveu enviar novo núncio a Portugal. Foi para isso escolhido o protonotário Jerônimo Ricenati Capodiferro, cujo breve de nomeação se expediu a 24 de dezembro de 1536, mas que só veio a partir em fevereiro de 1537(385). Achava-se já então encarregado dos negócios de Portugal em Roma Pedro de Sousa de Távora; mas, ou fosse porque esperava ser substituído(386), ou porque nos faltem correspondências suas, ou, finalmente, porque os conversos soubessem torná-lo propício ou pelo menos indiferente, não consta que ele procurasse contrariar energicamente as novas tendências da cúria. Era o fim principal da missão de Jerônimo Ricenati satisfazer aos clamores dos cristãos-novos, embora a presença de um agente pontifício na corte de D. João III fosse também necessária para outros objetos assaz graves. Deram-se ao núncio cartas de crença redigidas por Ghinucci e Jacobacio, em que Paulo III recomendava a elrei o ouvisse acerca das matérias da Inquisição, e ao mesmo tempo escreveu-se aos infantes D. Luiz e cardeal D. Afonso para que, sobre aquele particular objeto, favorecessem as diligências do representante pontifício com a sua influência no ânimo do irmão(387). As instruções recebidas por Capodiferro na ocasião da partida versavam sobre diversos pontos que tinha de tratar, mas eram em parte relativas ao assunto do novo tribunal da fé. Vinha incumbido de asseverar a elrei que, apesar das queixas dos conversos, nada do que estava feito se mudaria, mas que, por descargo de consciência, o papa ordenava a ele núncio que enquanto residisse em Portugal, examinasse todos os processos da Inquisição, para verificar se a bula de 23 de março se cumpria à risca, e se as promessas de moderação particularmente feitas por elrei se realizavam. Supondo que não, devia proceder conforme as circunstâncias, e sobretudo obstar a que tivessem a menor ingerência naquele negócio os que haviam combatido a bula de perdão, porque não se devia presumir que estes tais procedessem por zelo da justiça e da religião, mas sim por ódio e vingança. Entre os excluídos indicavam-se expressamente o doutor João Monteiro e um certo mestre Afonso(388), cujo valimento com elrei o papa estranhava, por ser homem de vida escandalosa e turbulento, do que dera sobejas provas em Castela durante a revolta dos comuneros, e que já nas cortes de Évora de 1535, segundo as informações obtidas em Roma, o povo requerera a elrei afastasse de seu lado. Era agora o papa quem insistia nisto, pedindo-lhe que o mandasse recolher ao convento a fazer penitência. Acrescentava-se nas instruções a Capodiferro que se esforçasse em persuadir com bons termos elrei da necessidade de se mostrar cauteloso e severo na escolha dos juízes e oficiais da Inquisição, para que, em vez de se punirem os maus e de se deixarem em paz os bons, não sucedesse vir aquele tribunal a servir só para satisfação das malevolências e vinganças dos cristãos-velhos. Entretanto, mandava-se expressamente ao núncio que tomasse conhecimento de qualquer causa em que se praticasse injustiça, e quando isso não bastasse, a suspendesse e avocasse a si, para o que se lhe facultavam os devidos poderes(389). Dizia-se-lhe também que, se achasse resistência, desse disso conta para Roma, porque assim haveria razão suficiente para abolir a Inquisição. Ultimamente, parecia ao papa dever-se revogar a lei que proibia a saída do reino aos conversos, lei suscitada de novo em 1535, o que os tornava de pior condição, talvez, que os escravos. Recomendava, portanto ao seu núncio que a este respeito não poupasse instâncias com o rei; que lhe dissesse francamente ser opinião geral que tanto apego à Inquisição não era da parte dele zelo da fé, mas sim intenção de arruínar aqueles desgraçados; que lhe pintasse tal procedimento como capaz de os tornar piores que judeus, trazendo-lhes à lembrança o cativeiro do Egito, e lhe advertisse que, se procedia assim com o pretexto de obstar a que fossem fora do país professar o judaísmo, melhor era se tornassem judeus por maldade própria do que por tirania dele, a quem não era lícito violentar-lhes as vontades, que Deus fizera livres e que mais facilmente se dobrariam com a brandura e caridade do que com a violência, a qual em nenhum caso podia compadecer-se com a verdadeira justiça(390).

Tais eram as instruções dadas ao protonotário, instruções evidentemente redigidas com intuito hostil à Inquisição, e cujo conteúdo os cristãos-novos decerto não ignoravam. Em harmonia com a última parte delas, estes dirigiram a elrei uma extensa súplica, em que ponderavam tudo quanto havia tirânico e atroz na lei de 14 de junho de 1532, revalidada em 1535, e pediam a liberdade natural de que gozavam os outros vasalos da coroa, não só de saírem do reino, mas também de venderem seus bens de raiz e de levarem consigo os próprios cabedais(391). Porventura a súplica era feita sem a mínima esperança de deferimento; mas esse mesmo fato servia para combater a Inquisição, porque tornava mais monstruosa a instituição e dava maior plausibilidade à crença de que a mente d’elrei não era manter a pureza e integridade da fé nos próprios estados, mas sim verter o sangue de uma parte dos seus súditos mais opulentos, para se apoderar das suas riquezas. O estado da fazenda pública autorizava esta crença. Não era possível ocultar a miséria do erário; porque já por esse tempo, afora a enorme dívida interna representada pelos padrões de juro, os empréstimos levantados em Flandres eram tão avultados, em relação àquela época e aos recursos do país, que os juros anuais desses empréstimos subiam a cento e vinte mil cruzados. Vinham ensombrar este quadro e tornar ainda mais temeroso o futuro, não só as despesas inevitáveis das guerras de África, da Índia e da colonização e defesa do Brasil; mas também o gênio desperdiçado d’elrei, que, não contente de aumentar as dificuldades econômicas com a manutenção de frades e com obras dispendiosas de conventos e mosteiros, tais como as de Thomar e Belém, desbaratava a fazenda do Estado com mercês de dinheiro, verdadeiramente pródigas, feitas a cortesãos e afeiçoados(392). Conforme o que era de esperar, a súplica não teve resultado. Transmitida então por cópia para Roma e inserida num memorial dirigido a Paulo III, em que os conversos, queixando-se da dureza com que eram tratados pelo seu soberano em matéria de tão evidente justiça, pediam proteção ao pai comum dos fiéis, essa súplica indeferida abonava as diligências que se faziam para anular os efeitos da bula de 23 de maio(393).

Recebendo as instruções que vimos, Capodiferro recebera também um breve com poderes para proceder à suspensão absoluta ou limitada dos inquisidores, se eles recusassem consentir-lhe a inspeção dos seus atos e a modificação das suas decisões, em conformidade com o pensamento que movera o pontífice a enviá-lo a Portugal. O papa tinha, porém, encarregado vocalmente o núncio de pedir a D. João III, buscando para isso mover também o ânimo dos infantes D. Luiz e D. Afonso, que sobrestivesse no exercício da Inquisição, debatendo-se de novo na cúria a conveniência ou inconveniência de se conservar aquele tribunal, e mandando-se um embaixador especial para tratar o assunto, mas consentindo ao mesmo tempo que saíssem do reino quatro cristãos-novos para advogarem em Roma a causa destes. Se D. João III recusasse formalmente ou protraísse a resolução definitiva com dilações e argúcias, Jerônimo Ricenati devia proceder vigorosamente, intrometendo-se em todos os processos, e reduzindo à obediência pela compulsão canônica os ministros do Santo-Ofício que se mostrassem rebeldes. Se, em conseqüência disso, elrei viesse a um acordo, usaria de moderação e procuraria haver-se de modo que o monarca se desse por satisfeito, e ao mesmo tempo os cristãos-novos não tivessem queixa da sé apostólica, falando sempre a favor deles, cada vez que solicitassem a sua proteção(394).

Tal era a política da corte de Roma. O leitor não pode ter deixado de notar as fases por que passou até esta conjuntura o negócio da Inquisição. Concedido a princípio sem grande resistência e só com as restrições que convinham ao predomínio da cúria, o terrível tribunal fora suprimido à força das diligências e do ouro dos conversos, e concedido de novo, não porque as convicções ou as circunstâncias mudassem, mas sim porque o seu restabelecimento se casava com as conveniências políticas, e os cristãos-novos se mostravam remissos em cumprir os contratos pecuniários feitos com Sinigaglia. Embora o papa houvesse invocado para o suprimir as doutrinas imutáveis de caridade, tolerância e justiça promulgadas no evangelho: essas doutrinas eram condenadas pela voz imperiosa de Carlos V, e a cúria romana não hesitou em condená-las também. Agora as cousas mudavam. Os cristãos-novos entendiam melhor outra vez os seus verdadeiros interesses, e as doutrinas evangélicas readquiriam preponderância em Roma. Pôr na tela da discussão um assunto já debatido até a saciedade, se não trazia mais luz aos espíritos, trazia, sem dúvida, novos e avultados proventos aos árbitros e aos mantenedores do combate. Dir-se-ia que Roma, com o dedo no pulso da gente hebréia, lhe calculava os alentos para, sem deixar de se alimentar do seu sangue, não a reduzir a inútil cadáver. Nisto dava provas de maior prudência do que D. João III, o qual cego pelo fanatismo e aconselhado pela falta de recursos, sonhava, talvez, no avultado dos confiscos que de futuro lhe devia trazer o extermínio daquela raça infeliz, sem atender a que, transigindo com ela, mas conservando-lhe sempre diante dos olhos o fantasma da Inquisição, teria achado um sistema de espoliação perpétua. Das duas políticas a mais franca era a d’elrei; mas a de Roma era, sem contradição, a mais sagaz.

Fosse porque D. João III soubesse conciliar a benevolência do protonotário; fosse porque, como cremos, à índole do inquisidor-mor repugnassem as perseguições violentas, e os atos da Inquisição não dessem suficiente motivo aos encarecimentos dos cristãos-novos, é certo que, entrando em Portugal, o núncio não usou dos largos poderes que trazia. Enérgicas representações chegavam, porém, a Roma poucos dias depois da partida de Capodiferro, tanto contra o segundo edital do bispo de Ceuta, como acerca da nenhuma solução que tivera a súplica relativa à abrogação das leis de 14 de junho de 1532 e de 1535. O papa dirigiu então ao seu núncio novas e mais apertadas recomendações para que procedesse vigorosamente, recomendações cujo resultado parece ter sido nenhum(395). Não desanimavam todavia os conversos. Na falta de uma perseguição demasiado violenta, com que contavam, e da qual se não encontram vestígios positivos, aproveitavam uma circunstância, grave em si, mas que, dada a comparativa moderação do restaurado tribunal, perdia parte da sua importância. Como vimos, o papa tinha declarado pelo breve de 20 de julho de 1535 que ser procurador de qualquer réu de judaísmo ou subministrar socorros aos encarcerados por tal delito não significava cumplicidade, nem era motivo de se perseguirem os que assim obrassem, nem finalmente autorizava elrei a pôr-lhes obstáculo à livre saída do reino(396). Apesar, porém, das determinantes resoluções do pontífice, tinha-se continuado a insistir na praxe contrária(397). Era sobre isto que os cristãos-novos alevantavam vivos clamores. Entendeu a cúria romana que devia manifestar o espírito de hostilidade que, ao menos na aparência, a animava contra a Inquisição, provendo de novo acerca de um objeto em que, aliás, materialmente ela interessava; porque se, à vista da praxe estabelecida em Portugal, se proibisse a saída do reino aos que iam tratar em Roma das matérias que tocavam ao tribunal da fé, ou se reputassem fautores de heresia os que para ali enviavam grossas somas, com o intuito de sustentar a luta, esse fato redundaria em detrimento da mesma cúria. Assim, expediu-se no último de agosto um breve, em que, repetindo-se a doutrina do de 20 de julho de 1535, se dava às disposições dele a interpretação que se devia reputar genuína, contrária à opinião daqueles que — dizia o papa — querendo ser mais atilados do que cumpria, afirmavam que ess’outro breve se referia unicamente aos advogados e procuradores em juízo dos que se achavam encarcerados, e não aos que de outro qualquer modo ou em outra qualquer parte, advogavam e protegiam, sobre questões de Inquisição, os cristãos-novos, tanto coletiva como individualmente. Declarava por isso o pontífice que o breve de 20 de julho era extensivo a todos os que trabalhassem de qualquer modo em vindicar a inocência, não só dos réus presos, mas também dos simplesmente acusados ou difamados, quer estes residissem dentro, quer fora do país, quer fossem seus parentes e amigos, quer não; que era lícito a todos proteger judicial ou extra-judicialmente os conversos, patrocinando-os, aconselhando-os, fazendo solicitações e dispendendo dinheiro a favor deles em Portugal, em Roma ou em outra parte, contanto que o indivíduo que assim procedesse não estivesse acusado ou publicamente difamado do mesmo crime. O pontífice fulminava as penas de suspensão e excomunhão contra aqueles prelados, inquisidores e magistrados que, pelo simples fato da proteção dada aos réus de judaísmo, dentro ou fora do reino, perseguissem alguém canônica ou civilmente, e recomendava a elrei interviesse com a sua autoridade para se cumprirem à risca as provisões deste breve(398).

Apesar de todas estas manifestações, o estado das cousas em Portugal relativamente à Inquisição não parece ter mudado. Além de nos faltarem vestígios de que a perseguição houvesse tomado o incremento que os vagos queixumes dos cristãos-novos poderiam fazer acreditar aos espíritos prevenidos, as providências do papa, enérgicas na aparência, eram, talvez, modificadas pelas ordens secretas que se davam ao núncio. A política habitual da corte pontifícia, e a gravidade de outros assuntos, que então se tratavam entre os dous governos e que se prendiam com os negócios gerais da Europa, obrigavam o papa a contemporizar com D. João III, visto que já nas instruções dadas a Capodiferro se havia recomendado a este que atendesse constantemente à justiça dos conversos e a contentá-los nas suas súplicas, mas que não atendesse com menor cuidado a propiciar o ânimo d’elrei(399). Desde os começos do seu pontificado, Paulo III pensara em fazer uma liga com Carlos V e com os venezianos contra a Turquia, e trabalhava ativamente em reduzir estes últimos a esse acordo. As guerras do imperador com Francisco I de França traziam, porém, embaraços insuperáveis à realização da empresa. Esforçava-se o papa em pôr termo a tais guerras, e uma trégua celebrada entre os dous príncipes nos fins de 1537 animava-o a prosseguir com redobrada eficácia nas suas diligências. Não foram estas baldadas. Assentou-se em que houvesse uma conferência dos dous soberanos na cidade de Niza no Piemonte, para se tratar da paz, conferência de que resultou a prorrogação das tréguas por dez anos. Com a suspensão das armas tinha-se entretanto celebrado um convênio entre o papa, o imperador e a república de Veneza para se enviar contra os turcos uma poderosa armada, e nesta um exército de perto de sessenta mil homens. Esses armamentos extraordinários geravam em muitos espíritos, e talvez no do próprio Paulo III, as esperanças de se estenderem de novo até Constantinopla os limites da Europa cristã. Todas elas, porém, vieram depois a desvanecer-se pela traição ou pela covardia de André Doria, almirante da frota, que fugiu, depois de haver recusado atacar, numa ocasião altamente vantajosa, o almirante turco Barbaroxa, deixando-o depois destruir ou tomar várias galés e navios que não tinham podido acompanhar o almirante cristão na sua inexplicável fuga(400)

Tais eram os acontecimentos cujas fases levavam o papa a recomendar ao núncio que procedesse com destreza, para favorecer os conversos sem alienar absolutamente o ânimo de D. João III. Dependia ele, até certo ponto, do rei de Portugal na realização dos seus dous principais desígnios, o congraçar o imperador com o rei de França e o coligir os recursos necessários à expedição contra os muçulmanos, para a qual devia contribuir com uma parte dos materiais de guerra, gente e navios. Com este último intuito, resolvera impor duas décimas nos rendimentos do clero português, e esperava remover as resistências àquela contribuição extraordinária (resistências que, aliás, eram infalíveis) cedendo parte dela a benefício do poder civil. Para obter, por outro lado, que D. João III interviesse na reconciliação de Carlos V com Francisco I, tinha enviado credenciais e instruções a Capodiferro, ordenando-lhe propusesse o assunto a elrei, a quem, afora isso, escrevera(401). Não pertencendo, porém, à matéria deste livro essas negociações, não as seguiremos no seu progresso e resultados, senão quando servirem, como aqui, para ilustrar os sucessos que pertencem à nossa narrativa. Baste saber-se quão urgentes eram os motivos que obrigavam o papa a contemporizar com a corte de Lisboa, e quanto é provável que as instruções particulares ao núncio nem sempre fossem acordes com as demonstrações externas favoráveis aos conversos.

Enquanto estas cousas se passavam, disputava-se na junta criada em Roma sobre a conveniência de alterar ou não a bula de 1536, pela qual se restabelecera a Inquisição. O ano de 1538 passou-se nestas controvérsias e nas intrigas obscuras que deviam acompanhá-las. A falta que se encontra por esta época de documentos relativos ao assunto está mostrando que nem as violências dos inquisidores se tornavam mais exageradas do que o haviam sido a princípio, nem os hebreus portugueses (o que era conseqüência desse mesmo fato) solicitavam com excessivo fervor a resolução definitiva da junta. Havia, porém, afora este, outro motivo para aquela temporária bonança; triste motivo do qual haviam de resultar maiores males. Era a corrupção do núncio; corrupção que as instruções em que se lhe ordenava favorecesse os conversos, mantendo para com elrei um procedimento mais dúplice do que prudente, de certo modo facilitavam. Sem embaraçar a ação dos inquisidores contra qualquer réu, Capodiferro, autorizado pelo último breve e pelas instruções que com ele recebera para rever os processos, contentava-se com absolver os que a Inquisição condenava. Não eram, porém, a tolerância cristã e os impulsos de humanidade que o moviam: era a cobiça. Abraçara as tradições do seu antecessor, Marco della Ruvere, e entendera que, assim como o ouro assegurava a este a impunidade em Roma, pelos mesmos meios podia ele sem perigo locupletar-se. Aplicando aquele sistema a todas as dependências eclesiásticas, imagine-se até que ponto Capodiferro seria benigno para com os judaizantes, que, pouco a pouco, animados pelo favor do núncio, iam perdendo o temor que a princípio lhes incutira o restabelecimento do tribunal da fé, e se tornavam menos cautelosos em disfarçar as suas ocultas crenças. Se acreditarmos as queixas que o próprio D. João III dirigiu, tempos depois, para Roma, o castigo dos crimes religiosos e da corrupção do clero tinha-se tornado impossível com a residência de Jerônimo Ricenati em Portugal. Os empenhos e o dinheiro faziam tudo. Choviam os breves, os perdões, as dispensas. Os preços variavam; porque a soma era graduada, talvez, na razão inversa da influência da pessoa que solicitava o despacho. Capodiferro sabia ser serviçal quando eram poderosos os protetores; mas a veniaga espiritual devia subir de quilate quando a valia do solicitador era pequena(402). O núncio não fazia, porém, senão exagerar o espírito interesseiro da corte de Roma. Lá, também, a benevolência das pessoas influentes não se obtinha de graça, e, no sentir de alguns, nem o próprio Paulo III era exempto do vício comum(403). Dissimulava elrei com Capodiferro, porque a complicação dos negócios pendentes com a cúria romana a isso obrigava. Resolvido a substituir o seu embaixador Pedro de Sousa de Távora por D. Pedro Mascarenhas, que de passagem tinha a tratar matérias de ponderação na corte de Castela e na de França, ordenara em dezembro de 1537(404) a partida do novo agente. Era um dos principais fins da missão do D. Pedro evitar a imposição das duas décimas nas rendas eclesiásticas do reino; porque, apesar do seu zelo pelas cousas da religião, o governo português combatia sempre com energia as extorsões da cúria. Chegado a Roma depois dos meados de 1538, por causa dos negócios que o haviam retido na corte de França, a questão das duas décimas e da escusa de irem ao concílio (de que então se tratava com calor) senão todos os prelados portugueses, ao menos aqueles que elrei entendesse, deviam absorver, d’envolta com outros negócios graves, as atenções do embaixador(405). Entretanto não se descuidara de examinar o estado da contenda e quais eram as vantagens que os cristãos-novos haviam obtido na junta encarregada de pesar os agravos de que eles se queixavam. As cousas tinham chegado a maus termos. A preponderância dos adversários da Inquisição nos conselhos do pontífice, preponderância que já se manifestara um ano antes nas providências expedidas em 1537, não havia diminuído. Ghinucci, um dos cardeais a quem o papa confiava o exame dos negócios mais graves, restituído à junta, fazia aí uma guerra implacável às pretensões da corte de Portugal, de acordo com Duarte da Paz e com os outros agentes dos cristãos-novos. Fora tal o ardor que o cardeal mostrara na contenda, que dele, por assim dizer, estava tudo pendente. As primeiras diligências do novo embaixador dirigiram-se todas a tirar-lhe o negócio das mãos, e com tal arte ou energia se houve, que alcançou fazê-lo substituir pelo cardeal Simonetta, aquele mesmo que, tendo sido favorável à expedição da bula de 25 de maio de 1536, depois se arrependera eximindo-se de entender nos males dela provindos. Posto que gozasse da reputação de homem honesto, Simonetta era pobre, e ao mesmo tempo tão influente como Ghinucci nas matérias de maior monta. Fazendo-lhe dar aquele encargo, D. Pedro Mascarenhas esperava tirar proveito dessas duas circunstâncias para os fins que se propunha. Tal era o estado das cousas nos princípios de 1539, quando fatos inopinados vieram exacerbar de novo a luta, por tanto tempo dormente(406).

Era em fevereiro desse ano. A corte achava-se em Lisboa, e o bispo titular de Ceuta na sua diocese de Olivença. Segundo parece, os trabalhos do tribunal da fé, cuja atividade estava de algum modo anulada pela pressão que o núncio exercia sobre ele, não eram assaz importantes para exigirem a presença do inquisidor-mor em Évora ou na capital. Certa manhã, porém, uma proclamação singular apareceu afixada nas portas da catedral e das outras igrejas de Lisboa. Afirmava-se nela que o cristianismo era um embuste, e anunciava-se a vinda do verdadeiro Messias. A linguagem desse papel sedicioso, sem nome de autor e sem assinatura, revelava ou um excesso violento de fanatismo judaico, ou a intenção de irritar os ânimos contra os conversos. Ao lerem-se aquelas blasfêmias, a agitação foi geral. Enquanto as justiças eclesiásticas e civis e os agentes da Inquisição diligenciavam por todos os modos descobrir o réu ou réus daquele atentado, elrei mandava prometer dez mil cruzados de prêmio a quem os denunciasse. Com estas providências sossegou o povo, entre o qual vogavam já as idéias sanguinárias, cuja explosão produzira, havia trinta e três anos, tão horríveis cenas. Grande número de cristãos-novos procurava salvar vidas e fazendas fugindo escondidamente do reino para África(407). Ao mesmo tempo, o bispo de Ceuta recebia ordem para delegar os seus poderes no bispo do Porto, em cuja severidade elrei, segundo parece, confiava mais do que na de Fr. Diogo da Silva. Sem que, porém, recusasse obedecer, o inquisidor-mor ponderou ao monarca a possibilidade de ser aquele atentado obra dos inimigos dos conversos, e a prudência com que cumpria proceder em tal caso(408). Concedendo os poderes que se lhe pediam, o bispo de Ceuta ousou fazê-lo com as limitações que supunha convenientes, embora se lhe tivesse pedido uma delegação mais ampla. Conduzidas com destreza as indagações que se faziam, chegou-se finalmente a descobrir o culpado. Era um cristão-novo, que ninguém até aí reputara como tal. Ao menos assim se disse. Levado aos cárceres da Inquisição, confessou ser autor daqueles escritos, de cuja doutrina estava persuadido, protestando constantemente que só ele cometera o crime. Procuraram convencê-lo do erro; mas contra a sua pertinácia todos os argumentos e persuações saíram baldados. Julgado na instância inferior, recusou apelar para o conselho geral da Inquisição. Era um fanático ou um mártir. Relaxado, porém, às justiças seculares, e posto a tormento (o que a Inquisição não fizera) para se descobrir se tinha efetivamente cúmplices, o ânimo esmoreceu-lhe. Negando até o último suspiro que alguém se houvesse associado com ele para a perpetração do delito, reconheceu que o havia alucinado uma vã crença. Assim como esperava o Messias, assim contava também com a insensibilidade no meio dos mais atrozes tratos, e a dor desenganava-o da vaidade das suas ilusões. A luz, porém, que lhe iluminara enfim o espírito vinha tarde para o salvar da vindita dos homens. Pereceu no meio das chamas, e os que o acompanharam no derradeiro transe afirmaram que morrera cristão e arrependido(409).

As circunstâncias deste sucesso são dignas de reparo, porque vêm confirmar todos os anteriores indícios da moderação comparativa com que o tribunal da fé procedia nos primeiros tempos do seu restabelecimento, e de que essa moderação era devida, ao menos em grande parte, ao carácter do inquisidor-mor. As suas suspeitas sobre a possibilidade de haver naquelas manifestações blasfemas uma astúcia diabólica, para excitar perseguições contra a gente hebréia, não só provam que Fr. Diogo da Silva não era um fanático, mas indicam também que, supremo juiz do tribunal da fé, conhecia por experiência as calúnias e os artifícios que se inventavam para fazer condenar os cristãos-novos. Vemos, também, que o miserável judeu, réu de blasfêmias públicas contra o cristianismo e vítima da própria cegueira, só depois de entregue à autoridade secular recebeu tratos para delatar supostos cúmplices, sinal evidente de que, ou fosse devido à influência do núncio ou à do inquisidor-mor, ou, o que é mais provável, à de ambos, os atos da Inquisição naquela conjuntura não eram assinalados por demasiada crueldade. Recusando, enfim, conceder ao bispo do Porto(410) tão amplos poderes como elrei pretendia, Fr. Diogo da Silva dava ainda outro documento da sua tolerância, mostrando temer-se desse homem, que subseqüentemente veremos figurar como um dos campeões mais ardentes dos rigores inquisitoriais.

Mas um inquisidor-mor tolerante e ilustrado, um núncio que, fosse por que motivos fosse, pusesse obstáculos à condenação definitiva dos implicados no crime de judaísmo; um tribunal, enfim, cujas abóbadas não ressoassem de contínuo com os gritos dos atormentados, e onde a polé e o potro jazessem no pó e esquecidos, eram cousas monstruosas aos olhos dos fanáticos, sobretudo depois do ruidoso acontecimento que escandalizara e irritara o povo da capital. Duas providências urgiam: obter do papa maior liberdade para o arbítrio dos inquisidores, restringindo a ação do legado apostólico, e substituir um inquisidor-mor pouco enérgico por outro, cujo espírito não fosse acessível à piedade, nem demasiado escrupuloso no que tocava aos preceitos da caridade e tolerância evangélicas. Para se tomar a primeira, recomendava-se a D. Pedro Mascarenhas que trabalhasse por alcançar as necessárias exempções(411). Realizar a segunda era mais fácil. Como a bula de 23 de maio de 1536 autorizava elrei para escolher um quarto inquisidor geral, além dos três bispos de Ceuta, Lamego e Coimbra, e como só o primeiro tinha exercido esse cargo, nada mais havia do que pôr à frente da Inquisição, em lugar dele, um indivíduo de maior confiança e de mais solta consciência. Foi o que se fez. Alegando a sua provecta idade e pouca saúde, e a necessidade de administrar a pequena diocese de Olivença, Fr. Diogo da Silva pediu ser substituído por pessoa mais habilitada do que ele para exercer o mister de inquisidor geral. Esta súplica era evidentemente resultado de uma insinuação régia(412); porque o bispo de Ceuta não tardou a ser eleito arcebispo de Braga, dignidade mais laboriosa que essa de que se exonerava. Tinha-a então o infante D. Henrique, irmão d’elrei, mancebo de vinte e sete anos, que na idade de quatorze fora promovido a prior de Santa Cruz de Coimbra, e na de vinte e dous a metropolita bracharense; tão bem sabia a hipocrisia daquele tempo conciliar as demonstrações do zelo religioso com a quebra de todas as leis da decência e da disciplina eclesiástica. Foi escolhido o infante para substituir o bispo de Ceuta e reanimar a Inquisição de um letargo, que não condizia nem com a sua índole nem com os fins para que fora criada(413). Não podendo exercer ele próprio o ofício de supremo inquisidor, D. João III mostrava, ao menos, bons desejos, nomeando para o cargo um membro da sua família(414).

O despeito d’elrei pelas blasfêmias afixadas nas portas das igrejas de Lisboa tinha sido legítimo, e justa a punição do culpado, posto que repugnem à humanidade os tormentos e o atroz suplício que lhe foram aplicados. Mas o substituir a um ancião respeitável um mancebo, ainda na idade das paixões violentas, no tremendo cargo de inquisidor-mor era condenável manifestação de fanatismo. A escolha de D. Henrique ofendia a máxima do direito canônico que requeria para o exercício de função de tal ordem a idade de quarenta anos, e sofismava as intenções do pontífice, que, nomeando inquisidores gerais, na bula de 23 de maio, três prelados dos mais notáveis de Portugal, e deixando a elrei a designação do quarto, não quisera por certo que, sendo inquisidor-mor só um deles, tivesse a preferência sobre todos três o de nomeação régia, fato tanto mais escandaloso, quanto era sabido que se designara em primeiro lugar o bispo de Ceuta para dar garantias de imparcialidade aos cristãos-novos, e que o quase imberbe arcebispo de Braga era contado entre as pessoas mais adversas a eles(415).

Nomeado inquisidor-mor o infante, expediram-se ordens a D. Pedro Mascarenhas para que assim o comunicasse ao pontífice, dando as razões, ou antes os pretextos, que para isso houvera. Longe de deverem os cristãos-novos recear uma recrudescência de perseguição, no entender da corte de Lisboa, o moço arcebispo, ao mesmo tempo que ia restabelecer a conveniente severidade para com os maus, era para os bons, pelas suas virtudes e elevada jerarquia, fiador de paz e segurança. Por esta nomeação, porém, tornava-se mais urgente a necessidade de soltar os braços à Inquisição e, sobretudo, de tirar os poderes de revisão final concedidos ao núncio, visto que seria absurdo haver em Portugal quem pudesse alterar as decisões de um inquisidor-mor irmão do próprio monarca e que se considerava como primaz das Espanhas. Para fundamentar melhor as suas pretensões, elrei transmitia ao embaixador a relação circunstanciada dos atentados contra a fé que os cristãos-novos estavam praticando para que a apresentasse ao papa. Mas, ou porque esses fatos fossem de pura invenção, ou porque, como elrei afirmava, os conversos tivessem sido traídos e denunciados por alguns de seus próprios irmãos, cujas traições não convinha se houvessem de suspeitar ou descobrir, é certo que se recomendava a D. Pedro Mascarenhas pedisse ao pontífice inviolável segredo acerca daquelas revelações, e ordenava-se-lhe que rasgasse as respectivas notas, logo que lh’as tivesse comunicado(416).

As dificuldades com que o agente português em Roma tinha de lutar eram grandes, assim porque a cúria mostrava claras tendências para favorecer os cristãos-novos, como por outras circunstâncias. Irritavam o papa as resistências e os artifícios que empregava a corte de Portugal para evitar a extorsão das duas décimas nas rendas eclesiásticas, ou para, ao menos, ter quinhão na presa(417). Por outro lado, nomeando-se o infante inquisidor-mor, tinha-se previsto e calculado uma colisão com o núncio, que desse fundamento plausível a expulsar este(418), e Capodiferro não podia ignorá-lo nem deixar de aumentar a irritação da sua corte prevenindo-a contra D. Henrique. Entretanto, posto que homem de poucas letras, D. Pedro Mascarenhas era uma inteligência superior, que sabia apreciar as cousas e os homens, e sair com vantagem das lutas em que se empenhava. De índole, segundo parece, reta e desinteressada, tinha a qualidade de alguns estadistas, que, colocados em lugares eminentes, no meio de uma sociedade e de uma época pervertidas, se aproveitam da corrupção para realizarem os seus intuitos, sem se corromperem a si próprios; estadistas, cuja triste e suprema crença deve ser um profundo desprezo do gênero humano. Residira já em Roma tempo suficiente para avaliar bem a cúria pontifícia, e a idéia que fazia dela era extremamente desfavorável. Na sua opinião, para bem negociar com Paulo III não havia outro meio senão fazer-lhe crer que ganhava no negócio(419), e por isso tinha aconselhado a elrei, na questão das décimas, que não pusesse obstáculo a uma extorsão que só recaía sobre o clero, contanto que parte da presa revertesse em benefício do fisco, arbítrio que fora aceito, embora a transação não chegasse a concluir-se, como depois veremos, com todas as condições que o embaixador desejava(420). Assim entendera também desde logo que seria impossível tirar-se ao núncio o direito de revista nos processos da Inquisição, por ser prerrogativa grandemente rendosa, e de que o papa se não despojaria, senão por mais avultados lucros(421). A sua regra para prognosticar a solução dos negócios em Roma era saber quem dava mais. Dotado do talento de fisionomista, tantas vezes útil na vida aos que o possuem, lia no rosto do papa qualidades de espírito que lhe repugnavam profundamente; mas nessa mesma repugnância tinha incentivo para sempre estar prevenido em tudo quanto com ele tratava(422). Convencido de que onde reina a venalidade só a corrupção pode dar o triunfo, obtinha da sua corte os meios de corromper, e empregava esses meios como quaisquer outros. Tentava tudo e a todos. Nem a própria reputação de Simonetta, cuja probidade severa parecia excluir quaisquer esperanças, o fez recuar. Acaso não cria nela. A influência deste prelado e a de Ghinucci eram as que mais temia. Importava-lhe comprá-los. Recebidas de Lisboa as somas necessárias, tentou Simonetta por intervenção de Santiquatro. Repelida a oferta pelo pobre velho, esperou confiado que alguma precisão instante lhe trouxesse o arrependimento da honestidade. Não tardou este. Num apuro pecuniário, Simonetta lamentou-se de ter perdido a oferta espontânea do embaixador; mas a oferta não tardou a ser renovada por diverso canal, e foi aceita. Há o que quer que seja infernal nas irônicas desculpas com que D. Pedro Mascarenhas narra ao seu príncipe a prostituição daquelas cãs. «Entre os cardeais — diz ele — Simonetta era tido pelo mais severo na distribuição da justiça. Como tal o colocou o papa no lugar que ocupa: como tal o consulta e a Ghinucci em todos os negócios mais ou menos graves. Estes foram os transes que passei com ele. O que fez não se toma em Roma por maldade, nem se estranha, porque é o costume da terra. Não me espanta, por isso, o valimento que teve aqui Duarte da Paz, tendo-lhes dado a comer tantos cruzados e portugueses(423)». Depois de referir a triste vitória que obtivera, anunciava outras mais ou menos fáceis. «Trabalho — prosseguia ele — por amansar Ghinucci, não para me servir, mas para não me empecer. Está mais pacífico, e promessas não faltam. Se lhe pudesse fazer devorar alguns cruzados, faria bom serviço a vossa alteza. Não desespero disso, porque sei os usos de Roma. Comecei a encetar os dous mil cruzados que vossa alteza me mandou dar para tais obras, e não creio que me fundisse mal a despesa, nem que dane no porvir. Fie-se vossa alteza da minha má consciência, crendo que sou menos escasso da própria fazenda do que da fazenda real(424)». Com um agente destes, o negócio da Inquisição teria naquela conjuntura ganhado muito, se, como dissemos, a questão das duas décimas não absorvesse quase inteiramente as atenções de D. Pedro Mascarenhas, e não lhe repugnasse conforme se depreende da sua correspondência, tratar de um assunto enredado de intermináveis debates jurídicos, que a sua alta inteligência devia condenar, embora não ousasse manifestá-lo.

O principal, ou, pelo menos, um dos principais fins com que o infante se colocara à frente do tribunal da fé tinha sido, conforme vimos, dar azo a colisões que tornassem necessária a remoção de Capodiferro. Apenas revestido da dignidade de inquisidor-mor, D. Henrique nomeou novos membros para o conselho da Inquisição. Foram estes Ruy Gomes Pinheiro, depois bispo de Angra, e o augustiniano Fr. João Soares, também posteriormente elevado à cadeira episcopal de Coimbra(425). A escolha de Fr, João Soares era a luva que desde logo o infante arremessava ao núncio, ou, para melhor dizer, à corte de Roma, onde aquele frade era assaz mal visto. Nas instruções dadas por ordem de Paulo III a um dos sucessores de Jerônimo Recinati, a índole, as opiniões e os costumes do novo membro do conselho geral são descritos de modo não demasiadamente lisonjeiro. «O confessor delrei, Fr. João Soares — diz-se aí — é um frade de poucas letras, mas de grande audácia e em extremo ambicioso. As suas opiniões são péssimas, e ele público inimigo da sé apostólica, do que não duvida gabar-se, como refinado herege que é. Todos o conhecem por tal, menos o rei, por cujo temor, e porque, com pretexto da confissão, obtém dele a solução de muitos negócios, todos o acatam. É homem perigoso e de vida dissoluta. O paço serve-lhe de convento(426)». O doutor João de Mello, um dos primeiros membros do conselho nomeados pelo bispo de Ceuta, e que mais uma vez substituira o inquisidor geral nos seus impedimentos, achava-se então delegado da Inquisição em Lisboa. Criada desde logo pelo infante uma Inquisição permanente na capital, João de Mello, que se distinguia pelo seu espírito intolerante, e que dele continuou a dar provas, foi colocado à frente do novo tribunal. Esta nomeação feria mais particularmente Capodiferro, porque naquela conjuntura um sucesso, talvez de antemão preparado com esse intuito, tinha feito romper as hostilidades entre o inquisidor e o núncio.

Ayres Vaz era um médico do Paço, cristão-novo(427), cujo irmão Salvador Vaz entrara como pajem no serviço de Jerônimo Ricenati logo depois da chegada deste a Lisboa. Ganhara o núncio extrema afeição ao pajem, e tanto o pai como o irmão do moço Salvador se haviam tornado Íntimos e comensais de Capodiferro. Não limitava Ayres Vaz os seus estudos à medicina: tinha-se dedicado também à astronomia, ciência cujos cultores naquela época facilmente caíam nos desvarios da astrologia judiciária, e Ayres Vaz deixou-se embuir da mania de profeta. Em geral, na Europa a astrologia supunha-se uma cousa séria. Em Roma dominava mais que em parte nenhuma esta superstição, e, segundo a frase expressiva de um escritor contemporâneo, raro era o cardeal que para comprar uma carga de lenha não consultava astrólogos e feiticeiros. O próprio papa tinha fé implícita na influência dos astros e nas predições astrológicas(428). Ayres Vaz começara por fazer predições à rainha D. Catharina: depois, subindo mais alto, fizera predições políticas a elrei. Entre outras cousas, por ocasião de um eclipse profetizara a morte de um príncipe, e a profecia tinha-se realizado no mais velho dos dois filhos que restavam a D. João III de todos os que até aí tivera(429). Oferecendo ao monarca novos vaticínios, Ayres Vaz, provavelmente mal visto já pela triste predição da morte do príncipe, anunciava prósperos sucessos, mas confessava que as ilações tiradas do aspecto dos astros não tinham absoluta certeza; porque Deus, os arcanos de cuja mente não é dado ao homem perscrutar, muitas vezes anulava as influências siderais. Com este corretivo os vaticínios astrológicos podiam ser e eram loucura, porém não impiedade. Entretanto, uma cópia do papel, dirigido pelo pobre médico a elrei sobre tais assuntos, foi cair nas mãos do inquisidor João de Mello. Chamado por este ao seu tribunal, Ayres Vaz confessou ser autor daquele escrito, posto que aí houvessem introduzido alguns períodos que não eram seus. Assinou-lhe o inquisidor um dia para vir defender-se do crime de heresia que cometera. Na conjuntura aprazada apresentou-se Ayres Vaz no tribunal, rodeado de livros, pronto a mostrar os fundamentos científicos dos seus vaticínios e a ortodoxia das suas opiniões. Era difícil o primeiro empenho, mas fácil o segundo, visto que ele submetera tudo aos decretos inescrutáveis da Providência, e para se defender podia invocar o exemplo do chefe supremo da igreja. Subitamente, porém, um notário apostólico entrou no aposento e, interrompendo a solenidade do ato, entregou ao inquisidor um papel. Era uma intimação pela qual o núncio avocava a si o julgamento daquela causa e ordenava que o inquisidor fosse assistir a ele, levando consigo os teólogos que deviam disputar com Ayres Vaz, entre os quais figurava Fr. João Soares. Tinha o astrólogo preparado este desfecho, mas o notário antecipara a hora. O físico pretendia primeiramente dar uma severa lição aos teólogos. Teve, porém, de retirar-se, porque o inquisidor, cujas esperanças eram outras, fingiu obedecer sem resistência aos preceitos do legado apostólico(430).

Passavam-se estas cousas nos meados de junho, quando a nomeação do infante para substituir o bispo de Ceuta estava já resolvida. Contava, por isso, João Mello com o desforço. Foi o primeiro passo para ele colocarem-no à frente da Inquisição de Lisboa; mas o seu orgulho exigia-o mais completo. Aos autos do interrompido processo ajuntaram-se os votos dos teólogos mestre Olmedo, Fr. João Soares, Fr. Jerônimo de Padilha, Fr. Luiz de Montoia e Fr. Francisco de Vilafranca. Eram frades mais ou menos influentes na corte. O escrito fora unanimemente julgado por eles herético. Revestido o infante da nova magistratura, um dos seus primeiros atos foi, portanto, ordenar a prisão de Ayres Vaz, que os oficiais do cardeal D. Afonso, arcebispo de Lisboa, arrastaram aos cárceres do Aljube. A luta estava encetada. O núncio, que debalde tentara obstar à prisão, mandou intimar o infante D. Henrique para que lhe entregasse o processo, e o cardeal D. Afonso para que soltasse o preso; mas o promotor da Inquisição deu por suspeito o núncio, que recusou a suspeição. Posto que esse tratasse o infante de pseudo-inquisidor, o infante apelou para a santa sé, apelação que Capodiferro igualmente rejeitou. Os textos de direito canônico e dos praxistas voavam de parte a parte(431). Era um drama em que o excesso do ridículo só se temperava pela terrível perspectiva de uma fogueira para o pobre astrólogo, se, na refrega entre o agente do papa e os infantes, estes, que tinham a força material, não cedessem às ameaças dos interditos, cousa pouco provável, visto que o intuito da nomeação de D. Henrique fora causar um escândalo que desse em resultado a saída de Ricenati.

E o escândalo aproveitou-se. Elrei, que o fanatismo tornava instrumento cego destas vergonhosas contendas, escreveu uma carta ao seu ministro em Roma para que exigisse do papa o desagravo que consistia na revocação do núncio. A narrativa do sucesso, como se pode supor, foi exagerada naquela carta, e os fatos carregados com sombrias cores. Queixava-se D. João III, sobretudo, de haver Capodiferro procedido naquele caso sem o prevenir e de ter inibido oficialmente o infante de usar do seu ofício, negando a legitimidade de uma nomeação feita por ele rei. Ordenava a D. Pedro que dissesse ao papa, como advertência própria, que, se não retirasse o núncio, este seria expulso, até para evitar alguma comoção popular; e rompendo, enfim, um silêncio que D. João III dizia ter guardado por excesso de delicadeza para com o pontífice, acusava o delegado apostólico de todo o gênero de corrupções e de ser pelo seu procedimento imoral em Lisboa o opróbrio da corte de Roma(432).

Tal era o estado a que as cousas tinham chegado; tais as tristes conseqüências dos erros cometidos por um príncipe ignorante e fanático, dominado por frades e por hipócritas, e que tomara por principal mister de rei perseguir a porção mais rica e mais industriosa dos próprios súditos, embora tragando afrontas, arruínando o país, abrindo o campo a todo o gênero de imoralidades, caluniando o cristianismo e desobedecendo aos preceitos da tolerância e da caridade evangélicas. Se Capodiferro, movido por paixões cegas, desacatara dous prelados e príncipes, não tinha ele, por paixões igualmente ignóbeis, envilecido de antemão o episcopado solicitando a Inquisição, tribunal que, sendo uma verdadeira delegação pontifícia, cerceava numa das suas funções mais importantes a autoridade dos bispos? A fonte d’onde dimanava o poder do inquisidor geral era a mesma d’onde derivava a do núncio. Se a bula de 23 de maio de 1536 atribuía ao primeiro a magistratura superior no julgamento dos que deslizavam da fé, o breve de 9 de janeiro de 1537 e as instruções oficiais que se lhe haviam dado por ocasião da sua vinda a Portugal autorizavam o segundo para proceder como procedera, e ainda para ir mais longe. Podia ter sido violento e descortês mas não exorbitara do seu direito; e, se a dignidade real fora indiretamente humilhada naquele conflito, D. João III só tinha a queixar-se de si, que preparara os elementos de tantos desconcertos.

Se, porém, elrei deferia a cúria romana a resolução da contenda, o núncio não se esquecia de ordenar com vantagem a própria defesa. O mensageiro por quem enviou os documentos que o favoreciam chegou com seis dias de antecipação ao correio mandado pela corte de Lisboa. Assim, os dous protetores de Capodiferro, o cardeal Farnese e o seu mentor, o secretário de Paulo III, Marcelo Cervino, bispo de Neocastro (elevado depois ao pontificado com o nome de Marcelo II) puderam inteirar-se de tudo e prevenir-se para a luta antes de D. Pedro Mascarenhas receber a notícia do sucesso e as instruções que se lhe remetiam. Estavam Marcelo e Farnese vendidos a Capodiferro, que repartia com eles das suas rapinas(433), e por isso expuseram o negócio perante o papa a uma luz desfavorável a elrei e seus irmãos. Tinham, porém, que contender com duro adversário. D. Pedro, recebendo de Paulo III comunicação oficial do sucesso, obteve por Ghinucci (que, para nos servirmos da sua expressiva frase, parece já tinha amansado) cópia dos documentos enviados por Jerônimo Ricenati, e com eles se preparou para o combate. Não tardaram, porém, a chegar os que elrei lhe remetia, e que, concordando em geral com os do núncio, eram, todavia, mais completos. Tendo consultado hábeis jurisconsultos, o embaixador pediu uma audiência ao papa. Contava com a oposição, e ia precavido para lhe contrapor a astúcia. D. Pedro não falava italiano, e o papa tirava disso vantagem nas discussões diplomáticas. Quando lhe convinha, entendia o português; quando lhe não convinha, sucedia o contrário. Vice-versa, embora o embaixador invocasse em qualquer ocasião as suas anteriores palavras, se tinha mudado de parecer argumentava com a ignorância de D. Pedro, para afirmar que o percebera mal e que tal cousa não dissera. Contra esta má fé, adotara o ministro o arbítrio de lhe apresentar escritas em italiano as matérias mais árduas, com o pretexto de não o constranger a decifrar o português. Remediava assim, em parte, o mal. Da carta d’elrei levou vertidos os períodos que deviam ser comunicados ao pontífice. Ao chegar perante este, achou ali Farnese e Marcelo, circunstância nova em tais audiências. Apressou-se o papa a explicar-lh’a. Eram eles que tinham de tratar do assunto, e podiam assim ficar desde logo inteirados da matéria. Persuadido de que intentavam confundi-lo, o ministro português dissimulou, agradecendo ao pontífice os seus desejos de abreviar o negócio e pedindo-lhe que fizesse juiz da contenda o próprio Farnese, que, como prelado e príncipe, não podia deixar de entender com que respeito cumpria fossem tratados tais príncipes e prelados como os infantes de Portugal. Apresentando então o original e a versão da carta d’elrei, e lida esta última por Marcelo, observou o papa que toda a questão se resumia em dous pontos: em se pedir que o núncio fosse revocado e em se enumerarem os seus erros; que, pelo que respeitava ao primeiro, a solução era fácil, porque ele tinha como regra não conservar em qualquer corte um agente que nao agradasse ao respectivo soberano; mas, pelo que tocava ao segundo, era necessário apreciar o procedimento de Capodiferro, porque a forma da revocação dependia desse fato, honrando-o se estivesse inocente, punindo-o se estivesse culpado. A isto acrescentou que as pessoas a quem mandara examinar a questão e os documentos enviados pelo núncio achavam que ele tivera fundamento para se ofender da desobediência dos infantes, visto que, como eclesiásticos, tinham mais restrito dever de respeitarem o pontífice do que o soberano; que em não reconhecer D. Henrique por inquisidor-mor estava a razão da parte do núncio, suposto o defeito de idade; que, ainda quando o não houvera, nem ele papa, nem elrei deviam consentir em que o infante exercesse tal cargo; elrei, porque, sendo o impetrante da Inquisição, não era decente nomear seu próprio irmão juiz de causas em que interessava; ele papa, porque tinha que dar contas a Deus e ao mundo da concessão daquele tribunal. Concluiu o pontífice por declarar que, se ao embaixador restavam outros cargos contra Jerônimo Ricenati, os desse por escrito, para se verificar a sua exação e punir-se o núncio no caso de estar culpado(434).

As ponderações de Paulo III eram ao mesmo tempo razoáveis e astutas. Mostrava-se pronto a revocar Capodiferro; mas, desde que este era acusado, cumpria averiguar a verdade das acusações. Sem isto, tornava-se árduo escolher o modo da revocação. A pronta aquiescência do pontífice aos desejos da corte de Portugal ficava assim em vãs palavras enquanto se não dirimisse a questão da culpabilidade. Acusando oficialmente o núncio, o próprio D. João III se envolvera num dédalo de discussões intermináveis.

Apesar, porém, do terreno vantajoso em que o papa se colocara, o embaixador combateu com destreza as suas objeções. Recordou-lhe que a nomeação do infante fora já virtualmente aprovada por ele papa quando, pouco havia, se lhe comunicara esse fato; porque, pedindo ao mesmo tempo ele embaixador que se tirasse ao núncio o direito da revisão, para não ficar superior ao infante, e se esclarecessem alguns pontos obscuros da bula de 23 de maio, sua santidade se limitara a dizer-lhe que transmitisse a Ghinucci, Simonetta e Santiquatro, dos quais se compunha a comissão encarregada deste negócio, os apontamentos sobre as reformas pedidas, declarando-lhe que, sendo seu representante o núncio, nenhum desar havia para o infante em lhe reconhecer superioridade, o que era necessário por enquanto para os cristãos-novos se persuadirem de que tinham recurso contra os inquisidores; que, usando de tal linguagem, sua santidade aprovara virtualmente a nomeação. Em seu entender, os infantes tinham mostrado todo o respeito à sé apostólica dissimulando a insolência de Capodiferro, que, por excesso de paixão, se mostrara indigno do cargo que exercia, e sustentou que a revocação se podia verificar independente do processo. Fazendo alusões pungentes à corrupção dos ministros pontifícios, desmascarou Marcelo e Farnese, provando pelas declarações contraditórias dos dous que nem os próprios documentos remetidos pelo núncio tinham sido apresentados senão em extrato aos jurisconsultos a quem Paulo III incumbira o exame jurídico da matéria, e ajuntando às exprobações a ironia, perguntou a Marcelo se o extrato fora feito e traduzido pelo procurador dos cristãos-novos, por cuja intervenção a corte de Roma recebera os papéis enviados pelo seu representante em Lisboa. Substituindo assim a agressão à defesa, obrigou o papa a mostrar-se agastado contra Marcelo e Farnese, ordenando-lhes que entregassem o exame da matéria aos cardeais Ghinucci e Del Monte, traduzindo-se os documentos vindos de Portugal por quem o embaixador entendesse. Entretanto, na questão de ser o infante inquisidor-mor, negou que as suas palavras tivessem significado a aprovação de um fato que ele reputava odioso, embora D. Pedro Mascarenhas sustentasse a validade da nomeação e previsse fatais conseqüências da cólera d’elrei. Pelo que tocava à revocação do núncio, declarava que, se D. João III insistisse nela, dando-se tempo para se lhe escolher sucessor, o faria retirar, mas sem demonstrações de desagrado, no qual só poderia incorrer Capodiferro se lhe fosse provada culpa. O pontífice, que a princípio titubeara diante da agressão do embaixador, acendendo-se gradualmente, concluiu também por fazer graves recriminações. O que elrei não queria, quanto a ele, era que houvesse núncio em Portugal; que não descansara sem expulsar Sinigaglia, e que procurara pôr obstáculos à enviatura de Capodiferro. Declarava, porém, que, se era esse o alvo a que se tendia agora, o mais conveniente seria falar claro; mas que se lembrassem de que, se a santa sé enviava delegados aos países católicos, era para o melhor serviço da igreja, e para poupar aos povos o incômodo e a despesa de irem solicitar em Roma os despachos e graças apostólicas de que tantas vezes careciam(435).

Esta explosão iracunda do papa subministrava a D. Pedro Mascarenhas ensejo para lhe dizer duras verdades. Não era homem que o desaproveitasse. Ou porque de feito se doesse da linguagem severa do supremo pastor acerca das intenções do seu soberano, ou porque lhe conviesse fingi-lo, o embaixador repeliu com mostras de indignação a idéia de haver em elrei pensamento reservado acerca dos núncios, ou sequer malevolência pessoal contra Jerônimo Ricenati. Quando, porém — observava ele — a corte de Portugal repugnasse a uma nunciatura permanente no país, não era isso estranhável, porque havia duas razões para semelhante repugnância. Era a primeira ser a nunciatura cousa nova e insólita: era a segunda o mau procedimento dos representantes da santa sé. D’antes, os papas enviavam só legados extraordinários em casos urgentes. Clemente VII fora quem estabelecera um núncio residente, D. Martinho de Portugal; mas este, ao menos, era português. Depois viera Sinigaglia, antes como coletor das meias anatas, que se deviam das igrejas, do que como núncio. Protraindo a sua residência até a morte de Clemente VII, Marco della Ruvere só se retirara quando fora substituído por Capodiferro. A história da nunciatura em Portugal era asquerosa, no entender do embaixador. Sinigaglia, abusando dos poderes de que estava revestido, tinha sido um verdadeiro tirano, e o papa falecido tê-lo-ia, por certo, punido, se vivera, ou o país o repeliria do seu seio. Capodiferro seguira o exemplo do antecessor; mas, achando o caminho aberto, progredira com mais rapidez, até chegar ao extremo de insultar a família real(436). Na sua opinião, os núncios eram o flagelo do reino; porque ofendiam a justiça, danificavam as fortunas e corrompiam a religião, bastando atender a que três quartas partes dos indivíduos de vulto em Portugal se podiam considerar membros do corpo eclesiástico, uns como sacerdotes, outros como minoristas, outros como comendadores das ordens militares. A bem dizer, estendia-se a todos e a tudo a jurisdição do núncio, «em quem — observava o ministro português — com pouco trabalho e dinheiro achamos recurso para nossas culpas, fiados no que, e na fácil exempção do castigo, os malfeitores se abalançam a perpetrar os maiores delitos». Se o pontífice continuasse a mandar esses delegados permanentes, aconselhava-o como cristão (porque o que dizia era nessa qualidade e não na de embaixador) a que fosse severíssimo na escolha, de modo que os seus representantes cuidassem mais no serviço da igreja do que em se enriquecerem, como até então haviam feito. Ainda assim, afirmava que, se qualquer núncio se conservasse durante seis meses em Portugal, por mais virtuoso que fosse, tornar-se-ia tão mau como os passados, sobretudo se tivesse o direito de revisão nos processos do tribunal da fé. Os lucros que d’aí provinham à nunciatura eram tais, e a liberdade dos cristãos-novos tamanha, que não só homens, mas até pedras, por assim dizer, se corromperiam. «A prova disso — acrescentava maliciosamente o embaixador — tinha-a sua santidade no valimento de que gozava em Roma o procurador dos conversos, d’onde se podia conjecturar qual seria a influência que os mesmos conversos exerceriam sobre o núncio em Portugal, onde estavam tão perto deste, e ele tão longe do papa, sobre quem recaía a infâmia de todos esses abusos, ao passo que o proveito era dos seus delegados(437).»

O desassombro com que D. Pedro falara produzira o efeito que desejava. Paulo III colocou-se na defensiva. Deplorou que tais fatos se praticassem, prometendo providências, e admirando-se de que, no meio de tantos desconcertos, não tivesse havido quem se queixasse para Roma. A resposta, porém, do embaixador foi peremptória. Ninguém se queixava, porque a persuação geral era que todas as representações dirigidas à cúria romana neste sentido seriam inúteis. Assim, as cousas teriam continuado indefinidamente no mesmo estado, se o núncio não houvera cometido a imprudência de entrar em luta com os infantes, suscitando com tal procedimento a animadversão d’elrei(438). Era uma triste confissão a que D. Pedro Mascarenhas fazia. A corte de Portugal tolerara as demasias e prevaricações de Capodiferro, e continuaria a tolerá-las, se uma questão de orgulho não a tivesse revocado ao sentimento do próprio dever e ao zelo, um pouco tardio, da moralidade e da justiça.

Depois desta tempestuosa audiência, Paulo III partiu para Tivoli e Frascati, d’onde só voltou a Roma a 5 de setembro, saindo de novo para Loreto passados quatro dias. Debatia-se entretanto a questão do núncio e dos infantes entre os cardeais Ghinucci e Del Monte e os advogados escolhidos pelo embaixador para sustentarem a causa dos príncipes. Se os fatos que Capodiferro alegava nas suas informações eram exatos, ele nem os injuriara, usando de um direito que ao mesmo tempo era um dever seu, nem deixara de guardar respeito ao soberano e a seus irmãos, mandando rogar antecipadamente a D. João III por um dos seus próprios validos, cujo testemunho invocava, que não o compelissem a usar dos poderes que lhe haviam sido cometidos. Por estas e outras circunstâncias a discussão protraia-se, e o embaixador não pudera, durante os quatro dias que o papa se demorou em Roma, alcançar nova audiência. Com a audácia, porém, que o caracterizava, D. Pedro Mascarenhas penetrou, enfim, alta noite e quase à força no sacro palácio, poucas horas antes da partida do papa para Loreto. Estava convencido de que a repugnância do pontífice a ouvi-lo procedia de querer evitar enquanto pudesse a revocação do núncio, e queixou-se amargamente da desconsideração com que eram pospostos os negócios mais urgentes d’elrei seu amo. O despeito de Paulo III pela intrusão do embaixador converteu-se em explicações e desculpas. Quis depois convencê-lo da conveniência de ficar em Roma para convalescer de uma doença que padecia; Mas D. Pedro Mascarenhas recordou-se naquele momento de uma promessa de romagem ao santuário do Loreto, promessa para cujo cumprimento achava a conjuntura propícia. Pusera o papa a máscara da benevolência; ele punha a da devoção. Vieram, enfim, a um acordo. D. Pedro ficaria em Roma ainda um dia para ver certas notas que Ghinucci e Del Monte deviam transmitir-lhe sobre a reforma da Inquisição, e depois iria encontrar-se com o papa em Viterbo, onde também estaria Santiquatro, e d’onde se expediria para Portugal um correio com as resoluções aí tomadas(439).

Suposta a astúcia da corte de Roma, seria lícito suspeitar que as anunciadas comunicações de Ghinucci e Del Monte eram um meio a que se recorria para suscitar embaraços ao embaixador, distraindo-lhe a atenção com um negócio não menos importante que o da revocação do núncio, e, além disso, complexo e difícil. Entretanto, o mais provável é que os protetores dos conversos instassem pelas modificações da bula de 23 de maio, que os mesmos conversos pediam, antes que Capodiferro saísse de Portugal e eles ficassem entregues sem proteção às perseguições de que era anúncio nada equívoco a mudança de inquisidor-mor. Fosse o que fosse, é certo que os dous cardeais efetivamente apresentaram a D. Pedro Mascarenhas os pontos sobre que o papa resolvera deferir favoravelmente às súplicas dos cristãos-novos. Debatida a matéria, depois de examinada pelos advogados da coroa escolhidos pelo embaixador, a questão veio a cifrar-se em duas resoluções importantes, acerca das quais os cardeais declararam positivamente que o papa não cederia. Era a primeira, que nos processos por heresia se comunicassem aos réus, não sendo estes pessoas poderosas, os nomes das testemunhas de acusação: era a segunda, que do conselho geral da Inquisição houvesse recurso sempre para a santa sé. Conhecendo que todas as diligências para mover Ghinucci e Del Monte eram baldadas, porque se limitavam a dizer que não eram senão intérpretes da decisiva vontade do pontífice, o embaixador pediu que, ao menos, se lhe desse espaço para comunicar à sua corte aquela resolução, e receber instruções. Nem isso, porém, pôde obter. Os cardeais respondiam a todas as ponderações de D. Pedro que não estavam autorizados para conceder semelhante mora, e que o conhecimento que lhe haviam dado daquele assunto fora pura formalidade, visto serem as deliberações tomadas negócio de consciência para o pontífice, e não assunto de controvérsia diplomática(440).

Duas causas urgentes chamavam, portanto, D. Pedro Mascarenhas à conferência prometida para Viterbo, onde efetivamente foi alcançar o papa e onde encontrou já Santiquatro. Ali, em Montefiascone e em Orvieto, perseguindo com instâncias incessantes o pontífice, pôde obter que a minuta da nova bula acerca da Inquisição fosse revista pelos cardeais Santiquatro e Jacobacio de acordo com Del Monte; e posto que não viessem a modificar-se nas conferências as resoluções adotadas, o embaixador chegou com a própria insistência e com o favor de Santiquatro a alcançar que a expedição definitiva da bula declaratória se não verificasse antes de se enviar cópia dela a D. João III(441). Entretanto, esta concessão não foi feita sem condições assaz restritas. A primeira era entender-se que os três anos concedidos aos cristãos-novos, para serem julgados nos casos de heresia segundo as fórmulas estabelecidas para os processos crimes ordinários, ficavam in petto (mentalmente) prorrogados desde logo, visto estar a expirar esse prazo marcado na bula de 23 de maio de 1536: a segunda era que a resposta d’elrei deveria chegar impreterivelmente até 15 de novembro, aliás expedir-se-ia a bula declaratória: a terceira consistia em intimar elrei os inquisidores, logo que chegassem as cartas do embaixador, para não inovarem a forma do processo até ulterior resolução: a quarta e última vinha a ser que, dada a hipótese de não chegarem essas cartas senão depois de haver expirado o prazo dos três anos, se porventura se tivesse já prendido algum cristão-novo e começado a processar com as fórmulas ordinárias da Inquisição, ficaria o processo suspenso até final resolução sobre a matéria. Por outra parte, os três pontos em que o papa declarava estar firmemente resolvido a não ceder eram que o infante fosse demitido do cargo de inquisidor-mor; que se estabelecesse de modo positivo o recurso para Roma, que, finalmente, se pusesse como regra comunicarem-se os nomes das testemunhas de acusação aos réus, não sendo estes pessoas poderosas, reservando para si o pontífice designar quais deviam ser incluídos nessa categoria. O embaixador obrigou-se ao cumprimento das quatro condições, sob a pena que o papa lhe quisesse impor. A mais certa garantia, porém, destas convenções, no sentir de Paulo III, era o direito que tinha de acabar com a Inquisição, se elas não fossem cumpridas(442). Entretanto, para que a primeira condição pudesse efetivamente realizar-se, expediu-se de prevenção um breve ao núncio, estatuindo que, apenas expirasse o prazo dos três anos relativo à ordem do processo dos réus de heresia, continuasse a seguir-se o mesmo sistema, enquanto se não chegava a acordo definitivo sobre aquele assunto(443).

Comunicando a elrei estas resoluções, D. Pedro Mascarenhas expunha com franqueza a sua opinião e o estado verdadeiro das cousas. Tinha feito quanto humanamente era possível para combater as intentadas declarações. A discussão plácida, as cenas violentas, em que de parte a parte se descera até as injúrias grosseiras(444), tudo fora inútil para com o papa e Del Monte. Não esperava, portanto, que as ponderações enviadas de Portugal tivessem mais força que as suas e as do cardeal protetor. Se quisessem alegar, para se não revelarem os nomes das testemunhas, as vinganças dos cristãos-novos contra elas, cumpria provar o perigo com fatos e não com vagas declamações; porque os cristãos-novos provavam com documentos indubitáveis as perseguições que lhes faziam e as demonstrações de malevolência que lhes davam; e não se contentando de apresentar esses documentos na Rota ou ao papa, tornavam-nos públicos pela imprensa. Espraiando-se em elogios ao infante D. Henrique e à santa intenção com que elrei o pusera à frente do tribunal da fé, aconselhava, todavia, que ele próprio resignasse o cargo. Estava persuadido de que o pontífice não cederia nesse ponto, e de que isso devia custar tanto menos, quanto era certo que se tinha obtido a revocação do núncio, principal fim da nomeação do infante. Quanto às apelações para Roma, supunha que ainda se poderia vencer não se tratar desta matéria na bula declaratória, conservando-se a questão irresoluta, como se deixara na de 23 de maio de 1536, sem se afirmar nem negar a existência do direito de apelação, maiormente atendendo a que ainda faltavam sete anos para acabar o prazo em que os confiscos eram proibidos, questão talvez a mais grave para os conversos, e na qual, sobretudo, lhes importaria depois poderem apelar para Roma. No que, porém, tocava à revelação dos nomes das testemunhas, o embaixador prometia a elrei suscitar tais embaraços com as objeções, quando se tratasse de definir quais eram os réus poderosos, que, por fim, de exceções em exceções, viriam a conceder tanto ou mais do que se desejava, ficando quase todos os cristãos-novos direta ou indiretamente incluídos nelas e, por conseqüência, anuladas as vantagens que os mesmos esperavam tirar por esse lado da bula declaratória(445).

No meio destas questões sobre o futuro modo de proceder da Inquisição, tinham acaso esquecido as discórdias do núncio com os infantes, ventiladas a princípio com tanto fervor? Desde que o papa acedia à revocação de Jerônimo Ricenati, a contenda tomava um carácter benigno, e a necessidade de estampar na fronte do delegado apostólico o ferrete das suas corrupções tornava-se menos urgente. Ao mesmo tempo o papa, que resolvera mandar julgar a causa de Ayres Vaz pelo cardeal D. Afonso conjuntamente com o núncio, advertido de que seria impossível fazer concorrer os dois adversários a esse ato, irritados como estavam um contra o outro, buscara a solução da dificuldade em ordenar que o réu, solto sob fiança, viesse justificar-se na cúria romana. Sem deixar de transmitir à sua corte este expediente, o ministro português ponderava, todavia, a inconveniência de consentir num fato que abriria exemplo para os cristãos-novos evitarem o castigo, facilitando-se-lhes saírem de Portugal para Roma. Usando de uma metáfora vulgar, mas enérgica, D. Pedro Mascarenhas fazia sentir as conseqüências de um arbítrio que o papa considerava ou fingia considerar como natural e simples(446).

Entretanto, um incidente inesperado esteve a ponto de anular ou, pelo menos, de retardar nos seus efeitos os esforços do embaixador. A larga negociação sobre as duas décimas que ele tinha conduzido a termos vantajosos fora transtornada em Portugal pelo clero, que, com aprovação do poder civil, viera a um acordo com o núncio. Não nos dilataremos com um assunto que não pertence ao objeto deste livro. Baste saber-se que esse fato foi comunicado ao ministro português quando concluira com Paulo III um contrato em que, a troco de composição ou resgate comparativamente moderado, se remia aquela extorsão, ou, para melhor dizer, em que o papa cedia ao rei o direito de a converter em proveito próprio. Mas a desvantagem política da inopinada transação ainda era maior que a econômica. D. Pedro, estribado nas terminantes instruções que recebera de Lisboa, tinha certificado o papa de que elrei cortara todas as relações diplomáticas com o núncio depois da afronta feita a seus irmãos, e resolvera não tornar a renová-las por caso algum. O pacto feito em Lisboa sobre as décimas, cujo conteúdo Capodiferro transmitira para Roma, desmentia, porém, solenemente essa afirmativa. Por outro lado, o embaixador tinha já alcançado mandar-se expedir o breve de revocação, independente de ulteriores exames sobre o procedimento do delegado apostólico; mas, à vista da boa harmonia que esse fato indicava existir agora entre o governo português e o núncio, repugnava ao papa enviar o breve, tanto mais que se tornava necessário dar tempo a Ricenati para realizar os ajustes que fizera. Tal era a situação difícil em que os erros da corte de Portugal colocavam o seu ministro, cujo despeito se manifesta de modo nada equívoco na respectiva correspondência(447)

À força, todavia, de perseverança, ajudada pela ativa cooperação de Santiquatro, e tendo tido a arte de persuadir Paulo III de que a transação, feita em Lisboa, nem era segura, como aliás o era a celebrada com ele, nem daria provavelmente os resultados vantajosos que se esperavam, D. Pedro Mascarenhas chegou a obter a aceitação de um termo médio entre os dous contratos, obrigando-se a pagar em Roma, dentro de breve prazo, a soma convencionada, e fazendo com que finalmente se expedisse o breve de revocação ao núncio, designando-se-lhe o termo para sair de Portugal até 1 de novembro, visto haverem desaparecido, com os ajustes definitivos sobre o resgate das décimas, todos os pretextos plausíveis para ulteriores demoras(448).

Mas o papa, se, por um lado, fazia concessões importantes, temperava, por outro, o contentamento do embaixador com uma resolução que não menos lhe contrariava as pretensões. Posto que houvesse convindo em retardar a expedição da bula declaratória relativa à Inquisição, tinha-o feito no pressuposto de que se dilataria a saída do núncio até se apreciar devidamente de que lado estava a razão na sua contenda com os infantes, e até se lhe poder enviar sucessor. Agora, porém, que as circunstâncias mudavam, entendia que não lhe era permitido abandonar os conversos, visto que, além de ser chegada a época em que cessavam para eles as garantias do processo civil ordinário nos julgamentos da Inquisição, ia sair de Lisboa o único homem que, pela autoridade de que estava revestido, podia ampará-los eficazmente contra os ódios e perseguições injustas dos seus figadais inimigos. Nesta parte, Paulo III mostrava-se firme, e a perseverança e insistência do embaixador e de Santiquatro lutaram em vão com a sua inabalável vontade. Ou consentirem na conservação do núncio ou na expedição da bula declaratória. Deixava ao arbítrio deles a escolha entre estas duas soluções(449).

D. Pedro Mascarenhas teve, portanto, de ceder. Ao passo que se redigia o diploma pontifício, pelo qual se aclaravam as disposições da bula de 23 de maio, e se determinavam melhor os limites da ação dos inquisidores em relação aos conversos, o ministro português recebia o maço fechado da correspondência do pontífice para Capodiferro, onde se continha o breve de revocação. Remetendo-o para Portugal, D. Pedro Mascarenhas demitia de si qualquer responsabilidade acerca do modo por que esse breve fora redigido, visto que se lhe dera fechado(450). Desconfiava de tudo quanto partia da corte de Roma, e por isso avisava o seu governo de que, fossem quais fossem as palavras do breve, a declaração feita pelo papa, de que os poderes de Ricenati como delegado apostólico cessariam desde o momento em que o recebesse, e de que a sua demora em Lisboa não passaria além de 1 de novembro, tinha sido categórica, e Santiquatro tomara dela por escrito uma nota que enviava. Não deviam, portanto, em caso algum consentir-lhe o menor ato de jurisdição, nem admitir que se conservasse no reino mais um dia além do prazo marcado. Pelo que, porém, dizia respeito à bula declaratória, consolava elrei, não só com as vantagens obtidas a troco de ceder neste ponto, e com a consideração de que mais tarde ou mais cedo ela viria a conceder-se, ainda que se lhe obstasse agora, mas também com a esperança de se poder anular de futuro. Na sua opinião, cumpria enviar a Roma para tratar deste assunto, como várias vezes tinha aconselhado, um jurisconsulto hábil, a quem se pagasse bem, para se não tentar a receber dos agentes dos cristãos-novos alguma compensação da parcimônia com que fosse retribuído pelo governo. Ponderava que, sendo a bula declaratória resultado das grossas peitas, que obrigavam a cúria romana a tanta solicitude, recebido o dinheiro o negócio se tornaria mais fácil, e os argumentos contra essas providências achariam mais desembaraçados os ouvidos daqueles mesmos que as reputavam indispensáveis enquanto não tinham bem seguro o preço das suas venalidades(451).

Como acabamos de ver, os resultados das negociações com o embaixador português, resumidos na sua expressão mais simples, eram, quanto à saída do núncio, que se lhe assinalasse o curto prazo de um mês incompleto para a verificar, e quanto à nova bula relativa à Inquisição, que se estatuísse a comunicação dos nomes das testemunhas de acusação aos réus de heresia, e que se estabelecesse positivamente o direito de apelação. Eram os dous pontos em que o papa não cedera, bem como em não reconhecer a idoneidade do infante arcebispo para exercer o cargo de inquisidor geral, objeto que não devia ser considerado na bula e que, por assim dizer, ficava pendente. Mas, se o enviado de D. João III podia vir a estes acordos com o papa, a chancelaria apostólica podia falsificar tudo, como o embaixador parece que previa. Foi o que ela fez. Esse breve que se lhe entregara fechado, a fim de o transmitir ao núncio por intervenção do seu governo, dando-se assim a certeza a este de que fora expedido, encerrava na verdade a revocação de Ricenati, mas advertindo-se-lhe que a partida fosse quando comodamente o pudesse fazer, e asseverando-se-lhe que a sua vinda seria sumamente grata ao pontífice, que se queria aproveitar das suas virtudes de prudência e de lealdade(452). Quais estas fossem sabe-o o leitor. A bula declaratória, longe de abranger os dous únicos pontos concordados, era amplíssima, e dirigida exclusivamente a proteger os cristãos-novos. Se, como o embaixador português afirmava, esse diploma custara caro, é preciso confessar que a mercadoria justificava a elevação do preço. Expedida imediatamente depois do breve, a bula estatuía que em qualquer causa crime sobre matérias de fé, sendo o réu de origem judaica, se procedesse conforme as condições e regras que se estabeleciam agora. Eram elas: que o inquisidor-mor não pudesse delegar a sua autoridade senão por impedimento absoluto e em indivíduo que tivesse todos os requisitos canônicos; que os inquisidores ordinários não fossem vitalícios, nem recebessem salários ou emolumentos pagos pelos bens dos réus, prestando juramento no ato da posse de bem servirem, sendo punidos, e ressarcindo as partes lesadas pelas injustiças e abusos que praticassem; que os acusadores e testemunhas, sendo achados em falsidade, fossem também punidos e reparassem o dano; que não se lhes indicasse previamente o que e por que modo deviam depor; que ninguém fosse preso sem suficientes indícios, e que os cárceres servissem para retenção e não para castigo; que não se dessem tratos sem fortes motivos, ouvidos primeiramente os réus, e que esses tratos não excedessem os que se davam nos outros crimes; que não se procedesse contra os cristãos-novos só por delação dos encarcerados, feita no meio dos tormentos ou, ainda, fora deles; que os nomes dos acusadores e testemunhas de acusação fossem comunicados aos réus, não se reputando estes por poderosos só por serem cristãos-novos, tanto mais que se devia atender a quanto a Inquisição era protegida por elrei; que no caso, porém, de se dar a hipótese de um réu poderoso assim o declarassem por escrito e de comum acordo o inquisidor-mor e o respectivo prelado diocesano, dando-se ao réu vista da declaração para a contrariar; que se pudessem pôr suspeições aos inquisidores, promotor, notário e mais oficiais da Inquisição; que em caso nenhum houvesse distinções odiosas, nas prisões, na ordem do processo e nos castigos, entre os cristãos-velhos e cristãos-novos; que as comutações das penas em dinheiro se não consentissem sem aquiescência dos sentenciados; que em todos os casos se admitisse a reconciliação dos réus, não sendo relapsos, ainda depois de julgados; dos sacerdotes até serem degradados das ordens, e dos seculares até o momento do suplício, embora se alegasse que os movia não o arrependimento mas o medo; que a sentença, em virtude da qual alguém fosse relaxado ao braço secular, se publicasse antes de cumprida, logo que se requeresse a sua publicação; que, interposta apelação para a santa sé das sentenças interlocutórias injustas ou de algum outro agravo, quer fosse do inquisidor-mor, quer dos menores, quer do conselho geral, o negócio ficasse parado até haver resolução pontifícia; que não se pregassem sermões escandalosos incitando os povos contra os conversos, devendo sobretudo evitar semelhantes abusos os pregadores e os párocos. Enfim, ordenava-se expressamente que em todas as dúvidas que recrescessem, tanto acerca da inteligência desta bula, como de tudo o mais que dizia respeito às atribuições da Inquisição, se recorresse à sé apostólica. As cautelas de direito para que as precedentes providências não fossem burladas, e a imposição das penas canônicas contra os que as menoscabassem punham o remate a tão importante documento(453).

Esta bula era uma nova vitória que a tolerância alcançava, embora para a obter se houvesse derramado profusamente o ouro. Às concessões nela contidas a benevolência da cúria romana acrescentou pouco depois outra não menos importante, posto que a ocasião de a aproveitar ainda estivesse remota. Faltavam sete anos para terminar o prazo em que a condenação dos réus de heresia não podia ser agravada pelo perdimento dos bens. Apesar disso, passou-se uma bula secreta aos cristãos-novos, pela qual os confiscos nos crimes religiosos ficavam perpetuamente abolidos. Era uma prevenção a que podiam socorrer-se terminados os sete anos, se nessa conjuntura as circunstâncias lhes fossem menos propícias(454).

Tal era o estado da contenda nos fins de 1539. No prosseguimento da narrativa veremos como essa vitória dos perseguidos não passava de um clarão fugitivo, de uma vã esperança, e como a indomável pertinácia dos seus adversários, a traição dos seus próprios irmãos e a má fé da cúria romana e dos delegados pontifícios vinham dentro de pouco tempo tornar inúteis tantos esforços e sacrifícios.

LIVRO VI

Agência dos cristãos-novos em Roma. Substituição de Duarte da Paz. Últimos atos deste. — Inutiliza-se a expedição da bula de 12 de outubro, deixando de publicar-se em Portugal. Causas deste fato. Situação desvantajosa dos conversos. — Prossegue-se na contenda acerca da nomeação do infante D. Henrique para inquisidor-mor — Carta notável d’elrei ao embaixador em Roma, e alegação dos inquisidores contra a bula de 12 de outubro. Negociações diretas entre Pedro Mascarenhas e Paulo III. Discussões e cenas dramáticas entre o embaixador e o papa. — Parecer da junta dos cardeais encarregada de examinar as réplicas do governo português. Destreza do embaixador, e vantagens que obtém. Sua partida para Portugal. — Situação crítica dos cristãos-novos. A Inquisição começa a desenvolver maior violência. Cessação temporária das negociações em Roma. — Discórdias d’elrei com o bispo de Viseu D. Miguel da Silva. Causas e progressos dessas discórdias. Fuga do bispo para Itália. Enganos mútuos, e tentativas de assassínio. Diligências em Roma contra o foragido prelado, eleito já ocultamente cardeal. — A questão da nunciatura em Portugal renova-se entretanto. Negociações de Christovam de Sousa, sucessor de D. Pedro Mascarenhas. Violentas discussões com o papa. Esforços dos agentes dos conversos. — Viagem de Paulo III, e prosseguimento das negociações. — Acordo para se adiar a resolução definitiva acerca da nunciatura. — D. Miguel é proclamado publicamente cardeal. Carta régia fulminada contra ele. — Rompimento entre as duas cortes. Retirada de Christovam de Sousa. — Manifesto do cardeal da Silva, que se liga com os conversos em ódio d’elrei. — Epílogo deste livro.

Conforme acabamos de ver, as vantagens obtidas pelos cristãos-novos deviam-se tanto à necessidade que D. Pedro Mascarenhas tivera de fazer concessões, como ao ouro que o agente deles espalhara com mão larga. Este agente já não era o mesmo que encetara aquele longo pleito, em que os hebreus portugueses defendiam dos seus inimigos vida, fortuna e liberdade. Duarte da Paz fora substituído por um certo doutor Diogo Antonio, ao qual, aliás, ajudavam outros agentes que residiam em Roma ou que lá eram enviados de tempo a tempo pelos chefes dos conversos. Se não se podem saber com certeza as causas que produziram a exclusão de Duarte da Paz, podem pelo menos conjecturar-se com grandíssima probabilidade. O leitor recorda-se por certo da história deste homem, que, apenas chegado a Roma, se oferecia impudentemente a elrei para trair os seus comitentes, e de cujas vergonhosas relações com o arcebispo do Funchal restam tantos vestígios. Desautorado por elrei, vendo-se depois a ponto de perecer debaixo do punhal de um assassino, aquela alma de lodo continuou a arrastar-se nos caminhos tenebrosos das deslealdades e vilanias. Para ele era tudo o ouro, e todo o ouro era pouco. O luxo e a cobiça afogavam-lhe os remorsos, e da correspondência de Sinigaglia vemos que já em 1535 os cristãos-novos estavam altamente irritados contra o abuso que fazia da comissão que aceitara. Se, antes de substituído, continuou sempre a desservir ocultamente a causa de seus irmãos não é fácil dizê-lo; mas sabemos que nos meados de 1539 fazia denúncias secretas a D. João III por intervenção de D. Pedro Mascarenhas(455). Versavam essas denúncias sobre os conversos que fugiam a ocultas de Portugal para a Itália, fuga em que principalmente os protegia Capodiferro, quando eram assaz abastados para obter proteção(456). Desde que deixara de ser procurador dos cristãos-novos tinha-se trasladado a Veneza (aonde comumente se acolhiam os judeus portugueses), para melhor exercitar o cargo de espia. Fingia-se aí para com eles sectário oculto da lei de Moisés, guardando as exterioridades de cristão, e obtendo assim ao mesmo tempo a confiança das suas vítimas e dos outros espias d’elrei(457). O seu ódio contra os que o haviam substituído e, talvez, alguma imprudência que o traísse, obrigaram-no a desmascarar-se e romper, enfim, com os seus antigos clientes. Dirigiu pela imprensa uma carta ao papa, na qual ressumbra todo o fel do despeito, através da linguagem melíflua de um hipócrita. Nessa carta buscava demonstrar que se devia impor a pena de confisco aos sentenciados pela Inquisição, ainda supondo que não fosse este o direito comum; porque, na opinião dele, os hebreus, que não deixariam de judaizar por temor da morte, deixariam de o fazer por amor das riquezas. «Um judeu — dizia ele — tem em mais estimação algumas alfaias do que a vida e a honra». Lembrava, como prova da conveniência de os reduzir à miséria, a prontidão com que recorriam à corrupção dos ministros públicos, não só contra os estranhos, mas também contra os da própria raça e, até, contra os seus parentes mais próximos. «Para eles — prosseguia o antigo agente dos conversos — não há perigo ou trabalho, vileza ou crime que não lhes pareça leve quando se trata de adquirir» Citava a este propósito a horrível história de um hebreu, Henrique de Sousa, que, por motivos dessa ordem, mandara assassinar seu próprio filho, e escapando este, apesar das feridas mortais que recebera, recusara pagar o preço do crime pelo incompleto do resultado, vindo por isso a morrer debaixo do punhal dos sicários, burlados nas suas esperanças de recompensa. Aconselhava que a terça dos bens dos sentenciados se deixasse aos filhos, atentas as conversões forçadas que se haviam feito, o resto, porém, que se aplicasse a obras pias. O outro ponto, que Duarte da Paz reputava capitalíssimo, era a questão dos cárceres. Quanto a ele, deviam ser secretíssimos e as prisões celulares, para que não se esforçassem uns aos outros na obstinação do erro. No que tocava a comunicarem-se aos réus os nomes dos acusadores e testemunhas é claro que havia de sentir o contrário daquilo que os seus antigos clientes pediam e que a razão indicava. Como conhecedor do viver íntimo dos cristãos-novos, tratava de demonstrar que eles se deviam reputar poderosos pelos laços de religião e de parentesco que ligavam entre si as famílias opulentas, e pela dependência em que estavam os pobres dos abastados, em quem só podiam encontrar amparo no meio da malevolência geral. Era desta união que resultava a força dos conversos, acerca da qual fazia peso a autoridade de um homem que por tanto tempo dirigira em Roma os negócios comuns da gente hebréia. Depois das considerações gerais que apresentava, Duarte da Paz oferecia-se a fazer revelações importantes a este respeito, se quisessem ouvi-lo, do que resultariam grandes vantagens para o exalçamento da fé e progresso do cristianismo. Bradava-lhe a consciência que esse papel dirigido ao pontífice contra seus irmãos era da mais hedionda torpeza, e por isso terminava com uma peroração, em que se associavam monstruosamente o remorso, a raiva, o descaramento e os esforços impotentes do hipócrita para esconder debaixo do manto da religiosidade a negrura dos fins que se propunha. «Se disserem — concluía ele — que me não move o zelo da fé, mas o despeito por me não pagarem as dívidas que contraí e por, ainda em cima, me perseguirem, apelo para Deus que vê as minhas intenções, e ainda para a gente que me conhece. E certo, porém, que deste último fato tirei eu argumento para inteiramente me convencer do que já sabia. Repito que por dinheiro padecerão a morte, e para não o perder serão os melhores cristãos do mundo. Foi por misericórdia divina que assim procederam comigo, porque os homens de bem tornam-se maus com a ingratidão e com as injúrias dos seus superiores; e eu, por esse motivo, se era mau, espero tornar-me bom com a graça de Jesu-Cristo. Mas bom ou mau, direi sempre nesta matéria cousas honestas e verdadeiras, em honra do Salvador, a quem rogo me defenda das traições, falsidades e dolos próprios de tais hereges»(458).

Para não voltarmos a falar deste miserável, mencionaremos aqui os poucos vestígios que se encontram do resto da sua tenebrosa existência. Não contente com aquela espécie de manifesto dirigido ao papa, Duarte da Paz publicou um libelo famoso contra o indivíduo que o substituira e contra Afonso Vaz, cristão-novo residente em Roma, e provavelmente assessor de Diogo Antonio. Acusado judicialmente pelo fiscal da fazenda e da câmara apostólica (talvez porque as infâmias lançadas sobre os dous agentes dos conversos refletiam sobre os ministros e oficiais da cúria romana) o insolente hebreu foi processado à revelia e condenado à forca(459). Depois disto apenas consta que estivera algum tempo preso em Ferrara, onde parece que vivia e onde praticara alguma das suas usuais vilanias(460). Já então, ou pouco depois, tinha-se declarado de novo sectário da lei de Moisés. Para, enfim, coroar a série das suas façanhas, passou em seguida à Turquia, onde abraçou o islamismo. Ali, segundo parece, acabou obscuramente a carreira desse desgraçado, maldito de Deus, infamado na pátria e fora dela, e exemplo singular da abjeção extrema a que o desenfreamento das paixões pode conduzir o homem(461).

Obtida a expedição da bula de 12 de outubro, os agentes dos cristãos-novos remeteram-na para Portugal por um expresso. Segundo parece, o procedimento de Duarte da Paz tinha achado imitadores entre os da sua raça. Havia em Lisboa várias famílias hebréias que, talvez a troco da impunidade, talvez porque sinceramente seguiam a religião dominante, estavam ligadas com o partido da intolerância. Sucedeu ser o mensageiro parente de uma dessas famílias e da mesma parcialidade. O ensejo para fazer um bom serviço à causa que ocultamente servia era favorável. Aproveitou-o. Protraiu o mais que pôde a viagem, e quando, enfim, chegou a Lisboa ainda se conservou escondido alguns dias sem entregar a bula e as cartas que a acompanhavam. Era, pelo menos, assim que depois em Roma o agente principal dos conversos explicava a tardança que houvera na entrega daquele importante documento, o que concordava até certo ponto com as declarações feitas a este respeito por Capodiferro depois de voltar a Itália, embora D. Pedro Mascarenhas, cujas tendências não eram para a excessiva credulidade, suspeitasse de pouco exata semelhante narrativa, e ainda menos acreditasse as explicações do núncio(462). Fosse como fosse, o diploma pontifício, cuja concessão custara tantos e tão dilatados esforços, além de avultadas peitas, ficou inteiramente inutilizado. Na verdade, o breve que exonerava Jerônimo Ricenati, longe de lhe fixar o prazo para sair do reino do modo prometido em Roma, deixava, como dissemos, a seu arbítrio a época da partida; e tanto, que, intimado, segundo parece, pelo governo para sair, respondeu com a cópia daquele breve(463). Entretanto, efetivamente exonerado e contando com a resistência d’elrei a todos os seus atos, achava-se numa situação difícil de conservar por muito tempo. Assim, resolveu-se a partir nos fins de novembro(464), sem publicar a bula declaratória, nem a intimar aos inquisidores, deixando os cristãos-novos de pior condição do que estavam, visto que iam acabar as garantias especiais concedidas na bula de 23 de maio, ao passo que lhes faltava um representante do pontífice, para quem apelassem dos excessos dos inquisidores.

Qual foi a causa deste singular procedimento de um homem que até então protegera resolutamente os conversos e que tantas vantagens pecuniárias tirara dessa proteção? Se acreditássemos as primeiras explicações daquele estranho ato, que ele deu depois de voltar a Roma, a bula de 12 de outubro chegara tão tarde a Lisboa, que, estando de partida, o tempo ter-lhe-ia faltado para a fazer executar, se o houvera tentado. Mal aceita esta desculpa, porque o breve de revocação lhe deixara a faculdade de se demorar mais ou menos, dizia depois que se achava já em Castela quando recebera o diploma pontifício, e não se julgara habilitado para volver de novo a Lisboa, a fim de o fazer cumprir(465). No extenso memorial dirigido pelos cristãos-novos a Paulo III em 1544 o procedimento de Capodiferro nesta conjuntura é desculpado pelos mesmos que dele haviam sido vítimas. Afirma-se aí que a bula continha alguns pontos obscuros, acerca dos quais eles próprios haviam encarregado Capodiferro de obter do pontífice os necessários esclarecimentos(466). Uma circunstância, porém, tira o valor a este favorável testemunho dos conversos. Capodiferro, apesar de todas as queixas de corrupção que contra ele havia, longe de cair no desagrado da cúria romana, adquiriu bastante influência para ser chamado com Sinigaglia, como depois veremos, aos conselhos do papa quando se tratava de questões relativas à Inquisição de Portugal ou aos conversos portugueses. Não convinha, pois, a estes irritá-lo com acusações acerca do passado. A correspondência, porém, de D. Pedro Mascarenhas lança luz no meio de tantas trevas. Dela consta afirmarem nessa época os cristãos-novos que o motivo de se não publicar a bula de 12 de outubro fora uma questão de dinheiro. Tendo na sua mão aquele diploma, o núncio quisera que de novo se pagasse em Lisboa por alto preço o que por alto preço já se havia comprado em Roma. Ou que os chefes da raça hebréia não tivessem as somas exageradas que Capodiferro exigia, ou que o seu natural aferro ao ouro os fizesse hesitar, é certo que resistiriam à extorsão. Vingou-se ele deixando de cumprir com o próprio dever e abandonando os cristãos-novos ao seu triste destino(467). Tal foi, segundo parece, o verdadeiro motivo daquele imprevisto sucesso.

Assim, as nuvens que toldavam os horizontes da Inquisição, desvanecendo-se, deixavam-na em situação mais vantajosa do que d’antes: porque o resultado de todos os enredos que temos visto tecerem-se, de todo o ouro derramado pelos contendores durante a ativa luta travada na cúria romana, vinha a ser ficarem os cristãos-novos sem a proteção de um delegado apostólico, sem essas poucas garantias que por três anos lhes concedera a bula de 23 de maio, e inteiramente à mercê dos inquisidores, cuja força moral aumentara desde que fora substituído pelo infante D. Henrique o bispo de Ceuta. Entretanto, era preciso não adormecer depois de passado o primeiro perigo. Se Capodiferro não executara a bula, outro podia executá-la, e a resistência do pontífice a aprovar a nomeação de D. Henrique havia de produzir ainda sérios embaraços. Remover essa oposição do papa e impedir a vinda de novo núncio que pusesse em vigor os mandados apostólicos eram o alvo a que deviam tender agora todos os esforços dos parciais da Inquisição.

Vimos como D. Pedro Mascarenhas, ponderando os obstáculos que se opunham a que o infante exercesse a suprema magistratura do tribunal da fé, aconselhava a D. João III que cedesse nesta parte. Não foi aceito o conselho. Longe disso, a 10 de dezembro de 1539(468) elrei escreveu uma carta dirigida ao embaixador, mas cujo verdadeiro destino era ser lida perante o papa, carta onde as ameaças indiretas se misturavam com as expressões mais submissas de obediência filial e com os queixumes mais sentidos da falta de afeição e confiança da parte do sumo pastor. D. João III atribuía a resistência deste a ter dado mais crédito às falsas informações dos conversos do que à sincera verdade da palavra real, e procurava principalmente mostrar quanto era absurdo imaginar que ele rei procedesse como procedia por outro motivo que não fosse o zelo da religião. É extrema a importância daquela carta neste ponto; porque envolve a confissão explícita das tristes conseqüências econômicas que tivera para o país o cego fanatismo do monarca. Segundo aí se afirmava, os cristãos-novos constituíam uma grande parte da nação, e parte mais útil que todo o resto do povo. Por eles, pelos seus cabedais, o comércio, a indústria e as rendas públicas cresciam de dia para dia, quando a perseguição veio mirrar a seiva da prosperidade geral, sendo notória a saída de somas enormes de Portugal para Flandres, desde que a Inquisição se estabelecera. Razões de ódio contra os conversos não as tinha; porque sempre fora por eles leal e zelosamente servido, e a muitos fizera por isso assinaladas mercês. Cobiça de lhes tomar as riquezas não se lhe devia atribuir, visto que cedera do direito de confisco pelo espaço de dez anos, durante os quais os maus seriam exterminados, e aos bons não haveria que confiscar. A este propósito, declarava que, se o papa quisesse dar à Inquisição todos os poderes e independência que para ela se pediam, de bom grado cederia para sempre daquele direito. Depois desta prova de liberalidade, não podia deixar de deplorar que, sacrificando ele interesses legítimos ao incremento do catolicismo, Roma sacrificasse o catolicismo a interesses ignóbeis e mesquinhos. «Por cada cruzado que lá se possa ganhar com os conversos — dizia D. João III — tem-se em Portugal perdido cem, e, todavia, sou vilmente caluniado de querer o sangue das minhas ovelhas»(469). Todas as diligências dos cristãos-novos tinham unicamente por alvo retardarem o estabelecimento definitivo da Inquisição pelo tempo que lhes fosse necessário para porem a salvo corpos e fazendas. Dava então a entender que, se a corte de Roma, com tão estranho procedimento, desservia a causa de Deus, ele poderia, se não tratasse de reprimir o próprio despeito, fazer justiça por si, como bem lhe parecesse; resolução extrema, a que esperava não chegaria nunca pela consideração em que tinha a pessoa de Paulo III. Vindo à questão de ser ou não inquisidor-mor o infante, mostrava-se altamente ressentido da opinião que havia na cúria, de que tanto mais suspeito devia ser o juiz supremo do tribunal da fé quanto mais seu parente próximo fosse. Era preciso ter alma superior a todas as injúrias para se não vingar desta; mas em nome de Deus exigia do papa que lhe pedisse a ele perdão de tamanha afronta, para evitar o castigo que a Providência costuma reservar aos pais que desprezam e maltratam os bons filhos. Se fizera seu irmão inquisidor com abatimento da régia estirpe, conforme as opiniões humanas, fora, justamente, por dar, na imparcialidade de tal príncipe, uma garantia aos cristãos-novos, que eles deveriam comprar a peso de ouro, se não tivessem melhor recurso nas intrigas que manejavam em Roma. Asseverava finalmente que, se descia a queixar-se e a fazer estas ponderações, era porque, pospondo os estímulos da honra ofendida, só curava de obedecer à voz da própria consciência(470).

Segundo vimos no livro antecedente, a minuta da bula de 12 de outubro ou, por melhor dizer, os apontamentos para ela, redigidos por Del Monte, haviam sido enviados a Lisboa, a fim de se dar deles conhecimento a elrei e à Inquisição, antes de definitivamente se expedir aquele diploma. As circunstâncias ocorridas logo depois tinham apressado a feitura da bula; mas o procedimento de Capodiferro, inutilizando essa providência, repusera tudo no anterior estado. Com a carta de abril, ou em data pouco diversa, remeteu-se, portanto, a D. Pedro Mascarenhas a impugnação dos inquisidores aos fundamentos em que a bula se estribava. Aquele arrazoado, no qual se ponderavam os inconvenientes das providências adotadas, é sobretudo importante como termo de comparação para se avaliar bem a legitimidade das queixas dos conversos e até que ponto eles tinham razão, não sendo natural que esta estivesse em tudo da sua parte. A primeira cousa que se impugnava na bula era estabelecer ela como habilitações impreteríveis para o cargo de inquisidor ordinário a idade canônica dos quarenta anos e os graus acadêmicos de doutor ou licenciado. Fundavam-se principalmente na falta de indivíduos em que se reunissem esses predicados, evasiva fútil, visto ser tão restrito o número de tais indivíduos. Mas, como se poderia aceitar semelhante condição quando o inquisidor-mor nem sequer tinha os trinta anos até então exigidos, nem habilitações literárias? A aceitação dessa regra importava, por maioria de razão, o mesmo que admitir a inabilidade do juiz supremo do tribunal da fé. O princípio de serem temporários os inquisidores e sujeitos a uma sindicância depois de exonerados era igualmente repelido, com pretextos cuja frivolidade não é necessário ponderar. Opunham-se também à intervenção dos bispos nos processos da Inquisição; isto é, opunham-se à restauração possível da legítima disciplina da igreja. Na questão da ordem do processo, recusavam em primeiro lugar a validade da doutrina de só se aceitarem por testemunhas da acusação aquelas pessoas que podiam depor nos crimes civis de furto e homicídio. Juridicamente os inquisidores tinham razão. O direito canônico admitia nos delitos contra a fé os depoimentos dos servos, dos perjuros, dos co-réus, dos filhos contra os pais, dos irmãos contra os irmãos. À luz, porém da filosofia e da moral tinha razão o papa. O fundamento principal dos inquisidores era o receio de lhes faltarem provas bastantes para condenarem as suas vítimas(471). Proibindo-se, como se pretendia proibir agora, que se publicassem éditos com penas severas para que todos viessem denunciar os crimes religiosos de que tivessem conhecimento, explicando-se nesses éditos em que consistiam tais crimes, os inquisidores viam igualmente em semelhante proibição um impedimento quase invencível à perseguição contra os judeus ocultos; porque, não trazendo a heresia prejuízo de terceiro, era preciso incitamento aos delatores(472). Não achavam menor inconveniente em se proibir que o réu, depois de receber uma vez tratos para confessar o crime, os tornasse a receber sem aparecerem contra ele novos indícios de culpabilidade. Queriam que lhes fosse lícito repetir a seu bel-prazer os transes de agonia dos que lhes caíam nas mãos, embora lhes faltassem para isso novos pretextos. Um dos pontos mais ventilados nesta longa contenda era o de se revelarem ou não aos réus os nomes dos denunciantes e testemunhas de acusação e era também acerca desse ponto que os inquisidores combatiam com mais ardor. Não só invocavam as disposições do direito canônico e a praxe constante da Inquisição antiga e da moderna em Portugal, Castela e Aragão, e até a dos bispos quando procediam contra hereges, mas também ponderavam o perigo de semelhantes revelações, perigo de que apontavam exemplos. Vários denunciantes haviam sido assassinados pelos parentes ou amigos dos réus, e naquela mesma conjuntura fora acutilada em Lisboa uma testemunha de acusação. Davam em prova de que o assassínio era um meio a que os conversos recorriam facilmente, para evitarem os tormentos e o suplício, um fato singular. Sendo preso algum deles, notória e claramente criminoso de judaísmo, não tardava a falecer na prisão; porque lhe propinavam veneno. A especificação dos indivíduos a quem isto sucedera faz crer que os inquisidores falavam verdade. Suposta a existência do tribunal da fé, tinham, portanto, fundamento para usarem do mistério a que se queria obstar; tanto mais que se impunha ao povo com severas penas o dever da delação. Mas, estabelecendo-se o sigilo como garantia para os acusadores e testemunhas, abria-se campo ilimitado aos ódios e vinganças particulares contra os indivíduos dessa raça malquista das turbas fanáticas e invejada pelas suas riquezas. Assim, não havia a escolher senão entre crimes e crimes, entre horrores e horrores. Era uma situação absurda que procedia da natureza monstruosa da Inquisição. Igualmente absurdas seriam as conseqüências de qualquer resolução que se adotasse acerca dos recursos das sentenças, tanto interlocutórias como definitivas. Sustentavam com razão os inquisidores que, tendo a bula de 23 de maio de 1536 estabelecido as três instâncias, do inquisidor ordinário, do inquisidor-mor e do conselho geral, seria contra direito admitir uma quarta instância, admitindo-se as apelações para Roma. Observavam que, por um lado, estas apelações podiam ser danosas aos próprios encarcerados, retendo-os nas prisões indefinidamente, e que, por outro lado, eram com certeza, meio para tornar impossível o castigo dos delinqüentes. Quer os processos fossem avocados para a cúria, quer submetidos a juízes delegados, não era nem decente nem fácil ao promotor da Inquisição seguir as causas perante esses juízes especiais ou perante a cúria, a cada incidente que pudesse dar pretexto a uma apelação(473). Tudo isto era exato. Mas em que consistiam essas instâncias diversas de que faziam tanto aparato? Em serem julgados os réus por indivíduos inteiramente dependentes do inquisidor-mor, que os nomeava e demitia a seu bel-prazer, e tanto mais a seu bel-prazer desde que um príncipe exercia aquele tremendo cargo. Assim, posto que plausíveis, as últimas alegações dos inquisidores não tinham valor algum, atendendo-se à realidade dos fatos.

Quando D. Pedro Mascarenhas recebeu a carta de 10 de dezembro e os apontamentos redigidos em harmonia com as precedentes ponderações dos inquisidores, não se achavam ainda completamente ultimados outros negócios a seu cargo, e, entre eles um, o das décimas, que não fora menos dificultoso de resolver que o da Inquisição. Entendeu por isso dever pospor este até os concluir, visto que, não se havendo publicado a bula de 12 de outubro, e tendo Capodiferro, não só saído de Portugal, mas também chegado a Roma no princípio de fevereiro, a Inquisição estava inteiramente livre para proceder como entendesse. Terminadas, porém, vantajosamente as outras negociações em que se achava envolvido, o hábil agente da corte de Portugal, e que por mais de uma vez pedira a elrei o exonerasse daquela difícil missão, dedicou-se com ardor a trazer o assunto do tribunal da fé a termos tais, que pudesse aproveitar-se da permissão que já elrei lhe dera de voltar à pátria logo que as cousas chegassem a uma situação em que não houvesse que recear acerca da existência da Inquisição, nem acerca da permanência do infante arcebispo no cargo de inquisidor-mor(474)

Nos princípios, pois, de março de 1540, o embaixador solicitou e obteve uma audiência do pontífice para exclusivamente tratar daquele melindroso assunto e comunicar-lhe a carta d’elrei, cuja versão, feita por Santiquatro, foi lida por este ao papa. Temiam ambos que essa carta, embora nas formas moderada e até submissa, mas violenta e ameaçadora na substância, irritasse Paulo III. Não sucedeu assim. Elrei dera um passo imprudente declarando que estava resolvido a ceder para sempre na questão dos confiscos. Pucci notara desde logo esta circunstância, que o papa, ouvida a leitura da carta, aproveitou avidamente. Quanto a ele, elrei procedera bem falando com desafogo, como cumpria entre amigos confiados mutuamente um no outro. Estava certo de que um tal príncipe não fazia caso dos vis e desprezíveis lucros que poderia tirar dos confiscos, que para sempre abnegava. Cria, porém, que a razão do seu próprio procedimento naquela longa contenda era clara. Desde que havia tão graves queixas dos cristãos-novos contra a Inquisição, ele, juiz supremo, não podia deixar de ouvir ambas as partes, tanto mais que, não passando semelhantes matérias pelas mãos d’elrei, lhe era lícito suspeitar mal dos inquisidores, do mesmo modo que D. João III suspeitava dos oficiais e ministros da cúria romana. Suposta, porém, a intenção, manifestada na carta de 10 de dezembro, de uma perpétua e absoluta abstenção dos confiscos, o estado da questão mudava, e ele reputava justas as representações a favor da Inquisição logo que desaparecia o motivo principal de todas as suspeitas. Entretanto, sendo grave cousa alterar uma resolução, tomada depois de tão renhida contenda e tão longos debates, por deliberação própria, pedia tempo para consultar pessoas competentes, e para resolver com justiça sobre matéria tão árdua. No que, porém, tocava ao infante, as dificuldades eram maiores, não só porque, quando se tratava de vidas e fazendas, e os interessados davam o juiz por suspeito, era obrigação sua atendê-los; mas também porque, embora houvesse exageração nas queixas, muitas delas se fundavam em motivos plausíveis. Essas dificuldades, todavia, poderiam resolver-se com o expediente da abstenção perpétua dos confiscos, e talvez os cristãos-novos, à vista do desinteressado procedimento d’elrei, ainda aceitassem voluntariamente por juiz aqueles mesmo que repeliam agora(475).

Esta linguagem moderada do papa era igualmente conciliadora e astuta. Um incidente da carta d’elrei convertia-se em matéria principal, e a base das futuras negociações vinha assim a ser a questão dos confiscos. Não crendo, provavelmente, demasiado na sinceridade de uma oferta, que talvez não passava de pura formalidade ou de amplificação retórica, o papa não hesitara em dar esperanças tão vagas quanto lisonjeiras de um acordo logo que se realizasse uma condição que não devia supor fácil de cumprir, e que tão importante era para os conversos. Pela sua parte D. Pedro Mascarenhas, não ousando negar que na carta se contivesse a aferta de que Paulo III tirara vantagem, quis também aproveitar-se das palavras dele, para que se comprometesse a tomar com rapidez uma resolução, definitiva acerca das limitações da Inquisição e, sobretudo, relativamente à questão de inquisidor-mor, embora admitindo a generosidade das intenções do seu soberano pelo que respeitava aos bens dos réus de heresia. Assim, declarou desde logo que, fiado no bom ânimo e nas promessas de sua santidade, se absteria de apresentar a impugnação que a sua corte oferecia contra os fundamentos da bula de 12 de outubro; porque seria agora fácil achar de per si o supremo pastor uma solução justa e favorável, evitando-se as delongas de novos e tediosos debates. Acquiesceu o papa, concordando com o embaixador quanto à demora que semelhanfe discussão traria, e dando a entender que ele poderia assim achar com mais brevidade a solução desejada(476).

Até este momento a conferência indicava que se chegaria a uma transação tão breve como inesperada. Mas era necessário sair dos termos gerais e das demonstrações de mútua boa vontade na questão do infante. Devia o papa ceder desde logo neste ponto, e aceitar como conveniente e válida a nomeação de D. Henrique? Não o parecia, e novos motivos ocorriam para ele assim pensar. Numa efusão de sinceridade, verdadeira ou simulada, Paulo III revelou a D. Pedro Mascarenhas o que se passava. Chegara a Roma naquela conjuntura um hebreu português, trazendo novas súplicas dos conversos contra o infante. Ele próprio fora vítima das usuais violências. Salteado e retido no caminho por D. Henrique, espoliado dos papéis que trazia e reconduzido preso para Lisboa, conseguira iludir a vigilância dos seus guardas e passar a Espanha, d’onde viera implorar dele, sumo pontífice, justiça e desagravo para si e para seus oprimidos irmãos. Tais fatos, no entender do papa, independentemente do que por si mesmos significavam, eram altamente ofensivos para a santa sé, impedindo-se por tais meios o recurso para ela em cousas de que lhe pertencia conhecer. Este fato citado pelo papa colocava o embaixador numa situação dificílima: todavia D. Pedro Mascarenhas, com a presença de espírito que o caracterizava, soube evitar o escolho. Longe de recorrer a desculpas submissas, adotou a linguagem da dignidade ofendida. Interrompendo o papa, como representante da coroa portuguesa, exigiu dele que mandasse imediatamente pôr a ferros o miserável que ousava com tão grosseira mentira caluniar um infante de Portugal, atribuindo-lhe atos de salteador. Fora, na sua opinião, a Providência quem trouxera a Roma em tal tempo aquele embusteiro, para que sua santidade se convencesse de que tudo quanto os cristãos-novos alegavam era uma série de mentiras e aleivosias, e para ele lhe poder declarar francamente que o motivo que levava à cúria romana aquele desgraçado era solicitar a execução da bula de 12 de outubro. Narrou então o procedimento de Capodiferro antes de sair de Lisboa, como se Paulo III o ignorasse, e asseverou-lhe que esse homem vinha encarregado de pagar em Roma as somas recusadas em Lisboa, ao núncio. Pelo menos, dizia-se isto, e os indícios justificavam a voz pública; porque, aliás, seria inexplicável como um diploma tão importante e que sua santidade mandara expedir sem querer esperar a resposta d’elrei, reputando-o urgentíssimo, ficara sem execução, não lhe tendo o governo português oposto o menor obstáculo. Ou os cristãos-novos ainda se não haviam dado por satisfeitos, ou o núncio tinha prevaricado. Não se podia fugir deste dilema. As intenções do pontífice, inutilizadas pelo seu próprio representante, e as calúnias do emissário chegado a Roma, que davam ocasião a ele dizer a verdade inteira a sua santidade, ofereciam uma coincidência singular; mas havia ainda outra circunstância que dava a esse conjunto de fatos um carácter misterioso e terrível: era terem engolido as ondas o navio em que vinham os tesouros de Capodiferro, fruto das peitas dos conversos, do preço porque ele vendera o sangue de Jesu-Cristo(477). Combatia o céu pela Inquisição; porque se tratava da causa da fé, e sua santidade devia pensar nisto. Pelo que tocava ao indigno caluniador, D. Pedro insistia em que fosse lançado em um calabouço, até se averiguar a verdade, para depois ser punido, acompanhando as súplicas com a ameaça de que, se não se fizesse justiça, ele saberia tirar desforço de um vassalo traidor a seu rei, não havendo extremo a que não se abalançasse para vingar a ofensa(478).

A audácia do embaixador, como este de antemão calculara, deslumbrou o papa, a quem já pesava ter aberto aquela porta para ouvir tão dura linguagem. Despedindo o ministro português, assegurou-lhe que o acusador do infante seria preso até chegarem cartas d’elrei sobre este assunto, para o réu ser punido como caluniador; que ignorava ainda as causas verdadeiras de não ser publicada a bula de 12 de outubro, e que ele lhe fizera bom serviço em falar com tal desassombro. Porque os príncipes pagavam muitas vezes com o próprio descrédito as culpas dos seus ministros. Quanto à carta de 10 de dezembro, encarregava o cardeal Pucci, ali presente, de a ver com Ghinucci e Del Monte, para ele, ouvidos os pareceres dos três. poder tomar com brevidade uma resolução acerca do seu conteúdo(479).

Apesar da segurança com que falara ao papa, a verdade é que D. Pedro não sabia se acertara com os motivos a que atribuira a vinda do emissário, nem até que ponto era inexata a narrativa da aventura pela qual este dizia ter passado. Procedendo a ulteriores indagações, soube que o recém-chegado era um irmão de Diogo Antonio, procurador dos conversos. O assunto de que principalmente vinha tratar era compor as dúvidas suscitadas ente Diogo Antonio e os seus comitentes acerca das somas que este exigia como despendidas em Roma, tanto em despesas lícitas como em peitas, e que os cristãos-novos duvidavam de pagar. As causas que dera ao papa da missão do Heitor Antonio (assim se chamava o recém-vindo) eram apenas prováveis. Talvez tivesse também por objeto solicitar a enviatura de um novo núncio, no que os conversos tanto interessavam. Quanto à aventura que escandalizara o pontífice, eis o que o embaixador pôde apurar por intervenção de vários portugueses, a quem o emissário a havia particularmente narrado. Tendo este partido de Aldeia-galega pela posta, encontrara nas imediações de Rio-frio o camareiro-mor do infante e outro indivíduo, ambos montados, os quais, vendo-o passar, lhe foram no encalce. A pouca distância esperava-o o próprio D. Henrique escoltado por cinco de cavalo. Perguntou-lhe o infante para onde ia: respondeu que para Valhadolid. Mas o inquisidor-mor estava plenamente informado de quem era, para onde ia e com que fins. A resposta às suas negativas foi prenderem-no e conduzirem-no para a Landeira, onde o despojaram de quanto levava, dinheiro, jóias e cartas(480). Abriu estas o infante, leu-as e remeteu tudo para Lisboa com o emissário preso. Tendo, porém, chegado à capital alta noite, e aproveitando a circunstância de vir acompanhado por um só homem, no meio das trevas Heitor Antonio alcançou evadir-se pelas ruas enredadas e tortuosas da velha cidade. Nessa mesma noite passou de novo o Tejo, e atravessando por caminhos escusos, pôde transpor a fronteira, e salvar-se(481). As particularidades da narrativa abonavam-na de verosimil. Dando conta a elrei daquelas ocorrências, o embaixador fazia sentir com arte, não só que estava persuadido do fato, mas também que semelhante procedimento seria um embaraço gravíssimo na questão do infante. Dizia que não continuara a exigir a prisão desse homem com receio de que alguma cousa houvesse na realidade acontecido. Sobejavam-lhe motivos para crer que tudo era mentira, não tendo recebido d’elrei aviso algum acerca de tal sucesso, o que seria indesculpável se a história do emissário fosse verdadeira. Mas, se o caso era altamente improvável, não era absolutamente impossível, e em tão melindroso assunto cumpria ser circunspecto(482). Para se não tomar suspeito pelas mostras de indiferença, ainda uma vez insistira com o papa sobre a prisão de Heitor Antonio, mas em conjuntura tão pouco oportuna, que só pudesse receber em resposta vagas promessas, cujo efeito esquecesse. Terminava pedindo informações diretas d’elrei, com a destreza de hábil cortesão. Se o fato existira, rogava-lhe que não respondesse a esta parte da sua carta. Tomaria o silêncio por uma ordem para dissimular sobre o assunto. No caso contrário, pouco importava que entretanto o governo pontifício não retivesse preso o caluniador e, até, que lhe facilitasse depois a fuga. Era mais um motivo de queixa de que se tiraria de futuro vantagem para as negociações pendentes. O que, porém, em qualquer das hipóteses lembrava era a necessidade de obstar, fosse como fosse, aos efeitos da liberdade com que falavam em Roma os agentes dos cristãos-novos, sobre o que guardava, para quando voltasse ao reino, fazer a elrei revelações importantes(483).

Entretanto, os três cardeais incumbidos de examinarem a carta de 10 de dezembro tinham dado o seu voto acerca do conteúdo dela. Cifrava-se o parecer em se exigir de D. João III que declarasse direta e oficialmente ao pontífice a resolução que anunciava ter tomado de ceder para sempre na questão dos confiscos. Suposta esta base, poder-se-ia negociar tudo, de modo que elrei ficasse inteiramente satisfeito. Adotou o papa o parecer, propondo-o ao embaixador e pedindo-lhe ao mesmo tempo que deixasse em seu poder o original daquela carta. Evidentemente buscava um meio de se assegurar da lealdade das promessas feitas. Não era, porém, D. Pedro homem que caísse facilmente no laço. Se o papa conhecia bem o rei de Portugal, o ministro deste conhecia-o perfeitamente a ele. Agradeceu as benévolas intenções do supremo pastor, asseverando-lhe que estava certo de que não haveria quebra de tão solenes prometimentos e de que, apenas ele chegasse a Lisboa com a nova proposta, elrei dirigiria, sem dúvida, a sua santidade a declaração pedida. A carta, essa não a podia deixar senão por cópia. Não só era a sua defesa para algum caso fortuito, mas também era uma arma poderosa que levava consigo para combater qualquer relutância que ainda houvesse no ânimo do monarca, mostrando-lhe aos olhos o empenho em que ficara a palavra real. Lembrava, porém, a sua santidade que havia uma condição impreterível para o ulterior acordo. Consistia em suspender-se a bula declaratória, ficando simples e exclusivamente em vigor a de 23 de maio de 1536, aliás quaisquer negociações seriam ao mesmo tempo impossíveis e inúteis. Suplicava-lhe, portanto, mandasse expedir um breve, de que ele seria portador, no qual se desse a elrei a certeza da manutenção das cousas no estado em que se achavam antes da bula de 12 de outubro, até se chegar a uma resolução definitiva sobre aquela matéria(484).

Desde que o papa declarava que as pretensões da corte de Portugal lhe pareciam admissíveis, suposta a cessão dos confiscos, não podia recusar o breve pedido. Convieram, portanto, em que se expedisse, ficando ao mesmo tempo uma cópia da carta de 10 de dezembro, assinada pelo embaixador na mão de Santiquatro. Era preciso, porém, prevenir que os ministros da Inquisição em nada ultrapassassem a bula de 1536, nem tornassem na mínima cousa mais rigorosos os estilos do tribunal. No estado a que as cousas tinham chegado, e no meio das dificuldades que o procedimento do próprio inquisidor-mor criara, o obter a conservação do statu-quo até que elrei resolvesse acerca dos confiscos, inutilizando-se assim os efeitos da bula de 12 de outubro, era uma grande vitória. Não convinha, portanto, multiplicar as solicitações, nem complicar os incidentes. Tinha-se ordenado, na verdade, ao embaixador pedisse providências especiais sobre o modo de proceder quando algum delito religioso fosse praticado por cristãos-velhos, tanto é certo que o próprio governo entendia serem a Inquisição e as regras, na aparência genéricas, por que esta se guiava exclusivamente destinadas a perseguir o judaísmo; mas D. Pedro Mascarenhas entendeu dever pospor para mais tarde essa pretensão, fácil de obter a todo o tempo, porque — dizia ele — para a contrariar não havia quem desse peitas na corte de Roma(485).

Como a precedente, a questão da legitimidade com que o infante D. Henrique exercia o cargo de inquisidor-mor podia também pospor-se. Não assim a da enviatura de um núncio a Portugal. Não era matéria esta que se devesse preterir. Embora fosse pelos ignóbeis motivos que haviam influído no procedimento de Sinigaglia e de Capodiferro, a nunciatura oferecia um obstáculo permanente, e às vezes insuperável, às violências dos inquisidores. Era o que se não queria. Felizmente, nesta parte, o embaixador, retirando-se da corte pontifícia, deixava aí quem combatesse a nomeação do novo núncio com maior energia do que ele próprio. Expediam-se principalmente as graças rendosas da sé apostólica pela Penitenciaria-maior, e Santiquatro era o penitenciário. Quando havia núncio em Portugal, por este corriam quase todas elas com detrimento de Santiquatro. Que mais poderoso incentivo para avivar o zelo do cardeal protetor(486)? Consumido por vigílias e cuidados, arruinada a própria fortuna, e o que mais era, a saúde, D. Pedro suspirava havia muito pelo momento em que pudesse aproveitar a permissão d’elrei para voltar à pátria. Postas as cousas nos termos em que se achavam, só uma circunstância demorava a sua partida. Era a feitura do prometido breve. Depois de se haverem adotado sucessivamente duas ou três redações, este foi afinal expedido, mas pouco depois suspenso. Tinham-no redigido os cardeais Pucci, Del Monte e Ghinucci. Agora o papa ordenava que fosse revisto por este último e pelos dous ex-núncios Sinigaglia e Capodiferro. A balança começava outra vez a pender para o lado dos conversos. A nova comissão acrescentou uma circunstância importante, que a primeira havia omitido. Foi a determinação de um prazo, o de quatro meses, para elrei responder. Era uma limitação obviamente sensata. Debalde o embaixador, a quem isto constara, forcejou para, ao menos, ampliar esse período. Tudo foi inútil; e D. Pedro Mascarenhas, cuja decadência física lhe não consentia uma viagem rápida, teve de enviar o breve por um expresso, para dar tempo a D. João III de adotar pausadamente um arbítrio dentro do prazo fatal(487).

Apesar da modéstia, talvez bem pouco sincera, com que na sua correspondência D. Pedro Mascarenhas se declarava inferior às dificuldades das negociações de que fora incumbido relativas ao tribunal da fé, ninguém as teria por certo conduzido melhor do que ele durante a sua larga residência em Roma, porque as circunstâncias com que teve de lutar foram tão complicadas e difíceis como o leitor viu. Pode-se dizer que, partindo de Roma, deixava os cristãos-novos numa situação mais precária que nunca; e todavia estes tinham empregado naquele período os mais extraordinários esforços para salvar-se. Os seus triunfos haviam sido efêmeros, e fora ele quem lh’os inutilizara. Efetivamente, a situação resumia-se agora em prosseguir a Inquisição como d’antes, e não faltariam expedientes para alongar a época, senão de uma resposta qualquer ao breve que se expedia, ao menos de uma conclusão definitiva sobre o assunto. O interesse da corte portuguesa consistia em não resolver nem fazer cousa alguma. Legítima ou ilegitimamente, o infante arcebispo continuaria a ser inquisidor-mor, e, tendo-o por chefe, os inquisidores desenvolveriam livremente as suas tendências ferozes. A vinda de um núncio, que, peitado pelos conversos, pudesse protegê-los, estava adiada até se chegar a um acordo entre as duas cortes; além de que, neste ponto o próprio interesse tornava Santiquatro o melhor dos procuradores. O embaixador saiu, portanto, de Roma no meado de março, deixando incumbido o italiano Pero Domenico, agente ordinário d’elrei, de vários negócios de menos monta, que trazia pendentes e que não pudera terminar(488).

O breve que D. Pedro Mascarenhas remetera antes de partir, e para cuja redação final tinham sido ouvidos os ex-núncios Sinigaglia e Capodiferro, parecia dever colocar D. João III na necessidade de vir em breve a um acordo difinitivo. Além de se marcar aí o prazo para a resolução sobre os confiscos, declarava-se que as dúvidas sobre a idoneidade do infante D. Henrique para ser inquisidor-mor se resolveriam conjuntamente com est’outro negócio, vista a mútua dependência de ambos(489). Esse alvitre, porém, a que se recorria era ineficaz; porque, desapressados do núncio os inquisidores, e conservada a Inquisição no anterior estado, tanto o provisório da situação desta, como a falta de confirmação do infante podiam prolongar-se indefinidamente. Acrescia que, faltando ainda seis anos para se completar o período de dez, em que, segundo a bula orgânica de 1536, os bens dos sentenciados pela Inquisição ficavam aos seus herdeiros, a demora em dar o carácter de perpetuidade a esta jurisprudência não tinha inconveniente algum prático. Havendo o papa declarado que a abstenção dos confiscos legitimava as pretensões d’elrei nas outras matérias relativas à Inquisição, nada mais razoável do que manter-se tudo na situação em que estava, embora nada se tivesse concluído no fim dos quatro meses marcados para a resposta da corte de Portugal. O único ponto que podia suscitar sérias desavenças era o da enviatura de um núncio, se as diligências dos cristãos-novos vencessem a oposição de Santiquatro. Aí estava o perigo. Parecia extremamente plausível que um delegado pontifício pudesse examinar de perto o procedimento dos inquisidores, e tanto mais plausível se tornaria semelhante providência quanto maiores fossem os clamores dos conversos contra as injustas perseguições de que eram vítimas. Foi de feito nesse campo que, como veremos, veio depois a renovar-se a luta.

O ano de 1540 e os primeiros meses de 1541 parece terem passado sem que entre as cortes de Lisboa e de Roma se alevantassem de novo as discussões tempestuosas que, desde 1533, as agitavam por causa do tribunal da fé. As precedentes considerações explicam aquela temporária bonança, e não admira a falta que se observa de memórias e documentos relativos ao assunto durante esse período. Provavelmente os ministros de D. João III adotaram o sistema das dilações, da hesitação calculada, que em tais circunstâncias era o mais conveniente. Não cessavam, nem podiam cessar, entretanto, os esforços dos conversos para melhorarem a própria situação. A tenebrosa procela, que os ameaçava desde 1536, não espalhara a princípio tantos estragos como se presumia: agora, porém, o trovão rebentava com maior fragor, e as centelhas desciam a fulminá-los, cada vez com mais freqüência. A perseguição crescia e organizava-se. Sentia-se, enfim, que a Inquisição portuguesa ia adquirir aquele carácter de terribilidade que no resto da Península tornara tão temida essa instituição anticristã. Efetivamente, é desde 1540 que achamos multiplicarem-se os processos por delitos contra a fé com sigular rapidez(490). Em lugar oportuno traçaremos o quadro das atrocidades cometidas neste ano e nos imediatos, atrocidades que proporcionavam à cúria romana pretextos plausíveis para seguir a política vacilante de que tantos proveitos auferia, interpondo a sua autoridade entre a Inquisição e os cristãos-novos, quando por esse meio podia despertar a gratidão da raça proscrita ou o temor dos seus implacáveis perseguidores. Agora cumpre referir fatos, que, alheios a princípio ao objeto deste livro, vieram a influir no progresso da luta entre D. João III e os seus súditos hebreus, servindo às vezes para explicar as fases por que essa luta passou até a consolidação definitiva do tribunal da fé.

O bispo de Viseu D. Miguel da Silva, irmão do conde de Portalegre, era naquela conjuntura escrivão da puridade, cargo de que fora revestido em 1525 e que, dadas as diferenças do tempo, equivalia ao de ministro do reino. As circunstâncias da nomeação de D. Miguel ligam-se intimamente com os sucessos ocorridos quinze anos depois. Tinha ele sido educado em França e em Itália, distinguindo-se na sua mocidade por subidos dotes literários. Enviado a Roma como embaixador d’elrei D. Manuel em tempo de Leão X, ali renovara com os homens superiores que ornavam a corte pontifícia, foco de todo o brilho das ciências e das letras naquela época, as suas relações da juventude. Quisera o papa retê-lo perpetuamente ali, dando-lhe a púrpura cardinalícia; mas, ou fosse por um movimento de gratidão e patriotismo, ou porque outras eram as suas ambições, D. Miguel preferiu continuar a servir o seu soberano e a pátria. Subindo ao trono pontifício, Clemente VII pensou em elevar o embaixador português à dignidade que este já uma vez recusara e que, segundo parece, agora se mostrava propenso a aceitar. Soube-o D. João III, cuja política era não consentir houvesse um súdito seu cujas prerrogativas eclesiásticas o fizessem ombrear com os membros da família real. O antigo embaixador foi mandado retirar, sendo substituído por D. Martinho de Portugal. Chegado o novo agente a Roma, D. Miguel da Silva quis mostrar, pelo seu procedimento, que era digno daquela situação a que o queria elevar um príncipe estranho e que lhe negava seu rei natural, a quem longamente servira. Declarou ao papa que a sua tenção era obedecer e sair imediatamente de Roma para Lisboa. Na verdade o sacrifício não era tão grande como pelas aparências se poderia conjecturar. Nos vivos desejos que tinha de obstar ao engrandecimento do seu ministro junto da cúria, D. João III não poupara as promessas de honras e benefícios, promessas que, aliás, mal se cumpriram. Chegando a Portugal, D. Miguel da Silva foi, na verdade, eleito bispo de Viseu e nomeado para o eminente cargo de escrivão da puridade(491). Exercia-o então D. Antonio de Noronha, conde de Linhares, cunhado do bispo; mas este, de certo modo, reputava já sua aquela dignidade, por ter sido escrivão da puridade de D. João III quando príncipe. Confirmado nela, na ocasião em que fora revocado, porque elrei se comprometera a isso com Clemente VII, logo que chegou à corte quis exercer pessoalmente o ofício. O cunhado valido e ainda parente do soberano, disputou-lhe a posse, d’onde procederam entre os dous contendas que se protraíram por alguns meses. A dignidade episcopal não lhe custou menos dissabores: a apresentação ao papa, a impetração da bula para dispor de vários benefícios da sua sé, tudo lhe foi embaraçado por muito tempo. Espalhavam-se acintemente rumores contra o seu procedimento moral, que, de feito, podia não ser dos mais severos, tendo vivido em verdes anos na corte de Leão X. Faziam-se, além disso, inquéritos extra-oficiais tendentes a desacreditá-lo, sendo o secretário Antonio Carneiro, que principalmente o hostilizava, adversário de temer. Obrigado a abandonar as suas esperanças do cardinalato, dando-se-lhe com tão visíveis sinais de repugnância as compensações que o próprio Clemente VII pactuara para ele, todas essas demonstrações de malevolência deviam azedar-lhe o ânimo, e tornar perenes os sentimentos entre o bispo ministro e os seus inimigos, que nunca mais o deixaram readquirir a confiança do soberano. Efetivamente, exercendo D. Miguel da Silva as funções externas e oficiais de primeiro ministro, Antonio Carneiro e, depois, seu filho Pedro de Alcaçova foram sempre aqueles por cujas mãos passavam os negócios de maior vulto, e de quem elrei fiava os segredos mais importantes do estado(492).

A acessão de Paulo III ao sólio pontifício parece ter renovado no bispo de Viseu os desejos e as esperanças de revestir a púrpura. No tempo em que estivera em Roma, havia contraído com o novo papa, então cardeal Farnese, estreita amizade, e as humilhações porque o faziam passar eram incitamento assaz forte para se aproveitar das circunstâncias que o favoreciam. Não é de supor que a afeição de Paulo III fosse tão viva, que se lembrasse de um estrangeiro e ausente para o associar ao sacro colégio: o mais crível é que o bispo ministro solicitasse a promoção. Fosse como fosse, é certo que em dezembro de 1539 o papa criou D. Miguel cardeal, reservando a sua nomeação in petto, isto é, deixando de a publicar, visto que D. Miguel estava ausente(493). Em breve, um sucesso imprevisto pareceu vir facilitar ao bispo de Viseu a fruição da nova dignidade. Já dissemos que a principal causa por que D. João III opunha viva resistência à elevação ao cardinalato de qualquer dos seus súditos era a invencível repugnância que tinha a que algum deles pudesse ombrear com o infante D. Afonso. A morte, porém, deste, ocorrida em abril de 1540, devia destruir esse embaraço. Não sucedeu assim. Tomou D. Miguel por pretexto para se dirigir a Roma o chamamento que o papa fizera para o concílio que se delineava; mas ao solicitar a licença d’elrei recebeu uma recusa positiva. Negando-lhe a permissão pedida, D. João III dava-lhe de conselho que se fingisse doente; mas, como era de prever, o ânimo do prelado achava-se naquela conjuntura possuído do mais profundo horror a mentir a Deus e ao seu vigário na terra. Todavia elrei, que, afeiçoado às cousas eclesiásticas, não era, apesar da sua pouca educação literária, inteiramente hóspede nas sutilezas e distinções casuísticas, observou-lhe que, tendo ele padecido uma longa doença, não seria precisamente mentir dizer para Roma que ainda se considerava enfermo(494). A estes conselhos para praticar uma fraude que não convinha ao bispo opôs ele formal resistência, declarando que nenhuma consideração o obrigaria a ficar em Portugal quando outro era o seu dever. Para obviar às intenções manifestadas pelo prelado ministro, espalhou-se, e talvez sem calúnia, que este comunicara para Roma o que se passava. Verdadeira ou simulada, a cólera d’elrei subiu então ao último auge. Deram-se ordens secretas para o bispo ser trazido de Viseu, onde se achava, preparando-se entretanto uma torre para nela se lhe dar pouco agradável hospedagem; mas ele, que andava pressentido, desapareceu certa noite dos paços episcopais e, saindo do reino, dirigiu-se a Itália, aonde o chamavam os seus ambiciosos desígnios(495). Sabida a nova, escreveu-se logo a Santiquatro e a Christovam de Sousa, que sucedera a D. Pedro Mascarenhas na embaixada de Roma, para que narrassem ao papa aquele estranho sucesso e lhe requeressem que, se o fugitivo prelado aí chegasse, não lhe desse ouvidos e nem sequer o recebesse. Após estas cartas, foi enviado um agente extraordinário, Jorge de Bairros, para tratar especialmente daquele assunto. Enquanto se tomavam estas providências hostis, ordenava-se a partida de D. Jorge da Silva, filho do conde de Portalegre e sobrinho do fugitivo prelado, para que trabalhasse em reduzi-lo a voltar à pátria. Levava cartas d’elrei para D. Miguel redigidas por Pedro de Alcaçova, as quais eram um modelo de dissimulação. Com doces palavras tentavam convencê-lo de que cometera uma imprudência em fugir a ocultas do reino, e de que devia voltar, ao menos para guardar as aparências e como prova de sujeição, podendo depois sair livremente, conforme lhe aprouvesse. Para afastar todos os receios mandava-se-lhe uma carta de seguro solene em que se lhe afiançava a vida e a liberdade. Conhecia, porém, o bispo a corte de D. João III, tinha amigos poderosos no seu país, e d’aqui recebia avisos do que se tramava. O sobrinho havia-o encontrado em Plasencia, e para D. Miguel retroceder era-lhe forçoso passar pelos estados de Carlos V. Sabia que o imperador fora prevenido pelo cunhado acerca da sua fuga, sendo o embaixador castelhano quem mais trabalhava contra ele em Roma. Sabia também que os ministros e magistrados do império não eram obrigados a respeitar um salvo-conduto só válido em Portugal. Efetivamente, as ordens para o prenderem tinham-se enviado por toda a parte(496). À astúcia opôs uma audácia que não excluía a dissimulação. Escreveu a D. João III, declarando que com rendida submissão voltaria à pátria, se lhe dessem carta de seguro, não d’elrei, de quem se não temia, mas dos seus inimigos. Mais de uma vez fora ameaçado de morte, até na presença do monarca, por pessoas a quem não podia dar condigna resposta(497). A sua vida carecia de segurança; a sua honra de desagravo. Os apontamentos das providências que requeria para regressar eram tais, que pareciam impossíveis de conceder: o seguro real seria contra todos os que podiam maltratá-lo sem distinção de jerarquia; os infantes escrever-lhe-iam com promessas de se lhe dar satisfação e com todas as demonstrações de benevolência; os seus caluniadores seriam punidos; elrei não faria indagações acerca do seu procedimento, nem daria ouvidos aos seus êmulos; ele iria residir na sua diocese, expulsando-se de Viseu os indivíduos que designava; ausente da corte, continuaria a ser escrivão da puridade, servindo em seu lugar quem ele quisesse(498). Enfim, exigia quantas cousas podiam excitar o ânimo irritado d’elrei a uma negativa completa. Sucedeu, porém, o contrário. Não tardou a receber um alvará, em que se lhe concedia quanto mostrava desejar. Acompanhavam o diploma cartas d’elrei e dos infantes, nas quais não se poupavam as expressões de benevolência. Da mesma linguagem se usava, falando do bispo, com seu irmão o conde de Portalegre. Tudo, portanto, devia mover D. Miguel a regressar à pátria; e efetivamente, D. Jorge partiu de Plasencia com cartas de seu tio em que anunciava que voltaria com a maior brevidade. Nem a tenção, porém, d’elrei era cumprir as amplas concessões que fizera, nem a do bispo vir meter-se nas mãos dos seus inimigos. Mentia-se de parte a parte. Após D. Jorge da Silva, saíra de Portugal para Itália um certo capitão Correia, munido de avultadas somas e acompanhado de soldados e espias disfarçados que seguiam D. Miguel por toda a parte. Esse homem fizera revelações imprudentes acerca de quem o enviava, e acerca das ordens que recebera para o bispo ser assassinado(499). Se acreditarmos o que este depois dizia, aquele sicário fora assalariado por um dos infantes por ordem d’elrei(500). Saindo de Plasencia para Bolonha, Correia seguiu-o, persuadido de que ele ignorava as suas intenções. O prelado tinha-se, porém, prevenido, e o assassino andava vigiado. Na carta a elrei, enviada por mão do sobrinho, D. Miguel aludira com arte a esse fato, atribuindo tão indigno procedimento, não a elrei, mas aos seus implacáveis inimigos, e pedindo ao monarca lhe servisse de escudo quando se achasse de volta, porque quem tão longe o mandava assassinar não lhe pouparia a vida em Portugal. Passando por Bolonha naquela conjuntura o bispo de S. Tomé, frade dominicano e pessoa benquista na corte, o foragido prelado encarregou-o de contar em Lisboa o que vira e, por assim dizer, palpara. Mais de uma vez D. Miguel tivera em seu poder o assassino, e ele próprio lhe dera fuga para salvar a honra da coroa de Portugal(501). Não respondeu elrei diretamente às cartas do bispo, mas ordenou ao conde de Portalegre e ao arcebispo de Lisboa que lhe escrevessem, declarando-lhe que ele achava justos os seus temores, e que daria todas as providências necessárias para o defender de quaisquer ciladas. Longe estava D. Miguel da tentação de nelas cair; mas continuou a dar demonstrações em contrário, demonstrações que deviam justificá-lo depois. Pediu um salvo-conduto para passar pelos estados de Carlos V: negou-lh’o o imperador. Contava com isso. Esta negativa, que tinha por fundamento as solicitações feitas pela corte de Portugal, provava que as promessas, as concessões, a linguagem benévola desta não passavam de laços armados à sua credulidade. De acordo, provavelmente, com o papa, partiu então para Veneza, onde devia residir enquanto não chegava a conjuntura oportuna para ser publicamente proclamado cardeal(502).

Estas mútuas mensagens e respostas, e as intrigas subterrâneas de que eram acompanhadas protraíram-se durante os últimos meses de 1540 e por grande parte do ano seguinte. Com os avisos de Portugal, Santiquatro, o embaixador Christovam de Sousa e Jorge de Bairros haviam feito todas as demonstrações para obstar ao que, talvez, supunham apenas uma pretensão de D. Miguel da Silva e que, na realidade, era um fato consumado, embora ainda não oficialmente conhecido. Às representações por parte de D. João III, em que se lhe narrava a fuga do bispo e se lhe manifestavam as benévolas intenções do monarca acerca dele, o papa respondera aceitando também um papel naquela comédia de mútuos enganos, em que, aliás, ninguém, provavelmente, era enganado. Encarecendo o seu profundo pezar pelo procedimento do prelado, prometera fazer os últimos esforços para o persuadir a voltar à pátria(503). É de crer que este compromisso de Paulo III fosse o principal motivo de D. Miguel da Silva ir estabelecer por algum tempo a sua residência em Veneza. Todavia, naquela luta de dissimulação e deslealdade, os ministros de D. João III tinham irreflexivamente dado armas ao seu adversário, à força de pretenderem iludi-lo para o colherem às mãos. Nas cartas escritas em nome d’elrei havia-se reconhecido a legitimidade de todos os queixumes do bispo, e dado um testemunho imprudente dos seus dotes pessoais e dos seus longos serviços, ao passo que o ódio do soberano se dissimulava debaixo das expressões de ilimitada afeição. Transmitidas para Roma, estas cartas, que desmentiam a linguagem dos agentes de Portugal, tiravam toda a força às suas súplicas(504). Na própria carta dirigida ao papa, as queixas misturavam-se com as promessas de honras e benefícios para o foragido. Qual era a conseqüência de tudo isso? Era que a púrpura assentava bem nos ombros de um homem tão digno e que tanto se desejava tornasse para Portugal. O que principalmente obstava às ambições, já meias realizadas, de D. Miguel, eram as insinuações de Carlos V e as diligências do seu ministro em Roma, oposição muito mais séria do que a d’elrei, numa corte que, sobretudo, respeitava as conveniências políticas(505).

Ao passo que se agitava esta questão, insignificante em si, mas que a ambição de um velho clérigo e o orgulho, ou antes a vaidade, d’elrei e dos seus irmãos davam uma importância que ela não tinha, tratava-se na cúria romana negócio mais grave. Os prazos limitados a D. Pedro Mascarenhas, para se concluir um acordo entre elrei e o papa acerca da Inquisição e dos conversos, tinham passado havia muito nos meados de 1541, sem que se chegasse a conclusão alguma. Ao menos, como já advertimos, não se encontram vestígios nem de negociações nem de atos pontifícios relativos ao assunto desde a partida de D. Pedro Mascarenhas de Roma na primavera de 1540 até essa época. A intolerância caminhava em Portugal desassombrada. Entretanto, os cristãos-novos, aterrados pelo desenvolvimento que tomara a perseguição, concentravam todos os seus esforços em obterem o único meio de salvação ou, pelo menos, de alívio, a que, na sua situação, podiam aspirar. Não deixavam, contudo, de também insistir na expedição da bula declaratória que não chegara a intimar-se, acrescentando-se-lhe novas e mais terminantes provisões, e de solicitar que se abolissem por uma vez os confiscos, o que tudo lhes prometera Paulo III por intervenção de Capodiferro(506). Não se ignoravam em Portugal estas promessas e aquelas diligências, porque o próprio papa assim o anunciara a Christovam de Sousa, concedendo-lhe apenas dous meses de espera para que pudesse comunicar à sua corte a resolução em que estava de atender às súplicas dos perseguidos. Deram-se, por isso, mais apertadas instruções ao embaixador para se opor à nomeação de novo núncio, as quais chegaram a Roma nos princípios de agosto, na conjuntura em que o papa ia partir para Lucca, onde havia de encontrar-se com o imperador, para tratarem de vários assuntos políticos(507). Era preciso aproveitar o tempo. Numa audiência que obteve, Christovam de Sousa leu ao pontífice, vertendo-as ora em latim ora em italiano, as instruções que recebera do seu soberano acerca da enviatura do núncio(508). O papa, acabada a leitura e ouvidas as ponderações do embaixador, ergueu-se visivelmente agastado e, passeando pelo aposento, repetia o sinal da cruz. Na sua opinião, era o demônio quem inspirava tão desarrazoada insistência(509). A nunciaturam devia pedi-la de Portugal, em vez de a repelir; porque ali achavam pronto despacho com menos dispêndio os que solicitavam graças da sé apostólica. Pelo que dizia respeito à Inquisição, afirmava que ninguém podia duvidar do direito e dever que ele tinha de vigiar, por um delegado seu, o procedimento dos inquisidores, contra os quais tantos queixumes subiam ao sólio pontifício; que a apelação para o núncio era inevitável, e que lhe cumpria ter tanta mais vigilância em impedir as violências e injustiças nascidas do ódio dos cristãos-velhos contra os novos, quanto era certo que a responsabilidade moral dos atos da Inquisição recaía principalmente sobre ele, que a instituira. A estas ponderações acrescentou um sem número de outras que o faziam considerar a residência de um núncio em Portugal como questão em que lhe não era lícito transigir. Seguindo as tradições do seu antecessor, Christovam de Sousa replicou audazmente; porque estava bem informado dos motivos que induziam o papa a tanta obstinação. Diogo Antonio, que não procedera, segundo parece, com mais limpeza de mãos do que Duarte da Paz, fora substituido como procurador dos cristãos-novos por um certo Diogo Fernandes Neto, indivíduo de maior confiança. A este subministravam os chefes da raça hebréia em Portugal avultadas quantias por intervenção de Diogo Mendes, cristão-novo riquíssimo, estabelecido em Flandres. O cardeal Parisio, que, sendo ainda professor em Bolonha, escrevera largamente a favor dos hebreus portugueses, era agora o protetor deles, e o leitor, que já conhece quais fossem os costumes da cúria romana, adivinha por certo as causas que o moviam a protegê-los. Fernandes tinha-lhe prometido avultadas quantias no caso de se obter o restabelecimento da nunciatura, e o próprio Paulo III devia receber por isso oito ou dez mil cruzados, ao passo que o futuro núncio desfrutaria uma pensão mensal de duzentos e cinqüenta cruzados(510). Tais eram os contratos repugnantes que inspiravam a renovada piedade da cúria romana pelas vítimas da Inquisição.

Esses atos de flagrante imoralidade, ocultos aos olhos do vulgo, mas sabidos pelo embaixador português, habilitavam este para responder com energia às estudadas ponderações de Paulo III. Tinha verdades amargas que opor aos seus pretensos escrúpulos. Lembrou-lhe que havia muitos indivíduos na cúria que solicitavam o cargo de núncio em Portugal, e que por isso era lícito suspeitar que influía mais o interesse privado do que o da justiça no ânimo daqueles que sustentavam a conveniência de se manter em Lisboa um delegado apostólico. Os pretendentes não ignoravam que Sinigaglia levara para Itália o melhor de trinta mil cruzados, e que outro tanto teria levado Capodiferro, se as tempestades e os corsários turcos lhe não houvessem destruído o fruto das suas rapinas. Interrompido pelo papa, que tentava defender a honra dos dous ex-núncios, Christovam de Sousa reduziu-o ao silêncio, recordando-lhe que os atos de corrupção de ambos eram tão notórios que não admitiam dúvida, e que no próprio tribunal da Rota romana fora Sinigaglia inibido das suas funções e excomungado por motivos que, de certo, não eram para ele honrosos. A audiência ia tomando o carácter de altercação violenta. Às alusões pungentes que saíam da boca do embaixador respondia o papa com a contumácia que era própria do seu carácter e que neste caso parecia legitimar as suspeitas que sobre ele se lançavam. As únicas concessões que fazia eram enviar o núncio só temporariamente e limitar-lhe os poderes. Neste apuro, Christovam de Sousa procurou reduzi-lo pelo temor. Pediu-lhe licença para expor em consistório público os motivos por que o governo português se opunha à enviatura do núncio. Tinha instruções e avisos de Portugal, além dos que lhe patenteava, para fundamentar perante o sacro colégio a sua insistência. Ao mesmo tempo declarou-lhe formalmente que, sendo o principal pretexto que se tomava para enviar a Lisboa um delegado apostólico os queixumes contra a Inquisição, o seu soberano preferia a suspensão do tribunal a aceitar o agente de Roma. Mas esta supressão absoluta, acabando a contenda entre elrei e a raça hebréia, secava uma fonte caudal de proventos para a cúria, ao passo que a publicidade da discussão, para que apelava Christovam de Sousa, era o que mais temia o papa(511). Guardando silêncio por largo espaço e vacilando no meio de encontrados impulsos, Paulo III despediu, enfim, o embaixador, prometendo-lhe que abandonaria os seus desígnios, se os cardeais que estava resolvido a consultar sobre o assunto entendessem que nesse ato de condescendência não faltava aos seus deveres de supremo pastor. Sabendo que os membros do sacro colégio com quem o papa consultava então semelhantes matérias eram os cardeais Carpi, Teotino e Parisio, Christovam de Sousa recorreu a todos os meios para os tornar favoráveis, bem como o cardeal Farnese. Ao mesmo tempo escrevia a Santiquatro, que então se achava em Pistoia, pintando-lhe com vivas cores o perigo da situação, perigo comum para eles, cujos interesses, como penitenciário-mor, padeceriam igualmente com o restabelecimento da nunciatura. Pucci dirigiu imediatamente uma carta a Farnese e outra ao papa, a qual lhe devia ser entregue pelo embaixador. Carpi, Teotino e Farnese prometiam a este inteiro favor, e o próprio Parisio lhe fazia crer que não se oporia formalmente às suas pretensões. Enfim o pontífice, partindo de Roma nos últimos dias de agosto, assegurava a Christovam de Sousa que em Lucca tomaria uma resolução definitiva sobre a questão da nunciatura(512).

Entretanto o procurador dos conversos não estava ocioso. Tanto em Roma, como seguindo Paulo III na sua viagem, não cessava de lhe representar publicamente contra as tiranias dos inquisidores, exagerando-as. Segundo afirmava, as fogueiras ardiam de contínuo, e as masmorras estavam atulhadas de milhares de presos. Valera-se o papa daquelas afirmativas para tornar numa questão de consciência a enviatura do núncio. Negava, porém, o embaixador o fato, e até alguns conversos, entre os quais se contava Ayres Vaz, o astrólogo, confessavam haver exageração nas queixas de Diogo Fernandes(513).

No meio das intrigas que resultavam dessa luta e que a protraíam, o papa levava após si o embaixador de cidade em cidade através dos estados pontifícios, sem resolver cousa alguma e sem, ao menos, o escutar. Era melindrosa a sua situação. Pretendia e esperava obter para seu neto, o cardeal Farnese, uma pensão sobre os réditos da abadia de Alcobaça, e por isso importava-lhe não romper abertamente com D. João III. Por outro lado, as ofertas dos conversos não eram de desprezar. Convinha, pois, conciliar os dous interesses, e as dilações ofereciam um meio seguro de chegar a esse fim. Por diligências de Santiquatro, que se ajuntara em Pistoia à comitiva do pontífice, e tendo o embaixador recebido despachos de Portugal, em que era possível vir resolvida a pretensão de Farnese, o papa concedeu uma audiência em Bolonha a Christovam de Sousa. Mas os ministros de D. João III também eram astutos, e a mercê esperada por Farnese não chegara. Tratou-se a questão da nunciatura. As mútuas reconvenções da última audiência em Roma repetiram-se nesta ainda com mais violência. Santiquatro falou com ardor, invectivando Sinigalia e Capodiferro. Inspirava-o sobretudo o próprio interesse ferido(514). A consciência, porém, do papa recobrara novos brios, e os clamores dos conversos levavam-no a manter a resolução em que dera mostras de afrouxar. O calor do debate e os ímpetos da cólera afugentavam o decoro, e o ruído das vozes desentoadas obrigou o camareiro do pontífice a fazer despejar a sala contígua para evitar o escândalo(515). No meio da discussão, o papa chegou a confessar que o futuro núncio receberia dos conversos um subsídio mensal, no que ele, com grande espanto do embaixador, não via inconveniente algum, tal era a perversão das idéias na cúria romana. Invocava Christovam de Sousa certas frases que Paulo III proferira perante o geral dos franciscanos sobre as intenções que tinha de condescender com os desejos de D. João III; mas ele negou que tais palavras importassem a idéia de trair os deveres do supremo pastor e pai comum dos fiéis, se os desejos do soberano estivessem em contradição com esses deveres. Numa nova audiência em Bolonha, o embaixador convenceu-se, enfim, de que Parisio e os demais protetores dos cristãos-novos, ou, para melhor dizer, o ouro e as promessas destes preponderavam na cúria. O despeito e o cansaço de tão aturada luta incitavam-no a sair por alguns dias daquela atmosfera de intrigas e prevaricações. Precisava de ar e de espaço. Paulo III tinha-lhe prometido não tomar nenhuma resolução definitiva sem lh’a comunicar: não havia, portanto, perigo em abandonar por algum tempo o séquito do pontífice. Partiu, pois para Veneza, d’onde devia vir encontrar a comitiva papal em Rimini, na sua volta para Roma(516).

Vimos anteriormente que o bispo D. Miguel da Silva fora residir em Veneza enquanto não se dava a oportunidade de ser declarado solenemente cardeal. Apenas soube ter ali chegado o embaixador, buscou-o. Fugira Christovam de Sousa desse dédalo de astúcias e deslealdades chamado a cúria romana, mas encontrava em Veneza um homem digno de figurar entre os curiais pela dissimulação. Duas horas durou a visita, e por duas horas se repetiram os protestos do bispo acerca dos seus vivos desejos de voltar a Portugal. Estava profundamente comovido pelas cartas d’elrei e penhorado pelas demonstrações de benevolência que tinha ultimamente recebido do monarca e de seus irmãos. À observação, um pouco irônica, do embaixador, de que lhe era fácil matar as saudades da pátria regressando sem detença à sua diocese, replicou o artificioso prelado que só esperava para o fazer a vinda de seu sobrinho com as últimas ordens d’elrei a semelhante respeito. Consolavam-no tão somente da tardança os serviços políticos que em Veneza tinha ocasião de fazer à coroa. Na exposição destes serviços buscava, porventura, sondar o ânimo de Christovam de Sousa, ou obter dele algumas revelações, mas os seus esforços foram baldados, porque o embaixador estava precavido pelo mau conceito que formava de D. Miguel. Na sua opinião, o bispo vivia, falava e procedia como se fosse italiano, dizendo sempre uma cousa por outra; porque em Itália o sistema adotado para tratar qualquer negócio consistia, sobretudo, em nunca falar verdade(517). Tomando por pretexto as poucas horas que tinha para ver Veneza, Christovam de Sousa despediu o bispo, evitando por este modo alguma indiscrição involuntária. Poucos dias depois, tendo voltado da sua excursão, seguia o papa de Rimini até Roma, mostrando-se para com ele mais obsequioso do que nenhum outro cortesão, e escondendo assim o seu profundo despeito. Era que tinha sabido aproveitar as lições da diplomacia italiana(518).

Paulo III regressara à sua capital nos últimos dias de outubro. Os ressentimentos que as discussões ardentes de Bolonha podiam ter suscitado deviam achar-se inteiramente mitigados com as mostras de resignação dadas pelo embaixador português, e este não abandonara de todo as suas esperanças. Assim, aos redobrados esforços dos agentes dos cristãos-novos para o pronto despacho do núncio opunha diariamente novas ponderações e súplicas. Chegou a oferecer de novo, por parte d’elrei, a abstenção perpétua dos confiscos. Era uma oferta ilusória, na opinião do papa; porque a Inquisição exorbitava de tudo e quebrava todos os princípios, tendo, pouco havia, sido queimados alguns conversos, depois de lhes aceitarem a apelação interposta para Roma; além de que, supondo que ainda houvesse alguma cousa que se respeitasse, não era por enquanto necessário tratar a questão dos confiscos, visto faltarem ainda dous anos para terminar o período em que deles estavam exemptos os réus de judaísmo. Negando os atos odiosos de que a Inquisição era acusada, o embaixador sugeriu, por intervenção de Santiquatro, um arbítrio, contra o qual parecia não haver a opor cousa alguma razoável. Era mandar-se a Portugal, à custa d’elrei, um letrado hábil que sindicasse do procedimento dos inquisidores, decidindo-se depois a questão da enviatura ou não enviatura do núncio conforme o resultado do inquérito. Agradou geralmente o arbítrio aos cardeais; o papa aceitou-o por fim, talvez cansado de importunações, e a idéia de despachar imediatamente um delegado apostólico esmoreceu por algum tempo. Entretanto, o embaixador apressava-se a comunicar à sua corte a concessão que obtivera, prevenindo elrei a tempo, a fim de poder peitar o sindicante e ditar-lhe as informações convenientes para se combater com vantagem o restabelecimento da nunciatura(519). Aconselhava, além disso, que por nenhum modo perseguissem os procuradores dos conversos ou os que lhes subministravam recursos, o que produziria péssimo efeito em Roma, buscando-se outro qualquer meio para tornar menos ativos os primeiros e menos generosos os segundos. Esse meio que, aliás, o embaixador não apontava, era obviamente a corrupção(520).

No mesmo dia, porém, em que Christovam de Sousa anunciava para Portugal um acordo que, se não decidia a questão, tornava possível, contudo, adiando-a, uma solução mais conforme com os desejos de D. João III, verificava-se um fato que, necessariamente, devia trazer o rompimento entre as duas cortes. D. Miguel da Silva era nesse dia proclamado cardeal e chamado a tomar assento no sacro colégio(521). Porque esta manifestação se demorara tanto, ou porque aparecera em tal conjuntura não nos seria fácil dizê-lo. O mesmo mensageiro, por quem o embaixador transmitia a elrei o estado dos negócios pendentes e as fases por que estes haviam passado nos últimos meses, trouxe, provavelmente, a notícia daquele impensado sucesso(522). O papa e o bispo haviam, enfim, tirado a máscara: podiam também tirá-la o rei e os seus ministros. As blandícias, as promessas, os convites para voltar à pátria, com que tinham procurado colher no fojo o astuto velho, eram desde agora inúteis. Assim, a manifestação do despeito e do ódio, comprimida por tanto tempo, deixara de ser inconveniente. O primeiro ato do governo foi expedir uma carta régia fulminante contra o novo cardeal. Expunha-se aí o procedimento do prelado à luz mais odiosa; mas, como era natural, ocultava-se a causa verdadeira do castigo. Nesse notável documento D. Miguel era simplesmente considerado como bispo, e nem sequer havia uma alusão à púrpura que revestira, como se ao poder civil fosse lícito deixar de reconhecer uma dignidade que ao papa e só ao papa pertencia conferir. Os fundamentos daquele diploma, cuja redação traía a cólera cega que a inspirara, eram que o bispo, cheio de cargos e honras, obrigado por seus juramentos a servir lealmente elrei, e como vassalo a obedecer-lhe, saíra a ocultas de Portugal contra a expressa proibição do soberano, levando consigo papéis que continham segredos do estado, e que existiam em suas mãos como escrivão da puridade, a quem se comunicavam os mais importantes negócios; que, depois disto, revocado à pátria por um excesso de benignidade, e favorecido com uma carta de seguro para voltar sem receio de castigo, se mantivera pertinaz na desobediência, atos que o tornavam indigno de perdão. Assim elrei privava-o do cargo e de todas as honras e mercês que recebera da coroa, desnaturando-o da pátria e tirando-lhe os direitos de cidadão. Esta excomunhão política estendia-se a todos os que seguissem o ausente prelado, com ele tivessem correspondência, ou tratassem de negócios seus. A ninguém seria permitido celebrar com ele nenhuma espécie de contrato gratuito ou oneroso, nem legar-lhe em testamento cousa alguma, ou ser seu herdeiro. Deste modo o orgulho do rei devoto fulminava o réu de cardinalato ainda além da sepultura(523).

A este ato, desonroso para a majestade do trono, supostos os motivos que o inspiravam, seguiu-se uma viva demonstração de despeito contra a corte de Roma, demonstração que todas as deslealdades e torpezas de que o próprio D. João III por mais de uma vez a acusara nunca tinham podido arrancar à corte de Portugal. Expediu-se um expresso a Christovam de Sousa para que, se o papa não desse nesse caso condigna satisfação, ele e Jorge de Bairros saíssem de Roma(524). É notável que, bem como D. Henrique de Meneses e como D. Pedro Mascarenhas, Sousa, respondendo à carta d’elrei, agradecesse a este a mercê de o tirar da capital do mundo católico; dessa Roma que comparava à prostituída Babilônia, e onde os poucos dias que lhe restavam de demora eram para ele como se jazesse no inferno(525).

A brevidade com que o embaixador contava voltar a Portugal nascia da falta da exigida satisfação; posto que, na verdade, esta fosse difícil de dar. Não podia o pontífice demitir D. Miguel da dignidade cardinalícia, e só esse ato insólito aplacaria o ânimo irritado d’elrei. Paulo III, porém, estribava a legitimidade do seu procedimento, não na impossibilidade de retroceder, mas sim nas cartas dirigidas oficialmente e extra-oficialmente ao bispo de Viseu para o iludir, e cujo contexto ele opusera sempre às representações de Christovam de Sousa e de Jorge de Bairros. Desenganados da inutilidade de ulteriores diligências, o embaixador e o seu colega abandonaram a corte de Roma, tendo ocultado ao próprio Santiquatro as instruções recebidas, até o dia em que pediram ao papa a audiência de despendida(526). Obrigava-os a essa reserva o receio de que, sabido o rompimento entre as duas cortes, se lhes negasse a expedição de vários negócios já resolvidos; e receavam-no porque conheciam a índole da cúria romana(527).

Revestida a púrpura, D. Miguel tirara, enfim, a máscara. A explosão devia ser tanto maior quanto maior fora a necessidade de opor durante mais de um ano a dissimulação à dissimulação. À carta régia que o exautorava replicou com uma espécie de manifesto, onde, salvando até onde era possível a responsabilidade pessoal de D. João III, e lançando tudo à conta dos seus ministros, revelava, ao menos no que lhe convinha, a torpeza da corte de Portugal e vindicava o próprio procedimento das acusações formuladas naquele diploma, pelo qual fora condenado sem processo à morte civil, sendo elrei juiz e parte. Desmentia formalmente a afirmativa de que, saindo da pátria, houvesse levado consigo papéis alguns do estado, visto que só nominalmente era escrivão da puridade. Narrava os meios desonestos a que se havia recorrido para impedir a sua partida para Itália, aonde o chamava o papa, a quem neste ponto era, como bispo, obrigado a obedecer, tratando-se a celebração de um concílio. Ludibriava a afetação com que na carta da desnaturação o nomeavam sempre como bispo de Viseu, e as declarações feitas na cúria por Santiquatro, de que elrei procedia contra o bispo e não contra o cardeal, como se a distinção fosse possível, e não houvesse a mesma quebra da justiça e das imunidades eclesiásticas, em se proceder de tal modo contra um prelado diocesano ou contra um membro do sacro colégio. Compendiava todas as afrontas e desgostos que fora obrigado a tragar desde que voltara de Roma a Portugal e, sem negar as mercês que recebera de D. João III, recordava-lhe que a necessidade de fazer tais mercês lhe fora, a bem dizer, imposta por Clemente VII. Invocava a franqueza com que falara ao soberano sobre a sua saída do reino, os alvitres vergonhosos que lhe haviam sido inculcados para desobedecer ao pontífice, a dignidade com que ele repelira tão odiosos expedientes. Afirmava que nessa conjuntura se lhe não pusera proibição expressa de sair de Portugal, e só sim quando o quiseram prender sobre pretexto de relações ilícitas com a cúria romana. Expunha largamente o que se tinha posto por obra para o persuadirem a voltar à pátria, os elogios que se lhe teciam, as artes, em suma, que se haviam empregado para o ilaquear, ao passo que se procurava fazê-lo cair debaixo dos punhais dos assassinos. Nesta parte o manifesto era fulminante, porque, acerca de todas essas infâmias, D. Miguel invocava o testemunho do bispo de S. Tomé, o de Santiquatro e o do próprio Paulo III. Do fato de lhe recusar Carlos V uma carta de seguro para passar pelos seus estados, com o fundamento de que a isso obstavam as recomendações que a tal respeito tinha do cunhado, deduziu D. Miguel que seria preso ou ainda morto antes de chegar a Portugal, se não tivesse verificado por esse modo que as expressões de benevolência que lhe dirigiam de Lisboa eram uma verdadeira cilada; tanto assim, que, argumentando sua santidade com Santiquatro acerca da inocência e dos merecimentos dele D. Miguel, e invocando o testemunho do próprio governo português, dado nas cartas em que D, João III o revocava à pátria, o cardeal protetor declarara de plano que tais cartas não passavam de um laço para o colherem às mãos, e que o resultado só provava que o bispo fora mais astuto do que o monarca. Terminando pela apreciação das penas que se fulminavam contra ele, ridiculizava o demitirem-no de um cargo que ele próprio resignara oficialmente, e que, decerto, não havia de acumular com o cardinalato. Fazia-o também sorrir o riscarem-no do registro dos nobres e vassalos, e esbulharem-no de todas as mercês, bens e rendas havidas por ele da coroa. Nada tinha desta, salvo o que lhe provinha dos benefícios eclesiásticos, acerca dos quais só ao papa tocava dispor. Aquele vão aparato de espoliação era, em seu entender, para iludir os ignorantes e fazê-lo passar por ingrato ao rei depois de recebidas deste avultadas mercês. Apreciando a parte da carta régia que o bania e privava dos foros de cidadão, mostrava que o governo ultrapassara nisso as suas atribuições e ferira as regras mais triviais do direito civil e do canônico. Concluía o novo cardeal o seu longo arrazoado, afirmando que em todo aquele notável documento não havia senão uma cousa verdadeira, o dizer-se que ele se chamava D. Miguel da Silva. Tudo o mais era um tecido de disparates e fábulas(528).

Depois de tantos disfarces e ocultos meneios, a guerra tinha, enfim, rompido implacável entre elrei e o cardeal da Silva. Supostos os termos a que as cousas haviam chegado, nenhum deles devia esquecer meio algum de mutuamente se ofenderem. Um dos que mais obviamente se ofereciam a D. Miguel consistia em se ligar com os cristãos-novos e ser o seu mais enérgico protetor na cúria. Hostilizar a Inquisição era ferir elrei numa das suas mais caras afeições, e ao velho prelado não faltavam para isso recursos, não só como membro do sacro colégio, mas também como amigo pessoal do papa, circunstância importante e que tinha dobrada força por se dar igualmente em outro português com quem D. Miguel podia ir de acordo na empresa. Era ele o médico Ayres Vaz, ao qual a Inquisição tivera o desacordo de consentir fosse justificar-se em Roma. Ali, Ayres Vaz achara em Paulo III um sectário da ciência astrológica, e o papa e o hebreu vieram brevemente a unir-se pela simpatia que nasce da identidade de estudos e opiniões. O pontífice fez Ayres Vaz seu clérigo, familiar e comensal, e para mostrar o apreço em que o tinha, expediu uma bula na qual exemptava da jurisdição dos inquisidores, não só todos os parentes, ainda os mais remotos, do seu colega em astrologia, mas até os advogados que em Lisboa o haviam defendido perante o tribunal da fé, bem como as suas respectivas famílias(529). Com as esperanças que nasciam destas duas influências, que parecia deverem ser eficazes, e do rompimento entre elrei e o papa, os agentes dos conversos podiam empregar com probabilidade de bom êxito novos esforços para se melhorarem nesse rude combate de vida ou morte, que com eles se travara. Incitava-os não só a oportunidade do ensejo, mas igualmente o progresso da perseguição, a qual ia tomando maiores dimensões, e se tornava cada vez mais intolerável. A intervenção de D. Miguel da Silva naquele negócio, e as novas fases por que a luta passou até o que se pode considerar como o seu definitivo desfecho, darão matéria ao resto desta tentativa histórica. Desde esse desfecho, as resistências e os esforços dos hebreus portugueses não são mais do que o estrebuchar da presa moribunda nas garras da besta-fera. Fica tudo: a atrocidade dos inquisidores, a dobrez e a cobiça da cúria romana, o fanatismo dos multidões, a hipocrisia de muitos, e a corrupção de quase todos; mas falta a esperança, ao menos a esperança fundada e plausível, das vítimas. No fim de vinte anos de negruras, de traições, de crimes, de vilanias de toda a espécie, a Inquisição, assentada sobre sólidas bases, cessa de temer a própria ruína. Roma ousa apenas disputar-lhe a espaços algumas vítimas, e nem sempre nessas disputas Roma obtém o triunfo. Ao espetáculo variado que temos visto representar, e a que ainda faltam as cenas de um período de seis anos, sucede o silêncio, só interrompido pelo crepitar monótono das fogueiras, pelo correr dos ferrolhos nos cárceres que se convertem em sepulcros, e pelos gemidos que se alevantam do meio das hecatombas. É a tragédia de Alfieri depois da de Shakespeare. Que o leitor indulgente nos siga ainda através dos últimos recessos deste pandemônio repugnante onde o fizemos entrar e que uma luz sinistra alumia. Acabará de convencer-se de que a sociedade desses tempos, que ignorantes ou hipócritas ousam propor-nos como modelo, não só estava longe de valer a atual, mas também, considerada de um modo absoluto, era profundamente depravada. Não serão ilações ou conjecturas nossas que pintarão aquela época de decadência moral: serão as frases inflexíveis dos documentos, as palavras dos principais atores de tão longo drama, que nos subministrarão, como até aqui, a contextura da restante narrativa.

Fim do tomo II

Notas

(195) Carta de Santiquatro a D. João III, na G. 2, M. 5, N.º 51, no Arqu. Nac.

(196) «O modo que se nisso teve é indevido e desordenado, querer passar as ditas provisões (as da bula de perdão) a petição das partes sem querer ouvir primeiro o embaixador». Minuta d’Instruç. a D. Mastinho, G. 2, M. 2, N.º 35.

(197) Bula Sempiterno Regi, na G. 2, M. 2, N.º 11, e no Coletório das Bulas do Santo-Ofício, f. 32. Omitimos algumas circunstâncias secundárias desta extensa bula por não serem essenciais para a inteligência da subseqüente narrativa.

(198) Bula de 10 de fevereiro, no M. 13 de Bulas N.º 8, no Arqu. Nac. Nos Anais de D. João III por Sousa (Memor. e Doc., p. 378) encontra-se memória de 15:000 cruzados remetidos em fevereiro de 1532 a D. Martinho para certos gastos. Esta soma não parece ter sido destinada ao negócio da Inquisição, como se poderia suspeitar, mas sim ao da ereção do bispado do Funchal em metrópole das Índias.

(199) Carta de Santiquatro, l. cit.

(200) Ibid.

(201) Esta memória, que se acha na G. 2, M. 2, N.º 29, é, sem dúvida, feita logo que a bula de 7 de abril chegou a Portugal; porque, depois de indicar rapidamente os fatos anteriores e aludir ao breve que suspendera a Inquisição, acrescenta: «os ditos cristãos-novos ouverão agora outra bulla de perdão, etc.». Santiquatro diz expressamente que elrei «hauendo de cio notizia (da expedição da bula de 7 de abril) fece scriuere per il nuntio a la santitá di N. S. pregando quella uolesse reuocare 1’esecutione della detta bolla». Carta de Santiquatro, l. cit.

(202) Memória, l. cit.

(203) Ibid. — O breve do mês de julho dirigido ao núncio não o encontrámos; mas a sua existência e objeto mencionam-se no Memorial dos cristãos-novos. Symm., vol 31, f. 31 e segg.

(204) Carta de Santiquatro, l. cit.

(205) Pallavicino, Istoria del Concilio di Trento, L. 3, cap. 14.

(206) No rápido esboço da história das primeiras negociações relativas à Inquisição, contido na carta de Santiquatro acima citada, não se alude a esta circunstância, nem no Arquivo Nacional se encontra o breve dirigido a D. João III. Todavia no Memorial dos Cristãos novos menciona-se o fato como cousa sabida na cúria romana, e na cópia do Processo da Inquisição que consultou Fr. M. de S. Damaso (Verd. Elucid. Argum. n.º 8) estava inserido o breve, que começa Ex litteris nuntii, e é datado de 19 de outubro.

(207) «Rex... credens, ut dicebatur, Clementem de hujus modi negotiis nom informatum, pecunia tantum motum, veniam prædictam concessisse ... nuntii pæsentiam ostendebat abhorrere»: l. cit., f. 32.

(208) Carta de Santiquatro, l. cit. — Breves Licet superioribus e Quod optavit cit. na Verd. Elucid. Argum. N.º 9.

(209) Pallavicino, L. 3, cap. 16.

(210) As duas consultas, assaz difusas, acham-se, precedidas dos respectivos quesitos, na Symmicta, vol. 31, de f. 223 a 363. — Parece pelo seu contexto haverem sido redigidas na conjuntura da expedição da bula de 7 de abril, ou proximamente.

(211) «he fama nestes reynos que por peita grossa de dinheiro que se deo em sua corte se negoceam estas provisões contra tão santa e tão necessária obra»: Minuta sem data na G. 2, M. 2, N.º 35, no Arq. Nacion. Do seu contexto vê-se que este projeto de instruções pertence à época em que o colocamos. Era, talvez, destinado a D. Martinho, porque diz na rubrica que é a «instrução que S. A. deve mandar escrever ao embaixador». Se fosse para D. Henrique diria «dar ao embaixador».

(212) As instruções ao novo agente sobre a revogação do perdão não nos foi possível descobrí-las; mas aludem a elas vários documentos posteriores, e as alegações oferecidas pelos dous ministros (Ragioni del Re: Symm., vol. 31, f. 366) das quais vamos falar, estão indicando o que dizemos no texto.

(213) Instrução sem data, G. 2, M. 1, N.º 22, no Arqu. Nac.

(214) Carta de Santiquatro a elrei, na G. 2, M. 5, N.º 51.

(215) A minuta da credencial acha-se no M. 2 de Cartas Missivas sem data N.º 104, no Arqu. Nac.

(216) Carta de Santiquatro, l. cit.

(217) ibid.

(218) Preâmbulo do breve Venit ad nos de 2 de abril de 1534, no M. 19 de Bulas n.º 12, no Arqu. Nac. — Memoriale, na Symm., vol. 31, f. 33 e segg. — Carta de Santiquatro, l. cit. — Carta de D. Henrique de Meneses de 10 de abril de 1534, G. 2, M. 5, N.º 36, no Arqu. Nac.

(219) A falsidade de todos estes embustes diplomáticos está provada pelo contexto dos alvarás de 20 e 21 de abril de 1499 e da lei de 14 de junho de 1532, cuja matéria anteriormente expusemos.

(220) Ragioni dei Re: Symm. Lusit., vol. 31, f. 366 e segg.

(221) Ibid.

(222) Vejam-se as cartas de D. Martinho de 14 de março e de 13 de setembro de 1535 (G. 2, M. 1, N.º 48 e M. 2, N.º 50, do Arqu. Nac.) onde se alude a estes fatos anteriores.

(223) Carta de D. Martinho de 11 de março, l. cit.

(224) Carta de D. Martinho de 14 de março, l. cit.

(225) Estas duas alegações constituem os N.os 16 e 17 dos documentos juntos ao memorial dos Cristãos-novos de 1544, na Symm. Lusit., vol. 31, f. 395 e segg.

(226) Nas respostas dos teólogos e cardeais, nas alegações dos cristãos-novos, em todos os documentos nos quais se alude aos privilégios concedidos por D. Manuel aos seus súditos hebreus e confirmados por D. João III, supõe-se constantemente que o prazo em que por aqueles privilégios ficavam imunes da perseguição era de vinte e nove anos. Entretanto, sendo a primeira concessão, feita em 1497, de vinte, e a prorrogação feita em 1512, de mais dezesseis (veja-se o vol. I, p. 188), era rigorosamente de trinta e seis esse prazo, porque é óbvio que se devia contar depois de expirado o período da primeira concessão. D. João III parece, porém, ter considerado essa prorrogação como devendo contar-se da data em que foi expedida, isto é de 1512, sendo aliás clara a inteligência contrária a quem ler o respectivo diploma, inserido em confirmação de 1522, no L. I da Chancelaria de D. João III, f. 44 v. Aceitaram os cristãos-novos aquela interpretação forçada, ou alteraram-se os transumptos que se lhes deram quando se confirmou a concessão em 1522? No sistema de deslealdade que então predominava, não sabemos o que pensar a tal respeito. Notaremos a circunstância singular de não acharmos na Chancelaria de D. Manuel um diploma tal como a prorrogação de 1512, encontrando-o na do seu sucessor. É um fato para nós inexplicável.

(227) Instruções sem data, mas que evidentemente sao de 1535, na G. 13, M. 8, N.º 2, e Carta de D. Henrique de Meneses de 10 de abril de 1534, G. 2. M. 5, N.º 36, no Arqu. Nac.

(228) Breve Venit ad nos de 2 de abril de 1534, no M. 19 de Bulas N.º 12, no Arqu. Nac.

(229) Breve Ex litterarum de 9 de abril de 1534, original no M. 20 de Bulas N.º 4; e uma versão portuguesa na G. 2, M. 2, N.º 5, no Arqu. Nac.

(230) A existência desta carta do arcebispo a elrei (bem como de outras anteriores e posteriores que não pudemos encontrar), e o pouco que acerca do seu conteúdo dizemos no texto deduzem-se das duas cartas do mesmo D. Martinho, de março e setembro de 1535, que se acham na G. 2, M. 1, N.º 48, e M. 2, N.º 50.

(231) «O que diz Santiquatro he que o nom levem estes Judeos tão saboroso, e que lhes dem penitência de vinte ou trinta mil crusados, ou os que V. A. ouver por bem, e que partais co papa para suas necessidades, com quem, diz, que V. A. nom tem comprido em muitas cousas em que as o papa teve»: Carta de D. H. de Meneses de 10 de abril de 1534, G. 2, M. 2, N.º 36.

(232) «qua non querem senão dinheiro». Ibid.

(233) Ibid.

(234) «Se este negócio se pudera fazer como V. A. queria, eu o acabara em tempo de Clemente, ou deste papa, ou de qualquer que fora; mas pois eu não pude, não foi acabavel»: C. de D. Martinho de 13 de setembro de 1535, G. 2, M. 1, N.º 50.

(235) Esta narrativa é deduzida de duas cartas de D. Henrique de Meneses, de outubro e novembro de 1535, e de outras de Santiquatro, de 10 e 16 de novembro desse ano e de 28 de maio de 1536, que se acham na G. 20, M. 7, N.os 1, 23, 24 e 26, no Arch Nac.

(236) «e por que isto he perdido, e o foi muito ha... he que des que aqui sou atégora, ontem, e anteontem, e oje, e cada dia o arcebispo tem oras e portas por onde falla canto quer com Duarte da Paz»: G. de D. Henrique de 1 de novembro de 1535: G. 20, M. 7. N.º 23. É a isto que se refere o breve Exponi nobis de 12 de junho de 1536 (M. 14 de Bulas N.º 7 e M. 24, N.º 35), em que se anula o processo da legitimação do arcebispo, ibi: «minus quam conveniret ad regia negotia, et nimis ad sua intentus, minus probè et etiam quam par esset, etc».

(237) Breve Exponi nobis, l. cit.

(238) «Quasi che avesse piacere (Clemente VII) che uno bastardo venisse al grado del cardinalato»: C. de Santiquatro, G. 20, M. 7, N.º 26.

(239)«ritrovato le falsitá dei lestimonii et dei notarii et le colusioni dele parti»: Ibid. Veja-se o breve Exponi nobis, onde a farsa vem longamente descrita.

(240) C. de D. Henrique, já citada, de 10 de abril de 1534. Como veremos adiante, o despeito do embaixador extraordinário subiu ao último ponto quando no ano seguinte descobriu a trama do arcebispo, a quem chama este tredor: C. de D. H. de Meneses de 1 de novembro de 1535, G. 20, M. 7, N.º 23.

(241) «e para verdes a vertude que há nelle (em Duarte da Paz) vos envio com esta carta as proprias cartas que elle la deu ao arcebispo do Funchal para me enviar, porque me descobria alguns de sua gente, e dos principaes, que de cá se queriam fugir, para serem presos e se proceder contra eles, e o que nisso se oferecia fazer e as provisões minhas que para isso me requeria, etc» Carta de D. João III a Santiquatro de... de.., de 1536, G. 2, M. 1, N.º 28.

(242) «ac easdem praesentes lilteras de subreptionis vel obreptionis vitio seu intentionis nostrse deífectu notari vel impugnari non posse, nec sub quibusvis revocationibus, modificationibus, limitationibus et suspensionibus quarumcumque similiumliterarum, etiam per nos et sedem eandem factis et faciendis, nulatenús compreensas, sed ab ilis semper exceptas esse, et quotiès revocatse vel limitatae fuerint, totiès in eum, in quo ad preesens existunt, statum restituías et reintegratas existere»: Bula Sempiterno Regi, 7 de abril de 1533, l. cit.

(243) Instrumentos autênticos sobre processos feitos a vários indivíduos em Chaves, na Madeira e em Évora, na Sym Lusit., vol. 31, f. 109, 137,151 v., 1G1

(244) Corpo Cronol., P. 1, M. 53, N.º 63, no Arqu. Nac.

(245) Consta isto da Instrução sem data que se acha na G. 13, M. 8, N.º 2.

(246) Carta de Santiquatro, na G. 2, M. 5, N.º 51.

(247) C. de D. H. de Meneses de 19 de agosto de 1534, no Corpo Cronol., P. 1, M. 53, N.º 82. As insistências para ser exonerado daquele cargo repetem-se nas cartas de 21 de agosto e 25 de setembro do mesmo ano: Ibid. N.os 80 e 113.

(248) Ciaconius, Vitae Pontif. T. 3, col. 470.

(249) «Papa Clemente un giorno dipoi che io l’ebbi comunicato per viatico, essendopiúin loaltro mondo che in questo, espedi un altro breve direto al suo núncio sopra la medessima executionè dela deta bola»: Carta do Sntiqualro, cit.

(250) Breve Cum inter alia de 26 de julho de 1534, cit. na Verd. Eiucid. Argum. N.º 10, e versão portuguesa na G. 2, M. 1, N.º 40, no Arqu. Nac.

(251) «... toda a importunação que se fez ao Clemente pêra dar esse breve à ora da morte foy porque lhe dysse o seu confessor, induzido dos cristãos-novos, que poys tinha avydo o dinheyro deles, que era concyencya non lhe deyxar o perdão lympo e lyvre. E isto he verdade e assy o dysse Santiquatro ao papa paulo perante noos. Ora veja V. A. canta verdade vos diz la o núncio <]ue o papa non tinha aoydo dinheyro, o qual núncio he o que cá escreve canto mal se faz»: 1.» C. de D. H. de Meneses de 29 de outubro de 1534: Corpo Cronol., P. 1, M. 53, N.º 135.

(252) G. de D. H. de Meneses de 4 de outubro de 1534: Corpo Cronol., P. 1, M. 53, N.º 120, no Arqu. Nac. Veja-se também a C. de 25 de setembro, ibid. N.º 113.

(253) Carta de D. Martinho de 14 de março de 1535, na G. 2, M. 1, N.º 48.

(254) Ibid. — C. de Santiquatro, l. cit.

(255) Carta de D. Martinho, cit. — Carta de Santiquatro, l. cit.

(256) 2.ª Carta de D. H. de Meneses de 29 de outubro de 1534: Corpo Cronol., P. 1, M. 53, N.º 137.

(257) Ibid

(258) Breves de 3 e de 26 de novembro de 1534, no M. 12 de Bulas N.º 12 e M. 7 N.º 15, e uma versão do último na G. 2, N.º 9, no Arqu. Nac. O primeiro destes breves só foi expedido posteriormente à sua data. Veja-se a carta de D. H. de Meneses de 5 de novembro de 1534: Corpo Cronol., P. I, M. 54, N.º 5.

(259) Breve de 10 de novembro de 1534, no M. 23 de Bulas N.º 3.

(260) Memoriale: Symm., vol. 31, f. 35.

(261) «Nuntius ipse viriliter se gerens, etiam contra ejusdem regis voluntatem, seu potius non pauci momenti coleram, tam bullam priman veniae, quam breve paedictum declaratorium in omnibus dictorum regnorum diocesis per ejusdem Nuntii notarios fecit publicari et intimari.» Ibid.

(262) Cópia da monitoria do núncio, dirigida aos prelados, com a data evidentemente antecipada de 3 de novembro de 1534, no Corpo Cronol., P. I, M. 54, N.º 2.

(263). Carta de D. Martinho cit. — Ciacconius, T. 3, col. 569 e segg. — «Os juízes que são, ao menos um deles, os melhores da terra». Carta de D. Henrique de Meneses de 17 de março de 1535, na G. 2, M. 5, N.º 55. — «O Simonetta... como elle é de bom homem e de letrado». Ibid.

(264) Resposta que deram os Letrados sobre o negócio da Inquisição, etc. Doc. sem data, mas que evidentemente é a resposta às alegações (que se acham na Symmicta, vol. 31, f. 395 e segg. N.º 16 e 17) feitas na cúria: G. 13, M. 8, N.º 5, no Arqu. Nac.

(265) Apontamentos para se apresentarem ao papa: G. 2, M. 2, N.º 24, no Arqu. Nac.

(266) Papel de uns apontamentos, etc. Ibid. N.º 28. Este documento é um consectário do anterior. Nenhum deles tem data; mas, pelo seu conteúdo, não podem pertencer senão à época em que os colocámos. O documento sem data na G. 2, M. 5, N.º 44 parece conter os apontamentos definitivos que nessa conjuntura se mudaram acerca dos relapsos.

(267) A minuta das cartas especiais de crença está apensa nos apontamentos, na G. 2, M 2, N.º 24.

(268) Minuta da carta a D. H. de Meneses (sem data), na G. 2, M. 2, N.º 36. O seu contexto mostra referir-se nos apontamentos e instrução de N.os 24 e 28.

(269) «até lhe dizerem outros cardeais que bem peitado devia de estar de V. A.». C. de D. H. de Meneses de 17 de março de 1535, l. cit.

(270) «Papa Paolo... messe la finale deliberatione nelli duoi commissarii suoi... ed in me»: C. de Santiquatro de 14 de março de 1535, l. cit.

(271) «Auditor Camerae est suspectissimus in ista causa; tum quia fuit advocatus praedictis conversis; tum quia scripsit pro eis et consilium fecit stampare»: Papel dado em Roma aos embaixadores, etc. em Sousa, Anais de D. João III, pag. 459 e segg.

(272) «As tiranias que aqui estão cridas da Inquisição de Castela... que não há lá (em Portugal) Luzeiros»: Carta de D. H. de Meneses, cit. — «A Inquisição de Castela, de que falla todo o mundo»: Carta de D. Martinho de 14 de março de 1535, l. cit. — Llorente, Hist. de l’Inquis., T. I, c. II, art. 5. — Carta de Santiquatro de 14 de março, cit.

(273) Além do que a favor de Simonetta se pode deduzir do Memorial dos cristãos-novos, no vol. 31 da Symmicta, e da qualificação de bom homem e letrado, com que o caracteriza D. Henrique de Meneses na carta de 17 de março de 35, há o vermos os elogios que se lhe fazem na correspondência de um embaixador ainda mais hábil, D. Pedro Mascarenhas.

(274) Carta de D. H. de Meneses de 5 de novembro de 34; Corpo Cronol., P. I, M. 54, N.º 5.

(275) Carta do dicto de 6 de março do mesmo mês: Ibid. N.º8.

(276) Carta de D. Martinho de 14 de março, l. cit. Sobre as opiniões do bispo de Silves que Duarte da Paz invocava veja-se o vol. I, pag. 262 e segg.

(277) Carta de D. H. de Meneses, cit. — Carta de D. Martinho, cit.

(278) O transumpto das resoluções finais dos comissários Simonetta e Ghinucci acha-se na G. 2, M. 1, N.º 35.

(279) Carta de D. H. de Meneses, cit. — Carta de D. Martinho, cit.

(280) Ibid. — A cópia da minuta da nova bula de perdão enviada a D. João III existe na G. 2, M. 2, N.º 6, no Arqu. Nac, tendo por fora duas notas, uma em latim, outra em vulgar rubricada pelo arcebispo do Funchal e por D. Henrique de Meneses, na qual se lê em substância o mesmo que nas cartas dos dous ministros, de 14 e 17 de março. A nota em vulgar é curiosa, porque mostra a cautela que era necessário empregar com a cúria romana: «Isto entendem estes auditores: se lá este perdão não he ja publicado. E avisamos que entendem por publicação o ser notificada aos prelados: e nisto de publicada ou notificada, ou nota a todos, não fazem diferença. Se a V. A. acepta, decrare isto ao nuncio, porque se cá não apeguem a isto, e venha com a mão do nuncio assinado tudo o que he feito, para que seja craro. Em nosso poder fica o próprio polo não negarem. — D. Henrique M. — D. M. de Portugal Primas Arceb, do Funchal.»

(281) Memoriale, Symm., vol. 31, f. 37. Na correspondência dos embaixadores não se acham mencionadas estas duas restrições. Todavia no Memorial, os cristãos-novos, depois de se referirem a elas, como concedidas com audiência dos agentes d’elrei, invocam a este respeito o testemunho do próprio papa: «Prout de dicta S. S. voluntate, eadem S. S. fidem indubiam facere potest.»

(282) Carta de D. H. de Meneses de 4 de outubro de 34; Corpo Cronol., P. 1, M. 53, N.º 120. — Carta do dicto de 6 de novembro: Ibid. M. 54, N.º 6. — Carta do dicto de 26 de novembro: Ibid. N.º 18.

(283) Carta de Santiquatro de 14 de março de 1535, l. cit.

(284) «os ordinários farão como atéqui fizerão, que foi não fazerem o que devião; e mais todos são ou vossos irmãos ou vossas feituras; não passarão o que V. A. lhes ordenar»: Carta de D. Martinho de 14 de março de 1535, l. cit.

(285) Estes avisos consta terem sido dados ao arcebispo pelo conde de Vimioso da Carta de D. H. de Meneses de 1 de novembro de 1535: na G. 20, M. 7, N.º 23, no Arqu. Nac.

(286) Fragmento da C. de D. Martinho ao conde de Vimioso de 15 de fevereiro de 1535, no Corpo Cronol., P. 1, M. 54, N.º 77.

(287) Aludia provavelmente ao tempo em que era legado à latere. Veja-se o vol. I, p. 252 e segg.

(288) Reais pretos: moeda de cobre miúda, que então corria.

(289) «Desobedecer muy inteiramente ao papa, como Inglaterra»: Carta de D. Henrique de Meneses de 17 de março de 1535, l. cit.

(290) Ibid.

(291) Na cópia do breve Inter cætera, inserta na Symmicta (vol. 31, f. 452 v. e segg.) vem apenso um bilhete do cardeal ao referendário Blosio, d’onde isto consta.

(292) Breve Inter cætera de 17 de março de 1535: M. 25 de Bulas N.º 30, e G. 2, M. 2, n.º 13, no Arqu. Nac.

(293) Breve Dudum postquam de 17 de março de 1535: cópia autêntica no M. 14 de Bulas, N.º 3.

(294) «Cum... viri praedicti... literas absolutionis hujusmodi, per dictum praedecessorem, ut praefertur, concessas, executioni debitoe esse demandandas nobis retulerini, nos executionem hujusmodi omnino fieri volentes, fraternitati tuae per praesentem committimus et mandamus quatenus ad executionem dictarum absolutionis litterarum juxta illarum tenorem in omnibos et per omnia procedas, perindè ac si earum executionem per dictas literas non suspendissemus». Ibid.

(295) Memoriale; Symm., vol. 31, f. 38 v.

(296) Ibid. f. 39.

(297) Confessa-o o próprio núncio na carta de um de março de 1536 que se acha na Symmicta, vol. 2, f. 232, e que adiante havemos de citar, «fariano quanto se erano per scritto meco obligati.»

(298) Os capítulos e a obrigação assinada pelos dous chefes da gente hebréia, Tomé Serrão e Manuel Mendes, acham-se transcritos do códice do Vaticano N.º 966 na Symmicta, vol. 29, f. 67, e vol. 46, f. 449.

(299) Ibid.

(300) Que foi sobre estas intimações, que se estribou a oposição do governo conhece-se da carta de D. Martinho de 13 de setembro de 1535, ibid. «A copia do alvará do núncio (é o que se acha no Corpo Cronol., P. 1, M. 54, N.º 2) por que notificou aos prelados que não pobricassem a bulla do perdam não veo cá: ha mister que venha; e assinado pelo nuncio, senão não lhe darão cá fee, e ele, segundo he, negá-lo-á.» É o que também resulta do documento da G. 2, M. 1, N.º 29, do Arqu. Nac, que adiante havemos de aproveitar.

(301) «Parece que eles impedem a Inquisição com o seu dinheiro»: Apontamentos na G. 2, M. 1, N.º36, no Arqu. Nac.

(302) Ibid.

(303) Ibid.

(304) Lei de 14 de junho de 1535, em Leão, L. Extr. (1566), f. 292. — Figueiredo, Synopse, T. I, pag. 355.

(305) Memoriale: Symm., vol. 31, f. 39 e segg.

(306) «cùm... tanquam christiani vixerint, tamen eorum emuli aliquos ex eis tanquam judaizantes... accusent, aut deferant, seu alias molestent»: Breve Cùm sicut 20 jul. 1535, na Symm., vol. 31, f. 455 v. e vol. 32, f. 114 e no Coletório das Bulas do Santo-Ofício, f. 37.

(307) Ibib.

(308) Memoriale, l. cit.

(309) Minuta da carta a D. Martinho, na G. 2, M. 2, N.º 21. — Os capítulos contra Sinigaglia acham-se na G. 13, M. 8, N.º 12, no Arch. Nac.

(310) Instrução aos embaixadores em Roma, na G. 2, M. 1, N.º 29.

(311) Minuta da carta a D. Martinho, na G. 2, M. 2, N.º 22, e minuta da carta a D. Henrique, ibid., N.º 38.

(312) Extratos, para elrei ver, de cartas do papa, escritas em agosto, sem dizer de que ano, na G. 2, M. 1, N.º 25. Pela matéria destes extratos parece-nos que não se lhes pode atribuir senão a data de 1535.

(313) V. ante p. 79. O documento que vamos citar é evidentemente redigido por um converso que tinha em Roma filhos e mulher, e que, portanto, não podia ser Duarte da Paz, cuja família ficara em Portugal, segundo se colhe de documentos posteriores.

(314) «et atento il servizio che ha fatto alla sedia apostolica»: Anonymi Portugallensis, Instruzione, etc. Codice Vatic. 6792, na Symmicta, vol. 2, f. 278

(315) «nostro signore non può donare excusatione a Dio nessuna cavare d’inquisitione un buono e perfetto huomo, monacho richo senza figliolo, per mettere un pegio in ogni conto»: Anonymi Portugall. Instruzione, etc, l. cit.

(316) «et facia tutto quelo servizio, che per ogni cosa che domandava volea fare»: Ibid.

(317) «et forse fare più grande servizio»: Ibid.

(318) «tão indignado o papa está dele e do seu reino, e isto entendo he pola pregação de mestre Afonso... o núncio, que assoprou sempre estes foles canto pôde... o cardeal vosso irmão, que também o metem na culpa da pregação de mestre Afonso»: C de D. Henrique de Meneses a elrei de 1 de novembro de 1535, na G. 20, M. 7, n.º 23, no Arqu. Nac.

(319) Pallavicino, Istor. dei Concil. di Trento, L. 3, c. 19. — Carta de D. Martinho de 13 de setembro de 1535, na G. 2, M. 2, N.º 50.

(320) É o que se deduz da carta de Álvaro Mendes de 27 de dezembro de 1536 (aliás 1535, porque o ano se começava então a contar no dia de natal), na G. 2, M. 5, N.º 53. C. de D. Martinho de 13 de setembro de 1535, l. cit.

(321) Carta de D. Martinho, cit.: «e crê (o papa) pelo que tem feito nisto que merece canonizarem-no.»

(322) Como D. Martinho, D. Henrique escreveu em 13 de setembro de 1535 a elrei. Esta carta não a pudemos encontrar; mas refere-se a ela, resumindo-a, o mesmo D. Henrique na de 1 de novembro deste ano, que se acha na G. 20, M. 7, N.º 23.

(323) «ou V. A. o mande botar (Duarte da Paz) neste Tibre, ou o mande hir com algua cor, e perdoelhe...» — «Que se ha de fazer? Replicar-lhe? Desputaremos: e se dixer palavra descortês, matalo. Isto não fará ninguém, se ho V. A. não mandar; porque é vosso desserviço, desonra, conciência, e risco. Atalhar a tudo fará muito fruto, e os mesmos cristãos-novos desesperarão». C. de D. Martinho cit.

(324) Carta de Santiquatro a D. João III de 16 de dezembro de 1535, na G. 20. M. 7, N.º 1, no Arqu. Nac.

(325) Bula Ilius vices, na Symmicta, vol. 31, f. 463 v., no Coletório das Bulas do Santo-Ofício, f. 42, e na Coleção de Çherubini, T. 1, Bula 8, citada na Verdade Elucid. Num. 556 et alib.

(326) Ibid.

(327) Carta de Santiquatro a D. João III de 16 de dezembro, l. cit.

(328) Ibid. A ata da publicação da bula a 2 de novembro em Roma, acha-se junta ao transumpto da mesma bula, no vol. 31 da Symmicta.

(329) Carta de D. H. de Meneses de 6 de outubro de 1535, na G. 20, M. 7, N.º 24.

(330) «porque estando eu quá, ha quá peçonha». Ibid

(331) «Santiquatro me disse antontem que este homem (D. Martinho) lhe começava a dizer mal de mim, e que eu me devia de mudar daqui, ou guardarme muito bem de peçonha»: C. de D. Henrique de Meneses de 1 de novembro de 1535, na G. 20, M. 7, N.º 23.

(332) «poderia este homem peytar alguum, ou a Pedro Luiz filho do papa».

(333) «porque qua há um Rio, a que chamão o Tibre, onde já se lançaram muitos homens melhores qu’eu, e ha também peçonha com que se despacharão outros mais honrados; e darão a entender que cristãos-novos m’o fizeram»: Ibid

(334) «De maneira que, como em Tutuão, ou co xarife, acabey este resgate por muito pouco dinheiro; porque assi se fazem os resgates com alfaqueques»: Ibid.

(335) Ibid.

(336) Commune adagium exivit inter ipsos: «Paulos non est papa Clemens: non licet Paulo veluti Clementi... ostendere, cum sic mordeat. Sat est. Crederunt pontificem verè maximum et masculum habere»: Memoriale, na Symm., vol. 31, f. 40 v. e 41.

(337) Carta do bispo de Sinigaglia a elrei de 23 de outubro de 1535, no Corpo Cronol., P. 1, M. 56, N.º 60.

(338) Carta do bispo de Sinigaglia a elrei de 5 de dezembro de 1535, no Corpo Cronol., P. 1, M. 56, N.º 90.

(339) «Quibus omnibus in dictis regnis notificatis et publicatis acquievit rex predictus, tacuitque ore clauso: timuit totus populus veterum cristianonum»; Memoriale, l. cit.

(340) É o que resulta das duas cartas de Santiquatro a elrei de 10 e de 16 de dezembro de 1535, na G. 20, M. 7, N.º 1; e da carta de Álvaro Mendes, embaixador junto a Carlos V, de 27 de dezembro de 1535, na G. 2, M. 5, N.º 3.

(341) Cartas de Santiquatro, cit.

(342) Carta de Santiquatro de 17 de dezembro de 1535, no Corpo Cronol., P. 1, M. 56. N.º 111.

(343) Carta de Álvaro Mendes de 27 de dezembro de 1535 (l. cit.), e carta de D. Henrique de Meneses, de Nápoles, a 17 de janeiro de 1536, no C. Cronol., P. 1, M. 56, N.º 128.

(344) Carta de A. Mendes de 27 de dezembro, l. cit.

(345) Carta de D. H. de Meneses de 17 de janeiro de 1536, l. cit.

(346) Carta de Álvaro Mendes, de Nápoles, a 3 de fevereiro, extratada nos apontamentos de Fr. Luiz de Sousa (An. de D. João III, p. 397).

(347) «Acerca das feridas que la lhe foram dadas (a Duarte da Paz) afirmay também a S. S. que nunqua em tal cuidey, nem foy em minha sabedoria, e crede vós também e o afirmay a S. S., que se eu tal cousa cuidara se fizera de outra maneira e que lhe ficara pouquo luguar pera suas malícias, e certo que eu receby muyto desprazer de tal lhe ser feyto tanto em presença do Sancto Padre, como dizês, e que o que me foy dito depoys de seu ferimento foy dizereme que um clerigo com que ele tinha debates lhe fizera ou mandara fazer aquele ferimento»: Minuta da carta d’elrei a Santiquatro, depois de junho de 1536, na G. 2, M. 1, N.º 28 — O que vai em italiano está riscado.

(348) De 5 a 18 de abril: Pallavicino, Istoria del Concilio di Trento, L. 3, c 19.

(349) Memoriale (Symm.,?oi 31, f. 42 e segg.)

(350) Corpo Cronol., P 1, M. 57, N.º 31: — V. de Santarém, Quadro Elem., T. 2, p. 75.

(351) Memorial, l. cit.

(352) Esta carta, que se acha no Codice do Vaticano 6210, a p. 21, foi transcrita na Symmicta (vol. 2, f. 232) com a data de 1 de março de 1550, quando do próprio contexto se conhece pertencer ao ano de 1536, porque, entre outros indícios, o núncio alude não só à ida de Carlos V a Roma, como cousa que ainda se esperava, mas também ao casamento do infante D. Duarte, que se dizia D. João III ter em mira fazer, e que efetivamente se realizou em 1537. Duarte da Paz é ali denominado constantemente il commendatore. Escrita com interrupções, vê-se que foi começada a redigir em janeiro, e só se fechou no 1.º de março.

(353) «ne con metterli timore, servato il decoro»: Ibid.

(354) «havea ció fatto per ruínarla con Nostro Signore»: Ibid.

(355) «che Nostro Signore si reputeria inganato»: Ibid.

(356) «dubitavo nel futuro ritrovassero sua santitá é tuti gli altri fredi»: Ibid.

(357) «più misero che la miseria»: Ibid.

(358) «Il cardinal... li disse: quando si fará un’altra unione contro di voi, anderete al papa, che vi proveda»: Ibid.

(359) «che siano li maggiori asini del mondo»: Ibid.

(360) «si potrà trovar qualche modo, si sono asini, di farli-lo conoscere, et si per danari si sono voluti assicurar da chi non può, il medesimo facino con chi può, che in tal caso potrà cavar la maschera giusta e santamente»: Ibid

(361) Ibid.

(362) Consta isto de uma carta de Santiquatro para elrei de 23 de dezembro de 1538, no Corpo Cronol., P. 1, M. 63, N.º 83. Destes tratos ocultos nasceria o escrever D. Henrique de Meneses cousas ofensivas para o papa, que lhe trouxeram vivos desgostos antes da sua partida, desgostos a que alude Santiquatro numa carta a elrei de 2 de maio de 1535: Corpo Cronol., P. 1, M. 47, N.º 29, no Arqu. Nac.

(363) Memoriale, l. cit.

(364) Ibid.

(365) Carta de Álvaro Mendes, de Roma, a 22 de abril (quatro dias depois da saída do imperador) em Sousa, Anais, Doc. pag. 397.

(366) A palavra abbatibus falta na bula impressa.

(367) Bula Cúm ad nihil magis de 23 de maio de 1536: M. 9 de Bulas, N.º 15, no Arqu. Nac — Coletório das Bulas da Inquis., f. 1 v. e segg. — Symm., vol. 32, f. 1 v.

(368) Carta de Santiquatro de 20 de julho de 1536, em Sousa, Anais, p. 398.

(369) Minuta de uma carta de D. João III, em resposta a outra de Santiquatro de 2 de junho de 1536, que não encontrámos: G. 2, M. 1, N.º 28. Apesar da longa disputa entre Fr. Pedro Monteiro e Fr. Manuel de S. Damaso, exposta na Verdade Elucidada, não é absolutamente claro se o Fr. Diogo da Silva, frade menor, bispo de Ceuta, inquisidor-mor em 1536, e depois arcebispo de Braga, era ou não o mesmo Fr. Diogo da Silva, frade mínimo, inquisidor em 1532. Apesar dos esforços de Fr. Manuel de S. Damaso, talento bem superior ao do seu adversário, o que ele alcançou provar foi que em 1532 e em 1536 tinha havido duas nomeações diversas; que na 1.ª bula da Inquisição se fala de um frade mínimo não bispo, enquanto na 2.ª se fala de um frade franciscano bispo de Ceuta, e que Fr. Pedro Monteiro confundira estes dous fatos. Ambos os contendores parece terem desconhecido um documento contemporâneo em que se afirma a identidade do indivíduo. É o requerimento dos cristãos-novos feito em 1539 contra a nomeação do infante D. Henrique para inquisidor-mor (Symmicta, vol. 32, f. 184 v.) onde se diz: «Recordabitur Sanctitas Sua quod agentes tunc pro rege etiam S. S. promiserunt quod etiam inter illos tres nominatos, episcopus septensis præfactus, quem bonae memoriae Clemens VII jam maiorem inquisitorem illic antea creaverat et constituerat, priùs habebat uti dicto officio maioris inquisitoris». Já uma anterior alegação de Duarte da Paz (Verdade Elucidada, Convenção VI, §§ 1 e 2) dizia o mesmo, apesar da interpretação forçada que lhe dá Fr. Manuel de S. Damaso. As dificuldades e contradições dos documentos relativos a este objeto resolvem-se facilmente por uma hipótese que se dava não raro nas ordens monásticas. É que Fr. Diogo da Silva, antes de eleito bispo de Ceuta, teria passado da ordem dos mínimos para a dos franciscanos. Porventura, havendo professado naquela ordem fora do reino, e voltando ao seu país, onde ela não existia, teria resolvido passados alguns anos, fliar-se na dos menores.

(370) Minuta da Carta de D. João III em resposta a outra de Santiquatro de 2 de junho, l. cit.

(371) Coletório das Bulas do Santo-Ofício, f. 1 a 6.

(372) Circular de 20 de novembro de 1536, no Coletório, f. 147.

(373) Monitório de 18 de agosto de 1536, no Coletório, f. 5 e segg.

(374) Este edital, que se acha vertido em latim na Symmicta (vol. 32, fol. 70 e segg.), não foi publicado no Coletório, onde se encontram os outros documentos análogos. A contradição em que ele estava com o espírito e letra na bula de 12 de outubro, e da própria bula da Inquisição, explica suficientemente essa supressão.

(375) Veja-se nomeadamente o Memorial: Symmicta, vol. 31, fol. 42 e segg.

(376) Doc. na Symmicta, vol. 32, f. 252 v. e segg. Deste documento, que adiante havemos de aproveitar, se conhece que o conselho geral teve desde o princípio maior número de membros do que esses que mencionam Sousa e Monteiro (Aphorismi Inquisitor., p. 13: — Memor. da Acad. d’Hist., T. I, N.º 25), os quais os reduzem a quatro. Porventura foram desde logo os mesmos seis, de que sabemos era posteriormente composto. O próprio Antonio da Mota nos diz, falando de si naquele documento: «ego in tempore episcopi septensis semper fui de consilio. Et quia videbam (1539) quod dominus infans D. Henricus non servabat in his formam bullæ, prout ego cum aliisei multoties diximus». Estes deputados do conselho, que ousavam resistir às ilegalidades do infante (ou dos inquisidoros, como ele depois declarou, provavelmente por medo) devemos supor que tinham anteriormente procedido melhor do que os outros seus colegas.

(377) A falta de processos nos cartórios da Inquisição, relativos a estes primeiros tempos, seria uma prova decisiva dessa moderação, se uma grande parte dos mesmos processos não houvessem desaparecido antes de serem recolhidos à Torre do Tombo, ou se acaso se pudesse demonstrar que eles se faziam e arquivavam então com a mesma regularidade que depois de 1540.

(378) Carta do infante D. Luiz a elrei (sem data), na G. 2, M. 2, N.º 34.

(379) «Apresso il re, nelle cose grandi, possono assai 1’infante D. Luigi per autoritá che si ha presa da se quasi violentamente, etc.»: Instruzione al coadjutore di Bergamo (Symmicta, vol. 12, f. 46 v.) que adiante havemos de aproveitar largamente.

(380) Inquisitio non debuit concedi, etc (Symmicta, vol. 2, f. 271). Rationes quibus S. D. N. motus (Ibid. vol. 32, f. 145 e segg.) Este último arrazoado é de uma época algum tanto posterior; mas do seu próprio contexto se conhece que as objeções aqui resumidas foram desde logo apresentadas. Veja-se, além disso, o Memoriale, vol. cit., f. 45 e segg.

(381) Rationes erga edictum, etc. Ibid. f. 75 e segg. — Memoriale quoddam, etc. Ibid. f. 90 e segg.

(382) Em carta do embaixador Pedro de Sousa de Távora de 20 de janeiro de 1538 (Corpo Cronol., P. 1, M. 60, N.º 76), escrita parte em cifra, falando da prisão de Micer Ambrosio, secretário do papa, pelo excesso da sua venalidade, diz o agente português: «E antre as outras (peitas) ho bispo de Senegalha lhe apresentou logo quando vêo de Portugal (segue em cifra). Também entendi que (cifra) agora (cifra) não sabendo (cifra) ho mandava cometer por parte dos mesmos (cifra) cada ano (cifra) cruzados, ou mais, para que os favorecesse e estas (cifra) as mãos (cifra); por onde não creo que tenha muito contentamento (cifra) porque quem aquilo comette a outrem he sinal que não duvidará para sy também tomar o que lhe derem».

(383) «Quia jam praefatus dominus nuntius erat in curia, et sanctitatem suam de omnibus supradictis, pro justitia et veritate, ut creditur, informaverat». Memoriale, 1. cit f. 48 v.

(384) «So stato gabbato: proveda sua santità»: Ibid. f.50.

(385) M. 25 de Bulas N.º 4 e 52, no Arqu. — Symmicta, vol. 32, f. 68 e vol. 33, f. 159 v.

(386) Corpo Cronol., P. 1, M. 58, N.º 43.

(387) Litteræ Pauli III Joan. regi, Cardinali Portug. et infanti Alois., 7 februar. 1537, na Symm., vol. 32, f. 65 e segg.

(388) Era provavelmente o mesmo que ofendera a corte de Roma nas suas prédicas a favor da intolerância e do fanatismo. Vide ante p. 156 e segg.

(389) O breve destes poderes, datado de 9 de janeiro de 1537, acha-se inserto em duas cópias autênticas no processo de Ayres Vaz: processos da Inquisição de Lisboa, N.os 13:186 e 17:749, no Arqu. Nac.

(390) Instruzione di S. S. per il signore nuncio G. Capodiferro, etc. 33, f. 149.

(391) Supplicatio regi facta, etc. Symm., vol. 32, f. 98 v. e segg.

(392) Sousa, Anais, Append. de Doc. p. 401, 404 e segg.

(393) Supplicatio, etc. Symm., l. cit.

(394) Ordo tenendus a nuntio in Regno Portugaliæ etc vol. cit. f. 68.

(395) Memoriale, l. cit. f. 51 v. e segg.

(396) Vide ante p. 128.

(397) Memoriale, l. cit.

(398) «patrocinium, defensionem, auxilium, opem, consilium et favorem, tam in partibus illis, quam in romana curia, et extra eam, ubique locorum praestare, ac pecunias et alia ad eorum defensionem necessaria subministrare»: Breve Dudum a nobis ult. aug. 1537, Symm., vol. 32, f. 120 e segg.

(399) «Dirigendo semper unum oculum ad gratificandum regi, dexterum vero ad justitiam, et ad procurandum ne quis istorum miserorum justam habeat causam de sanctitate sua et apostolica sede conquerendi»: Ordo tenendus etc. l. cit.

(400) Ranke, Die Roemischen Paepste, 1. Band, 3. Buch. — Pallavicino, Istoria dei C. di Trento, L. 4, cap. 5, 6. — Fleury, Hist. Ecles., L. 138, § 52 e segg.

(401) Carta de Pedro de Sousa de Távora a elrei, de Roma, a 15 de novembro de 1537: G. 2, M. 5, N.º 26. no Arqu. Nac.

(402) «... da estada do nuncio aquy creceo tanto a ousadia nos máos e tanta segurança de poder errar sem castigo e tanta certeza de perdões dos erros por qualquer emformação que seja deles, per preços muy desonestos e inormes e outros muy baratos, e em todos com craro fim e respeito do interesse proprio sem lembrança nem da rezão da cousa, nem do escandalo dela, nem da diminuição da jurdição dos prelados a que totalmente são cerradas as portas per esta via de poder castigar nenhum máo, nem governar suas prelacias, tantas são as dispensações e os perdões e as bullas que por dinheiro e amizade se alcanção em casa do nuncio indistinctamente em todo caso, crime e pena, etc.» — Minuta da carta de D. João III a D. Pedro de Mascarenhas de 4 de agosto de 1539, na Correspond. Orig. de D. Pedro Mascarenhas, na Biblioteca da Ajuda.

(403) Na carta de Pedro de Sousa de Távora de 15 de novembro de 1537, acima citada, o embaixador português aconselha a elrei que se mostre liberal não só com Santiquatro, que já pedia claramente, e até com termos ásperos, a recompensa dos seus serviços, e além dele com o secretário e o camareiro do papa e outros, mas até com o próprio Paulo III. As frases do embaixador são assaz significativas: «E do papa principalmente V. A. se deveria lembrar, pois lhe pode fazer muitos prazeres e também desgostos; e quando não al, ao menos das cousas da Índia enviar algo que se lhe possa dar, que elles tudo tomão.

(404) A rubrica da minuta das instruções a D. Pedro Mascarenhas (Correspond. Orig. na Bibliot. da Ajuda) diz que D. Pedro partiu a 29 de dezembro de 1538. É que se contava o novo ano do dia de natal. Assim 29 de dezembro de 1537 vinha por esse cálculo a cair em 1538.

(405) Temos a minuta (Correspond. Orig. de D. Pedro Mascarenhas, f. 45) da resposta a uma carta de D. Pedro Mascarenhas, escrita de França a elrei a 30 de março de 1538. Nesta resposta, que devia ser dos fins de abril ou princípios de maio, apesar de se ordenar ao embaixador a maior brevidade na sua partida para Itália, também se lhe manda tratar vários assuntos com Francisco I. Assim, ele devia estar em França ainda em junho. A 1.ª carta que nos resta de D. Pedro Mascarenhas, datada de Roma, é uma de 24 de dezembro de 1538 (Corpo Cronol., P. 1, M. 63, N.º 86) sobre as duas décimas.

(406) Carta de D. Pedro Mascarenhas a elrei, de Roma, a 27 de fevereiro de 1539, no Corpo Cronol., P. 1, M. 64, N.º 36.

(407) Carta de Sebastião de Vargas a elrei, datada de Mequinez, em abril, em que diz que passavam muitos cristãos-novos pelos rios de Mamora, Larache e Salé para as terras de mouros, deixando as fazendas a pessoas que depois lh’as passavam: Corpo Cronol., P. 1, M. 64, N.º 86.

(408) «se deve muito olhar a intenção com que os tais escritos se puseram, se per ventura se fez per indinar V. A. e seus oficiaes e os do padre santo e os povos contra hos cristãos novos, e per pessoas de pouca prudencia, ou se ho fezeram herejes»: Carta do bispo de Ceuta a elrei, de 21 de fevereiro: Cartas Missivas, M. 3, N.º 61 no Arqu. Nac.

(409) Carta do Bispo de Ceuta, cit. — Minuta da Carta de D. João III a D. Pedro de Mascarenhas de 19 de março de 1539, na Correspond. Orig. de D- Pedro de Mascarenhas, na Bibliot. da Ajuda.

(410) Era D. Fr. Balthasar Limpo.

(411) Minuta da carta de 19 de março cit. — Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 e 20 de junho de 1539. l. cit. f. 93 v. e 95.

(412) O próprio bispo de Ceuta o dá a entender na carta a elrei, de 10 de junho (Coletório das Bulas da Inquisição, f. 9), dizendo que pede a exoneração «por minha idade... e fraca disposição... e por outros justos motivos; como também por me parecer que sirvo V. A. em lhe lembrar isto.»

(413) Carta régia de 22 de junho de 1539, no Coletório f. 9 v. e segg. — Sousa, História Genealog., T. 3, p. 265 e segg.

(414) Isto que alguém suporia invectiva nossa, di-lo o próprio D. João III. «Se este carego (o de lnquisidor-mor) fora de principe secular com muy grande gosto me empregara nele»: Minuta da carta a D. Pedro Mascarenhas, na G. 13, M. 8, N.º 6, no Arqu. Nac.

(415) «ut clarius loquamur, cùm ipsis novis christianis suspectissimus sit»: Informatio quod inf. D. Henricus, etc: Symm., vol. 32, f. 185.

(416) Minuta da carta a D. Pedro Mascarenhas, na G. 13, M. 8, N.º 6.

(417) Esta negociação complicada, de que ainda teremos de falar, entreteve quase exclusivamente no 1.º semestre de 1539 o embaixador Mascarenhas, cujos hábeis esforços foram em parte frustrados pela imperícia dos ministros de D. João III. Consulte-se a sua curiosa correspondência, de que existe grande parte na Biblioteca da Ajuda e algumas cartas na Torre do Tombo.

(418) «esta emleição... do infante... senão pera com elle poder mylhor deytar desse Reyno o nuncyo»: Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 de setembro de 1539, na sua Correspond. Original, f. 132 v. e 133.

(419) «tudo o que V. A. quiser negocear bem com este papa ade ser pondolhe seu enteresse diante»: Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 de junho, na Correspond. Orig., f. 93.

(420) «tudo se fará como lhe nom tocarem no seu emteresse. E V. A. deste pam de seu compadre deixe ao afilhado levar a parte que quiser, comtanto que a de V. A. non seja mays pequena, e nom queira ser mais piadoso da fazenda ecresiastica do que he seu proprio dono e vigairo unyversal»: Ibid.

(421) «tirando o núncio nom aver demtender nella (na Inquisição): há quall se nom fará emquanto ahi ouver nuçio nesse Reino em vida deste papa, porque lhe vay nisso seu emteresse, o que elle nom allarga senão por outro tall ou maior»: Ibid.

(422) «guardará (o papa) o primeyro que tem feyto pela composyçam que tem recebida, senom ouver outro lanço mayor sobre mim»: Id Ibid. f. 101 v. — «Com esta mando a V. A. huma medalha em que o papa está tirado pelo natural bem ao proprio para que veija a filosomia deste pryncepe com quem negocêa, a esperança que de sy promete, e quanta resão tenho de deseyar que V. A. m’acupe em qualquer outro serviço por mais trabalhoso que seya, e me tire daqueste, em que o não posso servir sem doença da alma e do corpo»: Ibid.

(423) O português era uma moeda de ouro daquele tempo.

(424) Carta de D. Pedro Mascarenhas de 20 de junho de 1539, na Correspond. Orig., f. 104 e v. Numa carta posterior (2 de dezembro de 1539) falando da morte de Simonetta, o embaixador mostra a sua mágoa, acrescentando uma ponderação singular: «E o pior foy perder V. A. aquelle servidor que já lhe estava comprado»: Ibid. f. 199 v.

(425) Sousa, de Orig. Inquisit., p. 13. Ruy Gomes e Fr. João Soares intitulavam-se efetivamente do conselho e deputados da santa Inquisição a 22 de agosto de 1539; Processo de Ayres Vaz, Process. da Inquis. de Lisboa, N.º 17:749, no Arqu. Nac.

(426) Instruzzione data al Coadjutore de Bergamo: Symm., T. 12, p. 42 e segg.

(427) Nem do processo de Ayres Vaz, nem dos documentos diplomáticos relativos a esta questão consta que ele fosse cristão-novo. Consta, porém, que o era de uma carta de D. Christovam de Castro, a f. 280 da Correspond. Orig. de D. Pedro Mascarenhas.

(428) Ranke, Die Roemischen Paepste, I Band, 3 B (Paulo III) Mendoza, Ibi.

(429) O príncipe D. Felipe, falecido a 29 de abril de 1539, com seis anos de idade.

(430) Todas estas particularidades são extraídas do Processo original de Ayres Vaz, N.os 13:186 e 17:749 dos Processos da Inquisição de Lisboa, l. cit.

(431) Processo de Ayres Vaz, l. cit.

(432) Minuta de carta a D. Pedro Mascarenhas, sem data: Correspond. Orig., f. 67 v. e segg.

(433) «por Farnês e por Marcello, que ele (Capodiferro) tem comprados com seus presentes»: Carta de D. Pedro Mascarenhas a elrei de 10 de setembro de 1539. — Correspond. Orig., f. 243 e segg.

(434) Ibid.

(435) Ibid.

(436) «nos quays (dous anos) se portara de maneira em seu ofício tyrynisando este reino com seus poderes que se o papa vivera mais, nom somentes ho revogara mas ho castigara como suas culpas mereciam, ou a mesma terra o nom podera lá sofrer, e que este que S. S. agora la tinha segira as pisadas do seu antecessor, senam quanto por achar o caminho aberto ho andara mais depressa»: Ibid.

(437) ibid.

(438) ibid.

(439) Ibid.

(440) Carta de D. Pedro Mascarenhas a elrei de 19 de setembro de 1539 (Correspond. Orig., f. 252). Esta carta comida da tinta e difícil de ler (bem como a de 10 do mesmo mês) acha-se em extrato assaz nítido a f. 150 do códice.

(441) Ibid.

(442) Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 de setembro, na Correspond. Orig., f. 181.

(443) Breve ao núncio de 22 de setembro, na Symm., vol. 31, f. 418 v.

(444) «nunca passou nenhum dia em que Santiquatro e eu nom combatessemos com ho Papa e com Monte a tu por tu, sofrendo alguas vezes más palavras e disendo outras semelhantes»: Carta de D. Pedro Mascarenhas de 21 de setembro, l. cit.

(445) Ibid.

(446) «para que o usso nom salte da armada»: Ibid.

(447) Veja-se a longa carta de D. Pedro Mascarenhas datada de Perugia, com a mesma data da antecedente, na Correspond. Orig., f. 173 e segg.

(448) Carta de D. Pedro Mascarenhas de 4 de outubro, na Correspond. Orig., f. 193. — Carta de Santiquatro de 1 de outubro, ibid. f. 239.

(449) Ibid.

(450) «porque eu, senhor, não vy o breve nem sey o que se nele mais contem»: Ibid.

(451) «E também tenho por sem duvyda que esta gente dá boa composiçam por esta decraratorya, e que ysto he o que faz dar tanta pressa. E também creo que depois de recebida se ouvyrão mylhor as rezões por parte de V. A.»: Ibid.

(452) «Usum virtutis prudentiæ et fidei tuæ... quando primum cum tuo commodo poteris ad nos redire matures, venturus nobis admodùm gratus»: Breve de 3 de outubro de 1539, cópia junta à Correspond. Org. de D. Pedro Mascarenhas, f. 162.

(453) Bula Pastoris aeterni, 4 id. octobr. 1536, na Symm., vol. 39, f. 123 v. e segg.

(454) Memoriale, na Simm., vol. 38, f. 56 v. — Esta bula, de que não se encontra outro vestígio senão a menção que dela faz o Memoriale, devia ser pouco posterior à de 12 de outubro; talvez dos fins de 1539, ou princípios de 1540.

(455) Na minuta dos apontamentos para se responder às cartas de D. Pedro Mascarenhas e do cardeal Santiquatro, dos fins de setembro e princípios de outubro (Corresp. Orig. de D. Pedro Mascarenhas, f. 160 e segg.) lê-se o seguinte: «Item, a D. Pedro que fale com Duarte da Paz e lhe escrevera se ahi não estiver, e saiba dele tudo o que lhe parecer necessario e de que escreveo que o queria avisar».

(456) Instruções de 21 de setembro ao conde da Castanheira, em Sousa, Anais, p. 403 e 404.

(457) É o que se deduz da seguinte passagem: — «Pero Carollo me mandou de Veneza o traslado dum escripto que lhe Duarte da Paz dera pera mim, o qual nom quis dar de sua letra por ser aviso de chrystãos novos de Lisboa; e que ele ha que faz grande serviço a Deus e a V. A. em m’avisar; e quer nisto tamto segredo como V. A. verá no próprio escripto que lhe com esta mando: Pero Carollo me escreve que ele vio agora em Veneza os cristãos novos que estoutro diz no escripto, os quais está certo virem aly a fazer franqua sua pasajem e a dos outros que se esperam»: Carta de D. Pedro Mascarenhas de 2 de dezembro de 1539. Corresp. Orig., f. 199.

(458) Cópia do impresso dirigido a Paulo III por Duarte da Paz, na Corresp. Orig. de D. Pedro Mascarenhas, f. 273 — «E asy lhe mando agora outro (treslado) de hua carta estampada que Duarte da Paz escreveu de Veneza ao papa sobre esta materya da Inquysiçam que tambem serve ao ponto em que agora estamos»: Carta de D. Pedro Mascarenhas de 4 de outubro de 1539: Ibid. f. 194 v.

(459) Cópia da sentença acha-se a f. 133 da Corresp. Orig. de D. Pedro Mascarenhas. O folheto impresso que deu motivo a ela, e que não pudemos encontrar, talvez ainda exista nalguma biblioteca de Itália.

(460) «De Duarte da Paz nom veo mays avyso; e o derradeiro que tyve foy estar preso em Ferrara por mandado do duque sobre trampas que entre elle e seus parentes nunca faltam»: Carta de D. Pedro Mascarenhas de 10 de março de 1540, na Correspond. Orig., f. 219.

(461) Consta da bula Circumspecta de 28 de outubro de 1542 em que é revogada outra concedida a Duarte da Paz para não serem ele e os seus parentes por consanguinidade ou afinidade perseguidos ou presos pela Inquisição. Aí diz o papa: «præfatus Eduardus postmodum christianam fidem abnegaverit, et non solum ad hebraicam perfidiam redierit, verum etiam Turcarum sectam publicè profiteatur et damnabiliter sequatur»: Original no Cartório da Inquisição no Arqu. Nac. Numa carta de Pedro Domenico de 27 de abril de 1542 (G. 2, M. 2, N.º 53) alude-se a este fato de Duarte da Paz abraçar o islamismo.

(462) Carta de D. Pedro Mascarenhas de 9 de março de 1540, na Corresp. Orig., f. 211.

(463) É o que se deduz de um dos apontamentos para a resposta às cartas de D. Pedro e de Santiquatro dos fins de setembro e princípios de outubro (Corresp. Orig., f. 160): «Carta a D. Pedro sobre a yda do nuncio em que se diga o que se passou qua com ele sobre sua ida e o breve que mostrou que se lhe de la mandou, e o que respondeu, e que se aproveyte deste queixume, etc.»

(464) Carta de D. Pedro Mascarenhas de 9 de março, na Corresp. Orig., f. 209.

(465) Ibid. f. 211.

(466) Memoriale, na Symm., vol. 31, f. 59.

(467) «... a bula decraratorya da inquisyçam, que ho seu nuncyo lhes nam quisera pubrycar em Portugal, e que os daquella naçam diziam que ho fizera por lhe loguo nam poderem dar tamto dinheiro de composyçam como ele querya e que por esta causa se vyera sem na pubrycar»: Carta de D. Pedro Mascarenhas de 9 de março de 1540, na Corresp. Orig., f. 209.

(468) A minuta dessa carta acha-se a f. 37 da Corresp. Orig. sem data; mas a f. 265 está cópia da versão dela feita por Santiquatro para ser lida ao papa. Nesta cópia encontra-se a data de 10 de dezembro.

(469) «e ysto tudo he como huum táo desavergonhado fengimento que eu queria degolar as minhas ovelhas»: Ibid. f. 39.

(470) Ibid.

(471) «Derogar nesta parte o direito he tirar todo o efeito e proveito que da inquisição se pode seguir; porque as heresias se nom provam senom por os participes dos crimes e pelos familiares e domesticos e per os parentes e pessoas com quem os herejes tem conversação e familiaridade»: Resposta aos Capítulos, etc. G. 2, M. 2, N.º 49, no Arqu. Nac. Os capítulos redigidos por Del Monte a que se refere esta resposta acham-se na G. 2, M. 2, N.º 46.

(472) «he tirar a Inquisição de todo, e fazer que seja sem efecto, e dar causa que os errores dos herejes non se possam saber nem sejam descubertos»: Ibid.

(473) Ibid.

(474) Carta de D. Pedro Mascarenhas de 9 de março de 1540, na Corresp. Orig., f. 207.

(475) Ibid.

(476) Ibid.

(477) «E a náao do seu nuncyo que vynha carregada dos espolyos do sangue de noso senhor Jesu-Christo e das peitas daquele povo seu aversaryo nom sem causa fora sovertida no mar»: Ibid.

(478) Ibid.

(479) Ibid.

(480) «lhe tomaram a mala com todas as cartas que trazia e huns cento e tamtos cruzados e certos aneys»: Ibid.

(481) Ibid.

(482) «Comtudo, pollos casos serem mais que as leys, ouve por mais seguro contentarme das palavras que me já o papa tinha dadas, e nom lhe dar mais furya»: Ibid.

(483) Ibid.

(484) Ibid.

(485) «nam ha quem na contradiga, nem tenha dinheiro posto em banquo»: Ibid.

(486) «porque he (o cardeal Santiquatro) ainda mais syoso da ida dos nunçios que eu, mesturando ho serviço de V. A. com o seu imteresse»: Ibid.

(487) Carta de D. Pedro Mascarenhas de 11 de março de 1540, na Corresp. Orig., f. 221 e segg.

(488) Ibid. e carta do dicto, datada de Modena a 2 de abril: Ibid. f. 226 e segg. — Na G. 10, M. 11, N.º 27, no Arqu. Nac. está a lista de vários papéis deixados pelo embaixador a Pero Domenico. Entre eles há alguns relativos ao processo de Ayres Vaz, que da carta de D. Pedro Mascarenhas de 11 de março, acima citada, se vê ter sido solto, deixando-o ir a Roma seguir a sua apelação para o pontífice.

(489) Breve de 10 de março de 1540, no M. 7 de Bulas N.º 17, no Arqu. Nac.

(490) Examinando-se os arquivos da Inquisição da Torre do Tombo, verifica-se este fato. Os processos de 1533 a 1536 são raros, e os de 1536 a 1539 são ainda poucos. É de 1540 a 1547 que o seu número cresce rapidamente. Na verdade, quando se extinguiu o Santo-Ofício, em 1820, e posteriormente, distraíram-se muitos processos. É natural, até, que, no decurso do tempo, dos próprios cartórios do tribunal saíssem outros muitos. Entretanto, essas perdas abrangem processos de todas as épocas da existência da Inquisição, e portanto a proporção entre ano e ano na sucessão cronológica ficou sendo pouco mais ou menos a mesma.

(491) A história da primeira época da vida do célebre D. Miguel da Silva encontra-se, não tanto na Lusitania Purpurata de Macedo, no opúsculo de Pereira Portugueses nos Concílios Gerais, ou na Memória sobre os Escrivães da Puridade de Trigoso, trabalhos assaz imperfeitos, como nos breves de 7 e 30 de julho de 1525 e de 23 de março de 1526, no M. 26 de Bulas N.os 21, 22, 23, e nas cartas do mesmo D. Miguel e de D. Martinho de Portugal, no C. Cronol., P I, M. 30, N.os 55, 59, 61, 62, 63, 66, e M. 32, N.os 56 e 60 no Arqu. Nac. Lança, também, grande luz sobre essa primeira época uma espécie de manifesto publicado por D. Miguel em resposta à carta régia de 23 de janeiro de 1542, pela qual foi banido do reino, resposta que temos de aproveitar largamente. A biografia do cardeal da Silva que mais rasteja a verdade, posto que às vezes seja inexata, é a de Fr. Luiz de Sousa, nos Anais de D. João III, P. 2, cap. 9.

(492) Decreto contra íl signore D. Michele da Silva et Risposta al detto Decreto, etc., na Symm., vol. 29, f. 83 e segg.

(493) Oldoino, nas adições a Ciacconio (Vitæ Pontif. vol. 3, col. 676), afirma que dos monumentos do Vaticano consta ter sido feita a eleição de D. Miguel da Silva no consistório secreto de 12 de dezembro de 1539, conservando-se in petto até 2 de dezembro de 1541.

(494) «mi disse ch’io mi fingessi ammalato, al che risposi... che non volero mentire a Dio nè al Papa, e dicendo-mi ch’io era stato molto tempo ammalato, e che non era mentire, risposi, etc.»: Risposta di d. Michele etc., l. cit., f. 92 v.

(495) Ibid. — Instruções sem data (talvez a Baltazar de Faria) acerca dos negócios do bispo de Viseu e da Inquisição: Coleção de Mss. de S. Vicente, vol. 3, f. 134 e segg., no Arqu. Nac.

(496) Risposta de D. Michele, l. cit., f. 97.

(497) Acaso eram os próprios infantes: «che uno di quelli miei nemici in presenza di S. A. e senza reverenza alcuna, aveva detto contra di me che un giorno aveva a diventar donnola per iscanare un vescovo, e che non l’aveva fatto insino allora, non per rispetto delle, scommuniche, ma di S. M., e che ancora non sapeva quel che farebbe: e che altro disse a me, parlandomi del mio venire a Roma al concilio, che se io mi partivo, egli con sue proprie mani mi ammazzarebbe: e erano persone a chi io non potevo rispondere»: Ibid. f. 98

(498) Instruções sem data, na Coleção de Mss. de S. Vicente, l. cit.

(499) Risposta de D. Michele, l. cit., f. 100 v. e 101.

(500) «mas ainda alevantou que o Ifante o mandava matar por ordenança de S. A.»: Instruções sem data, no Mss. de S. Vicente. — No manifesto de D. Miguel da Silva diz-se vagamente que Correia fora mandado por pessoa que assistia aos conselhos do rei.

(501) Risposta de D. Michele, l. cit.

(502) Ibid. — lnstruç. sem data, l. cit.

(503) Breve de 11 de outubro de 1510, no M. 25 de Bulas N.º 51, no Arqu. Nac.

(504) Instruç. sem data, 1. cit

(505) Carta de Christovam de Sousa a elrei de 8 de dezembro de 1541: Coleção de Mss. de S. Vicente, vol 1, f. 139, no Arqu. Nac.

(506) Memoriale: Symm: vol. 31, f. 59 v.

(507) Pallavicino, L. 4, c. 16. — C. de Christ. de Sousa de 9 de dezembro de 1541: Coleção de S. Vicente, vol. 1, f. 149 v.

(508) É curioso o que a este respeito se lê na carta de Christovam de Sousa de 9 de dezembro: «lhe declarey ás vezes em latim ho que me parecia que S. S. não entendia bem; e a necessidade me forçou ha saber ha lingoagem italiana, porque crea V. A. que ametade não entendem do que se lhe fala em português, e quanto melhor falado he ou escrito muito menos o alcançam, e se quasi ha sustancia do que se escreve tomam, ao menos do primor de bem escrever estam bem longe.»

(509) «elle avia que isto era obra do imigo»: Ibid.

(510) «tem offerecido darem-lhe os cristãos-novos (ao núncio) duzentos e cinqüenta cruzados cada mês, e dá ao papa oyto ou dez mil; não afirmo quantos dá, mas sei que dá: e asi a este Pariseo.» C. de Christovam de Sousa de 2 de dezembro de 1541: Coleção de S. Vicente, vol. 1, f. 135 v.

(511) «e o cardeal Santiquatro me disse que nenhua cousa mais atalhara ao papa que dizer-lhe eu que pois nhuncio hia por caso da Inquisição, que a tirasse e não mandasse nhuncio, e também com dizer-lhe que me desse licença falar-lhe em consistorio pruvico cousa que ele mais areçêa»: C. de Christovam de Sousa de 9 de dezembro de 1541, l. cit.

(512) Ibid.

(513) Carta de Christovam de Sousa de 2 de dezembro, l. cit.

(514) «o cardeal Santiquatro falou aqui mais do que eu não cria dele, ainda que lhe a ele importa muito não hir nhuncio, porque não terá sua penitenciaria nenùa expedição deses reinos»: Carta de Christovam de Sousa de 8 de dezembro de 1541, l. cit.

(515) «e com assaz ou sobeja colera nestas pratiquas mui altas e já quasi desentoadas, de modo que o camareiro do papa despejou a outra casa porque nos ouviam mui craro»: Ibid.

(516) Ibid.

(517) «fala, vive e obra como italiano, que sempre vos dizem hua cousa por outra e am que he muyto bom modo de negociar»: Ibid.

(518) Ibid.

(519) «e se for este letrado será causa de não hir nhuncio, porque dará a informação conforme as obras que V. A. fizer, e mandar que dê»: Carta de Christovam de Sousa de 2 de dezembro, l. cit.

(520) Ibid.

(521) Ciacconius, T. 3, col. 676.

(522) Sendo, conforme Ciacconio, proclamado D. Miguel a 2 de dezembro de 1541, é notável que em nenhuma das três cartas de Christovam de Sousa, escritas nesse mês com as datas de 2, 8 e 9, haja a mínima alusão a semelhante fato. Deve ter existido outra carta sobre essa matéria, que não chegou até nós.

(523) Carta régia de 23 de janeiro de 1542, em Andrade, Cron. de D. João III, P. 3, c. 82. — Sousa, Anais de D. João III, P. 2, c. 9. — Instruç. sem data, na Coleção de Mss. de S. Vicente, vol. 3, f. 134.

(524) Carta de Christovam de Sousa de 16 de fevereiro de 1542 (assaz lacerada), no C. Cronol., P. 3, M. 15, N.º 70, no Arqu. Nac. — Sousa, Anais de D. João III, l. cit.

(525) «a mercê de me mandar hir desta Babilonia de confusões»: Carta de Christovam de Sousa, cit. — «e estes dias que estou em Roma me parece que estou no inferno»: Ibib.

(526) Instrução sem data, na Coleção de S. Vicente, l. cit. — Carta de Christovam de Sousa de 16 de fevereiro de 1542, l. cit. As mutilações deste último documento nos obrigam a omitir algumas circunstâncias que aí se referiam relativas à retirada do embaixador.

(527) «porque sei que esta gente de qua he tão baixa, que qualquer cousa commeterão, asentei não falar ao papa senam depois de telas bulas na mão»: Carta de Christovam de Sousa de 16 de fevereiro, l. cit.

(528) Risposta di D.Michele: Symm., vol. 29, f.86 e segg. — «dei quale (decreto) non vego che sia parte ne parola alcuna de si possa verificare, salvo essere il nome mio D. Michele»: Ibid. f. 111 v.

(529) Bula de 6 de junho de 1541 incluída em outra de 15 de março de 1542, no M. 37 de Bulas N.º 49, no Arqu. Nac.