História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (grafia atualizada-a)/Tomo I

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HISTÓRIA DA ORIGEM E ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL POR A. HERCULANO

Nona edição definitiva conforme com as edições da vida do autor dirigida por DAVID LOPES Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

TOMO I

ÍNDICE

Prólogo

LIVRO I

Disciplina primitiva da igreja acerca do julgamento dos hereges. Os sínodos. A excomunhão eclesiástica e a punição civil. — Opiniões moderadas dos santos-padres. — As penitências — Heresias do século XII: suas causas e efeitos. — Concílio de Latrão e providências de Lúcio III. — Pontificado de Inocêncio III. — Inquisidores delegados no sul da França. — Domingos de Gusmão e os dominicanos. — Leis de Frederico II. — Sistema inquisitorial propriamente dito: seus primeiros passos. — Concílio narbonense de 1235. — Roberto Búlgaro. — Regulamento do Concílio de Béziers relativo à Inquisição. Esta dilata-se na Itália. Reações. Mútuas vinganças. — A Inquisição na França central. — Modificações da instituição na Itália. — Sua decadência em França, e progressos na Península. — Portugal exempto dela nos séculos XIII e XIV, e tendo-a só nominalmente no XV. — Desenvolvimento do poder inquisitorial no resto da Espanha. Estabelecimento definitivo da Inquisição espanhola como tribunal permanente.— Os judeus espanhóis, convertidos e não convertidos. — Bula de Sixto IV instituindo a Inquisição. — Cortes de Toledo em 1408. — Instituição do tribunal em Sevilha. Resistências. Atrocidades dos inquisidores. — Política tortuosa de Roma. — Criação de um inquisidor-mor e de um conselho supremo em Castela. — Frei Thomaz de Torquemada. Primeiro código inquisitorial. — Nova organização da Inquisição aragonesa. Assassínio de Pedro de Arbuès. Crueldades dos inquisidores para com os conversos. — Expulsão dos judeus d’Espanha

LIVRO II

Situação dos judeus em Portugal no século XV. Malevolência do povo contra eles. Manifestações e causas dessa malevolência. — Entrada dos hebreus espanhóis. Aumento da irritação popular. — Morte de D. João II e acessão de D. Manuel. — Circunstâncias que determinam a política do novo monarca acerca da raça hebréia. Influência da corte de Castela. — Debates sobre a expulsão dos judeus. Ordena-se a saída dos sectários do mosaísmo e do islamismo. Tiranias e deslealdades praticadas nessa conjuntura. Conversão forçada dos judeus. Leis favoráveis aos pseudo-conversos. — Sintomas de perseguição popular.— Tentativas de emigração dos cristãos-novos. Obstáculos. — Novas manifestações do ódio do vulgo, incitado pelo fanatismo. Horrível matança dos cristãos-novos de Lisboa. Procedimento severo contra os culpados. — Mudança de política. Providências protetoras e de tolerância a favor dos perseguidos. — Confiança imprudente dos cristãos-novos. — Meneios ocultos de fanatismo. Tentativas sem resultado para o estabelecimento da Inquisição. — Situação da raça hebréia durante os últimos anos do reinado de D. Manuel. Morte deste príncipe

LIVRO III

D. João III rei. — A nova corte. Influência dos ministros no negócio da Inquisição. Fanatismo do moço monarca. Esperanças dos inimigos da raça hebréia. Tolerância oficial. — Cortes de Torres Novas. Estado moral e administrativo do reino. — Acusações repetidas contra os judaizantes. Inquéritos e delações secretas. Themudo e Firme-fé. — Influência da Inquisição castelhana. — Manifestações contra os cristãos-novos. Desordens em Gouveia e seus resultados. Perseguição em Olivença. — Reação dos espíritos mais ilustrados contra a intolerância. Gil Vicente e o bispo de Silves. — Resolve-se o estabelecimento de um tribunal da fé. Instruções ao embaixador em Roma. Dificuldades que aí se encontram. Obtém-se a primeira bula da Inquisição. Suas provisões. Demora na execução e causas do fato — Lei de 14 de junho de 1532. Terror dos cristãos-novos. Diligências que fazem para obstar à ereção do novo tribunal. — Excitação produzida pela lei de 14 do junho. Cenas anárquicas em Lamego. — Os cristãos-novos recorrem a Roma. Duarte da Paz enviado como procurador deles. — O papa manda o bispo de Sinigaglia núncio a Portugal. — Carácter do núncio. — Esforços de Duarte da Paz em Roma e procedimento singular da corte portuguesa — Breve de 17 d’outubro de 1532 suspendendo a Inquisição. — Enviatura de D. Martinho de Portugal. — Deslealdades mútuas. — Vilania de Duarte da Paz — Estado da luta nos princípios de 1533

PRÓLOGO

Confundindo as idéias de liberdade e progresso com as de licença e desenfreamento, o direito com a opressão e a propriedade, filha sacrosanta do trabalho, com a espoliação e o roubo; tomando, em suma, por sistema de reforma a dissolução social, há poucos anos que certos homens e certas escolas encheram de terror com as suas loucuras a classe média, a mais poderosa, a única verdadeira e eficazmente poderosa, das que compõem as sociedades modernas. Este erro de muitas inteligências, aliás eminentes e a quem, em parte, sobrava razão para taxar de víciosas ou de incompletas muitas instituições dos países livres, abriu caminho e subministrou pretextos por toda a Europa a uma reação deplorável. E um acontecimento grave, não tanto pela sua violência e exageração e pelos seus caracteres materiais, como porque a essas manifestações externas se associa a reação moral. É aí que está o perigo para o futuro. A tirania, restabelecendo-se por quase todo o continente europeu, esmagando o governo representativo sob os pés dos seus batalhões d’infanteria e dos seus esquadrões de cavalaria, passando triunfante no meio das multidões, assentada no velho e roto pavez do absolutismo, que se eleva sobre uma selva de baionetas, é um espetáculo repugnante, mas útil para o progresso humano, como o tem sido quase todos os fenômenos históricos, ainda os mais contrários na aparência a esse progresso, é uma demonstração estrondosa, fecunda e, ao mesmo tempo, transitória de que os exércitos permanentes, nascidos com o absolutismo e só para ele, com ele deviam ter passado para o mundo das tradições. Moral e economicamente, os crimes que a reação está perpetrando e o sangue que tem vertido virão a ser bem moderado preço de resultado imenso, a aniquilação dessa força bruta, encarregada nominalmente de cumprir um dever que é, que não pode deixar de ser comum a todos os cidadãos, a defesa da terra pátria. Quanto mais a reação abusar da vitória, mais depressa lhe chegará o dia do último desengano, e os povos, amestrados por experiência tremenda, cortarão, enfim, a última artéria que ainda faz bater o coração da tirania desesperada e moribunda.

Mas a reação moral que vai acompanhando a reação material deve merecer mais sérios cuidados aos amigos sinceros e prudentes da civilização e da liberdade. Ao lado dos vivas da soldadesca embriagada, em volta dos quartéis e acampamentos, onde está hoje reconcentrada quase toda a ação política das sociedades, ouvem-se, também, os vivas de certa parte das populações. Estes aplausos não partem de um grupo único. Há aí o vulgo, que faz o que sempre fez, que saúda o vencedor, sem perguntar d’onde veio, nem para onde vai; que vocifera injúrias junto ao patíbulo do que morre mártir por ele, ou vitoreia a tirania, quando passa cercada de pompas que o deslumbram. Há aí os velhos interesses mortalmente feridos, que, não podendo defender-se como legítimos, buscavam, até agora, santificar-se pela poesia do passado, indo esconder as rugas asquerosas na luz frouxa da abside da antiga catedral, mas que hoje se proclamam em nome do direito com gritos de furor e de ameaça. Há aí a hipocrisia, que, depois de minar debaixo da terra durante anos, surge, enfim, à luz do sol e, balouçando o turíbulo, incensa todos os que abusam da força, declarando-os salvadores da religião, como se a religião precisasse de ser salva ou coubesse no poder humano destruí-la. Tudo isso tumultua e brada; tudo isso tripudia à porta do pretório e traduz o sussurrar das orgias que vão lá dentro em anúncios de paz e de prosperidade. O vulgacho espera de cima a realização dos seus ódios contra a classe média, a satisfação à sua inveja; os velhos interesses pensam numa indenização impossível; os hipócritas querem aproveitar o ensejo de granjear as multidões para o fanatismo e, com tal intuito, recorrem a um meio, infalível em todos os tempos, para se obter esse fim, o ínculcarem-lhes de preferência o que na superstição há de afirmações mais incríveis. — Os milagres absurdos renascem, multiplicam-se em frente dos recrutamentos: o convento e a casa professa já disputam ao quartel a geração nova. O cercilho e o bigode jogam o futuro sobre o tambor posto em cima da ara. O praguejar soldadesco cruza-se com a antifona do breviário. A água benta aspergida do hissope episcopal, vai diluir no chão o sangue coalhado dos espingardeamentos, e o sacerdote crê ter afogado o clamor daquele sangue que se imbebe na terra, porque entoou hossanas sacrílegos ao triunfar dos algozes, no momento em que as vítimas caíam mártires da sua fé na civilização e na liberdade.

Isto é grave porque é atroz; mas ainda há aí cousa mais grave. É que entre os grupos que vitoreiam em quase toda a Europa as saturnais da reação há um mais forte, mais ativo e, sobretudo, mais eficaz, porque se acha senhor, em muitas partes, do poder público e serve-se desse poder e dos soldados e magistrados e agentes públicos que lhe obedecem para anular num dia as garantias conquistadas pelas nações em meio século de lutas terríveis. É o grupo dos Cains; daqueles a quem, mais tarde ou mais cedo, Deus e os homens hão de, infalivelmente, perguntar: — «Que fizestes de vossos irmãos?» — É o grupo daqueles que deveram quanto são e quanto valem aos triunfos da liberdade; que, sem as lides dos comícios, dos parlamentos, da imprensa; sem o chamamento de todas as inteligências à arena dos partidos; calcados por um funcionalismo despótico, por uma nobreza orgulhosa, por um clero opulento e corrompido, teriam fechado o horizonte das suas ambições em serem mordomos ou causídicos de algum degenerado e raquítico descendente de Bayard ou do Cid ou em vestirem a opa de meninos do coro de algum pecunioso cabido. Estes tais, que trocaram o aposento caiado pela sala esplêndida, o nome peão de seus pais pelos títulos nobiliários, o sapato tauxiado e o trajo modesto do vulgo pelos lemistes e cetins cortesãos, cobertos de avelórios e lentejoulas, das condecorações com que o poder costuma marcar os seus rebanhos de consciências vendidas; estes tais, recostados nos sofás, para onde se atiraram de cima do tamborete de couro ou da cadeira de pinho, sentem esvair-se-lhes a cabeça com os tumultos eleitorais, com as lutas da imprensa, com as discussões tempestuosas — e não raro estéreis — das assembléias políticas. Demasiado repletos, perderam nos vapores dos banquetes a lucidez da inteligência; demasiado mimosos, perderam, reclinados nos coxins das suas carruagens, a energia laboriosa da classe de que saíram. As dolorosas e longas experiências da liberdade afiguram-se-lhes, agora, como um desvario do gênero humano e as tentativas das nações para se constituírem menos imperfeitamente como uma série de erros deploráveis. Confessam o fato indisputável do progresso nas ciências, nas artes, na indústria, apesar de mil experiências falhas, de mil teorias que surgem para morrerem, de mil esforços perdidos; isto é, confessam que existe o desenvolvimento social, embora limitado em tudo pela imperfeição terrena. Não protestam, em tese, contra as tendências das sociedades. O que não admitem é que essa lei do desenvolvimento constante, aplicável a todas as cousas humanas, o seja à ciência social. Nesta, o progresso consiste em retroceder. A voz da consciência, que nos fala da dignidade e liberdade do homem, é uma ilusão do nosso espírito. Embora o cristianismo gastasse cinco séculos em constituir as sociedades modernas: estas deviam ter completado e aperfeiçoado uma revolução fundamental no seu organismo dentro de cinqüenta anos. Não o fizeram; logo o voltar ao passado, ao absolutismo caquético e impotente, significaria o progresso político. Incubou neles o arrependimento. Sonham que o fantasma d’Átila surge entre o norte e oriente. Ajoelham; e tentam, renegando as idéias que propugnaram, salvar as suas carruagens, mitras, bastões, veneras, rendas e dignidades.

Este é o grupo dos grandes miseráveis. Ao pé dele, às vezes confundindo-se, compenetrando-se ambos, falando a mesma linguagem, está o da burguesia tímida, cujos nervos são débeis demais para resistirem aos freqüentes abalos das comoções políticas. Esses têm desculpa, embora raciocinem mal, como sempre raciocina o temor. A sua vida de artífices, de comerciantes, de industriais, de proprietários, de agricultores repugna às violentas tempestades políticas, aos movimentos populares desordenados. A transformação social lenta e pacífica, resultado de doutrinas que chegam a triunfar pelo meio da longa discussão, admitem-na, amam-na, e com razão. Mas a idéia dos terremotos políticos horroriza-os tanto como a dos físicos, e nisso também têm razão. Sobre os meios de evitar tais males é que se têm iludido. O medo é o pior dos conselheiros. Na verdade, foi contra esta classe que os agitadores das multidões ignorantes as concitaram, declarando guerra, não só aos abusos da propriedade, na mais ampla significação desta palavra, mas também à propriedade indubitavelmente legítima.

Aterrada a burguesia começou a ver na liberdade a espoliação e congraçou-se, em boa parte, com o absolutismo, esquecendo-se de que ele representava igualmente espoliações, violências e tiranias de séculos e de que todas as afrontas e danos de que tem de vingar-se foram recebidos da mão da classe média. O raciocínio do medo foi, como era de esperar, ao extremo. Recuando, intencionalmente, até épocas julgadas e condenadas, os membros da burguesia que não têm cordura nem ânimo para afrontar as aberrações do progresso (aberrações que nunca faltam nas conjunturas das grandes transformações) mentem aos destinos da sua classe, maldizem a santa obra da civilização, as tradições de seus pais, os fins do cristianismo e os próprios atos da sua vida pública anterior. Esquecem-se de que, se fosse possível voltar atrás para nos curvarmos à tirania, voltaríamos igualmente atrás para, depois, reagir contra ela e repetir inutilmente experiências já feitas. O remédio contra as idéias exageradas de cabeças ardentes ou levianas ou contra os desígnios dos hipócritas da liberdade não está em reações moralmente impossíveis. O incêndio que ameaçou por alguns meses devorar a Europa e que arde ainda debaixo das cinzas não se apaga nem com sangue, nem colocando em cima destas o cadáver corrupto do absolutismo. Para o extinguir, necessita-se das resistências organizadas e enérgicas, das idéias sãs e exequíveis; necessita-se de que a classe média não esqueça ou despreze tantas vezes os seus deveres; isto é, cumpre que se lembre de que a sua vida é dupla, pública e privada, de cidadão e de homens; que, assim como o mau chefe de família é um indivíduo desonrado, o que despreza as funções públicas que lhe incumbe exercer para a manutenção da liberdade igualmente se desonra. Não consentindo que cabeças vãs ou corações fementidos façam das nações matéria bruta das suas experiências políticas ou presa das suas ambições desregradas, não carecerão de ir aspirar a vida no cemitério dos séculos, não terão de se assemelhar ao enfermo que, desprezando, para saciar todos os apetites, os conselhos severos da medicina, quando enfim verga debaixo do peso dos seus males, declara a ciência impotente e vai buscar nas receitas dos charlatães e curandeiros o remédio que eles não podem dar-lhes.

Felizmente, no meio das loucuras do terror, muitas almas fortes, muitas cabeças inteligentes têm sabido conservar frio o ânimo para não abdicarem o senso comum. Nação pequena e que a Europa desconsidera ainda, pela idéia que faz dela, à vista de um passado não mui remoto, temos nesta parte dado mais de um exemplo de alta sabedoria a algumas das maiores nações. A história contemporânea há de prová-lo. Creia-nos o país, a nós que não estamos costumados a lisonjear-lhe vaidades pueris ou preocupações insensatas e que, impassívelmente, lhe havemos dito sempre o que reputamos ser verdade. No meio das nossas misérias morais, e não são elas nem pequenas nem poucas, a minoria liberal que tem traído as suas doutrinas é por mais de um modo insignificante. Seja qual for a situação hierárquica desses indivíduos, nem o seu prestigio, nem os seus talentos os tornam demasiado perigosos. Entre os homens sinceros o temor é moderado; porque o perigo do terremoto eminente não produziu, em Portugal, grande abalo nos ânimos. Os poucos que, neste país, fingem temer, os menos que fingem saudar a tempestade representam geralmente, em nossa opinião, apenas ridículas farsas.

Todavia, a civilização, tornando cada vez mais íntimo o trato das nações entre si, faz necessariamente atuar as idéias de umas sobre as outras, e o homem é, ordinariamente, mais propenso a contentar-se das idéias alheias do que a refletir e a raciocinar. Em certa esfera e até certo ponto, a reação geral tem representantes entre nós. Cumpre combatê-la, não para convencer aqueles que sempre amaram o passado e nunca negociaram com as suas crenças, porque esses respeitamo-los; mas para fortificar na fé liberal os tíbios do próprio campo e premuni-los contra as ciladas dos transfugas. Este intuito não é só nosso; é de todos os homens leais, de todos os amigos sinceros de uma justa liberdade.

Levados pelas nossas propensões literárias para os estudos históricos, era, sobretudo, por esse lado que podíamos ser úteis a uma causa a que estamos ligados, rememorando um dos fatos e uma das épocas mais célebres da história pátria; fato e época em que a tirania, o fanatismo, a hipocrisia e a corrupção nos aparecem na sua natural hediondez. Quando todos os dias nos lançam em rosto os desvarios das modernas revoluções, os excessos do povo irritado, os crimes de alguns fanáticos, e, se quiserem, de alguns hipócritas das novas idéias, seja-nos lícito chamar a juízo o passado, para vermos, também, aonde nos podem levar outra vez as tendências de reação, e se as opiniões ultramontanas e hipermonárquicas nos dão garantias de ordem, de paz e de ventura, ainda abnegando dos foros de homens livres e das doutrinas de tolerância que o Evangelho nos aconselha e que Deus gravou na nossa alma.

Podíamos escrever a história da Inquisição, desse drama de flagícios que se protrai por mais de dous séculos. Os arquivos do terrível tribunal aí existem quase intatos. Perto de quarenta mil processos restam ainda para dar testemunho de cenas medonhas, de atrocidades sem exemplos, de longas agonias. Não quisemos. Era mais monótono e menos instrutivo. Os vinte anos de luta entre D. João III e os seus súditos de raça hebréia, ele para estabelecer definitivamente a Inquisição, eles para lhe obstarem, oferecem matéria mais ampla a graves cogitações. Conheceremos a corte de um rei absoluto na época em que a monarquia pura estava em todo o seu vigor e brilho; conheceremos a corte de Roma na conjuntura em que, confessando os seus anteriores desvios, ela dizia ter entrado na senda da própria reformação, e poderemos comparar isso tudo com os tempos modernos de liberdade. Os documentos de que nos servimos são, na maior parte, redigidos pelos mesmos que intervieram naqueles variados enredos e existem, em grande número, nos próprios originais. A Providência salvou-os para vingadores de muitos crimes, e, porventura, nós, pensando que praticamos um ato espontâneo, não somos senão um instrumento da justiça divina.

Aos que, ouvindo e lendo as declamações contra as tendências legítimas da moderna civilização, vacilarem nas crenças da liberdade política e da tolerância religiosa, pedimos que, depois de lerem também este livro, procurem na sua consciência a solução de um problema pelo qual concluiremos, e que encerra o resultado final, a aplicação prática do presente trabalho histórico. A resposta que ela lhes der servir-lhes-á de guia no meio das incertezas, e de conforto no meio do desalento em que a escola da reação procura afogar os mais nobres e puros instintos do coração humano.

Eis o problema: Se no princípio do século XVI, quando ainda, segundo geralmente se crê, as opiniões religiosas eram sinceras e ferventes, e o absolutismo estava, na aparência, em todo o seu vigor de mocidade, acharmos por documentos irrefragáveis que os indivíduos colocados na eminência da jerarquia eclesiástica não eram, em grande parte, senão hipócritas, que faziam da religião instrumento para satisfazer paixões ignóbeis; que o fanatismo era mais raro do que se cuida; que debaixo da monarquia pura a sociedade, moral e economicamente gangrenada, caminhava para a dissolução, e que nos atos do poder faltavam a cada passo a lealdade, o são juízo, a justiça e a probidade, deveremos, acaso, acreditar na sinceridade dos inúmeros apóstolos da reação teocrática e ultramonárquica que surgem de repente nesta nossa época, depois de cento e cinqüenta anos de discussão religiosa e política, em que as antigas doutrinas foram vitoriosamente combatidas, os princípios recebidos refutados ou postos em dúvida e, até, mais de uma verdade ofuscada por sofismas subtis? Deveremos supor filhos da convicção estes entusiasmos exagerados pelas idéias disciplinares de Gregório VII e pelo sistema político de Luiz XI ou de Felipe II, numa época em que, por confissão unânime dos próprios apóstolos do passado, predomina no geral dos espíritos cultivados o contágio do ceticismo?

Que o leitor busque a resposta a estas perguntas na voz íntima do seu coração e, depois, decida entre a reação e a liberdade.

Dezembro de 1852.

LIVRO I

Disciplina primitiva da igreja acerca do julgamento dos hereges. Os sínodos. A excomunhão eclesiástica e a punição civil. — Opiniões moderadas dos santos-padres. — As penitências. — Heresias do século XII: suas causas e efeitos. — Concílio de Latrão e providências de Lúcio III. — Pontificado de Inocêncio III. — Inquisidores delegados no sul da França. — Domingos de Gusmão e os dominicanos. — Leis de Frederico II. — Sistema inquisitorial propriamente dito: seus primeiros passos.— Concílio narbonense de 1235. — Roberto Búlgaro. — Regulamentos do concílio de Béziers relativos à Inquisição. Esta dilata-se na Itália. Reações. Mútuas vinganças. — A Inquisição na França central. — Modificações da instituição na Itália. — Sua decadência em França, e progressos na Península. — Portugal exempto dela nos séculos XIII e XIV, e tendo-a só nominalmente no XV. — Desenvolvimento do poder inquisitorial no resto da Espanha. Estabelecimento definitivo da Inquisição espanhola como tribunal permanente. — Os judeus espanhóis, convertidos e não convertidos. — Bula de Sixto IV instituindo a Inquisição. — Cortes de Toledo em 1408 — Instituição do tribunal em Sevilha. Resistências. Atrocidades dos inquisidores. — Política tortuosa de Roma. — Criação de um inquisidor-mor e de um conselho supremo em Castela. — Frei Thomaz de Torquemada. Primeiro código inquisitorial. — Nova organização da Inquisição aragonesa. Assassínio de Pedro de Arbuès. Crueldades dos inquisidores para com os conversos. — Expulsão dos judeus d’Espanha.

Durante os doze primeiros séculos da igreja foi aos bispos que exclusivamente incumbiu vigiar pela pureza das doutrinas religiosas dos fiéis. Era isso para eles, ao mesmo tempo, um dever e um direito que resultavam da índole do seu ministério: ninguém podia, portanto, intervir nesta parte tão grave do ofício pastoral, sem ofender a autoridade do episcopado. Esta era a doutrina e a praxe dos bons tempos da igreja. Um tribunal especial e estranho à jerarquia eclesiástica, incumbido de examinar os erros de crença que a ignorância ou a maldade introduziam; um tribunal que não fosse o do pastor da diocese, encarregado de descobrir e condenar as heresias, seria, nos séculos primitivos, uma instituição intolerável e moralmente impossível. E todavia, esse tribunal, se nalguma parte houvera então existido, não teria sido na essência senão aquela instituição terrível que, ajuntando ao monstruoso da origem e natureza a demência das suas manifestações e a atrocidade das suas fórmulas, surgiu no seio do catolicismo durante o século XIII, e que veio com o nome de Inquisição ou Santo-Ofício, a cobrir de terror, de sangue e de luto quase todos os países da Europa meridional e, ainda, transpondo os mares, a oprimir extensas províncias da América e do Oriente.

Como é fácil de crer, essa instituição fatal nasceu débil e desenvolveu-se gradual e lentamente. Criada de súbito, embora o fosse com muito menos atribuições que as adquiridas depois, teria expirado no berço, esmagada pela resistência do episcopado. É certo que, já antes do século XIII, as comissões chamadas sínodos, que constituíam nos diversos distritos de cada diocese uma espécie de tribunais dependentes do bispo, tinham a seu cargo proceder contra os hereges. Essas comissões, porém, depois de os qualificarem como tais e de lhes aplicarem a excomunhão, deixavam o resto à ação do poder civil. Há, na verdade, exemplos de condenarem os juízes seculares os hereges ao último suplício, embora nenhuma lei da igreja, nem de direito romano lhes impusesse maior pena do que o confisco dos bens: todavia, no meio do fanatismo que inspirava semelhantes crueldades, o sistema de processo contra os delinqüentes desta espécie não tinha analogia alguma com o que depois a inquisição adotou. Não havia juízes especiais para investigarem e apurarem os fatos: serviam para isso os tribunais ordinários. O acusado assistia aos atos do processo, dava-se-lhe conhecimento de todas as acusações, facilitavam-se-lhe os meios de defesa, e nada se lhe ocultava. Era inteiramente o inverso das praxes posteriores; e, ainda assim, pode-se dizer que a igreja era, até certo ponto, estranha à imposição de penas aflitivas e ao derramamento de sangue com que mais de uma vez se manchou a intolerância religiosa antes do século XIII.

E nisto ela respeitava as tradições primitivas do cristianismo. Nos primeiros séculos, os bispos e prelados, sendo inexoráveis em separar do grêmio dos fiéis os dissidentes da fé, no que, em rigor, nada mais faziam do que certificar a existência de um fato, paravam aí ou, quando muito, davam conta ao poder secular do que tinham praticado. Na opinião de alguns, isto mesmo era uma falta de caridade, e por isso ocultavam aos oficiais públicos a excomunhão que haviam fulminado. É certo que outros entendiam serem úteis os castigos materiais para obstar ao progresso das heresias, e por isso instigavam os magistrados a cumprirem as leis imperiais contra os dissidentes, as quais, como dissemos, não eram excessivamente severas, e, se alguns exemplos restam de se impor a pena última a heresiarcas, a intolerância, envergonhando-se de os condenar pelas suas doutrinas religiosas, qualificava-os, para isso, como cabeças de motim. Em tais circunstâncias, os eclesiásticos abstinham-se de comparecer nos tribunais e sinceramente se esforçavam por salvar os réus. O espírito evangélico era tão vivo em alguns que o grande Santo Ambrosio e S. Martinho consideraram como excomungados os bispos Itácio e Idácio, por haverem sido perseguidos e condenados à morte alguns priscilianistas que eles tinham acusado, insistindo no seu castigo perante os imperadores Graciano e Máximo. Escrevendo a Donato, procônsul d’África, Santo Agostinho declarava-lhe, mui positivamente, que se ele continuasse a punir de morte os donatistas, os bispos cessariam de os denunciar, ficando eles, assim, impunes, e que, se queria que as leis se cumprissem, era necessário usar em tais matérias de moderação e brandura. A tolerância moderna ainda não soube exprimir-se mais nobremente nem com mais filosofia do que Salviano, o chamado mestre dos bispos, que tantos elogios mereceu a Santo Eucherio e a outros padres da primitiva igreja: «São hereges» — dizia ele, falando dos arianos — «são-no; mas ignoram-no. Hereges, entre nós, não o são entre si, porque tão católicos se reputam que nos têm por heréticos. O que eles são para nós somos nós para eles... A verdade está da nossa parte; mas eles pensam que está da sua. Cremos que damos glória a Deus: eles pensam também que o fazem. Não cumprem o seu dever, mas, longe de o suspeitarem, acreditam servir a religião. Sendo ímpios, persuadem-se de que seguem a verdadeira piedade. Enganam-se, mas é de boa fé e por amarem a Deus, não porque o aborreçam. Alheios à crença verdadeira, seguem com sincero afeto a sua, e só o supremo juiz pode saber qual será o castigo dos seus erros.» No tempo da inquisição, o mestre dos bispos teria perecido numa fogueira, se houvesse escrito estas admiráveis frases, onde, tão judiciosamente, se acham ligadas a intolerância doutrinal e legítima com a tolerância material e externa.

Depois da queda do império romano até os fins do século XI as heresias e os hereges foram raros, e nesses mesmos casos a igreja limitou-se aos castigos espirituais, às vezes remidos por um sistema de penitências que equivalia às multas por delitos civis. Se a repressão material se julgava oportuna, essa continuava a ser regulada pela lei civil e aplicada pela magistratura civil. O século XII viu pulular muitas discórdias religiosas, filhas de várias causas, sendo as principais a luta dos imperadores com os papas, luta nascida da desmesurada ambição de alguns pontífices e da corrupção extrema a que haviam chegado os costumes da cleresia, consistindo, por isso, inicialmente, a maior parte dessas heresias na negação da autoridade eclesiástica. A opinião reagia contra os excessos do clero; mas, como sucede em todas as reações, ultrapassava, não raro, os limites do justo. Partindo-se de um sentimento de indignação legítima, quebrava-se freqüentemente a unidade da crença. A própria corrupção eclesiástica, de que o episcopado não era exempto, afrouxando o zelo dos prelados, fazia com que não mantivessem a severidade da disciplina. Ao passo que, assim, se facilitava o progresso das dissidências, aumentando-se as dificuldades do combate por esse motivo, a tibieza dos bispos achava desculpa no número e poder dos dissidentes para dissimular com eles. As cousas tinham chegado a termos que as pessoas prudentes procuravam evitar as discussões em matérias de fé, e, até o papa Alexandre III, escrevendo a Geroho, prior de Reichsberg, lhe ordenava se abstivesse de debater pontualidades e ápices da doutrina religiosa, porque desses debates, de que nenhum bem procedia, só se tirava o caírem em erros de fé as inteligências apoucadas e rasteiras.

Entretanto sentia-se vivamente a necessidade de acudir ao mal. No terceiro concílio geral de Latrão (1179) decretaram-se providências severíssimas contra as heresias que, pelo seu incremento e pelas violências dos seus sectários, se tinham tornado mais perigosas. Tais eram as dos patarenos, cátaros, publicanos e outras que, principalmente, se espalhavam pelas províncias d’Alby, Tolosa, Aragão, Navarra e Vasconia e que já empregavam violências brutais, ou para se defenderem ou para reduzirem ao seu grêmio os que se conservavam fiéis à doutrina católica. À guerra o concílio respondeu com a guerra. Mas, ainda assim, não esqueceram de todo as antigas tradições. «Bem que a igreja — diziam os padres do concílio — não admita sanguinolentas vinganças e se contente das penas espirituais; todavia, as leis seculares muitas vezes exercem ação salutar pelo temor dos suplícios, no remédio das almas transviadas.» Assim, lançando o anátema sobre essas novas e turbulentas seitas e sobre seus fautores e protetores, negando, até, a estes a sepultura eclesiástica, o concílio chama às armas os católicos, autoriza os príncipes para privarem de seus bens os culpados e reduzirem-nos à servidão e concede indulgências por dous anos a todos os que combaterem pela religião, mandando negar o sacramento da eucaristia aos que, admoestados pelos bispos para tomarem as armas, recusassem obedecer-lhes. De certo, o concílio lateranense, com estas e outras provisões análogas, saía da extrema mansidão e brandura que os antigos padres aconselhavam e seguiam; mas não confundia a ação respectiva dos dous poderes. À autoridade eclesiástica ficava competindo do mesmo modo o uso dos castigos espirituais, aos príncipes o dos temporais. Além disso, a jurisdição episcopal era respeitada, e não se introduziam juízes ou tribunais novos e independentes para serem |ulgados os casos de heresia, nem se estabelecia nova ordem de processo. E contudo as medidas extremas tomadas por aquela assembléia e a linguagem do decreto conciliar estão revelando até que ponto subiam os receios dos bispos ali congregados e a extensão do mal a que se pretendia dar remédio no presente e obstar de futuro

A constituição promulgada por Lúcio III em 1184 é considerada por alguns escritores como a origem e gérmen da Inquisição. Aquele ato do poder papal, expedido de acordo com os príncipes seculares, ordena aos bispos que, por si, pelos arcediagos, ou por comissários de sua nomeação, visitem uma ou duas vezes por ano as respectivas dioceses, a fim de descobrir os delitos de heresia, ou por fama pública ou por denúncias particulares. Nessa constituição aparecem já as designações de suspeitos, convencidos, penitentes e relapsos, com que se indicam diversos graus de culpabilidade religiosa, com diversas sanções penais. Todavia conserva-se aí ainda pura a distinção dos dous poderes, limitando-se a igreja aos castigos espirituais e deixando ao poder secular a aplicação de outras penas. Não parece ter-se aí por objeto senão combater a frouxidão dos prelados e compeli-los a desempenharem o seu dever. As comissões extraordinárias a que nela se alude não são na essência cousa diversa dos antigos sínodos, exercendo pura e exclusivamente uma delegação dos bispos. O que naquela constituição há mais notável é o fixarem-se, até certo ponto, as fórmulas do processo eclesiástico em relação aos dissidentes; mas essas fórmulas não ofendiam a razão, porque não desarmavam os acusados das necessárias garantias. Mal se pode, portanto, ver no ato de Lúcio III a origem de um tribunal cuja índole era exatamente contrária ao espírito das provisões que aí lemos, e que apenas tem comum com elas a idéia de um sistema especial de processo para esta ordem de réus

Foi, verdadeiramente, no século XIII que começou a aparecer a Inquisição, como entidade, até certo ponto, independente, como instituição alheia ao episcopado. Altivo, persuadido, já antes de subir ao sólio, dos imensos deveres e, por conseqüência dos imensos direitos do pontificado, resolvido a reconquistar para a igreja a preponderância que lhe dera Gregório VII e a restaurar a severidade da disciplina, meio indispensável para obter aquele fim, Inocêncio III não se mostrou nem devia mostrar menos ativo na matéria das dissidências religiosas do que nas questões disciplinares. Não se contentou com excitar o zelo dos bispos. No sul da França e, ainda, nas províncias setentrionais da Espanha, apesar das providências tomadas anteriormente, a heresia lavrava cada vez mais possante, favorecida por diversas causas. Em 1204 Inocêncio enviou a Tolosa três monges de Cister, com plenos poderes para procederem imediatamente contra os hereges. Levavam comissão do pontífice para, nas províncias de Aix, Arles e Narbona e nas dioceses vizinhas, até onde vissem que cumpria, destruírem dispersarem e arrancarem as sementes da má doutrina. Estas faculdades extraordinárias deram, a princípio, resultados contrários ao intento. Os prelados, ofendidos por semelhante intervenção em atos de jurisdição própria, não só deixavam de favorecer os delegados pontifícios, mas também lhes suscitavam sérios obstáculos, e, por muito tempo, os esforços deles foram, em parte, inutilizados pela má vontade dos bispos e, ainda, dos magistrados seculares. Apesar da autoridade quase ilimitada de que se achavam revestidos, os três monges teriam voltado para Roma desanimados, como mais de uma vez o pretenderam fazer, se não lhes houvesse ocorrido inesperado auxílio. Foi este o de dous espanhóis, o bispo de Osma e um cônego da sua sé, Domingos de Gusmão, que o papa lhes enviou por colegas em 1206. Ambos eles mostraram maior perseverança e energia do que os três anteriores legados. Mas o homem próprio, pelo seu zelo e atividade, para desempenhar dignamente aquela espinhosa missão era Domingos. Sobre ele, quase unicamente, ficou pesando o encargo de combater a heresia, desde que o bispo de Osma, passados dous anos, se recolheu à sua diocese. Foi então que o inquieto cônego espanhol buscou associar à empresa vanos sacerdotes, que, por fim, estabeleceram uma espécie de congregação em Tolosa, com a qual, sendo os seus estatutos aprovados em 1216 por Honório III, se constituiu a ordem dos frades pregadores ou dominicanos

O nome de inquisidores da fé tinha sido dado a esses diversos legados do papa, mas nem tal designação importava o mesmo que depois veio a significar, nem eles constituíam um verdadeiro tribunal, com fórmulas especiais de processo. O seu ministério consistia em descobrir os hereges, e, nessa parte, o trabalho não era grande, em combatê-los pela palavra, em excitar o zelo dos príncipes e magistrados e em inflamar o povo contra eles. Na verdade, estes incitamentos produziam cenas atrozes, quais se deviam esperar em época de tanta barbaria, excitando-se a crença até o grau do fanatismo: mas a ação dos inquisidores vinha, assim, a ser unicamente moral, e indiretos os resultados materiais dela. Todavia, a independência de que gozavam e as faculdades que lhes haviam sido atribuídas, com quebra da autoridade episcopal, eram um grande passo para a criação desse poder novo que ia surgir no meio da jerarquia eclesiástica.

Apesar, porém, dos esforços empregados pelos inquisidores da fé, o incêndio continuava a lavrar no meio-dia da França, e os albigenses (nome com que se designavam, sem suficiente distinção, todas as seitas que naquelas províncias se afastavam mais ou menos da doutrina católica) nem davam ouvidos às prédicas dos dominicanos e de outros controversistas, nem cediam à violência, onde e quando achavam em si recursos e força para a repelirem. A história da guerra dos albigenses não é senão um tecido de atrocidades praticadas pelos católicos contra os hereges e por estes contra aqueles. No meio das mútuas vinganças, Pedro de Castelnau, um dos próprios legados do papa a quem o bispo de Osma e Domingos de Gusmão tinham vindo ajudar, foi assassinado (1208) pelos dissidentes. O espírito d’intolerância e os ódios religiosos produziam os frutos ordinários destas péssimas paixões. Todavia, no meio de tantos horrores apareciam inteligências sumas que sabiam manter as antigas tradições cristãs, conservando puras de sangue as vestes sacerdotais. Tal foi S. Guilherme, bispo de Bruges, que recusou constantemente associar-se ao sistema da compulsão violenta contra os hereges. Deixando aos legados de Roma e aos prelados das outras dioceses confiarem a defensa do catolicismo ao ferro dos combatentes e aos suplícios dos algozes, limitava-se a exortar os endurecidos no erro, a convencê-los com razões e a implorar a graça divina para que os alumiasse. Quando muito, recorria, às vezes, à ameaça da imposição de multas, mas nem essa mesma fraquíssima ameaça se realizava. À morte do santo prelado (1209) seguiu-se em breve a sua canonização. Tanto é certo que, ainda no meio do delírio das paixões e da perversão das idéias, nunca se obscurece de todo o respeito à sã razão e à verdadeira virtude.

Os decretos do imperador Frederico II, promulgados entre 1220 e 1224, para a repressão das heresias vieram dar novo vigor e, em grande parte, absolver, revestindo-o de sanção legal, o sistema d’intolerância sanguinária adotado contra os dissidentes. A responsabilidade moral do novo direito que o poder civil criava, e que substituía a comparativa moderação do direito romano, não podia recair, ao menos diretamente, sobre o sacerdócio, como recaíam os anteriores incitamentos das multidões fanatizadas. Entretanto, a intolerância material, levada ao extremo naquela legislação, fazia degenerar a intolerância legítima da igreja, transportando-a do mundo das idéias para o dos fatos. Seria absurdo exigir do catolicismo que tolerasse o erro; que admitisse a possibilidade teórica de qualquer ponto de doutrina contrária à sua; porque isso equivaleria a fazer descer a crença católica das alturas do dogma ao nível das opiniões humanas; mas estas leis ferozes tornavam necessariamente odiosa aos olhos das suas vítimas a causa remota e inocente de males que só, na realidade, eram filhos de bruto fanatismo e, às vezes, de conveniências políticas.

O ano de 1229 é a verdadeira data do estabelecimento da Inquisição. Os albigenses tinham sido esmagados, e a luta fora assaz longa e violenta para deverem contar com o extermínio. O legado do Papa Gregório IX, Romano de S. Ângelo, ajuntou nesse ano um concílio provincial em Tolosa. Promulgaram-se aí quarenta e cinco resoluções conciliares, dezoito das quais eram especialmente relativas aos hereges ou suspeitos de heresia. Estatuiu-se que os arcebispos e bispos nomeassem em cada paróquia um clérigo, com dous, três ou mais assessores seculares, todos ajuramentados para inquirirem da existência de quaisquer heresiarcas ou de alguém que os seguisse ou protegesse e para os delatarem aos respectivos bispos ou aos magistrados seculares, tomando as necessárias cautelas para que não pudessem fugir. Estas comissões eram permanentes. Os barões ou senhores das terras e os prelados das ordens monásticas ficavam, além disso, obrigados a procurá-los nos distritos ou territórios da sua dependência, nos povoados e nas selvas, nas habitações humanas e nos esconderijos e cavernas. Quem consentisse em terra própria um desses desgraçados seria condenado a perdê-la e a ser punido corporalmente. A casa onde se encontrasse um herege devia ser arrasada. As demais disposições, em analogia com estas, completavam um sistema de perseguição digno dos pagãos, quando tentavam afogar no berço o cristianismo nascente. Ao mesmo tempo, Luiz IX promulgava um decreto, não só acorde na substância com as provisões do concílio tolosano, mas em que, também, se ordenava o suplício imediato dos hereges condenados, e se cominavam as penas de confisco e infâmia contra os seus fautores e protetores. Assim, o espírito da legislação de Frederico II, que dominava já na Alemanha e numa parte da Itália, estendia-se agora a França e tornava muito mais tremendas as providências tomadas na assembléia de Tolosa.

Fosse, porém, qual fosse o carácter de cruel intolerância que predominava naquele conjunto de leis civis e canônicas, havia, ainda, uma diferença profunda entre essas inquisições, digamos assim, rudimentais e a instituição colossal a que, posteriormente, se deu o mesmo nome, no século XVI e nos seguintes. A autoridade episcopal era respeitada. Tudo quanto se referia à qualificação e condenação dos hereges dependia dos prelados diocesanos, guardando-se nesta parte a antiga disciplina. Depois, embora nas assembléias eclesiásticas se impusessem penas temporais aos dissidentes, esta invasão nos domínios da autoridade secular tinha, até certo ponto, desculpa, porque os príncipes decretavam ao mesmo tempo iguais ou mais severos castigos, legitimando-se, assim, mutuamente os atos dos dous poderes. Além disso, posto que, em relação ao extermínio dos hereges, as duas autoridades se invadissem mutuamente na prática, a igreja não se esquecia de reconhecer oficialmente que a sua ação própria se restringia aos domínios da espiritualidade. Sobre isso são expressos e terminantes alguns cânones do IV concílio geral de Latrão (1216) e outros monumentos eclesiásticos daquela época. Não tardou, porém, que esses princípios começassem a ser pospostos, ganhando com isso vigor a nova instituição, já permanente, mas débil.

O que é certo é que, apesar de submetidos os albigenses, Roma, d’onde partia toda a atividade externa da igreja, e onde só se podia apreciar bem a situação geral dela, sentia vacilar a terra debaixo dos pés do clero. A heresia era, por toda a Europa civilizada, semelhante aos fogos subterrâneos de um terreno vulcânico, no qual, ao passo que numa cratera cessa o incêndio, e apenas se ouvem alguns rugidos longínquos ou se alevanta um fumo tênue, rebentam por outras partes novas crateras, que arrojam de si lavas e escórias candentes. Às heresias da França meridional sucedia na Alemanha uma nova espécie de maniqueus, os stadings, seita que, a princípio, se limitava a negar a solução dos dízimos, e a cujo incremento se obstou a ferro e fogo. Preferimos acreditar que as execuções por heresia de que se acham vestígios na história desta época, pela França central, por Flandres, por Itália e por outras províncias, recaíam, de feito, sobre heresiarcas, e não eram atrocidades gratuitas perpetradas contra inocentes; mas, em tal hipótese, como explicar estas tendências de rebelião por toda a parte? D’onde vinha este espírito de reação contra a igreja? Da corrupção e dos abusos dos seus ministros; corrupção e abusos repugnantes, de que nos dão testemunho, não os adversários do clero, mas sim os próprios monumentos e historiadores eclesiásticos. Esta multiplicidade de heresias não era, como já advertimos, senão um excesso de indignação que, transpondo os limites do justo, vinha a gerar o erro. Se os papas inteligentes e enérgicos, tais como Inocêncio III e Gregório VII, que hoje é moda exaltar acima de seus merecimentos, tivessem empregado meios tão poderosos para remover o escândalo e reformar o sacerdócio, como empregaram para exterminar os hereges, é necessário confessar ou que o teriam obtido ou que era tão profunda a gangrena que o pôr-lhe obstáculo se tornara impossível, proposição blasfema que equivaleria a acusar Deus de abandonar a sua igreja. A verdade é que esses espíritos absolutos, irrascíveis, impetuosos achavam mais fácil fazer passar à espada ou conduzir à fogueira os seus adversários do que reprimir com incansável severidade as demasias do sacerdócio. Os apologistas cegos do clero, os que supõem vinculada a causa da religião à dos seus ministros têm querido obscurecer estas considerações, que atenuam a culpa dos dissidentes e tornam mais odiosas as perseguições contrárias ao espírito do evangelho, atribuindo à bruteza e devassidão daquelas épocas a corrupção e os crimes do corpo eclesiástico, que, dizem eles, não podia elevar-se acima da sociedade em que vivia. É uma dessas evasivas deploráveis a que, na falta de boas razões, os espíritos prevenidos costumam socorrer-se. Nós perguntaríamos a esses apologistas imprudendentes se a sociedade romana na época do império era ou não um charco das mais hediondas paixões, dos vícios mais abjetos, e se, apesar disso, o sacerdócio dos primitivos séculos se deixou corromper pelo ambiente pestífero em que respirava; se não foi pelo contraste das suas virtudes austeras, do seu respeito às doutrinas evangélicas, que ele fez triunfar do paganismo a religião de Jesus e esmagou heresias muito mais importantes do que as do século XIII, sem recorrer às ímpias catequeses do soldado ou do algoz. Perguntar-lhes-íamos, por fim, se eles entendem que é o cristianismo que pode atuar nas sociedades, para as regenerar quando corruptas, ou se, porventura, são elas que podem atuar no cristianismo para o corromper, e se não é justamente no meio da perversão geral que o sacerdócio deve e pode representar melhor a sublimidade das doutrinas morais de uma religião divina na sua origem e, por isso, incorruptível e imutável na sua essência

Apesar dos extremos rigores decretados para a repressão das heresias ou, talvez, por causa desses mesmos rigores, os bispos e as inquisições deles dependentes criadas em 1229 procediam mais frouxamente do que, no entender do papa, cumpria à extirpação do erro. A ordem dos dominicanos ou pregadores, que desde a sua origem fora o flagelo dos heresiarcas, havia crescido assaz, posto que não tanto como a dos menores, minoritas ou franciscanos, cujo desenvolvimento era, na verdade, prodigioso. Gregório IX mostrava por aqueles novos institutos singular predileção, sobretudo pelo primeiro. O seu próprio penitenciário e confessor era o dominicano espanhol Raimundo de Peñaforte, e daí se pode inferir qual seria a influência da ordem e quanto as máximas do pontífice deveriam ser, não diremos inspiradas por essa corporação, mas acordes com o pensamento dela. Dava-se geralmente o cargo de inquisidores aos dominicanos, os quais praticavam tais crueldades que não tardaram a ser expulsos violentamente (1233) de Tolosa, de Narbona e de outras povoações da França meridional. A justiça deste ato, reconhecida pelos historiadores contemporâneos, o foi igualmente pelo legado do papa, que, restabelecendo nessas malfadadas províncias (1234) os frades inquisidores com as mesmas atribuições, ajuntou a cada comissão um minorita para temperar pela sua brandura o rigor dos dominicanos. Era um grito de remorso que escapava aos lábios do fanatismo. Ao mesmo tempo que os processos inquisitoriais renasciam ali, mais ou menos rigorosos, Gregório IX, incumbia os confrades do seu confessor de exercerem exclusivamente o ministério d’inquisidores na Lombardia com poderes, a bem dizer, discricionários. Em Aragão, onde muitos dos perseguidos albigenses se tinham refugiado, havia-se estabelecido e organizado, em 1232, o sistema dos inquéritos sobre matéria de crença, recomendando especialmente o papa, nessa mesma conjuntura, ao metropolita da província tarraconense que nomeasse os pregadores para o exercício deste ministério. Assim, os implacáveis filhos de Domingos de Gusmão iam estendendo pela Europa a rede da perseguição contra os dissidentes.

No complexo das bulas e mais diplomas pontifícios relativos aos precedentes fatos sente-se que a Inquisição, como instituto distinto, na sua índole e objeto, da autoridade episcopal, tendia rapidamente a constituir-se. Mas os papas procediam na matéria com a destreza proverbial da cúria romana. As resistências que encontravam da parte dos prelados diocesanos e, até, das antigas ordens monásticas, que não podiam ver sem ciúme os progressos das novas corporações mendicantes e, sobretudo, o poder dos dominicanos, aconselhavam a prudência. Empregando-se o sistema de providências especiais, cerceando gradualmente a intervenção dos bispos nos negócios inquisitoriais ou anulando-a de fato, sem a destruir de direito, seguia-se um caminho mais seguro. Em Aragão, por exemplo, recomendavam-se ao metropolita os dominicanos para inquisidores: na Lombardia dava-lhes o papa esse cargo, como uma delegação sua, e sem na respectiva bula fazer a menor alusão aos prelados diocesanos. A política romana ocultava-se ou descobria-se mais ou menos, conforme as circunstâncias o permitiam

As atas do concílio narbonense de 1235, em que intervieram os três metropolitas de Narbona, Arles e Aix, servem para fazermos suficiente conceito dos progressos que o sistema de perseguição regular e permanente obtivera desde o concílio de Tolosa. O primeiro fato notável é que as resoluções da Assembléia de Narbona são dirigidas aos frades pregadores por versarem unicamente sobre a repressão dos hereges. Assim, em relação a estes, o poder episcopal estava, se não de direito, ao menos de fato, inteiramente nas mãos da nova milícia papal. Há, depois disso, no todo das disposições conciliares algumas particularidades assaz significativas. Uma daquelas disposições é que fiquem suspensas as reclusões dos dissidentes condenados a cárcere perpétuo até definitiva resolução do pontífice, visto declararem os inquisidores ser tal a multidão dos que estavam nesse caso que não só faleciam recursos para construir masmorras, mas que, até, faltavam, quase, pedras e cimento para isso. Outra é que se abstenham os frades, por honra da sua ordem, de impor penitências pecuniárias e de praticar exações contra os fiadores dos hereges fugidos contra os herdeiros dos que faleceram sem serem penitenciados em vida. Mas os prelados concluem por declarar que de nenhum modo pretendem coagir os inquisidores a aceitarem como preceptivas as regras estabelecidas no concílio, porque seria um menoscabo da discreta liberdade que lhes fora concedida no método de procederem, e que tais decisões não passam de conselhos amigáveis, com que desejam ajudar aqueles que fazem as suas vezes num negócio próprio dos mesmos signatários.

Se esta conclusão não é uma amarga ironia, ela prova quão profundamente o episcopado se curvava já perante os inquisidores, como estes se consideravam exemplos da autoridade diocesana, e como as tradições da antiga disciplina se achavam ofuscadas. As recomendações acerca das multas pecuniárias indicam que entre os inquisidores os interesses do céu não faziam esquecer absolutamente os da terra, e essa circunstância nos está dizendo que já então se davam incentivos, menos desculpáveis do que um zelo cego, para achar tantos hereges e que nenhuns calabouços eram bastantes a conter só os sentenciados a reclusão perpétua.

Até o pontificado de Inocêncio IV a história dos progressos da Inquisição nada oferece notável, senão um fato, d’onde se deduz que os abusos de que em séculos mais modernos ela foi acusada remontam aos tempos da sua fundação. Inventada para satisfazer os ímpetos do fanatismo, tendo, por isso, origem num sentimento ímpio, embora velado com o manto do entusiasmo religioso, ela trazia consigo o desenfreamento de muitas outras paixões ruins, que igualmente se disfarçavam com as exterioridades do zelo cristão. Os ódios particulares, a cobiça, os desejos obscenos, quantas vezes não fariam bater debaixo dos escapulários os corações dos inquisidores! Quantas vezes o rosto austero, os olhos cavos e cintilantes do dominicano, erguidos para o céu no momento em que ele vibrava a condenação e o anátema, não reprimiriam a custo a explosão do júbilo por ver, enfim, saciada uma longa sede de vingança! Um maniqueu convertido, Roberto, por alcunha o Búlgaro (denominação que nalgumas partes se dava aos albigenses, patarenos e outros hereges), o qual professara na ordem dos pregadores, era, pelos anos de 1239, um dos mais ardentes perseguidores dos seus antigos correligionários. Por suas diligências, tinham sido queimadas de uma só vez, perante um grande concurso dos povos da Champagne, perto de duzentas pessoas tidas por heréticas. Em frei Roberto o zelo pela fé era ilimitado, e insaciável a sede de sangue. Protegido por Luiz IX, o seu nome tinha-se tornado o terror das províncias de Flandres, onde, a cada passo, ardiam as fogueiras acendidas por ele. Para que esse terror não diminuísse, onde não podia achar culpados queimava inocentes. A força, porém, do seu ardor veio a perdê-lo. Os gemidos de tantas vítimas geraram suspeitas. Inquiriu-se do inquisidor e achou-se que era um malvado. Os seus crimes foram tais que o beneditino Matheus Paris, historiador coevo, diz que o melhor é guardar silêncio acerca deles. Tiraram-lhe o cargo e condenaram-no a prisão perpétua. Com mais alguma prudência, quem sabe se hoje o seu nome figuraria no amplo catálogo dos santos da ordem de S. Domingos?

Não só a penalidade contra os delitos de heresia se havia exacerbado com as leis do imperador Frederico, mas também as fórmulas do processo se tinham tornado mais severas desde que o conhecimento desta espécie de causas pertencia, quase exclusivamente, aos frades pregadores. Depois do concílio geral de Lião de 1245, em que dois príncipes foram depostos, Frederico II de Alemanha e Sancho II de Portugal, celebrou-se um concílio provincial em Béziers, no qual se redigiu, por ordem de Inocêncio IV, um regulamento definitivo sobre o modo de proceder contra os hereges. Este documento, que reproduz algumas provisões anteriores, tanto dos concílios, como dos papas, acrescentando-lhes outras novas, é assaz importante, porque serviu de base a todos os posteriores regulamentos da Inquisição. Está distribuído em trinta e sete artigos, nos quais se ordena, em substância, que, chegando os inquisidores a qualquer lugar, convoquem o clero e o povo e, depois de fazerem uma prática, leiam a patente da sua nomeação e exponham os fins que se propõem, ordenando a todos os que se acharem culpados de heresia ou que souberem que outrem o está a virem, num certo prazo, declarar a verdade. Os que assim o cumprirem dentro daquele prazo, chamado tempo do perdão, ficarão exemptos das penas de morte, cárcere perpétuo, desterro e confisco. Serão, depois, citados individualmente os que não se houverem apresentado no tempo prefixo, dando-se-lhes termo para comparecerem e liberdade para a defesa; mas, se esta não for satisfatória e se não confessarem as suas culpas, serão condenados sem misericórdia, ainda submetendo-se eles às decisões da igreja. Os nomes das testemunhas devem ser ocultos aos réus, salvo se, declarando estes que têm inimigos e dizendo os nomes deles, se achar que são as mesmas testemunhas. Quaisquer pessoas criminosas e infames, por serem participantes no crime de heresia, devem ser admitidas por acusadores e testemunhas, à exceção dos inimigos mortais do réu. Os que fugirem serão julgados como se estivessem presentes e, se quiserem voltar, mandá-los-ão prender ou darão fiança, a bel-prazer dos inquisidores. Os que recusarem converter-se fá-los-ão confessar-se como hereges em público, para depois se relaxarem à justiça secular. A morte não absolve ninguém de perseguição: os hereges falecidos serão condenados, citando-se os seus herdeiros para a defesa. As penitências não cumpridas, em todo ou em parte, pelos reconciliados durante a vida devem ser remidas pelos seus bens depois de mortos. Ficam condenados a cárcere perpétuo os relapsos, isto é, os que, depois de convertidos, recaírem no erro, os contumazes, os fugitivos que vierem entregar-se e os apreendidos depois do tempo do perdão. Regula-se a polícia que deve haver entre estes indivíduos perpetuamente encarcerados, para os quais se adota o sistema celular, e igualmente se estabelece o modo de penitenciar os condenados a pena menos dura. Ordena-se uma abjuração geral das heresias, feita por todos os habitantes daquelas províncias, e que os magistrados e oficiais públicos prestem juramento de ajudarem eficazmente os inquisores e de exterminarem os hereges. Renova-se a instituição dos comissários de paróquia para fazerem contínuas pesquisas pelas habitações, cabanas, subterrâneos e esconderijos, destruírem estes e colherem às mãos os dissidentes. Mandam-se arrasar as casas onde qualquer deles se haja ocultado, e confiscar os bens dos donos. Estatui-se, finalmente, que os seculares não possuam livros latinos sobre objetos teológicos e que nem seculares, nem sacerdotes os possuam em vulgar sobre tais objetos. Às trevas materiais dos calabouços ficavam, assim, correspondendo cá fora as trevas mais espessas do espírito.

Entretanto a morte do imperador Frederico, desapressando Inocêncio IV de um terrível adversário, deixava-o quase único árbitro da Lombardia e d’outras províncias d’Itália. Aproveitando a conjuntura, o papa resolveu constituir nesses territórios tribunais d’Inquisição fixos e independentes, compostos de dominicanos e minoritas. Repugnava, na verdade, desmembrarem-se as causas de heresia do foro episcopal e excluir-se a intervenção dos magistrados seculares, a quem, pelo antigo direito romano, pelo moderno imperial e pelo municipal das cidades d’Itália, competia a punição dos hereges. Esquivou-se a primeira dificuldade, criando-se em cada diocese um tribunal composto do bispo e do inquisidor, mas ficando tudo a cargo deste, ao passo que o prelado apenas aí intervinha nominalmente; esquivou-se a segunda, atribuindo-se a nomeação dos novos assessores ao poder civil, mas por eleição dos inquisidores já em exercício, e, além disso, autorizando-se o magistrado civil do distrito para mandar um agente seu com cada delegado da Inquisição que fosse sindicar pelas aldeias. Com estas e outras provisões, que, como observa frei Paulo Sarpi, tornavam os oficiais públicos mais servos do que colegas dos inquisidores, se fingiu respeitar as leis da igreja e as da sociedade. Em 1252 expediu-se uma bula aos magistrados da Lombardia, Romagna e Marca Trivisana, providenciando-se ao que se julgava necessário para se favorecer o progresso da Inquisição. Os ministros deste tremendo tribunal ficavam por esta bula autorizados a compelir o poder secular a executar o que nela se ordenava por meio de excomunhões e de interditos.

Cumpre aqui mostrar que tanto estas providências relativas a uma parte da Itália, como as que sucessivamente se decretaram para o meio-dia da França e para outros países, não tiveram nunca o carácter de universalidade, nem a Inquisição tomou jamais a natureza de uma instituição geral da igreja. Apesar da sua ação ser, na realidade dos fatos, superior à autoridade dos bispos, cuja jurisdição defraudava, o direito comum eclesiástico era sempre o mesmo em tese, e ainda, às vezes, na hipótese; porque, onde a Inquisição faltava, os bispos continuavam a conhecer das heresias pela forma ordinária, quando elas surgiam nas respectivas dioceses.

À medida, porém, que os tribunais d’Inquisição se multiplicavam, as reações contra o seu bárbaro procedimento multiplicavam-se também. De parte a parte faziam-se agravos fundos, que geravam vinganças, e as vinganças aumentavam a irritação, de que provinham novas atrocidades. Onde e quando os hereges ou reputados tais podiam recorrer às violências para obter desforço não as poupavam. A tolerância e a resignação evangélicas tinham sido completamente banidas. A Inquisição, que era forte, tinha o cadafalso e a fogueira: a heresia, que era fraca, tinha o punhal. Era de uma parte o tigre que despedaçava; era da outra a víbora que se arrastava e, quando podia, cravava na fera os dentes envenenados. Os horrores das perseguições religiosas do século XIII poderão avaliar-se, aferindo-os pela triste história das lutas civis de hoje. Carreguemos as cores do quadro com as negras tintas da ferocidade e ignorância daquelas eras rudes e com as, ainda mais negras, do fanatismo religioso, cuja energia não sofre comparação com a do fanatismo político. Conceberemos assim quão medonhas cenas se passariam nas províncias devastadas por um sistema de catequese digno dos primeiros sectários do islamismo. Ao passo que, depois de queimarem muitos dissidentes ou supostos tais, eram assassinados em Aragão e em diversos lugares os inquisidores Planedis, Travesseres e Cadireta, Pedro de Verona morria apedrejado em Milão, e outros por diversas partes. Aos inquisidores, que assim pereciam vítimas do seu e do alheio fanatismo consideravam-nos como mártires, e os dominicanos ganhavam de dia para dia uma consideração e influência ilimitadas, que os franciscanos, seus êmulos, procuravam combater, nascendo d’aí disputas vergonhosas entre as duas ordens. O repugnante ajuntava-se ao horrível, e diante de tais cenas a religião velava a face. A universidade de Paris era em geral adversa aos frades, sobretudo aos da ordem de S. Domingos. A luta entre os mendicantes e aquela corporação, onde residia nessa época, talvez, a maior soma de luzes, foi longa e renhida, e as mútuas acusações, principalmente as da universidade contra os frades, produziram bastante escândalo para estes perderem muito da sua popularidade. Todavia, a universidade foi vencida, não só materialmente, porque os mendicantes tinham o favor do rei e do papa, mas também moralmente, porque não havia no meio dos seus hábeis membros inteligências capazes de lutarem vantajosamente com o principal campeão do monaquismo mendicante, S. Thomaz de Aquino.

Foi nos princípios desta contenda (1255-1256) que, pelas rogativas de Luiz IX, o papa, então Alexandre IV, generalizou a Inquisição em França. Foram nomeados para presidirem a ela o provincial dos pregadores e o guardião dos menores ou franciscanos de Paris, continuando a subsistir separada a antiga Inquisição das províncias meridionais. A princípio, as instruções dadas para se proceder na matéria eram moderadas e em harmonia com o carácter do príncipe que impetrava a respectiva bula, mas o papa foi sucessivamente aperfeiçoando a sua obra, e no fim daquele pontificado os regulamentos da nova Inquisição eram aproximadamente acordes com os que regiam as mais antigas. Na verdade, Alexandre IV, numa das bulas relativas à Inquisição francesa, manda que no julgamento e condenação dos réus sejam ouvidos os respectivos prelados diocesanos; mas a isto pode-se aplicar a observação de Sarpi acerca da nominal ingerência dos oficiais públicos nos processos da Inquisição lombarda. O direito divino dos bispos era ferido por quase toda a parte, e essa nova instituição, desconhecida nos doze primeiros séculos da igreja, elevava-se acima do episcopado.

Entretanto, nas províncias d’Itália, onde ela se havia plantado com as fórmulas mais absolutas, as resistências eram tais que os papas viram-se obrigados a ir moderando essas fórmulas. As providências de 1252 foram sucessivamente renovadas com modificações por Alexandre IV e Clemente IV, em 1259 e em 1265. Nem por isso, todavia, cessou a oposição, e os quatro papas imediatos acharam sérios embaraços em dilatar a jurisdição inquisitorial. As causas principais da repugnância eram, por um lado, a severidade indiscreta dos frades inquisidores e as extorsões e violências que faziam e, por outra parte, a má vontade dos municípios em pagarem as despesas que tinham de fazer com aqueles tribunais. Cedeu-se, por fim, neste ponto e, além disso, para temperar a ferocidade inquisitorial, restituiu-se aos bispos uma parte daquela ação que de direito lhes pertencia em tais matérias. Apesar de tudo, porém, a república de Veneza só aceitou a Inquisição em 1289, ainda com maiores limitações e pondo-a debaixo da ação do poder civil, de modo que fosse considerada, não como uma delegação pontifícia, mas como um tribunal do estado. Era por esse tempo que ela chegava em França ao seu apogeu, para declinar em breve, até se reduzir a uma instituição insignificante e desaparecer. Ainda em 1298, Felipe o Formoso promulgava uma ordenação na qual se estatuía que os heresiarcas e seus sectários condenados pelos bispos ou pelos inquisidores fossem punidos pelos juízes seculares, sem se lhes admitir apelação; mas já em 1302 o mesmo príncipe se opunha às usurpações do tribunal da fé em detrimento do poder civil, proibindo aos inquisidores perseguissem os judeus por usuras e sortilégios e por quaisquer outros delitos que não fossem precisamente da sua competência. Nos fins do mesmo século (1378), Carlos V pôs termo ao absurdo sistema, sancionado no concílio de Béziers, de se derribarem as habitações dos hereges, e fez esfriar o zelo dos ministros da Inquisição, ordenando que, em lugar de herdarem uma quota dos bens das suas vítimas, vencessem um estipêndio regular. No século XVI a instituição estava morta em França, e os tênues vestígios que se encontram, naquela época, do cargo de inquisidor, representam antes a recordação dum título inocente dado a alguns dominicanos de Tolosa do que os restos de uma terrível realidade.

A Inquisição, como já dissemos, tinha quase desde os seus começos penetrado na Península, e o Aragão, onde as heresias que lhe deram origem haviam também penetrado, foi o teatro das suas crueldades. Aí, como por outras partes, ela encontrava resistências, e alguns inquisidores, conforme vimos, caíram vítimas da vingança daqueles que implacavelmente perseguiam. De uma bula dirigida ao bispo de Palência em 1236 deduz-se que este tribunal de sangue entrara também em Castela; mas o castigo de vários hereges, em tempo de Fernando III, parece antes indicar que entre os castelhanos subsistia, nesta parte, a antiga disciplina. Na verdade, por um grande número de diplomas pontifícios pertencia ao provincial dos dominicanos espanhóis nomear inquisidores apostólicos, isto é, dependentes diretamente da cúria romana, em todos os lugares onde os julgassem necessários para coibir os erros de fé; mas o que resulta da história é que, durante o século XIII, eles só existiram permanentemente nos estados da coroa de Aragão. Em Portugal não se mostram nessa época vestígios da nomeação de um único inquisidor para exercer as funções do seu ministério em parte alguma. As tentativas do dominicano Sueiro Gomes para fazer vigorar no país certas leis, que parece tendiam a lançar os fundamentos do sistema inquisitorial, foram energicamente repelidas por Afonso II, o qual, nas cortes de 1211, regulara a penalidade contra os hereges, mas hereges que fossem havidos por tais em virtude de julgamento dos prelados diocesanos, conforme a legítima disciplina da igreja. Depois, por ocasião do célebre processo dos templários, no princípio do século XIV, a bula de Clemente V dirigida a D. Dinis, para que procedesse contra os cavaleiros daquela ordem nos seus reinos, parece pressupor a existência de inquisidores em Portugal, onde, de feito, podia havê-los, em virtude do poder que para os instituir residia no provincial dos frades pregadores; mas nem restam memórias da sua intervenção naquele ou noutro processo sobre matérias de fé, nem a bula, espécie de circular aos príncipes cristãos, prova que eles existissem de fato. As suspeitas de que em Portugal se tinham introduzido alguns erros de doutrina suscitaram em 1376 uma bula de Gregório XI a Agapito Colonna, bispo de Lisboa, pela qual o papa o encarregava, visto não haver inquisidores neste pais, de escolher um franciscano, dotado dos requisitos necessários para o mister de inquisidor, o qual, revestido de todos os poderes que o papa lhe conferia, verificasse a existência das heresias e zelosamente as perseguisse e extirpasse. Frei Martim Vasques foi o escolhido, e é este o primeiro de quem consta que fosse, determinada e especialmente, revestido desse cargo(1). As nomeações sucessivas dos franciscanos frei Rodrigo de Cintra (1394) e frei Afonso de Alprão (1413) e do dominicano frei Vicente de Lisboa (1401) não têm valor algum histórico. Não passavam, provavelmente, de qualificações obtidas para satisfazer vaidades monásticas, e eram, talvez, resultado da emulação das duas ordens rivais, a dos menores e a dos pregadores. Acrescia a isso o haver então dous papados, um em Avinhão, outro em Roma, e obedecerem os castelhanos a um e os portugueses a outro, do que resultava não reconhecerem os dominicanos de Portugal o seu provincial de Castela, que reputavam cismático, e a quem, todavia, andava anexo o ministério de chefe dos inquisidores. D’aí procediam mil questões fradescas, indignas da atenção da história. O que importa a esta, porque interessa à humanidade, é que esses inquisidores, franciscanos ou dominicanos, com autoridade legítima ou sem ela, revestidos, perpétua ou acidentalmente, de um poder fatal, não usaram ou abusaram dele para verter sangue humano, ou, se praticaram alguma atrocidade, a memória de tais fatos não chegou até nós. Essas mesmas intrigas insignificantes cessaram com a separação dos dominicanos portugueses dos seus confrades castelhanos, formando uns e outros no século XV duas províncias distintas, e ficando, segundo se diz, o provincial português revestido do título vão de inquisidor geral do seu país e da faculdade de lisonjear alguns dos súditos com a qualificação de inquisidores especiais.

Se, no século XIV, a Inquisição era em Portugal uma cousa, a bem dizer, nula e, no XV, se achava reduzida a uma ridicularia fradesca, não sucedia o mesmo no resto da Península, ao menos no Aragão, onde os autos-de-fé se repetiam, no século XIV, com curtos intervalos. Aí, bem como em Castela, os inquisidores intervieram mais ou menos ativamente no processo dos templários. Depois, os dominicanos Puigcercos, Burguete, Costa, Roselli, Gomir, Ermengol e outros associaram o seu nome à perseguição e ao extermínio de muitos indivíduos acusados de heresia, nas províncias de Valência, Aragão e Ampúrias. Entre eles, porém, avulta frei Nicolau Eymerico, inquisidor geral da monarquia aragonesa. À atividade com que perseguia aqueles que julgava deslizarem da fé católica este célebre fanático ajuntou os trabalhos jurídicos, escrevendo o Diretório dos Inquisidores, corpo de toda a legislação civil e canônica e de toda a jurisprudência então existentes sobre os crimes que a Inquisição era destinada a processar e punir. As provas do incansável zelo de Eymerico e dos seus delegados, durante a segunda metade do século XIV, acham-se no próprio Diretório, onde ele não se esqueceu de mencionar os autos-de-fé celebrados nesse período. No século seguinte, a história eclesiástica de Aragão oferece-nos fatos análogos. Aos nomes dos inquisidores desse país e de Valência e Maiorca, os dominicanos Ros, Corts, Murta, Pagés, anda ligada a memória de muitas execuções por crimes de heresia. Mas, como por toda a parte e em todos os tempos, a Inquisição não parece ter sido, naquela única província d’Espanha onde estava organizada permanentemente, remédio demasiado eficaz para obviar aos desconcertos religiosos. Os erros de Wicleff espalharam-se por essas regiões, e os dominicanos Ferriz e Trilles tiveram ocasião de convencer com o suplício do fogo os que não haviam cedido aos claros argumentos dos cárceres, dos tratos e das penitências. Durante mais de trinta anos (1452-1483), frei Christovam Galvez, armado do poder inquisitorial naquele país, pôde satisfazer todas as ruins paixões que o dominavam, até que Sixto IV, pondo termo às maldades do frade aragonês, o mandou demitir, contentando-se com essa demonstração, bem que, na respectiva bula, afirme que o inaudito procedimento daquele impudente e ímpio seria digno d’exemplar castigo. Tal era a justiça de Roma nesta negra história da opressão religiosa.

Mas o tempo em que os excessos da intolerância, circunscritos até então, na Península, quase exclusivamente aos estados de Aragão, deviam abarcar a Espanha inteira, era, enfim, chegado. Em lugar desses acessos frenéticos de ferocidade com que se manifestara durante quase três séculos, a Inquisição ia tornar-se, na realidade dos fatos, o que até então só fora na aparência, uma instituição permanente e ativa, procedendo nas trevas, fria, calculada, implacável em todos os seus atos, preparando-se em silêncio para assoberbar, não só os povos e os príncipes, mas também os próprios pastores da igreja. É nos fins do século XV que se pode fixar o estabelecimento da Inquisição como tribunal permanente, com superintendência exclusiva sobre todas as aberrações da doutrina católica e revestido dos caracteres e tendências que nos séculos seguintes lhe conciliaram tão triste celebridade. Foi então que o episcopado se resignou a perder de todo, na prática ao menos, uma das suas mais importantes funções e um dos seus mais sagrados direitos, quebra deplorável da antiga disciplina da igreja, contra a qual apenas nos aparecem depois as raras e inúteis protestações de um ou d’outro prelado que ousava ainda lembrar-se das prerrogativas episcopais.

Isabel, mulher de Fernando de Aragão rei de Sicília, subira ao trono de Castela por morte de seu irmão Henrique IV (1474). Falecido D. João II rei de Aragão, Fernando de Sicília, seu filho, sucedeu naquela coroa (1479) e assim se acharam unidos os dois mais poderosos estados da Península. O reino de Granada era o que apenas restava ao islamismo de todos esses estados muçulmanos que se tinham estabelecido aquém do Estreito. Fernando, príncipe ambicioso e guerreiro, não tardou em submetê-lo, bem como o reino cristão de Navarra, do qual despojou o seu último soberano, João de Albret. Ao aproximar-se, pois, o fim do século XV, a Espanha, à exceção de Portugal, formava uma só monarquia, sob o regime de Fernando e Isabel, embora nas fórmulas externas continuassem, até certo ponto, a sobreviver as diversas nacionalidades que nela existiam. Nascido no país onde, durante a idade média se conservara, mais ou menos fulgurante, mas sempre aceso, o facho da intolerância material, Fernando V teve a triste glória de ser o fundador da moderna Inquisição espanhola. O inquisidor siciliano, frei Felipe de Berberis, vindo a Espanha pedir aos reis católicos a confirmação de um antigo privilégio, pelo qual a terça dos bens dos que eram condenados como hereges ficava pertencendo aos seus julgadores (arbítrio excelente para achar culpados), depois de obter favorável despacho, tratou de persuadir o príncipe aragonês de quanto seria conveniente estabelecer na Península o tribunal permanente da Inquisição. Ajudava-o neste empenho o prior dos dominicanos de Sevilha, Hojeda; e o núncio do papa, que via as vantagens que d’aí podiam resultar para a cúria romana, protegia com todo o vigor o empenho dos dous frades. Para se dar maior plausibilidade à pretensão, apareceram instantaneamente casos de desacato contra as cousas sagradas, casos na verdade secretos, mas quase milagrosamente revelados. Ao menos, o dominicano Hojeda denunciava-os, e Fernando V estava predisposto a acreditá-los. As acusações de atos sacrílegos, ocultamente praticados, recaíam sobre famílias de raça hebraica, e as famílias desta raça eram as mais ricas d’Espanha. Condenados os judeus como hereges, os seus bens seriam confiscados, ao menos em grande parte, e o incentivo para excitar o zelo religioso do monarca era assaz forte. Antepunha-se, todavia, uma dificuldade. Isabel, a católica, repugnava a admitir na monarquia castelhana e leonesa a contínua representação das cenas que eram conseqüência forçosa do estabelecimento daquele sanguinário tribunal e que repugnavam à brandura da sua índole. Os votos dos conselheiros, que o rei e os dominicanos tinham imbuído das próprias idéias, moveram, enfim, o ânimo da rainha, fazendo-lhe crer que a adoção do tribunal da fé era altamente profícua e, talvez, indispensável aos progressos do catolicismo. Cedeu por fim; e o bispo d’Osma, embaixador de Castela junto à corte de Roma, recebeu ordem para suplicar ao papa a expedição de uma bula pela qual se criasse em Castela aquele tribunal.

As causas que tinham dado origem à Inquisição antiga tinham desaparecido. As heresias dos albigenses e dos outros sectários que no século XIII ameaçavam de grande ruína a igreja eram assaz importantes e derramavam-se com rapidez, subministrando, assim, motivos aos que não tinham bastante fé na indestructibilidade do catolicismo para procurarem livrar-se do próprio terror espalhando-o, também, entre os adversários. A heresia tinha príncipes que a protegiam, soldados que combatiam por ela, e as vinganças sanguinolentas contra os heresiarcas e seus fautores não se executavam sem risco. O ferro açacalava-se e a fogueira acendia-se em ambos os campos. Era uma luta selvagem, atroz, anticristã; mas era uma luta: tinha o que quer que fosse nobre e grandioso. A Inquisição era um meio ímpio de extermínio, como qualquer outro dos que então se empregavam. Nos fins do século XV, na Espanha, as circunstâncias vinham a ser absolutamente diversas. Os erros de fé, se apareciam à luz, não passavam de opiniões singulares e sem seqüela; manifestavam-se raramente num ou noutro livro, sem eco entre as multidões, e, ainda nesses raros casos, não custava muito a obter a retratação do autor. Contra quem, pois, se buscava estabelecer, de um modo novo e dobradamente eficaz, a perseguição permanente sob as fórmulas de magistratura ordinária? Quase só contra os judeus. Importa, por isso, conhecer qual era, nas últimas décadas do século XV, a situação dessa raça, que constituía um povo separado e, ao mesmo tempo, uma seita distinta no meio da população espanhola.

As famílias de origem judaica eram numerosíssimas na Península, por motivos que não é necessário historiar aqui. Dotada de boas e de más qualidades em subido grau, essa gente distinguiu-se em todas as épocas pela pertinácia invencível, pela ânsia do ganho, levada até a sordidez, pela astúcia e o amor ao trabalho. Vivendo por séculos entre os sectários das duas grandes religiões do mundo civilizado, o cristianismo e o islamismo, desprezados, quando não detestados, por eles, afeitos a suportar em silêncio humilhações de mais de um gênero e sujeitos a distinções odiosas, os judeus deviam, necessariamente, retribuir aos seus opressores com sentimentos análogos. Na verdade, se compararmos a sorte deles durante a idade média com as perseguições atrozes de que foram vítimas nas seguintes épocas, pode-se dizer que os séculos bárbaros se mostraram altamente tolerantes; mas a tolerância era inteiramente material. Deixavam-nos viver na sua crença, exercitar as suas profissões, fruir pacificamente dos bens que adquiriam; mas as leis civis que os protegiam harmonizavam-se, de certo modo, com as doutrinas canônicas. A injúria ia envolta, desde logo, nas provisões dessas leis benéficas, e a proteção nem sempre se estendia até a vida moral do hebreu. Eram obrigados a viver em bairros separados, a trazer distintivos nas vestiduras, não podiam exercitar certos cargos públicos e, ainda nos atos da vida social, iam a cada momento encontrar uma usança, uma fórmula legal que lhes recordasse a reprovação que pesava sobre a sua raça. Desta inferioridade consolava-os até certo ponto, o bem estar material, tanto mais apreciável quanto mais a humilhação fosse gastando neles o sentimento da nobreza e da dignidade humanas. Os recursos econômicos da Península estavam, em grande parte, nas suas mãos. Laboriosos e regrados, excluídos das situações brilhantes e, portanto, exemptos das ostentações de luxo, o comércio e a indústria fabril, no mais lato sentido destas palavras, eram as suas profissões prediletas, e o resultado delas a posse da melhor parte da riqueza monetária. Dispensados de brios e pundonores cavaleirosos, pela condição em que os haviam colocado, a usura, exercida com a dureza e o frio cálculo que os desprezos da sociedade legitimavam neles, vinha muitas vezes meter em seus cofres os valores criados pela indústria agrícola, principal mister das populações cristãs. As guerras contínuas daquelas épocas semi-bárbaras e um mau sistema de fazenda pública punham, a cada passo, os príncipes em terríveis apuros, os quais os obrigavam a levantar somas avultadas, que só os judeus podiam subministrar-lhes. Aproveitando estas e outras circunstâncias, obtinham o meneio das rendas do estado, sobretudo como arrematantes delas, e, aconselhados ao mesmo tempo pelo pressentimento e pela cobiça, retribuíam com opressões o envilecimento. Não podendo lutar com eles nas relações econômicas e tornados em grande parte seus devedores, os cristãos iam convertendo gradualmente em ódio o antigo desprezo. A aversão popular cobria-se com o manto religioso e, até certo ponto, estribava-se na antinomia das crenças; mas as causas principais desse desfavor eram mais grosseiras e terrenas. As manifestações da malevolência geral contra os judeus foram freqüentes pelo decurso da idade média. As rixas e os motins da plebe, aconselhados pelo fanatismo e excitados pela inveja, repetiam-se por muitas partes, já nos séculos XII e XIV. Nos fins deste último (1391) suscitou-se um tumulto violento, que se propagou pelas vilas e cidades de diversas províncias de Espanha, durante o qual mais de cinco mil judeus foram assassinados. Como para essa horrível matança se invocava o pretexto da religião, e a raça hebréia era naturalmente dissimulada e tímida, apenas constou que alguns haviam escapado à morte declarando que pretendiam receber o batismo, milhares de judeus recorreram ao mesmo expediente, e os templos atulharam-se de indivíduos de ambos os sexos e de todas as condições e idades, declarando-se convertidos. Calculam-se em mais de cem mil as famílias que nesta conjuntura abandonaram ostensivamente a lei de Moisés. As prédicas dos missionários, que aproveitavam o terror para promover os triunfos do cristianismo, produziram fácil efeito, e novas conversões, verdadeiras ou simuladas, seguiram as anteriores. S. Vicente Ferrer distinguiu-se nos primeiros anos do século XV entre esses apóstolos zelosos. O impulso estava dado. Os exemplos da apostasia, tão freqüentes, incitavam os ambiciosos a abandonar a crença de seus pais para atingirem aos cargos e dignidades de que o judaísmo os excluía. Estes diversos motivos faziam milhares d’hipócritas, mas poucos cristãos sinceros. Depois, quando o terror ia asserenando em uns e a ambição de outros se achava satisfeita, o arrependimento fazia seu ofício, e, segundo se afirmava, e era provável, a maior parte dos que haviam abjurado voltava depois secretamente aos ritos do judaísmo.

Todavia, como a diversidade de crença era a causa menos forte da malevolência popular contra os judeus, essa malevolência, se já não tão perigosa para os convertidos, nem por isso ficava amortecida. Aos cristãos-novos, denominação geral dos que haviam abandonado o mosaísmo, dava o vulgo os nomes de conversos e de confessos e, ainda, o de marranos, alcunha injuriosa, que na idade média equivalia a maldito. Por mais que os neófitos ocultassem o seu regresso às tradições religiosas da lei velha, por mais pontualmente que guardassem as fórmulas externas do culto cristão, não era possível que alguns, entre tantos, deixassem de trair a dobrez do seu procedimento. Além disso, não tendo valor para quebrar o trato com os parentes e amigos que, mais audazes ou mais fervorosos, se tinham conservado fiéis à doutrina mosaica, eles tornavam plausíveis as insinuações do ódio, fortificando as suspeitas populares com essa intimidade dos seus antigos correligionários.

Do rápido bosquejo que traçámos da origem e progresso da Inquisição antiga resulta um fato. É que essa manifestação da intolerância não ultrapassava os limites da sociedade cristã. Nesta parte, a igreja ia acorde com as suas tradições primitivas. O indivíduo que por nascimento ou por espontânea deliberação não pertencia a essa sociedade não devia estar sujeito às leis dela. Só aquele que podia participar pelo batismo das recompensas da outra vida era passível das penas cominadas contra os membros corruptos do grêmio. A perversão dos tempos tinha trocado os castigos espirituais de uma associação inteiramente espiritual pelos corporais. Era um erro na fórmula externa, mas o princípio, quanto ao âmbito da ação da magistratura eclesiástica, ficara intato. Assim, a Inquisição antiga deixara em paz os judeus e os muçulmanos, ainda nos tempos dos seus maiores furores. Na verdade, a história eclesiástica subministra-nos um ou outro exemplo de judeus condenados pelos bispos ou pelos inquisidores por atos relativos ao culto; mas isso acontecera quando o delinqüente havia ofendido de propósito deliberado a religião ou quando tinha empregado cousas santas para alguma superstição ímpia. Embora a punição de tais atentados, cuja verdadeira índole era civil, devesse pertencer aos príncipes seculares, como protetores da igreja, tal procedimento merecia, até certo ponto, desculpa, porque a igreja, forte e dominadora, repelia por esse modo uma provocação, uma injúria recebida.

A Inquisição, porém, cujo estabelecimento Fernando e Isabel pediam a Roma, assentava em bases moralmente mais ruinosas do que a antiga. Não era só a materialização das penas que a tornava desde logo absurda e anticristã: era-o também a causa, o princípio da sua existência. A conversão da maioria dos sectários do mosaísmo fora a todas as luzes uma violência, a graça que os alumiara fora o terror da morte. Entre o martírio e o fingimento tinham preferido o último. Procedendo assim, usavam de um direito natural. Se, maldizendo interiormente o Cristo no mesmo ato em que recebiam o batismo, cometiam um sacrilégio, ficavam livres de imputação diante de Deus, e a responsabilidade recaía exclusivamente sobre a multidão que assassinara seus irmãos e sobre os que a excitavam a tais demasias. Todos os sofismas do fanatismo ou da hipocrisia são impotentes contra a verdade destas doutrinas, acordes com a consciência, com a razão humana e com o espírito do evangelho. Pode-se afirmar que a nova Inquisição, independente do absurdo das suas fórmulas, da atrocidade dos seus ministros, da iniquidade relativa das suas resoluções pelas circunstâncias e fins da própria instituição carecia absolutamente de sanção moral. As suas sentenças de morte não eram, não podiam ser, na maior parte dos casos, senão assassínios jurídicos.

Como era natural, as súplicas de Fernando e Isabel foram atendidas em Roma. No 1.º de novembro de 1478, Sixto IV expediu uma bula, pela qual autorizava os reis de Castela e Aragão para nomearem três prelados ou outros eclesiásticos revestidos de dignidades, quer seculares quer regulares, de bons costumes, de mais de quarenta anos de idade, e teólogos ou canonistas de profissão, a cujo cargo ficasse o inquerir em todos os domínios de Fernando e Isabel acerca dos hereges, apóstatas e seus fautores. Concedia-lhes o papa a jurisdição necessária para procederem contra os culpados, em harmonia com o direito e costume estabelecidos, e permitia aos dous soberanos demiti-los e nomear outros, conforme o julgassem oportuno.

Como à rainha tinha repugnado a impetração desta bula, os seus ministros demoraram a execução dela. Quis-se primeiro recorrer a menos severos expedientes. O cardeal arcebispo de Sevilha publicou expressamente um catecismo para os neófitos e recomendou aos pastores seus súditos que tratassem de explicar-lhes convenientemente as doutrinas católicas. Pedro d’Osma, tendo por este tempo sustentado algumas proposições contrárias ao dogma, foi citado perante uma junta de teólogos nomeada pelo primaz das Espanhas, o arcebispo de Toledo. Convencido do seu erro, retratou-se, e não se procedeu mais contra ele. Sucedendo fazer certo judeu correr naquela conjuntura um livro em que a administração pública e a religião do estado eram acremente combatidas, em vez de o perseguirem, frei Fernando de Talavera, confessor da rainha, pegou na pena e refutou-o. Entretanto, nas cortes de Toledo, reunidas nos princípios de 1480, procurava-se obstar a que o trato e convivência constante dos novos convertidos com os seus antigos correligionários fosse incentivo para recaírem no judaísmo. Renovaram-se e ampliaram-se, por esse motivo, os regulamentos que interpunham barreiras materiais e morais entre os sectários da lei velha e os católicos, tais como o que impunha aos judeus o dever de habitarem somente nos bairros separados a que chamavam judearias, e o de se recolherem para ali antes de anoitecer, o de trazerem sinais nos vestidos, e o de lhes serem proibidas as profissões de médicos, de cirurgiões, de mercadores, de barbeiros e de taberneiros, com o que se removia a necessidade de um contato freqüente entre eles e o povo, nomeadamente o das classes ínfimas.

Pouco depois, ordenou-se a frei Afonso de Hojeda, ao bispo de Cadix e ao governador de Sevilha que examinassem o efeito que estes meios indiretos tinham produzido. Hojeda era dominicano, e o rei e o núncio do papa estavam empenhados em que se desse execução à bula de 1478. Os meios brandos que Isabel preferia foram reputados insuficientes. Os dominicanos e o núncio trabalhavam incessantemente. Por fim, a rainha consentiu no estabelecimento definitivo da Inquisição. A 17 de setembro de 1480 foram nomeados primeiros inquisidores frei Miguel de Morillo e frei João de S. Martinho, ambos da ordem dos pregadores, dando-se-lhes por assessor João Rodrigues de Medina, clérigo secular. Um capelão da rainha, João Lopes del Barco, foi-lhes adjunto como procurador fiscal. Sevilha parece ter sido o lugar onde naquele tempo residiam mais cristãos-novos, visto que, até então, as atenções do governo para ali principalmente se haviam dirigido. Escolheu-se, portanto, Sevilha para aí se estabelecer o tribunal. Apesar, porém, das prevenções populares contra os cristãos-novos, ele foi recebido geralmente com repugnância pelos habitantes daquela província. Os fidalgos que ali possuíam terras privilegiadas consideraram-nas do mesmo modo exemptas da ação dessa magistratura, que, se por um lado era religiosa, era pelo outro civil, e os oficiais e delegados da coroa aceitaram essa interpretação dos privilégios nobiliários. Resultou disto saírem quase todos os cristãos-novos das povoações regalengas para as de senhorio particular. As terras do duque de Medina Sidonia, do marquês de Cadix, do conde dos Arcos e de outros nobres cobriram-se de fugitivos. Tomaram-se então por parte da coroa severas providências contra os foragidos, e os inquisidores consideraram-nos, pelo fato da fuga, como quase convíctos de heresia. A perseguição estava, enfim, organizada.

Ereto o novo tribunal, o seu primeiro ato foi obrigar por um édito os nobres que tinham dado guarida aos conversos a mandá-los presos a Sevilha, sob pena de exautoração e confisco, além das censuras eclesiásticas. O número dos capturados foi em breve tão avultado, que o tribunal e as prisões tiveram de se mudar do convento dos dominicanos para o castelo de Triana, nos arrabaldes da cidade. Pouco depois, os inquisidores publicaram segundo édito, a que chamavam de perdão e em que convidavam os que haviam apostatado a virem espontaneamente, dentro de certo prazo, confessar as suas culpas, com o que evitariam o castigo e obteriam absolvição. Assim o fizeram alguns; mas, como a mira dos inquisidores era descobrir vítimas, negando-se a cumprir as promessas do édito enquanto os que as tinham aceitado não denunciassem, debaixo de juramento, quantos apóstatas conhecessem e, até, aqueles de que unicamente tivessem ouvido falar. Debaixo, também, de juramento, foram além disso, obrigados a guardar absoluto silêncio sobre as delações que deles se exigiam. Deste modo os inquisidores vendiam aos desgraçados os bens e a vida a troco de traírem seus irmãos. Expirado o prazo fatal, publicou-se terceiro édito, no qual se ordenava, com as mais graves ameaças, que, dentro de três dias, se denunciassem todos os hereges judaizantes. Naquela espécie de manifesto o tribunal estabelecia uma série de indícios, cada um dos quais bastava para reconhecer os criminosos. A maior parte desses indícios eram ridículos, e outros poderiam apenas provar que os cristãos-novos conservavam certos hábitos da vida civil contraídos na infância, sem que semelhantes hábitos fossem necessariamente um sinal do seu apego às doutrinas mosaicas. Por este meio seria fácil achar milhares de culpados, ainda quando nenhum existisse.

E a Inquisição depressa os encontrou. Nos fins de 1481, só em Sevilha, perto de trezentas pessoas tinham padecido o suplício do fogo, e oitenta haviam sido condenadas a cárcere perpétuo. No resto da província e no bispado de Cadix, duas mil foram, nesse ano, entregues às chamas, e dezessete mil condenadas a diversas penas canônicas. Entre os supliciados contavam-se muitas pessoas opulentas, cujos bens reverteram em benefício do fisco. Para facilitar as execuções, construiu-se em Sevilha um cadafalso de cantaria, onde os cristãos-novos eram metidos, lançando-se-lhes depois o fogo. Este horrível monumento, que ainda existia nos começos do presente século, era conhecido pela expressiva denominação de Quemadero.

Entretanto, o terror fazia com que abandonassem a Espanha milhares de famílias de origem judaica, acolhendo-se umas a Portugal, outras a França, à África, e, até, à Itália. Os que se refugiaram em Roma recorreram ao pontífice e acharam nele favor. A cúria romana adotou desde logo nesta matéria aquele sistema de variação e dobrez cujos vergonhosos motivos compreenderemos claramente na prossecução deste trabalho. O papa expediu em 29 de janeiro de 1482 um breve, dirigido a Fernando e Isabel, em que se queixava das injustiças praticadas pelos inquisidores e declarava que, se não fosse haverem sido nomeados por carta régia, os teria destituído; mas que revogava a licença para se nomearem outros, restabelecendo a autoridade do provincial dos dominicanos, cujos direitos se haviam ofendido na bula de um 1 de novembro de 1478, por engano da dataria apostólica. Seguiu-se a este outro breve, em que se nomeavam inquisidores o geral dos pregadores e mais sete frades da mesma ordem, para exercerem o seu ministério de acordo com os prelados diocesanos, observando a ordem de processo que se lhes estabelecia numa bula especial. Não é precisamente conhecido o sistema adotado nesta última provisão papal: o que consta é que suscitou grandes clamores e que o poder civil, que se curvara às anteriores decisões de Roma, representou contra ele. O papa respondeu dando uma explicação análoga à que se lê no breve de 29 de janeiro. Estas novas providências seriam reconsideradas, por haverem sido tomadas de leve por voto de alguns cardeais que tinham fugido de Roma por causa da peste. Entretanto elas ficariam suspensas, conformando-se os inquisidores nos seus atos com o direito comum e bulas apostólicas, ouvidos os prelados diocesanos.

Neste tempo a corte de Castela apresentava uma nova pretensão perante o papa. Era a de organizar definitivamente a Inquisição, dando-lhe a forma de tribunal supremo, sem apelação para Roma. Sixto IV repugnava a isso. Por fim, conveio-se na criação de um juiz apostólico em Espanha, o qual julgasse todas as apelações interpostas da Inquisição. Expediram-se ao mesmo tempo breves aos diversos metropolitanos para que intimassem quaisquer bispos seus sufragâneos que fossem de raça hebréia para se absterem de intervir nos processos relativos a questões de fé, nomeando inquisidor ordinário o respectivo provisor ou vigário geral ou, se este estivesse no mesmo caso, um eclesiástico de sangue limpo, ficando o metropolitano autorizado para fazer a escolha onde o bispo se opusesse a esta providência. Finalmente, por outro breve, foi nomeado juiz das apelações o arcebispo de Sevilha, D. Inigo Manrique. Na aparência, o papa entregava assim os judeus espanhóis aos seus perseguidores, mas a concessão de um juiz supremo em Espanha não passava de uma decepção. Era impossível ceder a cúria romana de boa vontade os proventos da revisão das culpas atribuídas a homens em grande parte opulentos e que mutuamente se protegiam. Apesar da nomeação de Manrique, continuaram, sem interrupção, a receber-se em Roma as apelações dos cristãos-novos condenados pela Inquisição. Enfim, o papa dirigiu a Fernando e a Isabel uma bula, datada de 2 de agosto de 1483, na qual declarava ter atendido às súplicas de vários indivíduos que, receando-se de ser ainda pior tratados pelos arcebispos do que pelos inquisidores, haviam recorrido à cúria; que parte deles já tinham sido absolvidos pela Penitenciaria apostólica, mas que lhe constava que os perdões concedidos pela santa sé eram em Sevilha reputados nulos, continuando-se os processos desses indivíduos e queimando-se alguns em estátua, enquanto não lh’o podiam fazer corporalmente; que, portanto, resolvera incumbir este negócio aos auditores da câmara apostólica, declarando terminados tais processos em Espanha e ordenando ao arcebispo de Sevilha e mais prelados que admitissem à reconciliação todos os que a pedissem, ainda estando condenados ao suplício das chamas. Impunha-lhes igualmente a obrigação de absolverem aqueles que se apresentassem com breves para isso e de reputarem como absolvidos os que o houvessem sido pela Penitenciaria romana. O papa concluía por aconselhar os dous príncipes a protegerem os seus súditos e a preferirem ao rigor a brandura e a caridade.

Mas esta bula era uma decepção, após outra decepção. Ao lê-la, dir-se-ia que o amor da justiça e o espírito da mansidão evangélica a haviam inspirado. Por ela, a intolerância e o fanatismo recebiam um golpe fatal, e a Inquisição perdia a força e ficava coibida nos seus excessos. Porém, onze dias depois, prazo demasiado curto, em que o diploma pontifício não podia ser recebido na corte de Espanha, nem chegarem a Roma representações contra ele, o papa escrevia a Fernando de Aragão que, tendo reconhecido haver-se expedido aquela bula com suma precipitação, achara conveniente revogá-la. Efetivamente, dava-se uma razão para este dobre procedimento: os breves a favor dos que individualmente os tinham requerido, os perdões da Penitenciaria e o próprio diploma de 2 de agosto, requeridos, solicitados, expedidos e pagos, não podiam produzir mais de um ceitil para a cúria romana. A sua execução ou não execução eram cousas que pouco importavam. Voltando de Roma leves de dinheiro e providos amplamente de vãos pergaminhos, alguns cristãos-novos, tirando em Portugal perante o bispo d’Évora, D. Garcia de Menezes, cópias autênticas da bula de proteção, apresentaram-se em Sevilha. Mas o papa tinha a tempo ocorrido ao mal. Confirmadas as anteriores sentenças da Inquisição por Inigo Manrique, eles foram pontualmente queimados, e os seus bens apropriados definitivamente ao fisco, do qual só escapara o ouro dispendido em Roma. Assim, conciliavam-se todos os interesses, e o resultado de tão destro procedimento devia fazer rir bastante o pio rei D. Fernando de Aragão, os inquisidores e o papa.

Não só a precipitação com que a bula de 2 de agosto se expedira foi remediada pela suspensão dos seus efeitos, mas também se tratou de dar uma organização mais precisa ao sistema inquisitorial, fortificando-o com a criação do cargo de inquisidor geral e com a de um conselho supremo da Inquisição. Entre os frades dominicanos que, em conseqüência do breve de 29 de janeiro de 1482 contra as violências dos inquisidores escolhidos pelo governo, foram nomeados pelo papa, juntamente com o geral da ordem, para exercerem aquele ministério (visto que, por esse mesmo breve, Sixto IV retirava aos reis católicos a faculdade de elegerem mais algum) contava-se um certo frei Tomaz de Torquemada. Foi este o escolhido para primeiro inquisidor-mor de Castela. São obscuras as circunstâncias que se deram na sua eleição para tão importante cargo, inclusivamente a data dessa eleição. Sabemos só que ele, já inquisidor geral de Castela, foi revestido da mesma dignidade no Aragão, por breve de 17 de outubro de 1483. Os amplos poderes atribuídos àquele novo ofício receberam em 1486 a confirmação da sé apostólica. Torquemada, cujo nome se tornou na história o símbolo da mais cruel intolerância, estabeleceu desde logo quatro tribunais subalternos em Sevilha, Córdova, Jaen e Ciudad-Real (o último dos quais se transferiu, em breve, para Toledo), dando, além disso, comissão aos outros frades que, com ele, haviam sido nomeados pelo papa em 1482, para exercerem o mister d’inquisidores em várias dioceses. Estes cederam de má vontade às ordens do seu chefe, porque se reputavam dependentes imediatamente de Roma; porém Torquemada dissimulou com eles. Entretanto, para fortificar a sua autoridade e regular melhor o sistema de extermínio que concebera, escolheu por assessores dous jurisconsultos e com eles redigiu um código da Inquisição, cuja fonte principal parece ter sido o livro que no século antecedente Nicolau Eymerico escrevera sobre tal matéria. Ao mesmo passo Fernando V, cujas idéias e desígnios se casavam maravilhosamente com os do inquisidor-mor, criava um conselho real da Inquisição, que aí representasse o poder civil. Torquemada foi declarado presidente dele, e conselheiros o bispo eleito de Mazara e os dous doutores em leis, Sancho Velasques de Cuellar e Ponce de Valência. O voto deliberativo dos três conselheiros devia limitar-se às questões civis: nas matérias eclesiásticas a decisão pertencia a Torquemada, revestido exclusivamente dessa autoridade pelas bulas apostólicas. O inquisidor-mor convocou então uma junta geral em Sevilha, onde se reuniram com ele os inquisidores de quatro tribunais subalternos, os conselheiros régios e os dous assessores que Torquemada nomeara. Nesta junta se aprovaram os regulamentos já preparados, e, com o título de Instruções, promulgou-se o primeiro código inquisitorial d’Espanha (outubro de 1484).

Em abril desse mesmo ano o rei de Aragão convocara cortes em Tarazona, e aí fizera adotar a nova reforma da Inquisição. Em conseqüência disso, Torquemada criou em Saragoça um dos novos tribunais, nomeando para ele o dominicano Juglar e Pedro de Arbuès, cônego da sé metropolitana. Fernando ordenou, ao mesmo tempo, aos magistrados da província que lhes dessem toda a proteção e concurso de que carecessem. Apesar, porém, de que a Inquisição era cousa antiga neste país, o novo tribunal apresentava-se com tais condições e caracteres que as resistências começaram, desde logo, a manifestar-se. As pessoas mais influentes do reino, a maior parte das quais pertenciam a famílias de raça hebréia, dirigiram súplicas tanto à corte d’Espanha, como à de Roma, para que ao menos se ordenasse aos Inquisidores a suspensão dos confiscos, por estes serem contrários aos foros de Aragão. Enquanto, porém, se faziam estas diligências, a Inquisição procedia contra os suspeitos e começava os autos-de-fé, queimando diversas pessoas. Estas execuções irritaram mais os ânimos, e o despeito subiu ao ponto, quando se receberam avisos da corte de que as súplicas dos procuradores eram repelidas. Mais impetuoso do que o dos castelhanos, o carácter aragonês não podia sofrer com paciência a quebra do direito nacional, e o resultado foi uma conspiração contra a vida dos inquisidores Ao terror opunha-se assim o terror, e, se este sistema se houvesse adotado e seguido com constância por toda a parte, a Inquisição ou houvera deixado de existir ou moderaria os seus furores. O direito natural legitimava aquele meio de defesa, visto que os perseguidos não tinham recursos para uma rebelião declarada contra Fernando V. Assassino dos seus súditos por opiniões religiosas, neste príncipe a dignidade régia tornava-se apenas um fato. Os conjurados escolheram, provavelmente, para vítimas aqueles que mais implacáveis se tinham mostrado contra os cristãos-novos. Os votados à morte foram o inquisidor Pedro de Arbuès, o assessor Martim de Larraga e Pedro Frances, deputado do reino. A tentativa falhou uma e outra vez, até que Pedro de Arbuès foi assassinado uma noite na catedral, apesar de trazer, debaixo dos hábitos eclesiásticos, uma cota de malha, e um capacete de ferro debaixo do barrete. A notícia da sua morte, espalhada entre o vulgacho, produziu um tumulto em Saragoça contra os conversos e, porventura, alienou-lhes anteriores simpatias. Irritados, sedentos de vingança, os inquisidores lançaram mão de todos os seus imensos recursos para descobrir os conjurados, o que não tardaram a alcançar. Vidal de Uranso, um dos matadores de Arbuès, descobriu quanto sabia, e o seu depoimento deu-lhes a chave do mistério. Mais de duzentas vítimas foram dentro em pouco sacrificadas à memória do assassinado: maior era o número dos desgraçados que entre as paredes dos cárceres sombrios expiavam longamente um crime que muitos deles nem sequer teriam aprovado. O simples ato de dar guarida a um dos perseguidos suscitava novas perseguições. Muitos membros das mais ilustres famílias de Aragão e Navarra, acusados e processados, vieram, assim, a figurar nos autos-de-fé. Um sobrinho do próprio Fernando V foi metido num calabouço e penitenciado como protetor dos hereges, e o mesmo aconteceu a alguns indivíduos revestidos de dignidades eclesiásticas. É quase inútil dizer que os assassinos que se puderam prender foram cruelmente justiçados, cortando-se-lhes as mãos em vida, à exceção de Vidal de Uranso, a quem se prometera perdão, denunciando os outros culpados, e ao qual, para não se lhe faltar inteiramente à promessa, só as deceparam depois de morto. À indignação que o procedimento dos inquisidores produzia nas classes poderosas por nobreza ou opulência, entre os quais os cristãos-novos exerciam grande influência, parece deverem atribuir-se os tumultos e resistências de Teruel, de Valência, de Lérida, de Barcelona e de outros lugares contra a Inquisição, tumultos e resistências que o poder civil reprimiu energicamente. As multidões não podiam associar-se a esses movimentos, senão compradas pelos ricos ou impelidas pelos nobres, de quem muitas vezes dependiam. Ignorantes e fanáticas, os seus instintos ferozes atraiam-nas para aqueles espetáculos de crueza, com que os inquisidores se deleitavam e pelos quais essa terrível instituição se tornara um instrumento dos ódios que as classes ínfimas, envilecidas e miseráveis, nutrem em todas as épocas contra os abastados e felizes. As resistências, porém, às tiranias da Inquisição, da parte daqueles que receavam ser por ela vitimados, comprimidas pelo poder civil, ficaram completamente anuladas com as bulas de 1486 e 1487, que sucessivamente confirmaram Torquemada no cargo de inquisidor-mor, não só de Castela e Leão, mas também de Aragão, Valência, Catalunha e, em geral, de todos os estados de Fernando e Isabel. Aumentadas por essas bulas as suas atribuições, o terrível dominicano pôde dar campo aos ímpetos do fanatismo. Só em Ciudad-Real, no decurso de 1486, apareceram em vários autos-de-fé mais de três mil e trezentos indivíduos; em Sevilha, desde este ano até o de 1489, calculam-se em três mil os sentenciados, dos quais perto de quatrocentos foram queimados vivos. Pode-se avaliar por este número o das vítimas daquele nefando tribunal, nos outros lugares onde existia. Neste meio tempo, desamparados do poder civil e tomados de profundo terror, os cristãos-novos suspeitos de judaizarem, apesar de cruelmente ludibriados pela cúria romana, recorreram de novo ao pontífice. Fiel ao sistema que adotara, Roma abriu-lhes os braços. Todos os que se dirigiam à Penitenciaria apostólica e que eram assaz abastados para pagarem a taxa do perdão ou foram absolvidos ou obtiveram breves para o serem pelos ordinários, com a proibição expressa aos inquisidores de se intrometerem com eles. A corte d’Espanha e a Inquisição representaram energicamente contra tal proceder. Então o papa, anulando no essencial os breves concedidos aos critãos-novos, declarou que esses perdões se limitavam ao foro da consciência. Viam-se, assim, expostos de novo às fogueiras dos autos-de-fé os desgraçados que haviam sacrificado parte dos seus bens para as evitar; mas os recursos e a humanidade de Roma eram inesgotáveis. Entregar inteiramente as vítimas aos seus perseguidores seria secar para sempre uma das fontes mais caudais dos próprios proventos, e a cúria não podia resolver-se de bom grado a tamanho sacrifício. Inocêncio VIII ofereceu aos cristãos-novos espanhóis a perspectiva de novos perdões, sob condições novas; e eles caíram no laço, como homens que atrás de si não viam senão o suplício do fogo ou a sepultura em vida nas trevas dos cárceres perpétuos.

Não seguiremos as fases dos vários tormentos das dolorosas decepções, da dilatada agonia em que as famílias hebréias da Espanha continuaram a debater-se, ora iludidas pelo doloso favor de Roma, ora entregues, sem proteção nem esperança, à ferocidade de Torquemada e dos seus delegados e esbirros. Chamam por nós os fatos e as cenas que, na história da hipocrisia e no fanatismo, particularmente nos interessam; os fatos e as cenas que se passaram no nosso país. Cumpre-nos, todavia, expor um sucesso que, ligando os negros anais da Inquisição castelhana à entrada dessa instituição em Portugal, é a transição natural deste rápido esboço das origens dela, que, forçosamente, devia preceder a narrativa do seu estabelecimento entre nós.

Dissemos anteriormente que, no meio das conversões, quase sempre forçadas dos judeus espanhóis, desde os fins do século XIV até o último quartel do XV, os mais audazes ou mais aferrados às tradições e à crença de seus pais tinham resistido tanto ao terror, como aos sonhos de ambição e vaidade, pelos quais muitos as haviam traído. Bem que livres da jurisdição dos inquisidores, esses judeus fiéis à religião de Moisés não podiam evitar os efeitos da malevolência popular. O terror que a idéia do crime, aumentada pelo excesso da punição, excitava contra os seus irmãos convertidos, acusados de segunda apostasia, vinha refletir sobre eles direta e indiretamente. A raça hebréia era envolvida em geral no ódio contra os judeus apóstatas do cristianismo ou supostos tais, e, assim, as antigas prevenções do vulgo acerca daquela gente, digamos assim estrangeira na própria pátria, tornavam-se mais intensas com a perseguição organizada e oficial. Traziam-se à memória as lendas mais ou menos absurdas que a tradição ia legando de século a século sobre as vilanias, barbaridades e superstições ocultamente usadas pelos sectários da lei velha. Tal era o costume, que se lhes atribuía, de furtarem crianças cristãs, para as crucificarem em sexta-feira santa, ou hóstias consagradas, para com elas praticarem toda a casta de profanações. Acusavam-nos de terem mais de uma vez querido incendiar povoações e de insultarem a cruz, quando o podiam fazer a seu salvo. Enfim, os médicos, os cirurgiões e boticários judeus, na opinião do vulgo, abusavam freqüentemente da sua profissão para conduzirem à sepultura grande número de cristãos. O atraso da terapêutica e da farmácia e a imperfeição dos métodos cirúrgicos deviam, na realidade, subministrar, freqüentemente, fatos que tornassem plausível esta última acusação, ao passo que, também é crível que, maltratados e perseguidos, os judeus mais de uma vez abusassem da medicina, a que especialmente se dedicavam, para exercerem vinganças que reputariam legítimas. O que, porém, sobretudo, os devia tornar odiosos aos olhos dos fanáticos sinceros era a influência moral que exerciam sobre os seus antigos correligionários. Dizia-se que os conversos que apostatavam o faziam, principalmente, pelas ocultas instigações deles. Nesta parte, ao menos, a opinião geral era razoável. Ainda sem admoestações, o seu exemplo devia gerar contínuos remorsos nos que. por medo ou por conveniência, haviam renegado da religião avíta; e é mais que provável que os fanáticos do mosaísmo não se limitassem a esperar os efeitos dessa muda eloqüência e tentassem, não raro, reconduzir por outros meios ao aprisco de Israel as ovelhas transviadas. Estas e outras considerações suscitaram a idéia de expelir da Espanha os hebreus não convertidos. Tratou-se a questão nos conselhos de Fernando e Isabel, e os ânimos inclinaram-se para esse arbítrio. Avisados do que se delineava, os judeus, que conheciam o carácter cobiçoso do rei de Aragão, ofereceram-lhe trinta mil ducados, a pretexto da conquista de Granada, facção que naquela conjuntura se empreendera. Obrigavam-se, ao mesmo tempo, a cumprir à risca as obrigações civis que pelas leis lhes eram impostas, tais como o habitarem em bairros separados, recolhendo-se a eles antes de anoitecer, e a de se absterem daquelas profissões que se entendia deverem ser exercidas só por cristãos. Estas propostas fizeram impressão no espírito de Fernando e Isabel, que se mostraram resolvidos a aceitá-las. O inquisidor-mor Torquemada julgou, porém, oportuno interpor o seu veto. Apresentando-se perante os reis de Castela e Aragão, com um crucifixo nas mãos, o fanático e brutal dominicano teve a insolência de lhes dizer «que Judas vendera seu mestre por trinta dinheiros, e que eles o queriam vender, segunda vez, por trinta mil ducados; que, por isso, lh’o trazia ali, para que com toda a brevidade pudessem concluir a negociação». Em vez de punir o inquisidor-mor, os dois príncipes dobraram a cerviz diante de tanta audácia. A 31 de março de 1492 publicou-se uma lei para que todos os judeus não convertidos saíssem d’Espanha até 31 de julho desse mesmo ano, sob pena de morte e confisco para os que desobedecessem, cominações que, igualmente, se estendiam aos cristãos que dessem guarida a qualquer deles em suas casas apenas expirasse o prazo fatal. Permitia-se aos banidos venderem os bens de raiz e levarem suas alfaias, exceto ouro e prata, que trocariam por letras de câmbio ou por aquelas mercadorias cuja exportação não fosse proibida. Entretanto, Torquemada fazia todos os esforços para os mover a seguirem o exemplo dos anteriores convertidos, vindo colocar-se pelo batismo debaixo da sua jurisdição. O exemplo não era demasiado atrativo, e raríssimos o seguiram, preferindo quase todos o desterro à paternal tutela dos inquisidores. Fácil é de imaginar por que preço a maior parte deles, obrigados a despojar-se de tudo dentro de tão curto prazo, alienaria os seus bens: dava-se uma casa a troco de uma cavalgadura, uma vinha por alguns covados de pano. Oitocentos mil judeus saíram assim, nesse ano, dos estados de Fernando e Isabel. Diz-se, e é provável, que os foragidos imaginaram mil invenções para levar consigo ouro e prata. Uns embarcaram para África; outros, como veremos no seguinte livro, obtiveram licença para entrar em Portugal. Qual foi a sorte destes vê-lo-emos, também, depois. Dos que embarcaram para a Mauritânia uns, acossados pelos temporais, entraram de novo em vários portos da Espanha, e então, ou horrorizados do desterro, depois de experimentado, ou constrangidos pelos seus implacáveis perseguidores, aceitaram o batismo; outros, desembarcando em África, depois de espoliados e avexados cruelmente pelos mouros, preferiram voltar a Espanha, fingindo abraçar o cristianismo; outros, enfim, mártires da sua fé, submeteram-se às tiranias dos muçulmanos, que, ao menos, respeitavam as suas crenças, e estabeleceram-se definitivamente entre eles. A Inquisição reinava, finalmente, em Espanha com poder ilimitado, e Torquemada e os seus sicários podiam, sem contradição, fazer reinar o terror sobre todos os habitantes das vastas províncias sujeitas ao cetro de Fernando e Isabel.

LIVRO II

Situação dos judeus em Portugal no século XV. — Malevolência do povo contra eles. Manifestações e causas dessa malevolência. — Entrada dos hebreus espanhóis. Aumento da irritação popular. — Morte de D. João II e acessão de D. Manuel. — Circunstâncias que determinam a política do novo monarca acerca da raça hebréia. Influência da corte de Castela. — Debates sobre a expulsão dos judeus. Ordena-se a saída dos sectários do mosaísmo e do islamismo. Tiranias e deslealdades praticadas nessa conjuntura. Conversão forçada dos judeus. Leis favoráveis aos pseudo-conversos. — Sintomas de perseguição popular. — Tentativas de emigração dos cristãos-novos. — Obstáculos. — Novas manifestações do ódio do vulgo, incitado pelo fanatismo. Horrível matança nos cristãos-novos de Lisboa. Procedimento severo contra os culpados. — Mudança de política. Providências protetoras e de tolerância a favor dos perseguidos. — Confiança imprudente dos cristãos-novos. — Meneios ocultos do fanatismo. Tentativas sem resultado para o estabelecimento da Inquisição. — Situação da raça hebréia durante os últimos anos do reinado de D. Manuel. Morte deste príncipe.

Acabámos de ver no livro antecedente como uma grande parte dos judeus d’Espanha, constrangidos a abandonarem a pátria, buscaram guarida em Portugal. Cumpre agora dizer, não só quais foram as circunstâncias que se deram na realização desse fato, mas também qual era neste país o estado dos seus correligionários, a que os foragidos vinham ajuntar-se, fixando assim, previamente, as idéias sobre a situação daquela raça, na época imediatamente anterior ao estabelecimento da Inquisição.

As considerações que fizemos precedentemente sobre as relações morais e materiais dos hebreus espanhóis com a população cristã são na sua generalidade aplicáveis a Portugal. Superiores em indústria e atividade e dominados pela sede do lucro, apesar do desprezo ou da malevolência de que eram alvo, eles tinham desde os primeiros séculos da monarquia adquirido a preponderância que é o resultado inevitável da inteligência, do trabalho e da economia. Como todas as superioridades, a dos judeus tendia ao abuso, e os agravos, sobretudo os de ordem moral, que recebiam, gerando em seus corações o despeito, fortificavam-nos nessas tendências, que cada vez azedavam mais a mútua má vontade entre eles e os cristãos. Talvez, em parte nenhuma da Europa, durante a idade média, o poder público, manifestado quer nas leis, quer nos atos administrativos, favoreceu tanto a raça hebréia como em Portugal, embora nessas leis e nesses atos se mantivessem sempre, com maior ou menor rigor, as distinções que assinalavam a inferioridade deles como sectários de uma religião, posto que verdadeira, abolida pelo cristianismo. Aquele mesmo favor, porém, que, por tantos modos, comprimia as repugnâncias dos cristãos ia ajudando a converter em ódio, e ódio profundo, essas repugnâncias, aliás avivadas pelo fanatismo, pela inveja e pelo procedimento dos próprios judeus que obtinham exercer, direta ou indiretamente, como agentes fiscais ou como rendeiros d’impostos, uma parte da autoridade pública.

Considerados como uma nação, de certo modo, à parte, os hebreus portugueses eram regidos por um direito público e, em muitos casos, por um direito civil especiais, ao começar o último quartel do século XV. A jurisprudência então em vigor que particularmente lhes era aplicável achava-se compilada no nosso primeiro código regular de leis pátrias, a Ordenação Afonsina. Viviam os judeus dentro das povoações em bairros apartados, conhecidos pelo nome de judarias ou judearias, constituindo aí uma espécie de concelhos, chamados, em tempos mais remotos, comunidades e, depois, comunas(2). Por analogia com o sistema de governo respectivo às populações cristãs, as comunas regiam-se por vereadores e por arrabis, juízes municipais privativos, e por outros oficiais judeus. Acima destas magistraturas locais havia o arrabi-mor, alto funcionário da coroa e magistrado imediato ao rei, por cuja intervenção subiam até este os negócios da gente hebréia e que nomeava tantos ouvidores quantas eram as comarcas do reino, os quais julgavam em segunda instância as causas começadas perante os magistrados comunais. O arrabi-mor, tendo por assessor um letrado judeu, que era seu ouvidor especial, exercia superintendência, não só sobre a administração da justiça, mas também sobre a administração e fazenda das comunas(3).

Desde o princípio da monarquia, os judeus, pelos motivos que já temos apontado, exerceram uma grande influência no reino. Entre as acusações que o clero e os nobres, conjurados com este, dirigiam contra o infeliz Sancho II era uma a da preponderância que tinham debaixo da sua administração os sectários do judaísmo. A suprema inspeção das rendas públicas foi depositada nas mãos de judeus nos reinados de D. Dinis e D. Fernando, sendo revestidos do cargo de tesoureiros-mores, correspondente ao dos modernos ministros da fazenda, no tempo do primeiro, o arrabi-mor D. Judas e, no do segundo, outro D. Judas. Um dos morgados mais notáveis que se instituíram em Portugal ainda no século XIV foi o de D. Moisés Navarro, em Santarém, por concessão de D. Pedro I. Atendendo, porém, às contínuas representações populares contra os vexames praticados pelos ministros públicos desta raça, elrei D. Duarte proibiu por lei que fossem empregados como oficiais da coroa ou dos seus donatários, o que, afastando-os dos cargos mais elevados, não obstou a que continuassem a arrematar a cobrança dos impostos e a praticar os atos que o povo, com mais ou menos razão, reputava vexatórios e espoliadores. As leis que os protegiam eram a expressão de ampla tolerância. Tinham, não só a liberdade de seguirem a sua religião e de usarem publicamente os ritos dela nas sinagogas ((esnogas), mas também a de se regularem nas relações de direito privado pelos próprios costumes. Quaisquer violências contra essas garantias de que gozavam acham-se precavidas nas leis com severíssimas cominações, e, quando por serviços públicos bem mereciam da pátria, eram compensados com mercês, como os súditos cristãos. Enfim, as bulas de ampla proteção que sucessivamente obtiveram de Clemente VI, em 1247, e de Bonifácio IX, em 1389, apresentadas a D. João I pelo seu físico-mor, mestre Moisés, foram confirmadas e mandadas guardar escrupulosamente por aquele grande príncipe nas suas mínimas provisões(1).

Se, todavia, a tolerância para com os judeus era tal que honraria séculos mais ilustrados, tomavam-se também providências para que, à sombra das suas imunidades, eles não abusassem dos recursos e influência que possuíam para perverter as idéias religiosas do povo, do que havia grande risco pelo trato quotidiano e pelo comércio de ambos os sexos entre indivíduos de diversa crença. Mais do que isso: excogitaram-se vanos meios indiretos para os atrair ao cristianismo. Destes intuitos que influíam nas instituições e nas leis resultavam algumas dessas manifestações de intolerância moral a que noutro lugar aludimos e que tendiam a tornar sensível a inferioridade dos sectários da lei velha. Mais de uma instituição apresenta esse carácter. Posto que, por exemplo, nos litígios cíveis entre cristãos e judeus a causa seguisse o foro do réu, embora este pertencesse à gente hebréia, nas provas testemunhais havia uma diferença: o réu cristão podia sustentar a exceção com testemunhas exclusivamente da sua crença, e o judeu não. Nos contratos, fossem quais fossem, ou celebrados entre eles ou entre eles e cristãos, só se permitia usar a língua ladina-cristenga, isto é, portuguesa. Eram sempre obrigados os judeus a provar a existência de quaisquer dívidas de cristãos, ainda quando os devedores as confessavam, e havia na legislação multiplicadas prevenções para obstar às usuras, a que os judeus eram tão propensos. Nos casos crimes estavam sujeitos à jurisdição dos magistrados cristãos, bem como nas causas de fazenda pública. Não lhes era permitido entrar sós em casa de cristãs solteiras ou viúvas, nem de mulheres casadas, estando seus maridos ausentes, do que eram excetuados os médicos, cirurgiões e oficiais mecânicos, indo exercer a sua profissão. Não podiam ter criadas ou criados cristãos; eram obrigados a trazer no pedaço das roupas que cobria a extremidade inferior do externo uma estrela vermelha de seis pontas cosida sobre o vestido, de modo que sempre se lhe visse, sendo-lhes, ao mesmo tempo, vedados os trajos suntuosos e o uso de armas. Depois de recolhidos ao anoitecer, punham-se-lhes duas sentinelas à entrada da judearia para que não pudessem sair. Às mulheres cristãs era proibido entrar nas lojas deles sitas nos mercados, sem que fossem acompanhadas de algum indivíduo cristão, e a lei cominava pena de morte contra as que ousassem entrar nas judearias; cominação excessiva e, provavelmente, nunca aplicada nos casos de contravenção. Nas questões de propriedade não gozavam de todas as vantagens comuns. Por exemplo, a lei da avoenga ou de prelação na compra de bens que haviam pertencido aos antepassados dos licitantes não era aplicável aos judeus. Às sinagogas não podiam andar anexos bens de raiz, como às igrejas. Os mercadores hebreus não gozavam da exempção dos varejos, como os cristãos, e, finalmente, todos os judeus estavam sujeitos a uma capitação especial além dos tributos gerais(5).

Ao passo que estas desvantagens e gravames tornavam diretamente a situação dos sectários da lei mosaica inferior à dos sectários do evangelho, as prerrogativas e conveniências que a legislação proporcionava aos neófitos que tinham abandonado o judaísmo, sendo para isso um poderoso incentivo, contribuíam para caracterizar melhor a distância que havia de adeptos de uma religião tolerada aos de outra dominadora. Entre as provisões mais notáveis dessa legislação devem contar-se as que impunham severas multas aos que injuriavam os conversos, chamando-lhes tornadiços, isto é, renegados. Ficavam os neófitos exemptos, pelo ato da conversão, de terem armas e cavalo para a guerra, ainda que possuíssem o cúmulo de bens pelo qual os cristãos velhos eram aquantiados ou, por outra, tinham de ser soldados gratuitos de cavalaria. Sendo antigamente obrigados a dar carta de guete ou desquite a suas mulheres apenas se batizavam, pela Ordenação Afonsina ficaram autorizados a viverem com elas mais um ano, sendo só constrangidos a dar-lhes o guete, se durante esse tempo a mulher não adotava também a religião do marido. As exempções dos cristãos-novos eram comuns aos cristãos-velhos que casavam com judias convertidas. Longe de ser lícito ao judeu deserdar seu filho por mudar de crença, tinha este desde logo o direito de receber o seu quinhão da herança paterna e materna, supondo-se falecidos o pai e a mãe para esse efeito, de modo que, se era filho único, havia desde logo dois terços dos bens da casa, provisão eficaz para promover as conversões, mas altamente imoral. A estas vantagens associava-se a de ficarem exemptos de todos os gravames especiais que pesavam sobre os da sua raça(6).

Além das famílias hebréias, havia no país uma grande multidão de mouros que seguiam o islamismo. A proteção concedida a estes e os encargos que particularmente os gravavam eram, em substância, análogos aos que diziam respeito aos judeus. O expô-los pertence à história geral, mas tem mui pouca importância para a da Inquisição; porque, segundo adiante veremos, deu-se livre saída do reino aos que não quiseram converter-se, anos antes do estabelecimento daquele feroz tribunal. Assim, o número das vítimas pertencentes à raça mourisca foi mui diminuto, e nenhum interesse oferece, neste sentido, o conhecer qual era a situação anterior dessa parte da população.

Todavia, apesar da proteção concedida à raça judaica ou antes, em parte, por causa dessa mesma proteção, a má vontade do povo contra ela crescia de ano para ano pelos motivos já ponderados. Aquela malevolência rompia, às vezes, em excessos que certas providências legislativas do século XV estão revelando e de que, até, as antigas crônicas nos conservaram vestígios. Sirva d’exemplo o tumulto alevantado em Lisboa nos fins de 1449. Alguns mancebos da cidade tomaram por seu recreio insultarem e maltratarem os judeus da comuna, e tão longe levaram a travessura que os ofendidos recorreram aos magistrados, pedindo desagravo. O corregedor da corte, achando os acusados dignos de castigo, mandou-os publicamente açoutar. Bastou isso para suscitar uma revolta popular. Dando largas aos seus instintos, ao mesmo tempo ferozes e vis, a gentalha e muitos que não o eram pegaram em armas e acometeram a judearia. Bradavam as turbas «matemo-los e roubemo-los!/». Este último grito revelava a causa principal de tanto ódio. Tentando defender-se, alguns judeus foram mortos, e a carnificina houvera continuado, se o conde de Monsanto, com as forças que tinha a seu mando, se não dirigira imediatamente ao lugar do conflito. Sopitou-se a revolta, e deu-se conta de tudo a elrei, que se achava em Évora nessa conjuntura. Partiu Afonso V para Lisboa, porque ao mesmo tempo fora avisado de que apareciam terríveis sintomas de novas perturbações, e, sindicando dos indivíduos presos por ocasião do motim, mandou que fossem justiçados. Assim se começou a fazer; mas os tumultos rebentaram de novo contra o próprio rei, e com violência tal que se entendeu ser necessário sobrestar nas execuções e ir gradualmente lançando no esquecimento estes deploráveis sucessos(7).

A malevolência que assim resfolegava tremenda acendia mais pelo acréscimo repentino da população hebraica. Procedia este acréscimo da emigração gradual de muitos judeus mais opulentos, que insensivelmente iam chegando de Castela, onde a perseguição já naquela época havia começado, e que vinham ajudar os seus correligionários a acabarem de apoderar-se da percepção das rendas públicas e do meneio da indústria e do comércio. Essa malevolência crescente não ardia só no ânimo da plebe: existia, também, entre o clero e entre indivíduos acima do vulgo. Resta-nos uma carta de um frade de S. Marcos, que ignoramos quem fosse, mas que dela se vê privava com Afonso V, onde transluz o ódio contra os judeus e, ao mesmo tempo, se manifestam as causas econômicas que o inspiravam. Dissuadindo aquele príncipe das empresas guerreiras, a que era tão inclinado, o monge político pondera a pobreza, então atual, do erário comparada com a opulência dos tempos passados e d’aí deduz a necessidade de abandonar a idéia de conquistas e expedições ultramarinas. À escasseza de recursos atribui o zeloso conselheiro o expediente que se adotara de reduzir toda a cobrança dos impostos ao sistema de arrematações. Nesta questão incidente aparece o motivo, inteiramente terreno, da aversão contra a gente hebréia, e vê-se como a acessão dos refugiados espanhóis viera aumentar-lhe a riqueza e preponderância. «Agora, senhor, — diz o gratuito conselheiro — com a cobiça de obter maior rendimento acha-se a cristandade submetida à jurisdição judaica, e os estranhos ao país levam a substância das mercadorias do vosso reino, ao passo que os mercadores nacionais perecem de miséria. A isso quisera eu que vossa senhoria desse remédio, como tantas vezes lhe tem sido requerido; que mais honra e proveito vos resultará de serem os vossos naturais ricos do que de o serem os estranhos, que dão perda e não lucro ao país(8).»

Onde, porém, mais evidentemente se descobre que a aversão contra os judeus cada vez adquiria maior intensidade é nas atas dos diversos parlamentos convocados durante a segunda metade do século XV; porque a linguagem dos procuradores das cidades e vilas era a expressão do comum sentir, não só do vulgo, mas também da burguesia cristã. Nas cortes de 1475 eles tentavam obter que nas causas cíveis entre os sectários do judaísmo ou do islamismo e os da religião dominante preferisse, contra o princípio geral de direito, o foro dos cristãos, quer estes fossem autores, quer réus(9). Destas mesmas cortes se conhece que, até, se arrendava a indivíduos daquela raça a percepção de multas por contravenções de certas leis administrativas, vexame a que os povos buscavam esquivar-se, ao mesmo tempo que requeriam se impusessem aos judeus algumas multas judiciais, de que por seus privilégios estavam exemptos(10). É, porém, nas atas das cortes de 1481 a 1482 onde a irritação popular se manifesta com caracteres mais ameaçadores; porque aí as questões econômicas complicam-se já com as religiosas. Nas idéias daquela época, o luxo era um grande inconveniente social, e as leis suntuárias combatiam-no energicamente. Todavia, a opulência dos judeus, ao passo que os habilitava para viverem com esplendor, alcançava conciliar-lhes a tolerância dos magistrados, que os deixavam manifestar na magnificência dos trajos e dos adornos a sua riqueza. Nessa opulência achavam eles, também, recursos para abusarem da pobreza comparativa dos cristãos, envilecendo-os por mais de um modo e, até, ofendendo-os nos objetos do seu culto. É mais que provável que as acusações dirigidas contra eles pelos procuradores dos povos a semelhante respeito fossem em geral verdadeiras. O poder que o ouro dá é como todos os poderes: tende sempre a abusar e abusa, quando as resistências são tênues ou nulas. Essa classe opulenta não precisava para isso de pertencer à raça judaica e de seguir a lei de Moisés; bastava-lhe ser composta de homens, e homens poderosos. Na linguagem dos mandatários populares sentem-se palpitar a indignação e o ódio contra os judeus, embora nas invectivas que fazem sobre o desenfreamento do luxo envolvam aparentemente os mouros e os cristãos. «Falamos assim, senhor, — diziam eles — porque vemos a horrível dissolução que lavra entre judeus, mouros e cristãos, no viver, no trajar e no trato e conversação, em que se observam cousas repugnantes e abomináveis. Vemos os judeus feitos cavaleiros, montados em cavalos e muares ricamente ajaezados, e eles vestidos com lobas e capuzes finos, jubões de seda, espadas douradas e toucas de rebusco, de modo que é impossível conhecer a que raça pertencem. Entram por isso nas igrejas e escarnecem do santo sacramento, ajuntando-se criminosamente com os cristãos, e perpetram grandes pecados contra a fé católica. Nascem desta dissolução profunda erros e culpas horrendas, que danam os corpos e as almas. O pior dos males é andarem sem divisas, e fazem-no por serem rendeiros da fazenda pública, por atormentarem os cristãos e por se terem feito senhores onde, naturalmente, são servos.» — Depois, pedindo providências gerais contra os negociantes estrangeiros residentes em Portugal, aludem particularmente aos judeus espanhóis, que, «corridos e lançados da pátria pelas suas perversas heresias, acham acolheita e amparo no reino.» É carregado o quadro que desenham das conseqüências fatais do íntimo trato entre os oficiais mecânicos hebreus e as famílias dos habitantes dos campos: «Grandes males resultam, senhor, — acrescentavam eles — da desenvoltura dos judeus alfaiates, sapateiros e oficiais de outros ofícios, que, ficando sós nas casas dos lavradores com suas mulheres e filhas, enquanto eles vão tratar do lavor dos campos, cometem estupros e adultérios.» Nesta parte, os procuradores pediam a proibição absoluta daquela liberdade e que quem precisasse de qualquer obra incumbisse os oficiais judeus de a executarem nas respectivas judearias(11).

Os escrúpulos excessivos não eram o defeito de D. João II. A estas queixas respondeu em termos gerais, embora não negasse os fatos que os procuradores apontavam, e recusou formalmente coagir os obreiros judeus a exercerem seus misteres exclusivamente nas comunas. Não deixou, todavia, por isso a linguagem dos representantes das cidades e vilas de ser ainda mais violenta na subseqüente assembléia de 1490. O primeiro negócio que, unânimes, apresentaram a elrei foi o requerimento em que pediam a exclusão dos judeus da arrematação dos impostos. Diziam que livrasse os povos da sujeição dessa gente, que, como rendeiros e exactores, exercia por toda a parte uma espécie de senhorio, circunstância que levava os cristãos a terem com eles contínuo trato, d’onde se originavam mil males civis e religiosos, ocorrendo diariamente as enormidades, odiosas a Deus e aos homens, que eram geralmente sabidas. Ponderavam que não havia país de cristãos onde fossem tão favorecidos os judeus como em Portugal, tendo eles tal astúcia que, não só eram contratadores d’impostos, mas, até, administradores das casas nobres; que era necessário privá-los destas ocupações e reduzi-los a serem cultivadores, obreiros ou mercadores; que, além disso, cumpria tomar diversas providências para acudir aos enganos e sutilezas com que eles ilaqueavam muitos cristãos, tirando-lhes o que possuíam e reduzindo-os, pela miséria, a uma espécie de escravidão(12). Se, porém, estas queixas, ainda que, talvez, exageradas, nos dão uma idéia assaz clara do estado das relações econômicas e morais entre as duas raças nos fins do século XV, a resposta por parte da coroa dá mais luz e relevo a esse escuro quadro. D. João II recusou formalmente excluir os judeus das arrematações de impostos. O exemplo do que sucedia por algumas partes provava, na opinião do rei, que os rendeiros cristãos, longe de serem menos opressores, o eram ainda mais do que a gente hebréia. Fora por isso que os antigos monarcas haviam resolvido entregar-lhes o meneio da fazenda pública, ainda com menos restrições do que ele, que já em vida de seu pai fizera com que fossem excluídos de arrematarem rendas eclesiásticas e de serem oficiais da coroa, cousa, d’antes, mais que trivial. Além destas considerações, dava-se outra irresistível, e era que não havia cristãos habilitados para contratarem a arrecadação dos impostos, e, quando os havia, pretendiam obter lucros tão exorbitantes que se tornava impossível vir com eles a acordo. A concessão que unicamente o rei fazia era a de proibir que os judeus fossem administradores das casas particulares, do mesmo modo que estavam excluídos dos cargos públicos(13).

Nas atas das cortes de 1490 aparecem diversos outros vestígios da malevolência popular contra a gente hebréia, malevolência, até certo momento, legítima, como o é sempre o do oprimido contra o opressor. O que fica citado basta, porém, para conhecermos a situação material e moral dos judeus. A resposta de D. João II explica-nos tudo. O capital monetário estava, quase só, nas mãos dos judeus, e esse fato trazia o que, na linguagem de hoje, chamamos monopólio; monopólio que, principalmente, se exercia na gerência usurária das rendas públicas e das particulares e no qual os poucos cristãos que a ele podiam associar-se igualavam ou autes excediam os judeus em usuras. Ao abuso dos lucros imoderados acrescia a soltura dos costumes, a satisfação de paixões desregradas, que a riqueza de uns e a dependência de outros tanto facilitavam. Ao sentimento da opressão ajuntava-se, necessariamente, nos ânimos vulgares a inveja, a que dava dobrado vigor e, ao mesmo tempo, servia de manto a oposição de crenças religiosas. Esta oposição levava naturalmente os sectários da lei de Moisés a ludibriarem o culto cristão. Ofendidos por mais de um modo, na fazenda, no pundonor e nos afetos íntimos, por essa raça opulenta e poderosa, a cuja mercê estavam, que muito era que viesse o ódio dos povos, acumulado por séculos, a manifestar-se em explosões terríveis ou numa perseguição incessante e implacável, quando o fanatismo desse ainda maior impulso a essas propensões populares?

Sem que admitamos a conveniência ou a necessidade de converter em questão religiosa uma questão puramente social; condenando com todas as veras da alma uma instituição anti-evangélica, desonra do cristíanismo, e que manchou as vestes puras do sacerdócio com largas e indeléveis nódoas de sangue; rejeitando, enfim, o pensamento atroz que presidiu ao estabelecimento da Inquisição, justamente porque nos parece que assim se teria evitado esta grande infâmia do século XVI, tão contrária à tolerância da idade média portuguesa, entendemos, todavia, que, chegadas as cousas aos termos em que se achavam no reinado de D. João II, cumpria reprimir severamente os judeus, impedir o abuso do dinheiro e, sobretudo, adotar outro sistema de percepção d’impostos; defender, em suma, os fracos contra os fortes, o trabalho contra o capital. Nas matérias de religião, era indispensável manter restritamente a cada qual o seu direito; proteger a sinagoga, mas punir inexoravelmente o que ofendesse o templo católico, não só porque era o da religião verdadeira, mas também porque simbolizava a crença da maioria dos cidadãos. Não sucedeu assim, e a irritação geral, não satisfeita com providências ineficazes e incompletas, cresceu com os sucessos trazidos pelo estabelecimento da Inquisição em Espanha, os quais influíram, do modo que vamos ver, na questão do judaísmo em Portugal.

Dissemos no livro antecedente como, resolvida por Fernando e Isabel a expulsão dos judeus espanhóis, e promulgada a lei de 31 de março de 1492, na qual se lhes dava, apenas, o espaço de quatro meses para a saída, muitos deles solicitaram e obtiveram a permissão de entrarem em Portugal, cujo território, pela extensão da fronteira e facilidade do trânsito, lhes proporcionava mais pronto e acessível refúgio. Acrescia a esta consideração, que os atraia para Portugal, outra não menos atendível. Os hebreus espanhóis e os portugueses, pela vizinhança, parentescos, freqüência de trato e identidade de origem e crença, podiam reputar-se dois grupos da mesma nação e troncos da mesma família. Os muitos cujas fortunas tinham de ficar minguadas ou perdidas naquela súbita expulsão achariam socorro numa classe poderosa da população portuguesa, a quem o poder público concedia ainda, apesar dos ódios gerais, proteção religiosa e civil. Isto basta a explicar as diligências dos judeus espanhóis para se acolherem temporariamente a este país. Preferiam isto a passarem à África, onde, depois dos perigos do mar, que, durante o trânsito, arrojou de novo muitos, com tormentas, para as garras de Torquemada, tinham a experimentar a crueldade e as paixões brutais dos mouros, incapazes de conceberem idéias de generosa hospitalidade. Contam os historiadores que os comissários enviados por eles a Portugal para solicitarem a permissão da entrada lhes escreveram que deviam de vir, porque a água era já deles (o comércio marítimo?), a terra boa e os habitantes parvos; que o resto em breve deles seria também(14). Nesta anedota há todos os visos de uma dessas fábulas que a malevolência com tanta facilidade inventa. O terror e a aflição de que os judeus espanhóis estavam tomados naquela conjuntura não consentiam tais gracejos, além de que, se podiam vir disputar a alguém a riqueza e o poderio que esta dá, não era tanto aos cristãos como aos seus próprios correligionários. A verdade é que eles não pediam então licença para viverem em Portugal, mas somente para d’aqui passarem com facilidade a outros países. Apertados pelo breve termo que se lhes concedia para saírem dos estados de Fernando e Isabel, propunham que pela fronteira se lhes desse franco acesso, facilitando-se-lhes depois a saída pelos portos do mar. Em agradecimento desta hospitalidade temporária, ofereciam avultadas quantias. Num conselho celebrado em Cintra, elrei expôs largamente o negócio, mostrando a resolução em que estava de o aceitar, com o fundamento principal de aplicar aquelas somas para a guerra d’África. Alguns membros do conselho, ou por seguirem o parecer de elrei ou porque julgassem que as vantagens materiais da proposta eram tais que deviam fazer calar todos os escrúpulos ou, finalmente, por um impulso de humanidade, foram do mesmo voto. Outros, porém, que o fanatismo inspirava opunham-se àquela resolução. Ponderavam que era vergonha para Portugal ser mais tíbio do que Castela nas cousas da fé; que, negando-se-lhes a entrada, os judeus, colocados entre a conversão e o cadafalso, prefeririam a primeira ou que, pelo menos, na suposição contrária, seus filhos se tornariam cristãos, do mesmo modo que, quando se corta uma velha árvore, se enxertam nos rebentões delas boas prumagens; que, finalmente, não bastava o pretexto da guerra d’África para corar uma ação torpe. Não era D. João II homem que se demovesse do seu propósito com tais razões, e a admissão dos judeus resolveu-se afinal(15). As condições foram: que o prazo para a entrada e residência no reino não ultrapassaria a oito meses, que pagariam uma capitação, acerca da qual variam os escritores, acaso porque as exigências de fato excederam as convenções(16), ficando cativos aqueles que deixassem de solvê-la ao passarem a fronteira; que, enfim, o governo português lhes administraria navios para se transportarem aonde quisessem, pagando as respectivas passagens(17). Seiscentas famílias mais ricas contrataram particularmente ficarem no reino a troco de sessenta mil cruzados(18). O mesmo se concedeu aos oficiais mecânicos de certos ofícios. Designaram-se então os pontos por onde a entrada devia verificar-se, que foram Olivença, Arronches, Castelo-Rodrigo, Bragança e Melgaço, e para aí se enviaram agentes fiscais que cobrassem a capitação e passassem quitações que serviriam de ressalva aos emigrados. As somas recebidas nesta conjuntura foram avultadíssimas; porque, sendo o território português o que oferecia mais fácil acesso à emigração, e elevando-se esta a perto de oitocentos mil indivíduos, não seria cálculo exagerado supor que um terço desse número transpôs a fronteira. Entretanto, muitos deles, ou mais pobres ou mais avaros, seguindo caminhos escusos, internavam-se no reino, evitando pagar o preço da admissão, mas com a perspectiva do cativeiro, que a vigilância dos ministros e oficiais d’elrei em breve tornava uma realidade. Estes desgraçados, reduzidos à servidão, eram distribuídos a quem quer que os pedia. Ainda tempos depois, apareciam contra muitos deles acusações de haverem defraudado o fisco, e a conseqüência era serem feitos escravos. Quinze mil cruzados oferecidos a elrei e mil aos ministros encarregados de averiguar as contravenções desta ordem puseram termo àquele gênero de perseguição. Todavia, o povo, que, pela má vontade aos judeus, se mostrava adverso à resolução d’elrei, matava os que colhia às mãos errantes e sós pelos caminhos e despovoados, recusando absolutamente socorro aos indigentes. Para cúmulo de mal, os foragidos trouxeram consigo a peste que ardia em Castela, e a doença arrebatou, não só grande número deles, mas também uma parte da população indígena, o que duplicava o ódio popular contra os ádvenas. Entretanto elrei, que se obrigara a subministrar-lhes navios em que passassem aos portos que lhes conviessem, mandou-lh’os dar só para África, d’onde já soava a fama das atrocidades perpetradas pelos mouros contra os que tinham ido buscar asilo naquelas terras inóspitas. Este cumprimento incompleto das promessas feitas foi limitado ainda, por outra restrição. Tanger e Arzila, praças portuguesas, foram exclusivamente designadas para o desembarque. Aí os infelizes que iam sucessivamente passando à Berbéria experimentaram toda a casta de flagelos da parte da soldadesca metida naqueles presídios, além dos vexames e insultos que recebiam dos capitães dos navios durante a passagem. Pior sorte ainda os esperava ao transporem as barreiras dessas praças. As vilanias e extorsões dos muçulmanos excediam tudo quanto tinham podido prever os foragidos. A fama absurda, espalhada na Espanha, de que eles para salvarem o seu ouro o reduziam a pó e o devoravam, chegara a África, e os mouros matavam muitos para lhes buscarem nas entranhas as riquezas que de outro modo não lhes encontravam. Tais foram as cruezas e atrocidades dos muçulmanos que grande número de judeus espanhóis preferiram voltar ao reino, oferecendo os pulsos às algemas d’escravos. A sua cobiça insaciável, o seu orgulho e o abuso do ouro e poder que, provavelmente, eles haviam feito em Espanha, do mesmo modo que o praticavam em Portugal os seus correligionários, recebiam tremendo castigo da mão da Providência, que de outras cobiças e de um fanatismo cego fizera instrumentos da sua eterna justiça, justiça que, igualmente, não devia tardar em cair sobre os judeus portugueses(19).

As amarguras destes infelizes, que, depois de espoliados e espancados, viam suas mulheres e filhas desonradas ante os próprios olhos e os filhos vítimas de crimes ainda mais nefandos, das paixões brutais e sem nome da devassidão mourisca, estavam longe do seu termo. Regressando a Portugal, deviam experimentar, com os que aí tinham ficado assinalados pelo ferrete da servidão, agonias, se é possível, ainda mais atrozes. Haviam até então respeitado neles os afetos domésticos, e deixavam ao amor paterno consolar-se com as carícias da prole infantil. D. João II despedaçou-lhes essa última fibra do coração que ficara intacta. Os filhos menores dos judeus cativos foram tirados aos pais e transferidos para a ilha de S. Tomé, começada a povoar pouco antes. Sem proteção nem abrigo, expostos às influências da atmosfera malsã e aos acidentes de vida semi-bárbara, a maior parte deles pereceram, diz-se que, principalmente, devorados pelos crocodilos de que a ilha então abundava. Os que, porém, escaparam vieram, pelos dotes ingênitos da sua raça, a ser colonos opulentos daquela fértil possessão, com o progresso da sua povoação e cultura(20).

Mas, ao menos, o espetáculo de tantas desventuras era útil aos hebreus, minorando pela comiseração o ódio geral, mais de uma vez manifestado contra eles de um modo solene? Certo que não. As providências tomadas acerca dos foragidos serviam pelo contrário a azedar os ânimos. Era justamente aos ricos e aos oficiais mecânicos, ao menos a certos, que fora concedida a faculdade de se estabelecerem no reino; isto é, às duas classes de judeus mais odiosas pelos motivos que anteriormente vimos, as quais engrossavam em número com a acessão de novos membros, ampliando-se, assim, as probabilidades do aumento de vexames, da parte de uma, e de corrupção, da parte de outra. Depois, o exemplo de Castela mostrava que era possível dispensar os capitais, a atividade e a indústria dessa gente no meneio da fazenda pública e nos serviços comuns da vida, em contrário do que o rei afirmara nas cortes de 1490. Além disso, vendo-se e ouvindo-se por toda a parte e da boca dos próprios foragidos a história das perseguições de que eram vítimas, o povo habituava-se à idéia de se repetirem em Portugal cenas análogas, em nome da religião ofendida.

Tal era a situação dos judeus e o estado moral do país em relação a eles nos anos que precederam imediatamente a morte de D. João II. Este sucesso, ocorrido nos fins de 1495, elevou ao trono o duque de Beja, D. Manuel, primo do rei falecido. Membro de uma família perseguida, o novo monarca aprendera nos dias da adversidade a ser humano, se não é que a própria índole o inclinava à indulgência, ensino ou propensão que a fortuna e o hábito de reinar haviam de ir obliterando com o decurso do tempo. Um dos primeiros atos de D. Manuel foi dar a liberdade ao grande número de judeus que tinham sido reduzidos à condição de servos. Era este um ato ao mesmo tempo de humanidade e de justiça, mas que devia indiretamente aumentar a irritação dos ânimos, ferindo o interesse daqueles a quem esses escravos haviam sido ou dados ou vendidos. O favor, porém, que os judeus achavam em o novo monarca ia em breve desaparecer diante de mais graves interesses. A morte do príncipe D. Afonso, filho de D. João II, dera um trono ao duque de Beja. Entendeu este que devia recolher inteira a herança, tomando por mulher a viúva do príncipe falecido. Esse consórcio, para o qual o atraía a afeição, aconselhavam-no também, porventura, cálculos de ambição. A princesa D. Isabel era filha mais velha dos reis católicos e sua herdeira presuntiva, no caso de faltar o príncipe D. João, único fiador da sucessão masculina ao trono de Castela. Casando com ela, o rei de Portugal via em perspectiva, ao menos como possível, a reunião das duas coroas da Península numa só cabeça. Proposto o negócio na corte de Castela, os reis católicos, que já tinham oferecido em casamento ao rei de Portugal a infanta D. Maria, sua filha terceira, acederam à pretensão, mas impondo duas condições. Era uma a liga contra França; versava a outra sobre os refugiados da nação judaica. Na questão da liga D. Manuel cedeu só por metade, obrigando-se, apenas, a enviar socorros a Castela no caso d’invasão; quanto à segunda condição, as restrições não eram possíveis. Às exigências dos pais acresciam as da filha. D. Isabel, que ou detestava cordialmente os judeus ou queria servir a política paterna, pedia, digamos assim, como arras, o predomínio da intolerância. No contrato de casamento, assinado em agosto de 1497, estipulou-se expressamente a expulsão dentro de um mês de todos os indivíduos de raça hebréia que, condenados pela Inquisição, tinham vindo buscar refúgio em Portugal. Só depois de verificado este fato, D. Isabel se obrigava a realizar o desejado enlace, condição que, aliás, fora aceita pelo embaixador de Portugal(21).

Estes ajustes não eram, todavia, os primeiros sintomas da política d’extermínio que ia pesar sobre os judeus. Fora nos fins d’outubro do ano antecedente que D. Manuel enviara a Castela seu primo D. Álvaro a pedir a mão da princesa D. Isabel, depois de ter recusado a de D. Maria, e já então a corte castelhana quisera aproveitar o ensejo para introduzir em Portugal o sistema de intolerância adotado no resto da Península. Era a pretensão de Fernando e Isabel que se expulsassem os próprios judeus naturais dos estados do futuro genro. Proposta a matéria em conselho, dividiram-se as opiniões, como era natural em objeto de tanto momento. Os que sustentavam que não se devia tolerar no reino a religião mosaica tinham a seu favor considerações d’interesse religioso e moral, nas quais se misturavam com muitos sofismas, difíceis de avaliar naquela época, algumas verdades atendíveis. Tinham, além disso, para dar importância ao seu voto a opinião popular, cujas manifestações nada equivocas já descrevemos, e a que haviam dado origem agravos mais ou menos exagerados, mas reais. Por outra parte, os que impugnavam as pretensões de Castela fundavam-se, não só nos princípios verdadeiros da tolerância religiosa, como também em altas considerações de economia pública e de política, a que, até, acrescentavam algumas de interesse religioso. Ponderavam que muitas nações católicas consentiam entre si os judeus; que o próprio papa os deixava viver nos estados da igreja, e que, portanto, as razões religiosas que se davam para a sua expulsão não deviam ter demasiado valor; que, vivendo entre cristãos, muitos poderiam abrir os olhos à verdadeira luz, o que não sucederia se passassem a terras de mouros, fato que se verificaria na maior parte dos casos, se os fizessem sair do reino; que, nesta hipótese, eles iriam levar aos eternos inimigos do cristianismo, aos muçulmanos d’África, com quem os portugueses andavam em contínuas hostilidades, não só as artes industriais, nomeadamente as que tocavam à guerra, mas também os recursos das próprias riquezas, o que tudo redundaria em detrimento da religião; que, finalmente, além do prejuízo que a perda de tantos braços úteis e de tão grossos cabedais faria à prosperidade do reino, a quebra das rendas públicas, conseqüência inevitável do fato, seria áspera de sofrer e custosa de remediar(22). Eram graves estas razões; mas el-rei, em cujo ânimo militavam a favor das contrárias as próprias paixões, resolveu cumprir com os desejos dos reis de Castela. Em dezembro de 1496, estando em Muge, aonde fora passar alguns dias no exercício da caça, expediu uma provisão, na qual se ordenava a saída do reino de todos os judeus não convertidos. Como conseqüência forçosa das causas ostensivas de semelhante providência, a lei abrangia os muçulmanos não escravos que ainda existiam em Portugal ao abrigo das antigas instituições de tolerância. Dava-se aos expulsos, para verificarem a partida, o prazo de dez meses, com a cominação de pena última e de confisco de todos os bens contra o que desobedecesse, a benefício do delator. Elrei comprometia-se a deixar-lhes levar livremente quanto possuíssem, a fazer-lhes pagar o que lhes devessem, e a facilitar-lhes os meios de transporte e tudo o mais que fosse necessário para se obterem os fins do governo. De resto, a provisão expunha no seu preâmbulo os fundamentos de uma resolução tão extraordinária, fundamentos que, na realidade, não eram bastantes para convencer os ânimos prudentes e desprevenidos(23).

As condições impostas e aceitas no contrato de casamento de D. Manuel completavam os efeitos da provisão promulgada em Muge. Esta versava exclusivamente sobre os judeus e muçulmanos que publicamente professavam a religião de Moisés e a de Mohamed; aquelas referiam-se, também, aos hebreus espanhóis que, convertidos por vontade ou por força ao cristianismo, tinham voltado aos antigos erros e, perseguidos pela Inquisição, se haviam refugiado em Portugal. Por esse contrato, Torquemada e os seus satélites estendiam as garras aquém das fronteiras, e a bula de 3 de abril de 1487, na qual Inocêncio VIII ordenava a todos os príncipes procedessem contra os judeus fugitivos d’Espanha e que todos os príncipes tinham desprezado(24), recebia, até certo ponto, a sanção de D. Manuel. Não se obrigava este a queimá-los ou a sepultá-los em cárceres perpétuos, como os inquisidores desejavam, mas comprometia-se, ainda no caso de se mostrarem exteriormente cristãos, a expulsá-los do país.

Até aqui, o procedimento do corte portuguesa podia ser tachado de despiedoso, de anti-econõmico, de subserviente, de fanático, de tudo, enfim, menos de atroz e infame. A expulsão dos judeus podia ser erro gravíssimo, sem ser crime. Quando, porém, os governos, desprezando os conselhos da razão e desatendendo à conveniência pública, se deixam levar dos ímpetos das paixões, do vulgo ou das próprias paixões, as resistências morais ou materiais, maiores ou menores, que nesse caso sempre encontram, impelem-nos de precipício em precipício, até que os fazem, por via de regra, chegar aos desvarios mais absurdos. Foi o que sucedeu naquela conjuntura. Abandonadas as antigas tradições de tolerância, e encetado o caminho da perseguição, pouco tardou o moço príncipe a dar nele passos agigantados. Muitos hebreus, assim castelhanos como portugueses, menos firmes nas suas crenças, receando as conseqüências da emigração forçada, abjuraram: o maior número, porém, deles e os cristãos-novos, quer verdadeiros, quer fingidos, refugiados em Portugal preparavam-se para aceitar o bárbaro desterro a que os condenavam quando um dos atos mais desleais e cruéis que podem caber em peito de homens veio inesperadamente converter em inaudito mártírio as mágoas de uma parte desses desgraçados. Como meio de catequese, a expulsão não produzira os frutos que dela, porventura, se esperavam, e os inconvenientes econômicos, a que se não tinha dado toda a consideração que mereciam, avultavam cada vez mais, ao passo que se aproximava o momento de se realizarem. O fanatismo conhecia que errara, em parte, o golpe, vendo que a maioria dos infiéis preferiam a emigração a pedirem o batismo e a fingirem-se convertidos. O desejo de impedir os efeitos do primeiro erro deu assunto a sérios debates no conselho de D. Manuel, onde, como sucedera já em tempo de D. João II, havia dois partidos opostos, ao menos numeroso dos quais o ânimo d’elrei visivelmente se inclinava. A questão reduzia-se, agora, só aos judeus. Quanto aos sectários de Mafoma, irmãos em crença e em raça dos mouros d’África, podendo considerar-se como um fragmento das nações do Moghreb, tinham quem pudesse vingar amplamente as injúrias e males feitos aos correligionários e quase compatrícios de uma parte dos povos muçulmanos. Neste ponto, o fanatismo recuava covardemente diante do temor das represálias. Nos judeus, sim; nesses podia cevar os seus furores, porque não tinham pátria, nem proteção, nem amigos(25). Havia, porém, muitos membros do conselho que a favor deles invocavam os preceitos bem interpretados da religião e os princípios da moral e da equidade. Entre os que mais energicamente sustentavam as boas doutrinas distinguia-se um antigo conselheiro de D. João II que continuara a servir naquele cargo o seu sucessor. Era D. Fernando Coutinho, regedor das justiças e, depois, bispo de Silves. Ele e os membros mais ilustrados do conselho tinham sido sempre acordes em rejeitar os alvitres calculados para compelir indiretamente os judeus a pedirem o batismo. Parecia aos velhos jurisconsultos que todas essas perseguições, quando na aparência fossem eficazes, não serviriam, realmente, para converter ao cristianismo um único sectário da lei de Moisés. «No batismo recebido violentamente — diziam eles — pode haver o carácter, mas falta o essencial do sacramento, e a violência que invalida qualquer conversão não consiste somente em dar punhadas nos peitos.»(26) Estas razões, porém, de alta filosofia cristã e os argumentos deduzidos do direito comum, tudo caiu diante da inflexibilidade d’elrei, que positivamente declarou estar resolvido a empregar quaisquer meios para compelir os judeus a entrarem no grêmio católico. «Não me importa o direito: — replicava ele. — Tenho devoção de assim o fazer, e há-de cumprir-se a minha vontade.»(27) Diante disto, era impossível ouvirem-se os brados da razão e da justiça. Os alvitres mais atrozes foram os que se adotaram de preferência, e, dissolvendo o conselho, que se ajuntara em Estremoz, elrei partiu para Évora, onde devia mandar pôr em execução as resoluções tomadas(28).

Estas cousas passavam-se em fevereiro de 1497. No princípio de abril expediram-se ordens para que em todo o reino se tirassem aos judeus que tinham preferido o desterro ao batismo os filhos menores de quatorze anos, para que se distribuíssem pelas cidades, vilas e aldeias, entregando-os a pessoas que os educassem na crença cristã. Enquanto esta providência tirânica se dava à execução empregavam-se outros meios, não mais fortes, mas diretos, para obstar a que as vítimas do fanatismo pudessem escapar. Tendo-se designado como pontos d’embarque o Porto, Lisboa e o Algarve, declarou-se que Lisboa seria o único porto d’onde se permitiria aos judeus seguir viagem e tratou-se ocultamente de fazer com que aí faltassem não só os navios suficientes, mas também os objetos necessários para eles se aparelharem e proverem. Este procedimento de D. Manoel era o cúmulo da vilania, porque, segundo vimos, na lei pela qual se ordenara a expulsão dos judens dentro de um prazo limitado e sob pena de morte e confisco, o governo se obrigara solenemente a facilitar todos os recursos para tornar possível o cumprimento dessa cruel resolução. Com argumentos de tal ordem, era impossível que os sectários de uma religião que, por séculos, fora a única verdadeira e da qual o cristianismo nascera, não abrissem os olhos e se convencessem da superioridade dessa crença, cujos cultores tão facilmente desobedeciam às suas máximas de tolerância, liberdade e justiça(29).

Antes de se expedirem as ordens para os filhos das famílias hebréias serem arrancados à força do seio de suas famílias, alguns rumores tinham transpirado acerca deste inaudito atentado. A nova espalhou-se por todos os ângulos do país, e os ameaçados judeus começaram, no meio do seu terror, a tomar as poucas precauções que o aperto do tempo e das circunstâncias lhes permitia. A tormenta não tardou, porém, a desfechar. Fácil é de supor como os atrozes mandados de D. Manoel seriam executados, suposta a malevolência popular contra aquela infeliz raça. Os gritos das mães de cujos braços arrancavam os filhinhos, os gemidos, os ímpetos da desesperação dos pais e irmãos, as lutas dos mais audazes, as súplicas e lágrimas inúteis dos mais tímidos convertiam o reino numa espécie de teatro, onde se representava um drama incrível, fantástico, diabólico. As índoles mais duras, os espíritos mais ardentes entre a população hebraica, levando a resistência até o delírio, preferiam despedaçar os filhos, estrangulá-los, ou precipitá-los no fundo de poços a entregá-los aos oficiais régios. Do contato de dous fanatismos contrários a mão onipotente do rei fizera brotar o filicídio. Entretanto, o espetáculo de tantas cruezas inspirava por várias partes a compaixão nos corações que o ódio não tinha inteiramente empedernido. Houve entre os cristãos quem, lembrando-se da caridade evangélica, escondesse grande número de crianças a ponto de serem arrebatadas dos braços paternos e que, por um movimento sublime de piedade, se expusesse à cólera d’elrei. Mas eram impulsos de generosidade que não podiam ser freqüentes, e à tirania restavam ainda sobejas vítimas para cevar-se. «Eu próprio vi — dizia, mais de trinta anos depois, um prelado venerável — os pais, com as cabeças metidas nos capuzes, em sinal de suprema dor e de luto, que conduziam seus filhos à cerimônia do batismo, protestando e chamando a Deus por testemunha de que eles, pais e filhos, queriam morrer na lei de Moisés.»(30) As primeiras ordens, que limitavam aquela espécie de rapto às crianças de menos de quatorze anos, ou por insinuações secretas ou por excesso dos oficiais públicos, foram ampliadas, aplicando-se aos mancebos e raparigas até a idade de vinte anos(31). No decurso desta perseguição os judeus conheceram a dura sorte que os esperava. Queriam compeli-los, fosse como fosse, a aceitarem o batismo. Os que tinham recursos ou se lhes facilitava qualquer ensejo de embarcar ocultamente faziam-no à custa de todos os sacrifícios. Foi assim que grande número deles alcançaram evitar as últimas violências que lhes preparavam(32).

No meio destes sucessos o prazo fatal aproximava-se, e os chefes das principais famílias hebréias que não tinham podido sair a ocultas do país importunavam elrei para que cumprisse as solenes promessas que expontaneamente fizera na lei d’expulsão, ordenando que se lhes subministrassem navios ou, pelo menos, se lhes permitisse mandarem-nos afretar à sua custa. O governo respondeu-lhes afinal que se dirigissem todos a Lisboa, onde essas promessas que invocavam seriam realizadas. Fizeram-no assim. Mais de vinte mil, conforme as memórias coevas, chegaram a entrar sucessivamente nos Estáos(33).

Aqueles a quem os esbirros régios não tinham ainda tirado os filhos viram aqui arrancarem-lh’os dos braços, sem distinção de sexo nem de idade(34). O fanatismo conduzira àquele recinto as famílias que não tinham podido fugir, para aí celebrar uma festa digna de canibais. Numa espécie de delírio, depois de batizarem violentamente a mocidade hebréia, passaram aos homens feitos e aos velhos: os que resistiam eram arrastados pelos cabelos à pia batismal(35). A maior parte, porém, desses malaventurados, postos entre a cominação da morte, a que a lei os condenava, se não saíssem do reino, e os obstáculos levantados pelo legislador para que a obediência se tornasse impossível, curvaram a cabeça e deixaram-se precipitar na voragem. De mais de vinte mil pessoas apenas sete ou oito caracteres heróicos, cujos nomes o tempo escondeu, resistiram impertérritos até a extremidade. A tirania recuou diante de uma constância digna de melhor causa, e a estes sete ou oito indivíduos mandou o governo dar navio que os transportasse à África(36).

O sacrifício estava consumado. O grito do remorso não tardou a levantar-se no seio do rei de Portugal. Os atos que se acabavam de praticar eram, não só uma afronta ao cristianismo, mas também um protesto absurdo contra a política de tolerância que durante quatro séculos predominara no país. Não somente os hebreus espanhóis, mas também aquela parte da população portuguesa que era a mais rica e industriosa, ou fugira a ocultas ou padecera perdas irreparáveis nas fases da perseguição por que tinha passado. Humilhados e oprimidos, os judeus aí ficavam expostos à malevolência popular, que não tardaria a acusá-los de um fato não-condenável diante da razão suprema, mas criminoso diante dos homens, o voltarem em segredo aos ritos da religião que em público haviam sido forçados a abandonar. D. Manoel, sem remediar o mal que tinha feito, procurou suavizá-lo. A 30 de maio de 1497 apareceu uma provisão em que se estatuíam importantes providências a favor dos convertidos. Proibia-se aos magistrados que durante vinte anos sindicassem do seu procedimento religioso, para que tivessem tempo de se esquecerem das antigas crenças e de se confirmarem na fé cristã. Era isto confessar autenticamente que esses infelizes haviam sido violentados a mudar de culto, e reconhecer que, tendo-se-lhes dado apenas alguns dias para aceitarem o batismo, eram necessários vinte anos para que acreditassem na eficácia dele. Provia-se, também, a que, passado aquele longo prazo, ao cristão-novo acusado de judaizar fosse aplicável a ordem de processo adotada acerca dos outros crimes que se julgavam nos tribunais civis, isto é, que se lhe declarassem os nomes das testemunhas e quais os seus depoimentos, de modo que ele pudesse contrariá-las, devendo, além disso, a denúncia dar-se dentro de vinte dias depois do delito cometido, sem o que não seria recebida. Ordenava-se que, dado o caso de ser o delinqüente condenado a perdimento de bens, os recebessem os seus herdeiros cristãos, e não o fisco; bem entendido, sendo o crime puramente religioso. O rei prometia que nunca mais se tornaria a legislar acerca dos judeus como raça distinta. O uso dos livros hebraicos ficava permitido aos médicos e cirurgiões novamente convertidos ou que de futuro houvessem de converter-se, porém não aos que só depois da conversão se aplicassem a tais ciências. Uma anistia geral para todos os conversos terminava aquela série de providências, com a restrição de não ser aplicável aos que viessem de fora, o que evidentemente dizia respeito aos refugiados espanhóis perseguidos pela Inquisição, os quais D. Manuel oferecia em holocausto à predileta do seu coração, à nora de D. João II, o destruidor da sua família(37).

Apesar destas demonstrações de indulgência, com que se pretendia disfarçar o horror das cometidas violências, a situação das vítimas não deixava de ser altamente opressiva. Sectários da lei mosaica, eram obrigados a simular nos atos da vida externa o cumprimento dos deveres do catolicismo, e só na solidão, no mais recôndito das suas moradas ou pelas trevas da noite, podiam invocar em voz submissa o Deus de Israel. A letra da lei destinada a protegê-los provava que o próprio legislador não cria na realidade da sua conversão, e, como ele, ninguém a podia acreditar. Assim, no ânimo do vulgo, aos antigos ódios, nascidos em grande parte de causas materiais, viriam ajuntar-se as suspeitas, aliás razoáveis, de que as preces e os ritos cristãos na boca e nas exterioridades dos conversos não passavam de blasfêmia e d’escárnio. Longe, por isso, de se minorarem, aqueles ódios deviam crescer. Por outro lado, a Inquisição como se estabelecera em Castela tinha parciais em Portugal, e o fanatismo devia desde logo pensar seriamente em obter para o reino instituições análogas. O seu interesse era assoalhar quaisquer fatos de judaísmo que se praticassem, e levar ao último auge a indisposição dos cristãos velhos contra os novos. A lei podia durante vinte anos pôr estes a abrigo das perseguições individuais; mas o que não podia era impedir que a opinião pública se fosse preparando para no futuro considerar justo e conveniente puni-los por judaizarem. Demais, desde que eram considerados legalmente como membros da igreja católica estavam sujeitos, se delinquissem nas cousas da fé, às penas canônicas e civis fulminadas contra os hereges. Assim, dado o exemplo no resto da Península, fácil era de prever, num futuro mais ou menos próximo, o estabelecimento da Inquisição em Portugal.

As conseqüências deste estado de cousas eram óbvias. Passado o primeiro terror, os mais prudentes entre os cristãos-novos começaram a cuidar seriamente em preparar-se para evitar a última ruína. O único meio seguro era porem em salvo as vidas e as fortu nas, convertendo os seus bens em dinheiro ou em mercadorias que gradualmente fizessem sair do país, e transportando-se, depois, com as suas famílias para a Itália, para Flandres ou para o Oriente, onde encontrariam asilo e tolerância religiosa. Porventura, o desejo de se libertarem de uma situação insofrível mais depressa do que convinha precipitou-os em novas dificuldades. Os que eram opulentos, alienando as propriedades territoriais ou realizando imprudentemente o valor de mercadorias e transferindo, por via de letras de câmbio, os seus cabedais para fora do reino, inspiravam suspeitas ao poder, que observava com inquietação os efeitos das violências passadas. Julgou-se indispensável atalhar o mal com outras violências; nem a diversos meios se podia recorrer depois de uma conversão forçada. Publicaram-se dous alvarás com data de 21 e 22 de abril de 1499, proibindo a naturais e a estrangeiros que fizessem câmbios com os cristãos-novos sobre mercadorias ou dinheiro e ordenando que os já feitos se denunciassem dentro de oito dias; que ninguém lhes comprasse bens de raiz sem licença régia especial; que, finalmente, a nenhum dos novos conversos se consentisse o sair do reino com mulher, filhos e casa, sem permissão expressa d’elrei. A pena de confisco sancionava estas diversas providências(38). Assim, a tirania gerava a iniquidade. Tendo cessado pela conversão as leis civis que regulavam os direitos e deveres da raça hebréia, considerada até aí como uma sociedade à parte, os judeus tinham entrado, não só naturalmente, mas também em virtude de lei expressa, no direito comum. Todavia, dentro de dous anos o poder via-se constrangido a revogar a lei e o direito, pondo essa classe de indivíduos numa condição quase servil e privando-a inteiramente de uma das mais importantes liberdades do resto dos cidadãos.

Estas providências criavam uma luta entre a vigilância do governo e a astúcia dos judeus, luta na qual, mais de uma vez, a primeira havia de ficar vencida. Afora os diversos expedientes a que, em geral, os cristãos-novos podiam recorrer, querendo iludir as provisões dos alvarás de 20 e 21 de abril, havia, em particular, para os opulentos a corrupção dos oficiais públicos ou de outras pessoas que, a troco de largas recompensas, se arriscassem a favorecê-los na fuga, com desprezo da lei. As tentativas deste gênero não foram, todavia, sempre felizes, e houve indivíduos processados por transportarem famílias hebréias do Algarve para Berbéria(39). Uma caravela carregada de cristãos-novos, que saíra de Portugal para África, batida pelos temporais arribou aos Açores, e os infelizes passageiros, presos aí e condenados depois a serem escravos, foram dados de presente por elrei a Vasqueanes Corte-real(40). Entretanto, alguns prelados criam cumprir as obrigações do ofício pastoral, sindicando do procedimento desses homens, que na aparência pertenciam aos seus respectivos rebanhos, enquanto outros as cumpriam efetivamente, procurando instrui-los e convencê-los, únicos meios de proselitismo acordes com a verdade evangélica, e que, porventura, a Providência abençoou muitas vezes com o fruto de conversões sinceras(41).

Tantos vexames e tiranias não satisfaziam, contudo, nem o fanatismo, nem os rancores populares, que ele não deixava amortecer. Se, por um lado, os conversos procuravam iludir as providências destinadas a amarrá-los ao poste do martírio, e fixá-los nesta terra que para eles se tornara em lugar de desterro, a malevolência não respeitava, por outro, as prescrições da provisão de 30 de maio de 1497, com que se pretendera atenuar os efeitos de uma loucura cruel, e os próprios magistrados procediam às vezes contra aqueles sobre quem recaíam suspeitas de praticarem secretamente os ritos do judaísmo. É curioso um documento que a este respeito resta. No dia de nata) de 1500, em Cintra, um rapaz viu passar quatro crianças, filhos de cristãos-novos, levando lume consigo. Seguiu-os e viu-os entrar para uma casa detrás dos paços reais. Entrando após eles pouco depois, achou que tinham pendurado uma cortina na parede, colocado ante ela a cabeça truncada de uma imagem e diante desta dous rolos de cera acesos. Veio ao pai: contou-lhe o que vira. A gravidade do caso obrigou este a denunciar esse fato à justiça no dia seguinte. Havia pregado naquela manhã em S. Pedro de Penaferrim um frade, o qual, segundo parece, invectivara piedosamente contra os judeus e, como prova da maldade dessa raça abominável, referira que em dia de S. Tomé, ao romper d’alva, se haviam visto sair do paço seis ou sete cristãos-novos descalços, ignorando-se para onde iam, sucesso estranho, que vogara logo por toda a vila. Esta delação, vinda do alto do púlpito, não era menos ridícula do que a relativa às quatro crianças. Todavia, achou-se nisto matéria suficiente para abrir uma devassa. Evidentemente, debaixo dessa delação absurda havia um pensamento malévolo, e os cristãos-novos de Cintra buscaram o amparo dos tribunais superiores. Não tardou uma ordem d’el-rei para que o começado processo fosse transmitido aos seus desembargadores do paço. Examinado o negócio, o tribunal repreendeu severamente os juízes de Cintra, não só por terem inquirido testemunhas indignas, mas também por procederem em contravenção da lei, advertindo-os de que a reincidência em tais atos seria asperamente punida(42).

Este sucesso e muitos outros análogos que encontraremos no progresso da nossa narrativa parece confirmarem o que, anos depois, os cristãos-novos alegavam em Roma, para provarem as perseguições de que os ódios populares, acendidos pelas prédicas dos frades, principalmente dos dominicanos, os tinham tornado vítimas desde o reinado de D. Manuel(43). Que a maioria desses pseudo-cristãos judaizassem em segredo é mais que provável; é moralmente certo: mas que o descobrir o fato fosse fácil aos seus inimigos é o que razoavelmente se não pode crer. A calúnia devia, portanto, fazer seu ofício, e esse mesmo mistério de que os judeus tinham de rodear-se dava, por efeito da imaginação, caracteres sinistros aos ritos mosaicos, que, enquanto permitidos e públicos, eram, a bem dizer, indiferentes para a população cristã. Quanto mais absurdas fossem as lendas que a esse respeito se repetissem, mais crédito mereceriam ao verdadeiro. As insinuações do fanatismo lavraram, portanto, facilmente nos ânimos prevenidos, e a irritação destes não tardou a manifestar-se de modo terrível.

Lisboa, não só pela sua grandeza relativa, mas também pelos sucessos ocorridos em 1497, devia, proporcionalmente, encerrar no seu recinto maior número de famílias hebréias que nenhuma outra povoação do reino. As diversas causas de excitamento popular contra os cristãos-novos obravam, por isso, aqui com maior violência, até porque a vigilância dos magistrados e tribunais superiores obstava melhor na corte aos excessos do ódio e, obrigando-o a reconcentrar-se sem o destruir, dava-lhe novas forças. Como os vulcões, ora dormentes, depois murmurando com fugitivos abalos respiram apenas por uma ou por outra fenda as matérias vulcânicas e, afinal, rebentando em erupção violenta, lançam em turbilhões a lava e o fumo por todo o âmbito da negra cratera, assim a má vontade do vulgacho. Silenciosa a princípio, começou a manifestar-se na injúria e, recalcada, veio a rebentar em cenas de atrocidade. Os sintomas da futura erupção começavam. No dia de Pentecostes (25 de maio de 1504) alguns conversos achavam-se na rua nova, então a principal de Lisboa, quando subitamente se viram rodeados de uma turba de rapazes, nenhum dos quais passava de 15 anos. Do meio dessa turba começaram a chover sobre eles as afrontas e os motejos. Menos paciente, um dos injuriados tirou da espada e feriu cinco ou seis dos agressores. Suscitou-se um tumulto, mas, acudindo o governador da justiça com os seus oficiais, pôde atalhar o incêndio. Foram presos quarenta moços, e instaurou-se-lhes processo. A devassa a que se procedeu provou a inocência dos agredidos. Apesar da idade dos réus, o tribunal condenou-os a açoutes e a degredo perpétuo para S. Tomé. As súplicas da rainha fizeram, porém, com que elrei lhes perdoasse a última parte da pena(44).

Ao passo que os indivíduos de origem hebréia estavam assim expostos aos insultos da gentalha, a Inquisição d’Espanha, devorada da sede insaciável de sangue, forcejava por colher às mãos aqueles que, perseguidos por ela, vinham buscar asilo em Portugal. Fosse qual fosse aqui a situação dos judeus, os refugiados evitavam, ao menos, as dilatadas agonias dos cárceres e tormentos e o atroz suplício do fogo. A Torquemada sucedera D. Diogo Deza no cargo d’inquisidor geral, e a intolerância e o fanatismo do furioso dominicano tinham achado nele um digno representante. Deza, sem ser menos cruel que o seu predecessor, excedia-o em atividade(45). A facilidade com que se transpunham as fronteiras dos dous países fazia abortar muitas vezes os desígnios de perseguição, e as sentenças do tribunal da fé ficavam sem execução ou tinham-na, apenas, nessas farsas, ao mesmo tempo ferozes e ridículas, a que chamavam queimar em estátua. Doía a alma aos inquisidores de ver escaparem-lhes tantas vítimas; trabalharam, portanto, em obstar ao mal. Atendendo às suas queixas, a corte de Castela resolveu entabolar negociações a este respeito com a de Portugal. Talvez em virtude de convenções anteriores, já no ano de 1503, D. Manuel expedira um alvará cujos fins evidentemente eram obstar à entrada dos judeus perseguidos pela Inquisição. Nele se ordenava sob graves penas que nenhum castelhano fosse admitido a passar a fronteira para fixar a sua residência em Portugal, sem preceder uma justificação de que não estava culpado no seu país por crimes contra a religião(46). Estes obstáculos, porém, que assim se buscavam levantar à entrada dos perseguidos eram mais de nome que de substância. Por muita que fosse a severidade de que o governo português usava contra os refugiados, essa severidade era inferior ao martírio. Assim a emigração continuava(47), ao passo que o rei de Castela, instigado pelos inquisidores, exigia a entrega dos foragidos, invocando as capitulações que existiam entre os dous países para a extradição dos criminosos. Ou porque os impulsos da humanidade tivessem prevalecido nos conselhos de D. Manuel, ou porque as conveniências a isso o movessem, o governo português recusou aceder à pretensão, com o fundamento de que esses indivíduos não estavam incluídos na letra dos tratados. De resto, D. Manuel oferecia o arbítrio de virem os agentes da Inquisição persegui-los judicialmente em Portugal, onde também se podia fazer deles justiça. Recorreu-se então à bula de 3 de abril de 1487, pela qual se ordenava a todos os príncipes entregassem à Inquisição os judeus espanhóis refugiados nos seus respectivos estados, bula cujas inumanas provisões já D. João II desprezara completamente. Segundo parece, D. Manuel seguiu nesta parte as doutrinas do seu antecessor; porque não consta terem tido resultado os esforços dos inquisidores castelhanos e do seu agente, o fanático rei de Aragão(48).

Estas negociações e o seu nenhum resultado estão indicando que os ímpetos da intolerância tinham afrouxado na corte de Portugal. Não assim entre o povo, excitado pelo fanatismo monástico e pelos antigos ódios. O incêndio ardia debaixo das cinzas: o menor incidente bastaria para alevantar as chamas; e este incidente não tardou a aparecer.

Era na primavera de 1506. A irregularidade das estações nos dous anos antecedentes, irregularidade que se protraiu até o ano seguinte, deu em resultado a fome. Ainda naquela época a falta de subsistências trazia, em regra, por companheiro um flagelo, então trivial, não só por esta, mas também por outras causas. Era a peste. Já no outono de 1505 se manifestavam em Lisboa os sintomas do terrível mal. A corte, fugindo ao perigo à medida que ele se aproximava, passara sucessivamente para Almeirim, Santarém e Abrantes. D’ali elrei, atravessanda o Tejo, dirigia-se a Beja, onde então residia a infanta D. Beatriz, sua mãe, quando ao chegar a Avis vieram salteá-lo novas tão espantosas como inesperadas. Um motim popular contra os cristãos-novos rebentara em Lisboa, e esse motim fora assinalado por cenas horríveis. Tomadas as providências mais urgentes, e passando rapidamente por Beja, D. Manuel veio fixar a sua residência em Setúbal, resolvido a proceder severamente contra os habitantes da capital. Eis os fatos que, suscitando a indignação delrei e exigindo exemplar castigo, resultaram dos inquéritos a que se procedeu, logo que foi possível conter o tumulto e restabelecer a paz.(49)

Desde janeiro que a peste redobrava de intensidade em Lisboa, e nos princípios de abril era tal o progresso da epidemia que a mortalidade subia alguns dias ao número de 130 indivíduos. Faziam-se preces públicas, e a 15 do mês ordenou-se uma procissão de penitência, que, saindo da igreja de S. Estevam, se recolheu na de S. Domingos, seguindo-se a celebração de preces solenes. Durante elas, o povo implorava em gritos a misericórdia divina. No altar da capela chamada de Jesus havia naquele tempo um crucifixo, e no lado da imagem do Salvador um pequeno receptáculo, que servia de custódia a uma hóstia consagrada. No excesso da exaltação religiosa houve quem cresse ver aí, e talvez visse, uma luz estranha. Espalhou-se logo voz de milagre. Ou que os dominicanos, aproveitando a ilusão, realizassem artificialmente a suposta maravilha ou que a credulidade, fortalecida pelos terrores da peste, predispusesse cada vez mais a imaginação do vulgo para ver aquele singular clarão, é certo que ainda nos dias seguintes havia quem afirmasse divisá-lo perfeitamente. Todavia, o voto mais comum era que essa maravilha não passava de uma fraude, e ainda muitos dos mais crentes suspeitavam que o fato existira apenas nas imaginações escandecidas(50). Durante quatro dias a crença no prodigio foi ganhando vigor. No domingo seguinte ao meio dia, celebrados os ofícios divinos, examinava o povo a suposta maravilha, contra cuja autenticidade recresciam suspeitas no espírito de muitos dos espectadores. Achava-se entre estes um cristão-novo, ao qual escaparam da boca manifestações imprudentes de incredulidade acerca do milagre. A indignação dos crentes, excitada, provavelmente, pelos autores da burla(51), comunicou-se à multidão. O miserável blasfemo foi arrastado para o adro, assassinado, e queimado o seu cadáver. O tumulto atraíra maior concurso de povo, cujo fanatismo um frade excitava com violentas declamações. Dous outros frades, um com uma cruz, outro com um crucifixo arvorado, saíram então do mosteiro, bradando heresia, heresia! O rugido do tigre popular não tardou a reboar por toda a cidade. As marinhagens de muitos navios estrangeiros fundeados no rio vieram em breve associar-se à plebe amotinada. Seguiu-se um longo drama de anarquia. Os cristãos-novos que giravam pelas ruas desprevenidos eram mortos ou mal feridos e arrastados, às vezes semi-vivos, para as fogueiras que rapidamente se tinham armado, tanto no Rocio como nas ribeiras do Tejo. O juiz do crime, que com os seus oficiais pretendera conter o motim, apedrejado e perseguido, teria sido queimado com a própria habitação, se um raio de piedade não houvera momentaneamente tocado o coração do tropel furioso que o perseguia, ao verem as lágrimas da sua esposa, que, desgrenhada, implorava piedade. Os dous frades(52) enfureciam as turbas com os seus brados, e guiavam-nas com atividade infernal naquele tremendo lavor. O grito da revolta era: Queimai-os! Quantos cristãos-novos encontravam arrastavam-nos pelas ruas e iam lançá-los nas fogueiras da Ribeira e do Rocio. Nesta praça foram queimadas nessa tarde trezentas pessoas e às vezes, num e noutro lugar, ardiam a um tempo grupos de quinze ou vinte indivíduos(53). A ebriedade daquele bando de canibais não se desvaneceu com o repouso da noite. Na segunda-feira as cenas da véspera repetiram-se com maior violência, e a crueldade da plebe, incitada pelos frades, revestiu-se de formas ainda mais hediondas. Acima de quinhentas pessoas tinham perecido na véspera: neste dia passaram de mil. Segundo o costume, ao fanatismo tinham vindo associar-se todas as ruins paixões, o ódio, a vingança covarde, a calúnia, a luxúria, o roubo. As inimizades profundas achavam no motim popular ensejo favorável para atrozes vinganças, e muitos cristãos-velhos foram levados às fogueiras com os neófitos judeus. Alguns só obtinham salvar-se mostrando publicamente diante dos assassinos que não eram circuncidados(54). As casas dos cristãos-novos foram acometidas e entradas. Metiam a ferro homens, mulheres e velhos: as crianças arrancavam-nas dos peitos das mães e, pegando-lhes pelos pés, esmagavam-lhes o crânio nas paredes dos aposentos. Depois saqueavam tudo. Aqui e acolá, viam-se nas ruas alagadas de sangue pilhas de quarenta ou cinqüenta cadáveres que esperavam a sua vez nas fogueiras. Os templos e os altares não serviam de refúgio aos que tinham ido acoutar-se à sombra deles e abraçar-se com os sacrários e imagens dos santos. Donzelas e mulheres casadas, expelidas do santuário, eram prostituídas e depois atiradas às chamas(55). Os oficiais públicos que por qualquer modo buscavam pôr diques a esta torrente de atrocidades e infâmias escapavam a custo, pela fuga, ao ímpeto irresistível das turbas concitadas, porque, além da gente dos navios estrangeiros, mais de mil homens da plebe andavam embebidos naquela carnificina. A noite, que descia, veio, afinal cobrir com o seu manto este espetáculo medonho, que se renovou no dia seguinte. Mas já as hecatombes eram menos freqüentes, porque escasseavam as vítimas. Os cristãos-velhos que ainda acreditavam em Deus e na humanidade tinham aproveitado o cansaço dos algozes para salvar grande número daqueles desgraçados, escondendo-os ou facilitando-lhes a fuga, inútil até certo ponto, porque ainda vários deles foram assassinados nas aldeias circunvizinhas. Até a terça-feira à tarde o número dos mortos orçava por dous mil indivíduos(56). À medida que faltavam alfaias que roubar, mulheres que prostituir, sangue que verter, a multidão asserenava, e os filhos de S. Domingos, recolhendo-se ao seu antro, iam repousar das fadigas daquele dia.

Não era, porém, só o cansaço e a falta de vítimas que induziam as turbas à moderação. O regedor da justiça, Ayres da Silva, e D. Álvaro de Castro, governador da casa do cível, tinham-se a este tempo aproximado de Lisboa com os oficiais de justiça e gente armada, e, fazendo alto junto às muralhas contíguas a S. Vicente de Fora, haviam mandado lançar pregão para que os cidadãos pegassem em armas e fossem reunir-se à força pública, sob pena de perdimento de seus bens. Os moradores da capital estranhos à carnificina e, talvez, alguns dos próprios assassinos, corriam a apresentar-se no campo junto de S. Vicente. Assim, o temor devia fazer esfriar os ardores do fanatismo. Alguns frades, porventura comprometidos naqueles negros sucessos, buscaram ser medianeiros entre a gentalha e a força pública. Acordaram com eles os magistrados que a revolta acabaria prometendo-se a impunidade, promessa que equivaleria à quebra de todas as leis do mundo moral, se não fosse o único meio de restabelecer o sossego e de facilitar a punição dos culpados(57).

Entretanto o prior do Crato e o barão de Alvito partiram para Lisboa por ordem delrei, com largos poderes. Convocando os juízes criminais, os dous comissários régios mandaram proceder a severas investigações. Não tardou que fossem presos os mais notáveis entre os facinorosos. Julgados sumariamente, foram logo enforcados de quarenta a cinqüenta, sendo decepadas as mãos a alguns, e esquartejados outros(58). Presos, também, os dous dominicanos que haviam capitaneado a plebe, levaram-nos a Setúbal, e d’ali a Évora, onde privados das ordens, os condenaram a garrote e a serem queimados os seus cadáveres. Os outros dominicanos de Lisboa foram expulsos do convento, que se entregou à administração de clérigos seculares, sendo inibidos ao mesmo tempo os frades de tornarem à capital, prova de que tinham influído direta ou indiretamente no crime. Uma carta de lei, expedida a 22 de maio, condenou finalmente Lisboa a perder grande parte dos antigos privilégios, por causa da indiferença ou da covardia com que os seus habitantes haviam tolerado os atentados da plebe. Os que intervieram de algum modo no motim, dando-lhe favor e ajuda, tiveram por pena o perdimento de todos os seus bens para o fisco(59), e à casa dos vinte quatro tirou-se a prerrogativa de intervir pelos seus representantes nas deliberações municipais. Debalde a câmara enviou a elrei um dos seus membros a pedir misericórdia para a capital. D. Manuel declarou-lhes que era necessário dar ao mundo aquele exemplo de rigor, por um lado contra tantas atrocidades dos maus, por outro lado contra tanta negligência dos que não o eram. Assim, a lei de 22 de maio foi dada à execução(60). As manifestações, porém, da indignação do monarca afrouxaram passados cinco meses, e foi justamente naquela providência em que devera mostrar mais inflexibilidade de que elrei principiou a ceder. Mandou-se restituir o convento de S. Domingos em Lisboa à ordem dos pregadores, com a restrição de não voltarem a ele os frades que ali residiam na conjuntura do motim(61).

Os meios diretos e indiretos que se haviam empregado para obter dos judeus uma conversão falsa e sacrílega e para obstar à sua saída do reino tinham sido, a todas as luzes, uma bárbara tirania; mas, quando o resultado de tão atroz sistema se completava pelas cenas de extermínio que temos descrito, era impossível que os remorsos não lacerassem o coração de D. Manuel e daqueles que aplaudiam ou aconselhavam esta política anticristã. Evidentemente o fanatismo ou, antes, a hipocrisia não se contentava com a opressão e o sacrilégio queria a espoliação e o sangue. Os dominicanos tinham usado de uma terrível eloqüência, hasteando o símbolo da redenção e a imagem do Salvador para à sombra dessa imagem abrigarem o roubo, a prostituição e o assassínio. Todas as idéias religiosas e morais estavam invertidas. Reter à força os pseudo-cristãos-novos em Portugal era renovar deliberadamente essa época em que os mártires caíam despedaçados pelas feras nos circos romanos. Só os atores mudariam. Nada mais natural, portanto, do que modificarem-se as opiniões do rei de Portugal. Os clamores daquela raça proscrita foram, enfim, ouvidos. A ordenação pela qual se estatuira que nenhum cristão-novo saísse do reino sem permissão régia, a que lhes vedava venderem os bens de raiz e a que os inibia de converterem capitais em letras de câmbio, tudo foi revogado. Deu-se-lhes ampla licença para saírem, definitiva ou temporariamente do país, irem, virem, mercadejarem por mar ou por terra, como lhes aprouvesse, alienarem os seus bens, transferirem os cabedais em dinheiro ou em mercadorias, contanto que fosse para terra de cristãos e em navios portugueses. E, todavia, o monarca prometia nunca mais promulgar leis excepcionais acerca dos que continuassem a residir em Portugal. Os que, contra as defesas que lhes haviam sido postas, tinham fugido do reino, poderiam voltar a ele sem receio de castigo, e deviam desde logo cessar as fianças daqueles a quem as tinha exigido com temor de que fugissem. Em suma, os súditos portugueses de raça judaica ficavam equiparados aos outros, sendo-lhes aplicável, em tudo e por tudo, o direito comum(62). Além disso, os privilégios que por vinte anos se haviam concedido aos neófitos convertidos à força em 1497, nomeadamente o de não devassarem acerca do seu procedimento religioso, foram suscitados de novo e solenemente promulgados, para serem cumpridos à risca nos dez anos que faltavam, pondo-se em todo o seu vigor(63).

Estas demonstrações de benevolência e de arrependimento das passadas tiranias, ao mesmo tempo que eram para os cristãos-novos um lenitivo no meio de tantas amarguras, criavam-lhes esperanças enganosas para o futuro, fazendo-lhes crer que a intolerância e os ódios brutais do povo excitado pelos frades obrigariam o poder público a protegê-los com redobrada energia. Persuadiram-se de que a opinião do vulgo, radicada pela lembrança de antigos agravos, mantida e generalizada pela poderosa influência do clero, poderia ser vencida pelas sãs idéias da política judiciosa que, num momento de indignação e horror, D. Manuel adotara. Iludia-os, por certo, o desejo de não abandonarem o país, retidos por essa multidão de afetos que prendem o homem à terra natal. Comerciantes, industriais, proprietários, exercendo profissões científicas, constituindo, enfim, a melhor parte do que hoje chamamos classe média, os seus interesses deviam padecer altamente com a expatriação, e nenhuma raça mostrou nunca tanto sofrimento, tanto esforço em arrostar com todos os riscos para salvar ou aumentar a própria fortuna como a gente hebréia. Propensões, a bem dizer irresistíveis, levavam, portanto, assim os judeus portugueses, como os espanhóis que tinham adotado Portugal por pátria, a adormecerem na cratera de um vulcão que, talvez, supunham ia ser extinto, porque sossegara, depois de violenta erupção. Desprezando a liberdade que, num impulso de tolerância, se lhes concedia, e sacrificando, por esse modo, o futuro às vantagens transitórias do presente, nenhuns ou quase nenhuns saíram do reino(64). Desde logo, porém, os indícios da malevolência popular começaram a aparecer de novo em tentativas isoladas contra alguns deles, não obstante a severidade com que os magistrados tratavam de coibir semelhantes manifestações(65).

Todavia, pode-se dizer que o período decorrido desde 1507 até 1521, época da morte de D. Manuel, foi, comparativamente, para os cristãos-novos uma época de paz. A proteção dada pelo governo aos neófitos era eficaz, e esta proteção estendia-se aos próprios refugiados das outras regiões da Península. Não deixava a Inquisição castelhana de solicitar, às vezes, que lhe fossem entregues e de fazer, como já vimos, intervir nisso o poder civil, intervenção inútil, porque o governo português repelia nobremente essas pretensões que tendiam a desonrá-lo pela quebra da hospitalidade. Um sucesso ocorrido em 1510 prova quão esclarecida política predominava agora nos conselhos de D. Manuel. Pedia a Inquisição de Sevilha, com o favor d’elrei de Castela, que fossem presos e remetidos àquele tribunal, para certas investigações, vários indivíduos que tinham vindo buscar abrigo à sombra da tolerância do governo português. Queria el-rei satisfazer os desejos de Fernando V; mas achou resistência nos do seu conselho, que entendiam não se dever conceder tal cousa, sem que viessem cartas de seguro, civil e eclesiástico, de que os presos não padeceriam pena alguma e de que seriam restituídos a Portugal dentro de prazo fixo. Teve elrei de ceder, e aqueles desgraçados, de quem os inquisidores diziam querer só algumas declarações, foram entregues com todas as prevenções exigidas, e dando juramento o familiar ou esbirro que os veio receber de que ele próprio os restituiria à pátria adotiva, sãos e salvos das garras do Santo-Ofício(66).

Aproveitando estas circunstâncias favoráveis, os cristãos-novos tentaram desarmar os inimigos pelos atos da vida externa. Guardavam restritamente as fórmulas do culto católico, que é de crer o maior número deles não seguisse na vida privada. Buscavam ligar seus filhos por casamentos a famílias de cristãos-velhos, adquirindo assim aliados e defensores entre os próprios adversários. Muitos iam abrigar a sua existência futura à sombra do altar, dedicando-se ao ministério sacerdotal. Se, em secreto, alguns destes continuavam a seguir a lei de Moisés, aquele arbítrio era um sacrilégio; mas a responsabilidade de semelhante crime não recaía sobre eles, recaía sobre os hipócritas ou fanáticos cuja intolerância sanguinária constrangia uma raça tímida e fraca a praticar tais atos. Longe de procurarem pôr a salvo as suas riquezas, os cristãos-novos reduziam-nas a propriedade territorial e alargavam o âmbito do seu comércio e indústria. Não só o rei, mas também a nobreza, talvez iludidos por um procedimento que simulava conversões sinceras e que, em muitos casos, não seria fingido, amparavam-nos e favoreciam-nos(67). Chegou-se a ponto de perdoar, em 1510, a todos os cristãos-novos espanhóis que haviam entrado no reino sem guardarem as formalidades estabelecidas em 1503, só com a restrição de saírem do reino dentro de certo prazo, restrição que, aliás, não parece ter-se guardado com demasiado rigor(68). A prova, porém, mais evidente de que os ministros e conselheiros de D. Manuel tinham, enfim, abraçado idéias razoáveis e justas acerca da raça hebréia está na mercê feita aos cristãos-novos e a seus filhos com a prorrogação do prazo das imunidades que lhes haviam sido concedidas em 1497, prazo que devia terminar em fevereiro de 1518. Uma carta de lei, expedida em 21 de abril de 1512, dilatou por mais dezesseis anos o período de vinte, fixado na conjuntura da conversão forçada, vindo, assim, a findar agora esse prazo em 1534. Os fundamentos da lei dão testemunho da vantagem que levava o sistema de moderação ao da violência. Concedia-se-lhes aquela graça por «viverem bem e honestamente e por guardarem, como fiéis cristãos, os preceitos da religião católica(69).» Se este sistema sensato se houvera seguido com perseverança, as aparências e dissimulações dos judeus ter-se-iam convertido em realidades. Desde que se associavam pelos matrimônios às famílias cristãs, nem a separação de raça, nem a de religião poderiam ter resistido aos efeitos inevitáveis do tempo. Incomparavelmente menos numerosos do que a grande massa da população, esta havia necessariamente de absorvê-los no decurso de algumas gerações, e a crença oculta, sem ritos, sem manifestações materiais, ir-se-ia obliterando no seio do culto católico, tão poderoso sobre as imaginações, e da moral cristã, mais razoável e progressiva do que as doutrinas judaicas.

Mas o espírito de intolerância e perseguição, oprimido pela política adotada depois das atrocidades de 1506, trabalhava em silêncio com tenacidade diabólica. O ódio é perspicaz e, quando a sua perspicácia é iludida, não lhe escasseia a faculdade da invenção. Onde falta matéria para acusações verdadeiras, a calúnia acode-lhe com recursos, tirando essas acusações do nada. Pelas mesmas ligações íntimas que os judeus travavam com as famílias cristãs tornava-se impossível que, uma ou outra vez, não fossem traídos os que, mostrando-se católicos nas exterioridades, se conservavam aferrados à religião da sua infância, e nas ações indiferentes de outros, sinceramente convertidos, saberia, não raro, achar a malevolência indícios de oculto judaísmo. A punição dos assassinos no motim de 1506, sobretudo a dos dous frades seus chefes, e a expulsão dos dominicanos, juntamente com os favores concedidos aos cristãos-novos, eram fatos que deviam exasperar até o último auge os partidários de uma intolerância bárbara. Pertencendo a esta parcialidade indivíduos de todas as condições e jerarquias e, em regra geral, o clero, o fanatismo, a vingança alcançavam, não só alimentar as idéias de perseguição entre o povo, mas também ir dispondo o ânimo de D. Manuel para voltar, com inesperada deslealdade, ao sistema com que desonrara os primeiros anos do seu reinado. Os efeitos destes esforços incessantes provam-nos a sua existência. Os indícios de mudança no ânimo d’elrei começam a aparecer num alvará expedido no mês de junho de 1512, pelo qual se proíbe a aceitação de novas querelas contra os implicados nos assassínios de 1506 e se mandam suspender os processos já começados(70). Este ato de misericórdia podia, contudo, ser calculado para se contrapor às concessões que nessa conjuntura se faziam aos cristãos-novos. Não assim a trama oculta que poucos tempos depois se urdiu. Apesar das garantias de tolerância dadas pelas solenes promessas de 1497, revalidadas em 1509 e prorrogadas em 1512, à vista das quais parecia não deverem os cristãos-novos temer procedimento algum contra quaisquer atos ocultos de judaísmo, com os sintomas de novos ímpetos populares contra os cristãos-novos coincidia a resolução, tomada por elrei, de estabelecer em Portugal a Inquisição d’Espanha. Em 1515 apareceram afixados nos lugares mais freqüentados de Lisboa escritos cujo alvo era concitar o vulgacho contra os judeus. Os ameaçados requereram então que se lançassem pregões, oferecendo o prêmio de 300 cruzados a quem descobrisse o autor ou autores desses papéis sediciosos. Obrigavam-se a pagar eles o prêmio do delator. Entretanto, dizia-se publicamente que, se em Portugal existissem cem mancebos de verdadeiro esforço, todos os cristãos-novos seriam postos a espada. Procediam os magistrados vagarosamente contra estas tentativas para se renovarem as cenas de 1506; mas parece que os próprios judeus, passado o primeiro ímpeto, começaram a recear que esse procedimento severo tivesse piores resultados. Sabiam, naturalmente, quem eram os motores daquelas manifestações malévolas e temiam que, perseguidos, tirassem do perigo ousadia para cometerem abertamente aquilo que, por enquanto, só se atreviam a empreender nas trevas. É assim que se pode explicar a hesitação que mostraram em aprontar a pequena soma que haviam oferecido para se descobrirem os autores das proclamações dirigidas contra eles(71). Tinham, por certo, razão de procederem deste modo para evitarem acender mais a irritação dos ânimos. Nas regiões do poder nuvens pesadas e negras anunciavam novos perigos. A bonança de que haviam gozado por alguns anos corria risco de desaparecer, apesar da segurança real. O fanatismo tinha, enfim, alcançado vencer uma vez o ânimo d’elrei e contava com vingar-se do desbarato que padecera em virtude da sua própria violência. Sem se esquecer de alimentar os ódios populares, ia preparando um desforço menos estrondoso, porém mais seguro. O exemplo do resto da Península, onde a Inquisição, protegida pelo cetro, multiplicava os cárceres e as fogueiras, era argumento fatal a favor da intolerância. A opinião pública do país, que se manifestava apesar dos meios que se punham para a coibir, subministrava, por certo, outro argumento não menos ponderoso. Acrescentem-se a isto as anedotas que deviam vogar sobre os atos secretos de judaísmo praticados pelos conversos, anedotas que, fácil é de crer, nem sempre seriam caluniosas, e que, repetidas e exageradas diariamente aos ouvidos de um príncipe afeiçoado às cousas de religião, como era D. Manuel, haviam de vir, forçosamente, a fazer-lhe viva impressão no espírito. Estas e outras causas, menos fáceis de atingir, tinham induzido, enfim, elrei a pensar seriamente em estabelecer nos seus estados um tribunal análogo aos que se achavam em vigor nos reinos de Castela e Aragão. Tomada uma resolução definitiva, elrei escreveu ao papa e a D. Miguel da Silva, então embaixador de Portugal em Roma, sobre este negócio. Na carta ao papa limitava-se a rogar-lhe instantemente quisesse anuir às súplicas que em seu nome havia de fazer D. Miguel sobre cousas que tocavam à pureza da fé: na que era dirigida ao embaixador ordenava-se-lhe que, solicitando uma bula para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, fizesse examinar nos arquivos da sé apostólica todos os diplomas expedidos para a criação da de Espanha, de modo que os expedidos agora fossem em tudo semelhantes. As causas que, conforme as instruções mandadas ao ministro português, se deviam oferecer para fundamentar a súplica eram que, apesar das providências outr’ora tomadas para que os cristãos-novos espanhóis perseguidos pela Inquisição não entrassem em Portugal, mal se pudera obstar à entrada de grandíssimo número deles; que estes hóspedes forçados, abusando da concedida hospitalidade, continuavam a seguir os ritos judaicos, mais ou menos ocultamente e em maior ou menor extensão; que entre os próprios conversos portugueses não se podia assegurar fossem sempre respeitadas as doutrinas católicas; que, não só a consciência dele impetrante, mas também a do pontífice eram interessadas em que a fé se conservasse em toda a sua integridade e pureza. Reforçando estas considerações, o rei prometia escolher para aquele delicado encargo pessoas de tais letras e virtudes que o papa ficaria tranqüilo acerca da justiça dos seus atos. Exigia-se, enfim, do embaixador que tratasse deste negócio com a maior atividade.(72)

A negrura de semelhante empenho é evidente. Os cristãos-novos, de cujo honesto e religioso proceder o próprio rei dera autêntico testemunho três anos antes, tinham agora mudado! Quando assim fosse, o modo dubidativo com que são acusados nas instruções a D. Miguel da Silva está mostrando que eles respeitavam as exterioridades, e da sua vida privada não se podia inquirir, antes de 1534, sem quebra das mais solenes promessas. Mas, que importava aos fautores da política intolerante que o rei praticasse um ato desonroso para lhes saciar a sede de vingança? Na verdade, depois das concessões feitas aos cristãos-novos em 1507 e, sobretudo, da faculdade que se lhes dera de saírem do reino com famílias e bens, quaisquer providências para os obrigar a seguirem a religião dominante estavam longe de serem tão odiosas como o sistema de compulsão adotado a princípio. A intolerância para com eles podia ser, ao mesmo tempo, atraiçoada e impolítica, mas não era tão brutalmente atroz: agora, porém, pedindo-se a Inquisição, por maior que fosse a moderação com que D. Manuel esperava houvessem de proceder os inquisidores, as suas promessas, sucessivamente confirmadas e ampliadas, não deixavam por isso de ser desmentidas, com escandalosa quebra da fé pública, e tanto mais escandalosa quanto é certo que, não só das instruções dadas a D. Miguel da Silva, mas também das providências que vamos ver tomarem-se, poucos meses depois, parece poder-se concluir que os crimes religiosos, se os havia, procediam principalmente dos refugiados de Castela, acerca dos quais se haviam executado mal ou nunca se realizaram as precauções ordenadas em 1503 para a sua admissão no país. De feito, apenas dous meses depois de expedida para Roma a súplica sobre a Inquisição, ordenou-se aos diversos magistrados territoriais procedessem a um inquérito acerca dos cristãos-novos castelhanos. Deviam averiguar, por testemunhas dignas de crédito, quantos e quais existiam em cada paróquia e, depois, exigir deles próprios a declaração da época em que tinham entrado; se antes, se depois das restrições estabelecidas em 1503 e, nesta última hipótese, se com licença régia ou sem ela. No primeiro caso, cumpria que provassem por testemunhas a época da sua vinda; no segundo, que exibissem o título da permissão que lhes fora concedida. Deviam, também, os magistrados verificar qual era o estado, profissão e modo de viver de cada um desses foragidos. Finalmente, o resultado dos inquéritos, redigidos sumariamente, mas com precisão e clareza, seriam remetidos a elrei, guardando-se acerca desse resultado o mais completo segredo(73).

Apesar destas diligências e preparativos secretos, os desígnios dos adversários dos cristãos-novos para organizarem um sistema permanente de perseguição falharam ainda desta vez. Fosse que a gente hebréia soubesse o que se tramava e, pela sua riqueza e influência, tivesse meios de obstar em Roma ou em Lisboa à realização daqueles desígnios; fosse que, ponderados os inconvenientes políticos e econômicos que deviam resultar da fatal instituição que se pretendia criar, triunfassem, enfim, no conselho de D. Manuel doutrinas mais moderadas; fosse, finalmente, a hipótese, altamente provável, de que se tivesse obtido subrepticiamente d’elrei a expedição daquelas ordens para Roma, sem anuência do conselho, e que, depois, este embaraçasse o prosseguimento do negócio, é certo que nenhuns vestígios se encontram de que as instruções dadas a D. Miguel da Silva tivessem resultado. Os próprios atos do poder civil até a morte do monarca não revelam que, durante os seis anos decorridos de 1515 a 1521, fosse perturbada a tranqüilidade dos conversos. Os próprios ódios da plebe pareciam dormitar. Era a calmaria que precede a procela. Os planos da intolerância iam-se aperfeiçoando nas trevas. Não tardava o dia em que, toldados de novo os horizontes, descesse do céu sobre a raça proscrita o raio que devia fulminá-la.

LIVRO III

D. João III rei. — A nova corte. Influência dos ministros no negócio da Inquisição. Fanatismo do moço monarca. Esperanças dos inimigos da raça hebréia. Tolerância oficial — Cortes de Torres-novas. Estado moral e administrativo do reino. — Acusações repetidas contra os judaizantes. Inquéritos e delações secretas. Themudo e Firme-fé. — Influência da Inquisição castelhana. — Manifestações contra os cristãos-novos. Desordens em Gouveia e seus resultados. Perseguição em Olivença. — Reação dos espíritos mais ilustrados contra a intolerância. Gil Vicente e o bispo de Silves. — Resolve-se o estabelecimento de um tribunal da fé. Instruções ao embaixador em Roma. Dificuldades que aí se encontram. Obtém-se a primeira bula da Inquisição. Suas provisões. Demora na execução e causas do fato. — Lei de 14 de Junho de 1532. Terror dos cristãos-novos. Diligências que fazem para obstar à ereção do novo tribunal. — Excitação produzida pela lei de 14 de Junho. Cenas anárquicas em Lamego. — Os cristãos-novos recorrem a Roma, Duarte da Paz enviado como procurador deles. — O papa manda o bispo de Sinigaglia núncio a Portugal — Carácter do núncio. — Esforços de Duarte da Paz em Roma e procedimento singular da corte portuguesa. — Breve de 17 d’outubro de 1532 suspendendo a Inquisição. — Enviatura de D. Martinho de Portugal. — Deslealdades mútuas. — Vilania de Duarte da Paz. — Estado da luta nos princípios de 1533.

Falecido D. Manuel em dezembro de 1521, sucedeu-lhe D. João, seu filho mais velho, que ainda não contava vinte anos completos. Os cronistas que escreveram debaixo da influência dos imediatos sucessores deste príncipe, tendo diante dos olhos o latejo da censura, pintam-no como dotado de alta inteligência e de qualidades dignas de um rei. Durante a vida de seu pai muitos havia que o conceituavam como intelectualmente imbecil ou que, pelo menos, o diziam(74). O próprio D. Manuel mostrara receios do predomínio que, em tenra idade, exerciam no seu espírito homens indignos(75). O que é certo é que, ou por distração ou por incapacidade, nunca pôde aprender os rudimentos das ciências e, nem sequer, os da língua latina(76). Durante o seu reinado, as questões fradescas figuram sempre entre os mais graves negócios do estado, e, apenas ao sair da infância, o seu primeiro enlevo foi a edificação de um convento de dominicanos. Eram, digamos assim, presságios que anunciavam um rei inquisidor. Fosse resultado do curto engenho e da ignorância, fosse vício da educação, D. João III era um fanático. A intolerância do seu reinado, embora favorecida por diversos incentivos, deveu-se, em nossa opinião, principalmente ao carácter e inclinações do chefe do estado. Os fatos relativos ao estabelecimento da Inquisição que vamos narrar provar-nos-ão mais de uma vez a espontaneidade do rei nesta matéria e que, por grande que haja sido a preponderância dos seus ministros nos negócios públicos, no que tocava às questões religiosas essa preponderância era subordinada à sua vontade. É certo que os fios da administração, na época mais importante daquele reinado, parece terem estado nas mãos de Pedro d’Alcaçova Carneiro; mas, quando esse fato veio a verificar-se, já o estabelecimento da Inquisição era cousa resolvida, apesar de existirem ainda no poder, ao menos em parte, os ministros que tinham mantido a política tolerante do reinado antecedente. O secretário de D. Manuel, Antonio Carneiro, que mereceu durante largos anos a sua íntima confiança e que continuou a servir o novo rei, quando o cansaço o foi afastando de um cargo que ainda conservou nominalmente por muitos anos, deixou por sucessor seu filho segundo, Pedro d’Alcaçova. Este homem, que achamos, anos depois, dirigindo ao mesmo tempo os negócios mais variados, e cuja atividade parece incrível(77), colocado junto de um príncipe cuja falta de cultura os seus próprios panegiristas não puderam ocultar, devia na verdade ser, como numa época posterior foi o marquês de Pombal, o rei de fato na resolução das questões mais árduas. Pedro d’Alcaçova parece, até haver excedido o ministro de D. José I numa qualidade excelente para os ambiciosos do poder nas monarquias absolutas. Não ostentava a sua influência, colocando-se na penumbra do trono e deixando o brilho da importância e valimento, muitas vezes estéreis, a uma nobreza vaidosa e entre esta, àqueles por quem elrei mostrava decisiva predileção. A influência do ministro na política dessa época mal se poderia apreciar, se, reduzidos às memórias históricas, não tivéssemos milhares de documentos, não divulgados ainda, para nos darem indubitáveis provas da sua ação imensa no regímen de Portugal. Todas as negras manchas, porém, que afeiam o governo de D. João III poderão atribuir-se-lhe, menos a da fundação do horrível tribunal da fé. Nesta parte, embora a ação material partisse dele, o impulso vinha do monarca. As resistências dos cristãos-novos foram, como vamos ver, longas e tenazes. Uma vontade inabalável, que resumia em si milhares de ódios, lutou por mais de vinte anos com essas resistências e venceu-as. Por fim, o domínio absoluto do potro, da polé e da fogueira estabeleceu-se incontrastavelmente na região das crenças religiosas, prevalecendo sobre a doutrina evangélica da tolerância e da liberdade. Sente-se nesse variado drama de enredos políticos e atrocidades que uma idéia constante dirigia a corte de Portugal. Mas esta idéia era de D. João III, incitado pelo próprio fanatismo e dominado pelos frades. A inteligência superior de Pedro d’Alcaçova não fazia, provavelmente, senão condescender com a fraqueza do rei e atender só, no meio da imensa corrupção daquela época, à própria conveniência, aceitando todas as torpezas que vamos encontrar na obra ímpia do estabelecimento do Santo-Ofício, para assim manter e alargar, por mais esse meio, a órbita do seu predomínio.

O nenhum efeito, fosse porque motivo fosse, que tivera a tentativa de 1515 para se criar em Portugal a Inquisição, e o predomínio que obtivera a política de tolerância deviam aumentar o despeito dos irreconciliáveis inimigos da gente hebréia. Todavia, esse despeito continuou por algum tempo a ser impotente, posto que as influências da corte parece haverem mudado. Novos atores entravam, de feito, na cena a desempenhar papéis importantes. D. Antonio de Athaide, depois conde de Castanheira, valido do moço rei, mancebo como ele e que fora seu íntimo consócio nos desvarios da puberdade(78), Luiz da Silveira, mais adiantado em anos, e que por acusações, talvez infundadas, de aconselhar mal o herdeiro da coroa fora desterrado por D. Manuel(79); aqueles, em suma, que D. João III mais estimava quando príncipe, e, sabretudo, os antigos oficiais da sua casa, foram chamados aos altos cargos do paço. Ao conde de Portalegre, D. João da Silva, deu-se o ofício de mordomo-mor e a D. Pedro Mascarenhas o de estribeiro-mor. Era natural rodear-se dos seus amigos o novo monarca e, moço, mostrar maior afeição aos moços que em vida de seu pai tinham pensado mais no futuro do que no presente, sacrificando a benevolência do rei que era à do rei que havia de ser. Se, porém, na corte ocorriam as mudanças próprias, do tempo e das circunstâncias, os cargos que tocavam à administração do reino não mudaram. Os conselheiros e ministros de D. Manuel foram conservados no exercício das suas funções, sem excetuar o conde de Vila-nova e D. Álvaro da Costa, de quem D. João III se reputava agravado. O escrivão da puridade, D. Antonio de Noronha, depois conde de Linhares, o secretário Antonio Carneiro, os vedores da fazenda, todos os chefes, em suma, dos diversos ramos de administração, de cujas luzes e experiência D. Manoel, no seu último testamento, recomendara ao filho se aproveitasse, continuaram a dirigir o leme do estado(80). Os panegiristas e historiadores oficiais ou ofíciosos deste rei atribuem o fato à alta capacidade do príncipe e à grandeza do seu ânimo. Seria mais simples e verdadeiro atribuí-lo a necessidade inevitável. Sem acreditarmos que D. João III fosse idiota, supomo-lo uma inteligência abaixo da mediocridade. Inábil para governar por si próprio, tinha forçadamente de aceitar os últimos conselhos paternos; porque era impossível que os seus validos, mancebos e homens inexperientes nos negócios e não afeitos às pesadas e tediosas ocupações do governo, pudessem e soubessem encarregar-se delas, numa monarquia que se estendia pelas quatro partes do mundo então conhecido, monarquia cujas relações internas e externas eram complicadíssimas, como sabem todos os que conhecem, ainda superficialmente, a situação política e econômica de Portugal naquela época.

Conservados, assim, nos principais cargos do governo os antigos ministros, o sistema que prevalecera, não sem combate, nos conselhos de D. Manuel, relativamente aos cristãos-novos, devia continuar predominando, ao menos por algum tempo, visto continuarem os mesmo homens na direção dos negócios e, por conseqüência, a mesma política. Nesta parte, porém, como sucederia em muitas outras matérias de administração, as propensões irrefletidas do rei estavam em desarmonia com as opiniões mais maduras dos seus ministros. O ódio de D. João III contra a raça hebréia era profundo. Sabía-se e dizia-se geralmente(81). Tanto bastou para exacerbar no ânimo do povo, excitado pelo fanatismo, as antigas idéias de perseguição e de assassínio. Faziam-se conciliábulos contra os conversos, e excogitavam-se os meios de os exterminar(82). Assustados pelos sintomas ameaçadores que principiavam a aparecer, os cristãos-novos invocaram a proteção da autoridade suprema. Supostas as propensões d’elrei, não é de crer que ele desejasse reprimir essas manifestações populares, mas teve de ceder à opinião preponderante no conselho(83), e as súplicas das famílias judaicas foram, enfim, escutadas. Todas as concessões obtidas durante o reinado de D. Manuel, sucessivamente confirmadas desde 1522 até 1524, continuaram a assegurar aos cristãos-novos a proteção das leis e a possibilidade de não abandonarem a pátria(84).

Todavia, esta continuação de bonança não podia durar. Nas monarquias absolutas, quando uma idéia fixa ou uma paixão violenta preponderam no ânimo do chefe do estado, é quase impossível que, mais tarde ou mais cedo, essa idéia ou essa paixão não venha a traduzir-se em fatos. Mas, se à força imensa da vontade real se associa a opinião popular, o pensamento que predomina no espírito do príncipe e da maioria dos súditos, seja justo ou iniquo, assisado ou insensato, moral ou imoral, triunfa infalivelmente. Era o que sucedia em Portugal naquela época. As classes inferiores detestavam os cristãos-novos, como o próprio rei detestava. Da parte do povo havia, até certo ponto, como já noutro lugar advertimos, fundamentos para a melevolência. A riqueza monetária e, em grande parte, o comércio e a indústria estavam nas mãos da gente hebréia, e esta não podia deixar de aproveitar-se freqüentemente dessa vantagem para se vingar dos seus inveterados inimigos, daqueles que haviam assassinado ferozmente milhares de irmãos seus. Era uma luta muitas vezes oculta, mas permanente, e que de dia em dia se exacerbava por novos agravos. Dois sentimentos, um natural, outro factício, contribuíam para levar ao último auge o ódio radicado das multidões, sobretudo da gentalha. Era o primeiro a inveja, o vício comum, em todos os tempos, dos menos abastados: era o segundo o fanatismo, aviventado pelas contínuas incitações do clero, principalmente do clero regular. O fanatismo, de feito, aos olhos do vulgo santificava os impulsos da inveja ou, antes, disfarçava-os na íntima consciência dos invejosos, encobrindo-os sob o manto do zelo da religião. No rei não era assim. A ignorância e as tendências fradescas tornavam-no naturalmente fanático, sem que para isso contribuíssem nem a inveja, nem a memória de antigos agravos.

Mas o fanatismo não impedia que o filho de D. Manuel se desse à devassidão com mulheres(85). E a diferença que vai dessa negra paixão à verdadeira piedade. Trataram, portanto, de o casar, e foi escolhida para sua esposa D. Catarina, irmã de Carlos V, o qual já nesta conjuntura reinava em Castela. Efetuou-se o consórcio, e procurou-se ao mesmo tempo estreitar mais os laços dos dous países, negociando o casamento de Carlos V com a infanta D. Isabel, irmã do rei de Portugal. Chegou-se a ajustes definitivos, e contratou-se que o dote da infanta portuguesa fosse de noventa mil dobras ou mais de oitocentos mil cruzados. Faltavam recursos para completar a soma, e era preciso obtê-los. Esta circunstância, porventura acompanhada de algumas outras, fez com que se convocassem cortes em 1525, as quais, devendo reunir-se em Thomar, vieram a celebrar-se em Torres-novas, por causa da peste. Os parlamentos portugueses tinham desde os fins do século XV perdido o seu valor real; eram mais de aparato e pura formalidade que de substância. O essencial, que consistia em obter dinheiro, realizou-se; porque se votaram cento e cinqüenta mil cruzados de novos impostos, cobráveis em dois anos. Era o que urgia. Às representações dos concelhos respondeu-se, em geral, com boas palavras, que só tiveram, em parte, efeito muito depois das cortes de 1535, em que se renovaram, pela maior parte, essas mesmas representações(86). Foi nesta assembléia que a má vontade geral contra os cristãos-novos pôde, enfim, manifestar-se pela primeira vez desde o século XV de um modo solenemente significativo, mas dentro da estrita legalidade.

As cortes de Torres-novas são, sob dois aspectos, importantes para a história da intolerância e cuja mútua relação nos cumpre conhecer para avaliarmos bem os efeitos reais dessa mesma intolerância, na qual os seus fautores vêem ou, pelo menos, fingem ver o único meio eficaz de manter as doutrinas evangélicas e a severidade dos princípios morais. Ao passo que as tendências do rei e do povo na época de D. João III pareciam fruto de uma grande exaltação religiosa, exaltação que o clero fomentava, o estado da moral pública era deplorável. Teremos ocasião, mais de uma vez, de descobrir as úlceras que roíam então a sociedade; mas os capítulos de cortes relativos a esse objeto, quer se atribuam à assembléia de 1525, quer à de 1535. começam a habilitar-nos para avaliarmos os costumes daquele tempo. Os vexames e abusos na administração da justiça praticavam-se em todas as instâncias, desde as inferiores até as mais elevadas, e não só no foro secular, mas também no eclesiástico(87). O reino estava cheio de vadios que viviam opulentamente, sem se saber como(88). O vício do jogo predominava em todas as classes, com as suas fatais conseqüências de roubos e de discórdias e misérias domesticas(89). O luxo era desenfreado(90). A corte andava atulhada de ociosos, e a casa real dava o exemplo da falta de ordem e de economia(91). Nos paços dos fidalgos via-se um sem número de criados, bem superior ao que permitiam as rendas dos amos, de modo que faltavam os braços para o trabalho, sobretudo para a agricultura.(92) Qualquer viagem d’elrei era um verdadeiro flagelo para os povos por meio dos quais transitava. A imensa comitiva de parasitas de todas as ordens e classes devorava a substância dos proprietários e lavradores. Mantimentos, cavalgaduras, carros, tudo era tomado, e os detensores ou não pagavam ou pagavam com escritos de dívida, divertindo-se os cortesãos, muitas vezes, em destruírem os frutos, as fazendas e as matas(93). Se, porém, no civil ia mal o reino, não ia melhor no eclesiástico. Nem os bispos, nem os prelados das terras pertencentes às ordens militares cumpriam com as suas obrigações. Do que se tratava era de comer os dízimos e rendas, e muitas vezes faltavam ao povo os ofícios divinos e os sacramentos. As visitas feitas pelos prelados não tinham por fim reformar os costumes ou prover ao culto, mas sim extorquir dinheiro. Um dos grandes males do país eram os juízes apostólicos especiais que se obtinham por via de escritos de Roma e que avocavam a si causas, tanto do foro secular, como do eclesiástico, constituindo-se, assim, frades e clérigos ignorantes em magistrados. O abuso dos interditos era intolerável. A ordem de Cristo, enfim, que tinha o padroado de centenares de paróquias, oferecia, na miséria e abandono das suas igrejas, pela falta de residência dos pastores, um escândalo vergonhoso e deplorável(94).

No meio das queixas contra este estado econômico, moral e religioso do reino, os procuradores dos concelhos não se esqueciam de exprimir a mé vontade dos povos contra a raça hebréia. Queixavam-se dos cristãos-novos, que, tomando a si as rendas das grandes propriedades, monopolizavam os cereais para os fazerem subir a preços excessivos nos anos escassos; mas confessavam, ao mesmo tempo, que os rendeiros cristãos-velhos não eram, nesta parte, menos ávidos do que eles. Onde, porém, o ódio e a desconfiança entre as duas raças se manifesta com mais evidência é nos capítulos relativos ao exercício da medicina. As apreensões do povo, nesta parte, eram terríveis. Pediam que se mandasse estudar aquela ciência a mancebos de origem não-hebréia, visto que os médicos eram, em geral, cristãos-novos. Do mesmo modo pretendiam que a profissão de boticário fosse proibida a estes, ordenando-se, além disso, que as receitas se escrevessem em vulgar e não em latim, conforme se usava(95). Era opinião geral que os médicos e boticários se mancomunavam para envenenarem os cristãos-velhos, que publicamente acusavam de serem inimigos seus. Os procuradores citavam em abono dessa crença um fato de que corria voz e fama. Certo médico de Campo-maior, que fora colhido em Espanha e queimado como judeu pelos inquisidores de Llerena, tinha confessado aos tratos haver morto diversas pessoas de Campo-maior com peçonha dada em certas bebidas. Afirmavam, além disso, ser cousa notória que os boticários lançavam nos remédios internos tudo quanto os médicos ordenavam, sem lhes importar se esses mistos correspondiam às indicações farmacêuticas(96). Se esta voz que corria era um invento dos motores da perseguição, cumpre confessar que o ódio lhes inspirava um arbítrio tremendo para levar ao último auge a excitação dos ânimos pelo temor de morte sempre iminente e incerta. Entretanto as horríveis suspeitas do povo não eram inteiramente desarrazoadas. Nada mais natural do que estas vinganças dos filhos, parentes e amigos de tantas vítimas que o fanatismo havia sacrificado e que se viam obrigados a sofrer diariamente injúrias e calúnias, sem poderem repeli-las, desfavorecidos, como eram em toda a parte, pela opinião pública.

O conselho real parece ter dado pequena importância a estas representações; porque as respostas a elas foram pouco conformes com os desejos dos procuradores das cortes. Mas entre o procedimento oficial do governo e o sentir particular do rei existia o desacordo. Aproveitando as propensões do seu ânimo, os fautores da perseguição incitavam constantemente o monarca a estabelecer nos seus estados o mesmo tribunal da fé que fazia chamejar as fogueiras do martírio no resto da Península. Bispos e outros prelados (porventura, aqueles mesmos cuja cobiça e desleixo nas cousas de religião os delegados do povo denunciavam publicamente em cortes), indivíduos que se diziam tementes a Deus, pregadores e confessores que abusavam das revelações ou, antes, delações feitas no tribunal da penitência; enfim, quantos sectários da intolerância havia, quantos tinham que exercer vinganças contra alguns cristãos-novos e que podiam fazer-se ouvir, apresentavam a elrei provas, boas ou más, da impiedade dos conversos e das suas famílias. Tiravam-se, para isso, inquéritos pelas autoridades eclesiásticas e indicavam-se processos civis em que eles apareciam culpados de judaizarem(97). Estas provas destruiu-as ou ocultou-as o tempo, e, por isso, é impossível apreciá-las. Entretanto, se não restam esses fundamentos de acusações oficiosas, subsiste ainda um documento importante que tende a invalidá-las ou, pelo menos, a enfraquecê-las. Não satisfeito, acaso, das revelações que lhe faziam, dos fatos que lhe apresentavam, elrei mandou proceder, em 1524, a averiguações secretas sobre o modo de viver dos cristãos-novos de Lisboa, onde devia existir o principal foco do judaísmo. Jorge Themudo, a quem vocalmente encarregara em Montemor desta delicada comissão, comunicava-lhe em 13 de julho desse ano o que apurara das informações dos párocos de várias freguesias, com quem tratara o assunto sob o sigilo da confissão. Resultava dessas informações que os cristãos-novos deixavam de assistir aos ofícios divinos nos domingos e dias festivos; que não se enterravam nas igrejas paroquiais, mas sim nos adros de alguns conventos ou nos claustros deles, em sepulturas profundas ou em terra virgem; que, moribundos, não tomavam nem pediam a extrema-unção; que, nos testamentos, não mandavam dizer missas por suas almas ou, se algumas se diziam, era raramente, não ordenando nunca trintários, nem sufrágios ao oitavo dia do óbito, nem aniversários(98); que havia suspeitas de guardarem os sábados e páscoas antigas; que se confessavam durante a quaresma, comungando na quinta-feira santa ou em dia de páscoa; que na doença se confessavam, e uns tomavam o viático e outros não, dizendo que não o podiam, ou não o mandando buscar; que exerciam atos de caridade entre si, porém não para com os cristãos-velhos; que, em tempos de peste, enterravam cuidadosamente os mortos, sem distinção de raça; que se desposavam à porta da igreja e batizavam seus filhos, guardando à risca todos os ritos e solenidades do estilo. Tais eram os fatos que caracterizavam os hábitos religiosos dos cristãos-novos, conforme o testemunho do clero curado, que, apesar disso, propunha o estabelecimento da Inquisição, como meio de verificar melhor qual era a verdadeira crença da gente hebréia(99).

Que aparece nesta delação dos pastores acerca das suas ovelhas, delação feita a um espia sob o sigilo do sacramento da penitência, que possa indicar da parte dos cristãos-novos apego ao judaísmo? Apenas a suspeita de que guardavam o sábado e páscoas antigas. Quando muito os outros fatos menos conformes com os preceitos do catolicismo podiam ser indício de tibieza na fé, mas se eles faltavam aos ofícios divinos, circunstância difícil de provar numa cidade populosa e cheia de templos, e se isso os caracterizava como judeus, o que seriam aqueles prelados e párocos que, segundo o testemunho dos procuradores dos povos, devoravam as avultadas rendas eclesiásticas, deixando os fiéis sem missa e sem sacramentos? Acontecia falecerem muitos conversos sem os últimos auxílios, mas, acaso, seria raro o sucesso entre os cristãos-velhos(100), e não se dariam então mil circunstâncias que ainda se dão hoje para assim acontecer freqüentes vezes entre famílias grandemente católicas, sem que por isso as suspeitem de impiedade e muito menos ao enfermo, que, de ordinário, ignora a vizinhança da morte? A acusação de enterrarem os cadáveres em covas profundas ou em terra virgem e de sepultarem cuidadosamente e sem distinção os mortos de peste é irrisória. Não o é menos a de beneficiarem os indivíduos da própria raça com exclusão dos que pertenciam à dos seus assassinos e perseguidores. Duas cousas, porém, havia no procedimento dos cristãos-novos que deviam escandalizar altamente o clero de Lisboa e ser para ele prova de irreligião. Era não curarem de sufrágios prolongados e, nem sequer, de deixar, às vezes, esmolas para poucas missas. Aos bons dos párocos consultados por Jorge Themudo parecia grave impiedade escolherem os cristãos-novos para jazigos os adros das igrejas e os claustros das corporações monásticas, em detrimento dos interesses da respectiva paróquia. Como não haviam eles de ver neste fato veemente indícios de judaísmo?

Sectários ocultos da lei de Moisés ou sinceramente cristãos, os conversos, segundo se vê destas últimas arguições, procediam de modo sensato, negando-se a saciar a cobiça sacerdotal e não querendo malbaratar os próprios haveres com sufrágios, que, pelas circunstâncias de que eram acompanhados, se convertiam em superstição escandalosa. Eis como um frade português, respeitado em Itália e, até, fautor da Inquisição pintava, poucos anos depois, aos padres do concílio de Trento esses ofícios e preces pelos mortos: «O trintário — dizia ele — vem a ser trinta missas de S. Gregório e de S. Amador. Os que as dizem dormem e comem na igreja durante os trinta dias e em cada um deles celebram o ofício de certa festividade, com determinado número de velas acesas, cousa, na verdade, altamente supersticiosa e não exempta da mancha de cobiça, pois que por isso se paga a soma de quase oito ducados. Outras missas há que mais quadram à superstição do que à verdadeira piedade(101)». Os conversos davam, portanto, documento de judaísmo evitando cousas que os teólogos reputavam supersticiosas e eivadas de simonia! Quando os espias secretos do próprio rei não achavam senão as culpas que resultam da carta de Themudo, que se há-de crer desses processos, inquéritos e revelações misteriosas, que os interessados no estabelecimento da Inquisição buscavam e ofereciam com tanto ardor? Além disso, a boa razão está indicando o que devemos supor acerca dos sacrilégios e de outras ofensas públicas à religião que veremos atribuídos aos cristãos-novos. Estamos persuadidos de que, ao menos em grande número destes, a conversão era fingida, nem humanamente podia ser de outro modo, tendo a violência feito as vezes da persuação. Mas, quanto mais aferrados se conservassem à lei de Moisés, com maior pontualidade deviam guardar as fórmulas exteriores do catolicismo. Rodeados de inimigos implacáveis, alvo de mil invejas pela sua riqueza, naturalmente tímidos e dissimulados, o seu interesse, as propensões ingênitas da sua raça, tudo os induzia a manifestarem grande respeito pela religião dominante e a serem pontuais nas fórmulas do culto. Era o que a intolerância mais exaltada tinha direito de exigir deles. Nunca o politeísmo exigira outra cousa dos cristãos primitivos na época dos mártires. D’aqui avante a perseguição tornava-se o mais bárbaro, o mais atroz dos crimes.

Os meneios subterrâneos do fanatismo de uns e da hipocrisia de outros coincidiam com as sucessivas rivalidações dos privilégios e garantias de segurança dados aos conversos por D. Manuel. Essas confirmações oficiais da antiga proteção não faziam, porém, desanimar os fautores da Inquisição. Como acabamos de ver da comissão dada a Jorge Themudo, o próprio rei tratava de achar razões ou pretextos para abandonar a política de seu pai. Um fato estrondoso, cujas particularidades ficaram envolvidas no mistério e que veio nesta conjuntura aumentar a inimizade geral contra a raça proscrita, confirma a idéia de que, fossem quais fossem as opiniões de seus ministros, o rei estava resolvido a fazer triunfar os desígnios da intolerância.

Andava naquela época na corte um cristão-novo, natural de Borba, chamado Henrique Nunes, a quem elrei deu, depois, o apelido de Firme-Fé(102). Este apelido significativo indicava um converso sincero, ao menos aparentemente, cuja exaltação, verdadeira ou fingida, pelas doutrinas que abraçava o monarca supunha profunda. Nunes tinha andado em Castela, onde, talvez, se convertera e onde fora criado do célebre inquisidor Lucero(103). O ódio contra os seus antigos correligionários, o qual transluz da correspondência que tinha com D. João III, mostra-nos que as suas opiniões andavam, nessa parte, aferidas pelas do amo a quem servira, e é altamente crível que, em tudo o que tocava à questão dos cristãos-novos, fossem as idéias do converso de Borba análogas às de Lucero. Para podermos, pois, ajuizar do sentir íntimo do servidor obscuro resta-nos um meio único: é conhecer o patrono Diogo Rodrigues Lucero, primeiro inquisidor de Córdova, era um homem de índole dura e sanguinária e, ao mesmo tempo, de curta inteligência. Pedro Martyr de Angleria, escritor contemporâneo e conselheiro do Conselho das Índias, não o designava, em cartas particulares, senão pela alcunha de Tenebrero. Acerca dos conversos, o terrível inquisidor resumia todas as suas doutrinas num simples prolóquio: «Dá-mo judeu, dar-to-ei queimado». Todos os presos que não podia condenar à morte por outro modo declarava-os confitentes diminutos, isto é, como tendo ocultado na confissão parte dos seus delitos e, portanto, como contumazes. D’aqui resultaram as confissões mais extravagantes. Aos tratos materiais que os algozes davam às vítimas correspondiam os que elas davam ao próprio espírito para inventarem absurdos que confessassem. Os pecados de feitiçaria associavam-se aos de judaísmo. Viagens aéreas nas asas dos demônios, bodes volantes, fantasmas, ubiqüidade dos bruxos, tudo apareceu, tudo se demonstrou. Meia Espanha estava envolvida nesta conspiração infernal. Lucero tripudiava: as prisões atulhavam-se. Enfim, as violências foram tais, que houve uma reação moral. O bispo, o cabido de Córdova e a principal nobreza exigiram a demissão de Lucero. Recusou-se o inquisidor-mor, e Lucero declarou judeus todos os que dele se haviam queixado. Apelaram para Felipe I, que começara a reinar. O poder civil interveio então neste negócio, e o inquisidor-mor Deza foi privado da autoridade e substituído pelo bispo de Catanea, que depôs o feroz Tenebrero e os seus colegas. A morte do rei, ocorrida pouco depois, suspendeu os efeitos destas providências. Deza tornou a exercer as suas funções. Seguiram-se revoltas formais em Córdova. A luta durou até o tempo do cardeal Cisneros, que, nomeado inquisidor geral, criou uma junta que examinasse os processos julgados já. Achou-se que todas as acusações eram falsas; mas Lucero, retido num cárcere em Burgos, foi apenas demitido, porque se mostrou que na matança daqueles inocentes guardara as fórmulas inquisitoriais. Durante o exame deste horrível negócio, Pedro Martyr escrevia ao conde de Tendilla: «Como poderia a cabeça deste novo Thersites (Lucero) expiar por si só os crimes que desgraçaram tantos Heitores?» Antes disso, numa carta dirigida ao secretário de Fernando V, Miguel Perez d’Almazan, dizia o cavalheiro Gonçalo de Ayora: «Fiam-se no que toca à Inquisição no arcebispo de Sevilha (Deza), em Lucero e em João de Lafuente, que desonraram estas províncias, e cujos agentes não respeitavam, de ordinário, nem Deus, nem a justiça, matando, roubando e violando donzelas e mulheres casadas com inaudito escândalo(104)!» Tal era a escola que cursara Henrique Nunes, esse homem que aparecera, como fatal meteoro, na corte de D. João III.

Se é verdade, como diz um cronista contemporâneo, que elrei mandara vir das Canárias aquele indivíduo quando tratava de estabelecer a Inquisição em Portugal(105), segue-se que Nunes, apesar da sua condição obscura, adquirira celebridade no serviço do inquisidor espanhol, isto é, que pertencia a esse grupo de agentes cujo procedimento odioso Ayora descrevia ao secretário Almazan. De outro modo, como saberia D. João III que nas Canárias havia um desconhecido cujos serviços podiam ser úteis ao estabelecimento da Inquisição? Das palavras do cronista se deduz, igualmente, que o rei no momento em que assinava as confirmações das graças e imunidades concedidas à gente hebréia ia excogitando os meios de falsear a palavra real(106). Efetivamente, se dermos crédito às cartas dirigidas por Firme-fé a D. João III, este não só lhe pedira que expusesse por escrito os seus alvitres para se combater o judaísmo, mas também lhe ordenara que, associando-se com os outros cristãos-novos, fosse, como irmão em crença, introduzir-se no seio das famílias suspeitas e praticasse tudo quanto julgasse oportuno para conhecer o estado das opiniões religiosas dos seus antigos correligionários. Este mister infame era o que ainda exercitava o antigo criado de Lucero quando escrevia a elrei a sua última carta(107). Depois de haver devassado o interior das famílias hebréias em Santarém e em Lisboa, e, talvez, por outros lugares, Nunes seguiu a corte para Évora, último teatro das suas façanhas. D’aqui, ou porque tardassem os seus ignóbeis trabalhos(108) ou porque, na prossecução do mister de espia, tivesse de seguir alguma das suas vítimas, Firme-fé partira para Olivença. Aí ou em Évora, os traídos judeus descobriram que ele era um espia. Provavelmente, o temor da vingança obrigou-o a passar a fronteira e a dirigir-se a Badajoz. Não a evitou, porém. Seguiram-no de perto dous cristãos-novos do Alemtejo: alcançaram-no no lugar de Valverde, no termo de Badajoz, e ali o mataram a golpes de lança e d’espada(109). Se crimes tais como o assassínio premeditado pudessem merecer desculpa, este mereceria-a por certo. Descobertos, os matadores foram processados, e fácil é de supor se achariam piedade no ânimo irritado d’elrei. Eram dois clérigos de ordens-menores, Diogo Vaz de Olivença e André Dias de Vianna; mas recusou-se-lhes o seu foro eclesiástico. Depois de receberem tratos de polé para descobrirem alguns cúmplices, foram condenados a deceparem-se-lhes as mãos e a serem enforcados, levando-os a rastos até o lugar do suplício. Eram essas as penas impostas pelas leis do reino aos assassinos comprados(110); mas os compradores, a quem, aliás, caberia a mesma pena, não existiam, porque ninguém mais foi punido. O moço monarca ia-se assim afazendo às atrocidades futuras da Inquisição, e o castigo exagerado dos dous réus era um verdadeiro tirocínio(111). Se o processo, porém, nada provara contra os cristãos-novos em geral, o ódio do fanatismo encarregou-se de completá-lo por esta parte. Correu voz de que os matadores de Firme-fé haviam recebido ouro dos outros cristãos-novos para perpetrarem o delito. Todavia, esta acusação não tinha cruzado os umbrais do tribunal que julgara os delinqüentes, onde teria legitimado o excesso do castigo, se, porventura, se houvera demonstrado ser verdadeira(112). Entretanto, o discípulo de Lucero, o espia de seus irmãos, foi imediatamente santificado pela hipocrisia. Espalharam que, ao encontrar-se o cadáver, se lhe achara metido no seio um papel em que estavam desenhados os trinta dinheiros por que Judas vendera seu mestre, e escritas ao pé as seguintes palavras proféticas: «Jesu Christo, lembra-te de minha alma, que por tua fé me matam»(113). Começaram a chover os milagres. Pouco faltou para que a terra da sepultura em que o mártir fora enterrado expulsasse de todo daqueles contornos as febres intermitentes. Qualquer punhado dessa terra excedia facilmente em virtude os mais heróicos recursos da medicina; e não escassearam as testemunhas de tão extraordinárias maravilhas(114).

Valendo-se dos ignóbeis meios que temos visto, D. João III pôde obter a certeza daquilo que a simples razão bastava para lhe indicar sem tantos esforços. Das delações de Firme-fé constava que muitas dessas famílias, constrangidas brutalmente a receberem o batismo, conservavam no fundo do coração a crença de seus maiores. Mas a necessidade de recorrer ao que há mais abjeto e repugnante entre as vilanias humanas, a delação vinda dos lábios que deram o ósculo de amigo, está provando que, nos atos externos, a raça hebréia não subministrava pretextos à intolerância. Das três cartas ou memórias que nos restaram do antigo criado de Lucero para elrei a primeira continha vários alvitres para se combaterem as crenças mosaicas entre os hebreus portugueses por modo mais ou menos indireto: na segunda achava-se a lista dos indivíduos a quem Henrique Nunes soubera arrancar o segredo da sua crença pelas ilusões da amizade e, com essa denúncia, as provas das acusações que fazia: na terceira o espia enumerava os indícios externos pelos quais se poderia conhecer o judaísmo oculto dos pseudo-cristãos. Não há, porém, entre tantos indícios, um único fato que, positiva e diretamente, prove o aferro deles à religião judaica; tudo são indicações negativas, algumas altamente ridículas; isto é, análogas às que se tinham obtido em Lisboa por intervenção de Themudo. Era o não usarem nas manilhas, pulseiras e outros adornos de prata ou de ouro, imagens de santos, cruzes, vieiras ou bordões de Santiago; era não levarem livros de reza à igreja, nem usarem de rosários; era faltarem freqüentemente aos ofícios divinos; era não irem a procissões e romarias, nem mandarem dizer missas e trintários; era não darem esmola quando se lhes pedia por Deus ou por Santa Maria; era, enfim, sepultarem os mortos separadamente; cada cadáver em sua sepultura, contra o costume geral de servir o mesmo jazigo para os parentes conjuntos por sangue ou por afinidade(115). Nisto consistem os motivos para a fundação de um tribunal destinado a cobrir de fogueiras e de luto o país. O discípulo de Lucero, inspirado por entranhável malevolência contra os seus antigos correligionários, espiando com dissimulação infernal e incansável atividade o proceder deles por diversas partes do reino, nada mais pudera obter. Não será este fato mais uma razão para crermos que esses sacrilégios, esses insultos aos objetos do culto católico que temos visto e que ainda veremos atribuírem-se-lhes não passavam de torpes calúnias ou eram praticados pelos próprios acusadores para suscitarem escândalos que irritassem cada vez mais os ânimos? As mesmas observações de Henrique Nunes posto que, em parte, ridículas, não seriam exageradas? O rancor que transuda por entre as fórmulas piedosas das suas cartas ao rei deve fazer-nos hesitar acerca da sinceridade de Firme-fé. Esse rancor era tão cego, que atribuía à índole e às tradições da raça a que ele próprio pertencia todas as tendências vis e perversas, recordando a D. João III os testemunhos da Bíblia contra os judeus. Não só o abuso que os cristãos-novos opulentos faziam das riquezas santificava os ódios populares, mas, ainda, a inveja que os menos abastados lhes tinham era legítima aos olhos do devoto espia(116). Implacável na perseguição, ele confessava que um dos primeiros pseudo-cristãos que denunciara a elrei, logo que, chegando a Portugal, alcançara falar-lhe, fora um irmão seu, que, mandado arrebatar de Portugal por ele noutro tempo, para o educar na verdadeira crença, logo que pudera fugir-lhe voltara a Lisboa e aí seguira a ocultas a religião de Moisés(117). O fanatismo (talvez, antes, a hipocrisia) levado a este grau de hediondez, não só seria capaz de envenenar as ações mais simples e inocentes, mas, até, de inventar delitos.

À vista das diligências que o rei fazia para achar pretextos ou motivos de perseguir a porção mais rica, mais ativa e mais industriosa dos seus súditos, o estabelecimento da Inquisição numa época pouco distante era inevitável, sobretudo coincidindo os desejos do príncipe com as preocupações populares e com os esforços de uma parte do clero. Durante o período decorrido de 1525 a 1530, a questão dos conversos, questão que agitava vivamente os ânimos, tomara cada vez maior vulto, e cada vez os presságios do futuro eram para eles mais tristes. No incêndio, que se dilatava rapidamente, como que se havia lançado novo alimento, porque as acusações diretas e individuadas e as vozes, mais ou menos vagas, de sacrilégios e insultos à crença dominante praticados pelos cristãos-novos corriam, multiplicavam-se e engrandeciam-se, até se excitar o povo a fazer públicas demonstrações do seu ódio, ao passo que o favor da autoridade progressivamente se tornava mais tíbio. Efetivamente, um poderoso elemento de perseguição viera associar-se aos que já existiam. D. Catharina, a nova rainha de Portugal, neta de Fernando o católico, trazia para a pátria adotiva as idéias e preocupações da corte de Castela contra os cristãos-novos e tinha-se acostumado desde a infância a considerar a Inquisição como um tribunal indispensável para a manutenção da fé. O favor da rainha e a sua influência no ânimo do marido, já tão propenso à intolerância, como temos visto, redobravam o ardor dos adversários da gente hebréia. Vários dominicanos de Castela vinham nesta conjuntura ajudar os seus confrades e os prelados que pertenciam à mesma parcialidade a apressar a hora em que fossem amplamente vingadas as cinzas dos dous chefes dos tumultos de 1506(118). Apesar, porém, de assustados com estes meneios, que, ao menos em parte, não podiam ignorar, os cristãos-novos esperavam afastar a tempestade, confiados nas exempções, imunidades e privilégios que D. Manuel lhes concedera, que o atual monarca lhes revalidara e que não podiam ser ser quebrados, antes de 1534, sem a mais insigne má fé(119).

Entretanto, as provas e argumentos destinados a demonstrar a necessidade de proceder severamente contra os ocultos inimigos da religião coligiam-se ativamente. Os inquisidores de Llerena, que em 1525 tinham mandado fazer um inquérito sobre a morte de Henrique Nunes, inquérito no qual as testemunhas declaravam ter ouvido dizer que os assassinos haviam sido pagos pelos cristãos-novos para cometerem o crime, remeteram, em 1527, a elrei o transumpto autêntico desse processo, a que vinham apensas cópias, igualmente autênticas, das cartas ou memórias que Firme-fé lhe dirigira a ele. O portador destes documentos, que deviam servir para se impetrar depois a Inquisição, era o célebre Pedro Margalho, professor da universidade de Salamanca, escolhido por mestre do infante D. Afonso e que veio a ser vice-reitor da universidade de Lisboa. Porventura, esses documentos eram preparados de acordo com o próprio rei(120). A imprudência de alguns refugiados castelhanos vinha por aquele mesmo tempo agravar a situação dos cristãos-novos portugueses. Perseguidos pelo inquisidor de Badajoz, esses conversos tinham procurado asilo em Campo-maior. D’aqui, tendo reunido gente armada, voltaram àquela povoação e, libertando uma mulher já inibida pela Inquisição de sair da cidade, puseram ao mesmo tempo em salvo as alfaias e outros objetos que não tinham podido trazer consigo na ocasião da fuga. Selaya, o inquisidor de Badajoz, irritado com este procedimento, escreveu diretamente o elrei, exigindo a extradição dos criminosos e invocando os antigos tratados entre os dous países. O fato fizera ruído, e os inquisidores de Llerena sustentaram a pretensão do seu delegado, exigindo também a extradição, ao que ajuntaram reclamações diretas de Carlos V. Ignoramos o desfecho do negócio, mas, atentas as tendências da corte, o mais crível é que os foragidos fossem sacrificados(121).

A carta de Selaya a D. João III é um monumento curioso; porque, melhor, talvez, que nenhum, pinta ao vivo as idéias dos inquisidores daquela época. Não temos motivos para reputar Selaya um hipócrita, e por isso devemos pô-lo fanático sincero. Depois de narrar como a sua autoridade fora vilipendiada e de pedir desagravo, o inquisidor de Badajoz entra em considerações gerais sobre o dever que tinha o rei de Portugal de perseguir os pseudo-cristãos, imitando o exemplo de Castela. Fazendo-se cargo do fato da conversão violenta, que os judeus invocavam em seu abono para continuarem a seguir as antigas crenças, Selaya declarava esta razão fútil; primeiramente, porque não se podia ser violentado quem, embora à força, tinha recebido um benefício tamanho como era o do batismo; segundariamente, porque essa violência não fora absoluta, mas só condicional, visto que aos conversos ficara sempre livre o alvedrio de se deixarem matar antes de aceitarem o batismo, imitando a fortaleza dos Macabeus. A estes absurdos o inquisidor acrescentava outros ainda mais singulares. Relatava como dous ou três anos antes aparecera em Portugal um judeu do oriente, que anunciava a próxima vinda do Messias, a liberdade dos israelitas e a restauração do reino de Judá. Assevera que este homem astuto, não só retivera no erro os que nele se conservavam, mas também reduzira outra vez ao judaísmo inumeráveis cristãos-novos, assim de Portugal, como de Castela. Deste fato concluía Selaya, que, ainda admitindo a legitimidade da religião de Moisés, esse homem e os seus sectários eram hereges em relação ao judaísmo, visto que davam novas interpretações ao Velho Testamento, contra a opinião dos karaitas, única seita ortodoxa, que entendia a Bíblia ao pé da letra. O bom do inquisidor, nos termos deste dilema, via sempre a necessidade de perseguir os judeus. Para ele era indiferente queimá-los em nome da ortodoxia judaica ou em nome da ortodoxia cristã. Em ambos os casos o resultado era o extermínio(122).

As passo que ocorriam estes sucessos, em que aparecia a influência da Inquisição castelhana, verificavam-se outros fatos inteiramente domésticos, que tendiam aos mesmos fins. Nas povoações onde a gente hebréia constituía a parte mais importante e opulenta do lugar era onde mais ameaçador se manifestava o espírito de perseguição. Pelas cenas que naquela época se passavam por alguns distritos se pode fazer idéia do que sucederia geralmente. Uma imagem da Virgem, venerada em Gouveia e com a qual, segundo parece, o povo tinha particular devoção, apareceu indignamente ultrajada(123). A devassa que se tirou acerca daquele ato sacrílego deu o resultado que o leitor facilmente prevê. Esse escândalo fora obra dos cristãos-novos. Acharam-se três culpados, dous dos quais, sendo presos, foram remetidos para a corte. Não tardou a correr voz de que estavam para ser absolvidos e postos em liberdade. Dizia-se então geralmente que os conversos haviam constituído uma vasta associação para mutuamente se ajudarem com os imensos recursos que lhes davam as riquezas de uns, a ilustração de outros, a astúcia de muitos e o temor vigilante de todos. Ao mesmo tempo acusava-se a magistratura de corrupção, para que nunca passassem por inocentes os réus absolvidos depois de um processo ordinário por crimes contra a igreja. Esta opinião comum agitava os ânimos em Gouveia, e os juízes municipais dirigiram ao rei uma carta em que exprimiam as violentas suspeitas que o povo concebera ou, antes, que lhe tinham feito conceber acerca dos dous indiciados. «Por estas comarcas — diziam eles — afirmam os cristãos-novos que hão de dispender avultadas somas para os livrarem e que provarão que o delito foi perpetrado por cristãos-velhos. Para isto buscam malfeitores e homens infames, pobres ou mal morigerados, que vão testemunhar por dinheiro o que eles quiserem, tanto a favor dos indiciados, como contra outrem. O povo está resolvido a ir pedir justiça a vossa alteza ou a abandonar esta terra. Em tempos antigos os judeus, antes de convertidos, enforcaram a imagem de S. Maria na forca desta vila, como consta já a vossa alteza. A agitação é grande, e, antes que suceda alguma cousa que seja em desserviço de Deus e de vossa alteza, paguem os culpados seu crime. Avisamos disto vossa alteza em descargo de nossas consciências(124)».

O temor de que do processo intentado resultasse passar o crime dos réus para os acusadores é evidente nesta carta. Temperava-se aquela manifestação de medo com as vagas ameaças de tumultos populares. Os fatos gerais mencionados nesta carta, onde transluzem por uma parte o ódio profundo, por outra graves apreensões, não é fácil dizer com certeza até que ponto seriam verdadeiros. Que os conversos tratassem de organizar os meios de resistência à perseguição que viam pulular de toda a parte é altamente provável, e que para defenderem os seus correligionários, ofendendo ao mesmo tempo os inimigos, não fossem demasiado escrupulosos na escolha dos instrumentos que empregavam, também é assaz crível. Mas, por outra parte, não o é menos que os seus adversários mandassem ocultamente perpetrar desacatos para lh’os atribuírem. Era um expediente óbvio, de que a intolerância não devia esquecer-se. Pelo que, porém, toca às testemunhas nos processos, se as que depunham a favor dos cristãos-novos podiam ser corruptas e perjuras, porque não o seriam as que testemunhavam contra eles? Além das peitas, a que tanto estes como aqueles podiam recorrer, os cristãos-velhos tinham outros meios de corrupção não menos poderosos, o ódio geral das multidões contra a raça hebréia e a hipocrisia, que facilmente persuadiria aos ignorantes a legitimidade do perjúrio, quando se tratasse de perder os inimigos da fé. Na terrível questão que naquela época se debatia, os resultados dos depoimentos judiciais não devem merecer grande consideração à história, quando, aliás, se não firmarem noutra ordem de testemunhos ou não tiverem a seu favor razões de congruência. Além do abuso das fórmulas de processo, a que, em todos os tempos e em todos os países, as parcialidades irritadas umas contra as outras costumam recorrer, a legislação daquela época dá-nos, também, um documento irrefragável de que o desprezo pela santidade do juramento se tinha tornado então demasiado vulgar(125). As suspeitas, nesta parte, deviam, de feito, ser mútuas; porque, se os cristãos-velhos acusavam os novos de empregarem testemunhas falsas para se defenderem, estes acusavam-nos a eles do mesmo expediente para os criminarem(126), e nós vamos ver que a afirmativa dos conversos nem sempre foi uma acusação vaga.

Era então (1528) núncio e legado a latere em Lisboa D. Martinho de Portugal, que, tendo ido por embaixador a Roma em 1525, para substituir D. Miguel da Silva, e sendo, também, revocado em 1527, Clemente VII encarregara de exercer aquelas funções na corte de seu próprio soberano(127). A causa dos três réus, o terceiro dos quais parece ter sido pouco depois apreendido, foi-lhe devolvida. D. Martinho era homem sem moral e sem crenças, para quem a religião não passava de um instrumento político e que, até, não recuaria diante da idéia de um assassínio, quando este pudesse aproveitar-lhe para quaisquer fins(128). Não lhe tolhia isso, segundo parece, o zelo pela exaltação da fé e perseguição das heresias, zelo cujo verdadeiro valor poderemos melhor apreciar nos seus atos como agente de D. João III em Roma. Não acharam nele os cristãos-novos favor ou misericórdia. Apresentaram-se como acusadores dos réus dous habitantes de Gouveia, Richarte Henriques e um certo Barbuda, e foi tal o número das testemunhas a favor da acusação que, apesar dos receios manifestados pelos juízes daquela vila sobre os meios de corrupção de que os cristãos-novos dispunham, os conversos não encontraram bastantes malfeitores e indivíduos mal morigerados para lhes contraporem. Condenados à morte, os três infelizes expiraram no meio das chamas abraçados com o crucifixo e invocando o nome de Cristo até o último suspiro(129). Antes, porém, do desfecho desse terrível drama, novas e graves suspeitas se haviam suscitado contra vários outros habitantes daquela vila. Expediram-se ordens de captura, e alguns deles foram presos e remetidos para a corte. Eram pessoas abastadas, e um magistrado de Coimbra que fora enviado àquela diligência, receando que os libertassem pelo caminho, mandou-os carregados de algemas. Da devassa que então se tirou resultava o mesmo que se achara acerca dos que já haviam sido presos. Eram judeus, como antes de batizados(130). Felizmente para eles, o seu processo devolveu-se ao tribunal eclesiástico ordinário, por ter, pouco depois, cessado a legacia de D. Martinho de Portugal. Provou-se ali até a evidência que um grande número de testemunhas da acusação tinham sido corrompidas e jurado falso. Queimados solenemente os depoimentos delas, foram soltos os presos. Só não consta que fossem punidos os que haviam mentido à sua própria consciência(131).

Não tardaram muitos anos que uma rixa suscitada entre Richarte Henriques e Barbuda viesse explicar porque os três cristãos-novos condenados ao suplício das chamas haviam morrido abraçados com a imagem do Salvador. Henriques acusou publicamente o seu consócio de ter sido ele quem cometera o desacato, quebrando a imagem da Virgem. As numerosas testemunhas da acusação eram falsas. Os parentes e amigos das vítimas recorreram então ao tribunal supremo do rei. Barbuda foi preso e conduzido ao cárcere da corte, d’onde dentro em pouco lhe deram fuga, ou ele pôde evadir-se. Sopitou-se o negócio por causa do grande número de testemunhas comprometidas ou, se acreditarmos o que diziam os cristãos-novos, por motivos mais ignóbeis ainda(132). Podiam ter acertado com judeus ocultos: acertaram com hebreus sinceramente convertidos. A Providência dava uma lição profunda: o fanatismo é que não a compreendia.

Estes fatos, que parece deverem ter, ao menos, modificado a opinião popular em Gouveia, não fizeram senão irritar mais os ânimos. O sistema das denúncias e processos judiciais era expediente moroso e de incerto resultado. Não bastavam a tantos ódios, nem o remoto teatro dos patíbulos e fogueiras de Lisboa, nem a afronta e extermínio de uma ou de outra família, de um ou de outro indivíduo. Os instigadores da perseguição impeliam a plebe a praticar os maiores excessos. Durante parte do ano de 1530 representaram-se em Gouveia contínuas cenas de anarquia. Muitas vezes, pelas horas mortas da noite, sentiam-se os dobres do sino da igreja matriz. A este sinal ajuntava-se o povo e, marchando em tumulto, soltava de vez em quando uma voz que dizia: «Justiça que manda fazer elrei nosso senhor em tais e tais hereges», proferindo os nomes de muitos cristãos-novos. Imediatamente, uma nuvem de pedras era arrojada contra as portas, janelas e telhados das vítimas designadas. Os indivíduos assim votados às brutalidades da gentalha não ousavam mais sair da sua habitação. Debalde o juiz de fora mandou proibir estes tumultos, ameaçando com severo castigo os perturbadores da paz pública. Provavelmente, sabiam que isso não passava de vã ameaça, e as assuadas redobraram de violência. Não ficaram, porém, aí. O zelo dos defensores do altar, aquecido pelas orgias noturnas, tinha crescido. Fingiram cartas régias e breves do núncio, imitando com tal arte as assinaturas, que facilmente iludiam qualquer. Nestes diplomas forjados autorizavam-se os cristãos-velhos a prenderem os conversos que lhes parecesse e a abrirem devassas acerca deles, a julgá-los e, até, a condená-los ao suplício das chamas. Munidos destes diplomas absurdos, procuraram vários mercadores mais crédulos e mais tímidos e extorquiram-lhes grossas somas, além de muitos panos e telas preciosas, asseverando-lhes que, se não dessem o que deles exigiam, seriam presos, julgados e punidos por crime de judaísmo. Houve alguns mais audazes que pugnaram judicialmente contra tais vexames; mas o muito que puderam obter foi passar-se-lhes um instrumento autêntico dos tumultos populares, deixando-se-lhes o triste recurso de se queixarem a D. João III das violências de que eram vítimas(133).

Onde, porém, a perseguição se manifestava com malevolência mais fria e calculada era no Alemtejo. Olivença com o seu território (que então pertencia a Portugal) formava uma espécie de Isento ou diocese à parte, regida pelo bispo de Ceuta, D. Henrique, homem dominado por implacável rancor contra a gente hebréia e que se acreditarmos os cristãos-novos, se guiava neste posto, só pelas delações e sugestões dos frades. Nos lugares da sua jurisdição pode-se dizer que existia já a Inquisição antes de regularmente estabelecida. Das suas visitas à diocese originava-se comumente a prisão de indivíduos de um e de outro sexo acusados de judaísmo. Os processos feitos àqueles desgraçados eram rigorosíssimos, e muitas vezes, deram em resultado serem os réus condenados ao fogo. O povo aplaudia com entusiasmo essas barbaridades. Certo dia em que alguns cristãos-novos foram queimados em Olivença, celebraram-se de tarde jogos de canas e corridas de touros para festejar aquele ato. Henrique veio a falecer de morte repentina em 1532, alguns meses depois de concedida a Inquisição pela primeira vez(134), quando, por isso, já não era a ele que tocava perseguir os judeus. Todavia, a história das suas atrocidades estava viva na memória de todos, e os cristãos-novos atribuiram a castigo do céu aquele gênero de morte, em que faltara ao prelado tempo para o arrependimento, por haver ultimamente condenado às chamas uma pobre velha e desvalida, depois de lhe denegar os meios de defesa, proibindo que se lhe revelassem os nomes dos seus acusadores e os das testemunhas dadas em prova da acusação(135).

No meio desta inversão completa das doutrinas do cristianismo, pela qual os ministros de um Deus de paz, os sacerdotes de uma religião de tolerância e de liberdade, que, longe de sacudirem o pó dos seus sapatos às portas de uma cidade que não os quisesse receber, despedaçavam nos tormentos os que, violentados a aceitarem o batismo, buscavam ocultar a crença que lhes ficara no coração, aparecia um homem de gênio cuja missão no mundo era a mais contrária que ser podia à vocação sacerdotal e alevantava a voz, acostumada a fazer rir grandes e pequenos, para revocar o sacerdócio ao cumprimento dos seus deveres. Falamos do nosso Shakespeare, de Gil Vicente. Achava-se o poeta em Santarém nos princípios de 1531. Ocorreu um tremor de terra. Os frades começaram a fazer práticas e sermões, atribuindo o fenômeno a castigo do céu por pecados que nomeadamente designavam e anunciando novo abalo a que fixavam dia e hora. Os cristãos-novos começaram a esconder-se espavoridos, sinal evidente de que a eles se referiam as alusões dos pregadores. Gil Vicente, vendo, talvez, propinqua a renovação das cenas de 1506 e condoído das pobres famílias hebréias, meias mortas de terror, soube exercer bastante influência para reunir os fanáticos denunciadores de tantos males no claustro do convento dos franciscanos e, em veemente e sólido discurso, lhe demonstrou o absurdo das suas doutrinas. A inteligência do poeta pôde iluminar, enfim, aqueles rudes espíritos, e os incitamentos para se perturbar a paz pública cessaram. Pregando aos pregadores as máximas da sã razão, o Plauto português representava um auto de novo gênero, impedindo com um discurso grave, embora a situação do orador tivesse um lado cômico, que Santarém se convertesse em teatro de horrível tragédia(136).

É preciso, também, confessar que, às vezes, surgiam no seio do próprio clero espíritos mais desafogados, ânimos verdadeiramente apostólicos, que ousavam protestar altamente contra as orgias da hipocrisia e do fanatismo. Foram dos mais notáveis o bispo do Algarve, D. Fernando Coutinho, e D. Diogo Pinheiro, bispo do Funchal, anciãos que haviam servido o seu país em cargos eminentes nos reinados de D. João II e de D. Manuel e que, nos conselhos daqueles monarcas, haviam sempre sustentado acerca dos hebreus os verdadeiros princípios da tolerância evangélica, princípios acordes com os da sã política. Os processos por crimes de judaísmo que caíam casualmente debaixo da sua jurisdição ou que lhes mandavam julgar terminavam-nos, por via de regra, pela soltura dos réus. Conhecendo a fundo a história da conversão dos judeus, que tinham presenciado, estavam profundamente convencidos de que tal conversão não passara de brutal violência. Para eles, do fato do batismo imposto à força não derivava obrigação alguma, e os conversos haviam ficado tão judeus como eram d’antes. Assim, supondo-os fora do alcance da sua jurisdição espiritual, davam-lhes a liberdade(137). Na ocasião em que já se pedia a Roma o estabelecimento da Inquisição, D. Fernando Coutinho chegou a manifestar as suas idéias a respeito do judaísmo de um modo mais severo, não só perante o tribunal metropolitano de Lisboa, mas também perante o desembargo d’elrei. Um homem do vulgo, morador em Loulé, e, segundo parece, cristão-novo, foi criminado de falar herética e indecentemente da virgem Maria. Acusava-o um oficial de justiça, e, levada a causa aos tribunais civis, foi remetida ao prelado como contendo matéria de heresia. Devolveu-a o bispo conjuntamente ao rei e ao arcebispo de Lisboa, dando as razões por que não queria intervir neste negócio. Ordenou-se-lhe então que o julgasse definitivamente. Irritou-se D. Fernando Coutinho e respondeu asperamente, devolvendo de novo o processo. Reduzia-se tudo a algumas palavras que o réu dissera num momento d’embriaguez. As circunstâncias da acusação haviam sido falsas; falsas as testemunhas que a roboravam. É notável a amarga ironia com que o antigo regedor das justiças, o bispo septuagenário, fala dos moços jurisconsultos, dos juízes inexperientes e a-la-moda que, para lisonjearem o rei ou as paixões do vulgo, encrueciam contra a raça hebréia. «Se eu não tivesse feito setenta anos — dizia ele — e fora homem deste tempo que corre, ainda assim havia de julgar falsa a prova, porque a sua falsidade é patente e claríssima aos olhos da jurisprudência. Tanto o meirinho que deu a querela, como as testemunhas deviam ir à polé». E acrescentava noutra parte: «Sem ser Pilatos, lavo minhas mãos deste negócio. Julguem-no os literatos modernos(138)». Não ocultava, porém, as suas opiniões a respeito da questão em geral dos cristãos-novos. Sentia que não só os batizados contra vontade no tempo de D. Manuel eram judeus, mas que, também, eram os filhos destes, levados por eles na infância à pia batismal. Com a mesma fina ironia com que falava dos modernos jurisconsultos, lembrava ao rei que o pior de tudo era terem resolvido em consistório o papa e o colégio dos cardeais, poucos anos antes, deixarem viver os hebreus em Roma, professando publicamente a lei de Moisés. O prelado terminava, todavia, recomendando que rasgassem aquele papel, o qual podia tornar insolentes os cristãos-novos e que, além disso,devia desagradar aos magistrados locais e aos ministros supremos das diversas províncias do reino(139).

Os temores do bispo de Silves eram infundados. D. João III, incitado, não só pelas suas propensões, mas também pelas instâncias da rainha e de alguns cortesãos(140), preparava já remédio eficaz para impedir a audácia dos cristãos-novos e o desgosto das pessoas influentes. Nos princípios de 1531 tinha-se, afinal resolvido aquilo para que tantos indivíduos por tanto tempo haviam lidado, a ereção de um tribunal da fé. Deram-se instruções ao embaixador em Roma, Brás Neto, para que impetrasse em muito segredo de Clemente VII uma bula que servisse de base ao intentado estabelecimento. As condições principais eram: que se tomasse por norma a Inquisição de Castela, dando-se aos inquisidores portugueses as mesmas atribuições que haviam sido concedidas aos do resto da Espanha ou mais, se mais se pudessem dar, e que fosse perpétua a concessão do novo tribunal; que o rei ficasse revestido dos necessários poderes para nomear os inquisidores e outros ministros e oficiais do mesmo tribunal, quer tirados do clero secular, quer do regular, incluindo as ordens mendicantes, e ainda para escolher, em caso de necessidade, alguns ministros leigos e casados, uma vez que tivessem ordens menores, sendo, além disso, autorizado para os substituir definitiva ou temporariamente e para nomear um inquisidor geral, também amovível, que presidisse aos outros e os dirigisse; que os novos inquisidores fossem revestidos de amplíssimas faculdades para processarem, condenarem, imporem quaisquer penas, exercendo em toda a plenitude o seu ministério, privando quem entendessem, quer fossem seculares quer eclesiásticos, de quaisquer dignidades, sem a mínima dependência dos prelados diocesanos e sem, sequer, darem disso parte a estes; que, desde o momento em que os inquisidores tomassem conhecimento de uma causa, ficassem os bispos inibidos de se intrometer na questão, podendo, pelo contrário, aqueles intervir nos processos começados por eles; que os bispos obedecessem aos inquisidores, logo que estes chamassem algum deles para degradar das ordens os eclesiásticos condenados, sem que importasse a diocese a que pertencia o prelado ou se o réu era seu súdito; que a Inquisição não conhecesse tão somente dos crimes de heresia, mas também dos de sortilégio, feitiçaria, adivinhação, encantamento e blasfêmia; que a ela pertencesse, em todos os precedentes delitos sujeitos à sua jurisdição, levantar excomunhões, minorar penas, reconciliar e absolver os réus; que o inquisidor geral ficasse autorizado para nomear inquisidores subalternos nas cidades, vilas, lugares e bispados que lhe parecesse conveniente, demiti-los e, bem assim, dar-lhes e tirar-lhes oficiais e ministros, vigiar estes, puni-los e absolvê-los; finalmente, que a Inquisição pudesse avocar a si quaisquer causas de heresia, estivessem em que juízo e estado estivessem, sem excetuar desta regra as que pendessem dos auditores, juízes e delegados apostólicos(141).

Séculos antes, o impetrante que pedisse ao primaz do ocidente a instituição de um tribunal eclesiástico, organizado com as condições que se pediam nesta instrução, moveria o riso ou a compaixão dos fiéis, e o papa ordenaria preces nos templos de Roma, para que Deus se condoesse do infeliz monarca e lhe restituísse a alienada razão. No começo do século XVI não sucedia assim. A pretensão tinha dificuldades; mas como o tempo o demonstrou em Portugal e já o tinha demonstrado em Castela, não era absolutamente impossível. Importava, apenas, a quase anulação do episcopado, a translação de parte das suas mais elevadas funções para os delegados do poder civil, a sujeição dos bispos, não a regras estabelecidas, mas aos simples caprichos dos inquisidores. Se qualquer prelado caísse no desagrado deles, poderia ser acusado, processado, condenado, exautorado, sem que aos seus co-epíscopos, ao seu metropolita, sequer, fosse lícito intervir nessa subversão monstruosa de toda a disciplina da igreja. No centro daquela rede imensa de inquisidores, notários, promotores, consiliários, procuradores, carcereiros, alguazis, rede que abrangeria, em breve, todo o país e cobriria todas as cabeças, porque ninguém tinha a certeza de nunca ser reputado feiticeiro ou herege, estava o inquisidor geral, nomeado pelo rei, amovível à vontade dele e que, por conseqüência, era, apenas, um instrumento passivo nas suas mãos. Assim, o monarca ajuntaria ao terror do poder civil toda a força do terror religioso exercida indiretamente sobre os súditos, e D. João III chegaria por meio do excesso de zelo católico a obter o mesmo resultado que Henrique VIII de Inglaterra obtivera quebrando a unidade da igreja. Cumpre por outra parte confessar que, estabelecida a Inquisição com as funções que se lhe atribuíam, e posto à frente dela um inquisidor-mor, um chefe supremo e absoluto, esse homem, se não dependesse inteiramente do príncipe, seria, mais do que este, posto que de modo indireto, o verdadeiro rei de Portugal. Não havia fugir daquele dilema, logo que se pretendia anular a autoridade dos bispos, introduzindo na economia da igreja um elemento novo. Ou a servidão do império, ou a servidão do legítimo sacerdócio.

Tal era a pretensão, considerada sob o aspecto das mútuas relações da sociedade civil com a sociedade religiosa. Política e moralmente olhada, era ela, ao mesmo tempo, um gravíssimo erro administrativo e uma baixa traição da parte de D. João III. Se o negócio transpirasse, como depois veremos que transpirou, os cristãos-novos mais abastados procurariam pôr-se a salvo de uma instituição cujas atrocidades habituais soavam por toda a Península e que não havia motivo de esperar fosse mais humana em Portugal, onde, ainda antes dela, o espírito de perseguição se manifestava já com tanta violência. O país decadente, carregado de dívida pública, falto de instrução e de indústria, perderia cabedais, homens dados à cultura das ciências, artífices hábeis, contribuintes opulentos; boa parte, em suma, do que constitui o nervo da sociedade civil, a classe média. É certo, porém, que a isto se procurava remédio com o que há mais torpe nas covardias humanas; com um ato análogo ao do assassino robusto e armado que busca pelas trevas o fraco e inerme para lhe sair na encruzilhada e apunhalá-lo pelas costas. D. João III tinha confirmado de 1522 a 1524 todos os privilégios da gente hebréia, e entre eles os que lhe prorrogavam as garantias de segurança individual e de imunidade material até 1534. Posto que revogar essas confirmações fosse uma indignidade, cousa era que estava dentro da órbita do seu poder absoluto; mas deixá-los na certeza de que a lei os protegia e ordenar em 1531 que subrepticiamente(142) se obtivesse uma cousa que não só invalidava todas essas concessões, mas também estabelecia positivamente os fatos contrários, a intolerância, a espoliação, o cativeiro e o suplício, por maneira tal que às vítimas da deslealdade nem fosse lícita a fuga, pelo impensado do sucesso, cousa é que não tem nome. E era sobre a cabeça de um rei tal que assentava a coroa de D. João I, do heróico e leal soldado de Aljubarrota!

O embaixador Brás Neto, munido da crença especial que, para tratar este delicado assunto, lhe fora enviada com as respectivas instruções, propôs a Clemente VII a pretensão do seu soberano. Não chegaram até nós memórias particularizadas sobre todas as fases por que passou o negócio. Sabemos, porém, que o cardeal Lourenço Pucci, uma das personagens mais influentes na cúria, a quem o embaixador português julgara conveniente comunicá-lo, mostrou grande repugnância a contribuir para uma resolução favorável. Quanto a ele, o que semelhante tentativa parecia indicar era o intuito de espoliar a gente hebréia das suas riquezas, revelando o mesmo pensamento que se atribuía à Inquisição de Castela(143). A sua opinião sobre o modo de proceder com os cristãos-novos era que se deixassem professar publicamente a religião de Moisés os que quisessem voltar à antiga crença, embora os que preferissem ficar no grêmio do cristianismo fossem punidos rigorosamente, se delinquissem contra a fé(144). Não obstante ponderar-lhe Brás Neto o escândalo que nasceria daquela faculdade dada aos judeus, o cardeal mostrou-se firme no seu voto. Segundo dizia, faziam-lhe peso as violências que houvera na época da conversão. Era, realmente, este o motivo da repugnância do velho cardeal? O agente de D. João III suspeitava que não. Sabia que, apesar do segredo que se lhe tinha recomendado, antes de partirem as instruções o negócio transpirara em Lisboa. Receava que d’aí procedesse a resistência de Pucci. Vivia em Roma um hebreu português chamado Diogo Pires, que fora escrivão dos ouvidores da Casa da Suplicação e que saíra de Portugal para a Turquia a abjurar o batismo que lhe havia sido imposto. Vindo a Roma, obtivera do papa um breve para que ninguém o incomodasse por tal motivo, e ali vivia com grande reputação de santidade entre os outros judeus, a quem costumava expor as doutrinas mosaicas. Tinha Diogo Pires entrada com o papa e cardeais e o embaixador temia-se dele não só pela sua influência pessoal, mas também porque os conversos de Portugal, com quem conservava relações de amizade, lhe poderiam enviar dinheiro para obstar às pretensões de D. João III por meio da corrupção, e Brás Neto suspeitava que algum sobrinho ou cubiculário de Pucci ou do próprio papa andasse metido nisto. Entretanto ele esperava vencer essas dificuldades(145).

Dava-se, porém, uma que embaraçava seriamente o progresso do negócio. Para o facilitar, importava, sobretudo, instituir a Inquisição de Portugal de modo análogo ao da Inquisição de Castela. A súplica ao papa devia ser redigida, não exclusivamente conforme as instruções de D. João III, mas em harmonia com as concessões feitas aos reis católicos pelos papas, precedente importante que se podia invocar. Essas bulas relativas a Espanha não se encontravam, porém, nos registros pontifícios, apesar de aí as fazer procurar o embaixador, pagando com mão larga. D’aqui resulta um obstáculo para se poder tratar oficialmente o assunto, ao menos de modo definitivo, tornando-se necessário, por isso, que elrei secretamente houvesse cópia delas de Castela e que remetesse o traslado para Roma, onde apenas se achava uma bula relativa à Inquisição contra os hereges de Alemanha, bula cujas disposições não satisfaziam os postulados das instruções, mas por onde, entretanto, ele se resolveria a fazer a súplica, salvo ampliar-se este logo que chegassem os transumptos pedidos. Finalmente, Brás Neto exigia d’elrei que o habilitasse com o meio mais poderoso para abreviar tais negócios na cúria romana, o dinheiro necessário; porque não achava quem lh’o quisesse dar por letras sacadas sobre o erário de Portugal(146).

Se as cópias das bulas de Sixto IV e Inocêncio XIII que se pretendiam apareceram em Roma ou se foram de Portugal, obtidas de Castela, ignoramo-lo. O que é certo é que já nos princípios de agosto o negócio da Inquisição estava bastante adiantado. Do que Brás Neto se queixava era da falta de dinheiro. Pucci tinha, segundo parece, modificado as suas opiniões. Nesta época o embaixador, longe de achar dificuldades da parte dele, lamentava-se de que uma doença gravíssima o inabilitasse do serviço da cúria, o que retardava os negócios de Portugal. Temia que recrescessem maiores embaraços, se ele morresse, o que receava, atenta a sua avançada idade(147). Estes receios eram fundados; porque Lourenço Pucci veio a falecer no mês seguinte. Se acreditarmos memórias coevas, a cúria romana perdeu nele um homem cujos caracteres prominentes eram o orgulho e uma cobiça insaciável. Gozava de tal reputação que em Espanha haviam recusado aceitar por núncio um seu sobrinho homem insignificante, mas que podia, ligado, com o tio, meter tudo a saco. Na própria Roma foi acusado perante Adriano VI de mercadejar em indulgências sem nenhum rebuço, acusação que, como é fácil de supor, a cúria achou improcedente(148). Antonio Pucci, um desses sobrinhos de quem se temia o embaixador português, foi promovido ao cardinalato em substituição do tio, com o mesmo título dos Quatro-Santos-Coroados (Santiquatro) que ele tivera. O novo cardeal vê-lo-emos figurar como protetor de Portugal(149) nas várias fases através das quais se protraiu por tão largo tempo o definitivo estabelecimento da Inquisição(150).

Posto que, segundo parece, os cristãos-novos não tivessem quem, oficialmente e como representante deles, advogasse a sua causa em Roma(151), todavia, nos concelhos de Clemente VII havia muitos que contradissessem a concessão pedida. Distinguiam-se entre eles o cardeal Egidio e Jerônimo de Ghinucci, bispo milevitano, elevado depois ao cardinalato por Paulo III. O papa mostrava-se inclinado ao voto destes seus conselheiros ou, pelo menos, não combatia as ponderações que faziam. A resistência, porém, daqueles prelados foi, como vamos ver, inutilizada por outras influências. Entretanto eles deixaram de intervir na resolução definitiva do negócio, ou porque se abstivessem voluntariamente de entender nele ou porque se esperasse a conjuntura da ausência de ambos para afinal o decidirem(152).

Fosse que elrei não julgasse o embaixador Brás Neto assaz ativo para apressar quanto ele desejava a conclusão de um negócio em que tanto se empenhava; fosse por qualquer outro motivo, é certo que um novo agente diplomático, Luiz Afonso, foi enviado a Roma em setembro de 1531. Todavia, as cousas tinham chegado a tais termos antes do falecimento do velho Pucci, que se julgava seguro o êxito da empresa; ao menos, a memória que nos resta da ida de Luiz Afonso a Roma naquela conjuntura diz-nos que ele levava já designado como inquisidor geral o confessor d’elrei, Fr. Diogo da Silva, frade da ordem dos mínimos de S. Francisco de Paula, e cartas para os cardeais d’Osma e Santiquatro, a fim de favorecerem a rapidez do despacho. A designação do inquisidor geral prova que o papa não deixava inteiramente ao alvedrio d’elrei o provimento daquele cargo na forma pedida; mas prova, também, que D. João III estava certo de que na cúria romana a concessão do tribunal da fé em Portugal era matéria resolvida(153).

Efetivamente, a 17 de dezembro expediu-se uma bula dirigida ao mínimo Fr. Diogo da Silva, pela qual o papa o nomeava comissário da sé apostólica e inquisidor no reino de Portugal e seus domínios. Os fundamentos dessa bula eram que, tendo-se tornado comuns neste país os fatais exemplos de volverem aos ritos judaicos muitos cristãos-novos que os haviam abandonado(154) e de os abraçarem outros que, nascidos de pais cristãos, nunca tinham seguido aquela crença, acrescendo o disseminar-se no reino a seita de Lutero e outras igualmente condenadas e, bem assim, o uso de feitiçarias reputadas heréticas, se conhecera a necessidade de atalhar o mal com pronto remédio, de modo que a gangrena não eivasse os espíritos. À vista destas considerações, o papa revestia o dito inquisidor de atribuições extraordinárias, dando-lhe a faculdade de inquirir, havendo suficientes indícios, e a de proceder à captura e encarcerar, condenar e impor penas (de acordo com os prelados diocesanos, ou sem esse acordo, se eles, chamados a isso, recusassem intervir) a quaisquer indivíduos implicados, direta ou indiretamente, em tais delitos sem exceção de pessoa alguma, fosse qual fosse o seu estado, qualidade, condição ou jerarquia, nomeando procurador fiscal, notários e os outros oficiais necessários para deles se servir no desempenho das funções que lhe eram cometidas, do modo que conviesse ao bom expediente da Inquisição, podendo escolher para este efeito clérigos ou frades, sem dependência da permissão dos respectivos superiores. Autorizava-o, ainda, para intervir e proceder cumulativamente com os prelados ordinários em todas as causas relativas aos delitos mencionados na bula, já previamente começadas pelos bispos, e a convocar qualquer destes para coadjuvarem o diocesano, quando fosse preciso degradar das ordens algum eclesiástico incurso nos crimes contra a fé, constrangendo à obediência os renitentes pelos meios jurídicos e invocando o adjutório do braço secular. Dava-lhe poderes para absolver, depois da abjuração e juramento de não reincidirem, quaisquer pessoas incursas nos casos previstos na bula, impondo-lhes penitências, se o entendesse conveniente e quais entendesse, admitindo os réus ao perdão da santa sé e à unidade da igreja e minorando as penas canônicas. Finalmente, habilitava-o para fazer nesta parte o que julgasse oportuno para refrear os delitos religiosos, extirpá-los radicalmente e tudo o mais que, por direito e costume, pertencesse ao ofício inquisitorial. Para se facilitar a execução destas providências, o inquisidor geral ficava autorizado para nomear seus delegados eclesiásticos idôneos, com tanto que estivessem constituídos em dignidade ou fossem mestres em teologia, doutores ou licenciados em direito civil ou canônico ou membros de algum cabido, transmitindo-lhes as mesmas faculdades e jurisdição a ele concedidas e podendo demiti-los e substitui-los por outros quando lhe aprouvesse. O papa derrogava para este caso as constituições e ordenações apostólicas contrárias aos fins da bula e revogava todos os indultos particulares, concedidos pelos pontífices, que estivessem no mesmo caso e que de qualquer modo pudessem impedir ou retardar os efeitos das provisões contidas naquele diploma(155).

Tais foram as bases sobre que se estabeleceu a Inquisição em Portugal como instituição permanente. Os fundamentos da bula de 17 de dezembro, conforme o leitor acaba de ver, eram em parte falsos, em parte dolosos e em parte ridículos. É altamente cômica a gravidade com que homens do século de Leão X, da época mais brilhante da ciência e da literatura d’Itália, procuravam obstar a que os portugueses fossem enfeitiçados por bruxas e encantadores, cujos delitos não passavam de bulras, e cuja punição razoavelmente incumbia ao poder civil. Dizer que as seitas dissidentes que então se espalhavam na Europa tinham penetrado em Portugal era cousa tão contrária à verdade, que nos monumentos públicos ou secretos do país relativos àquele tempo não é possível encontrar o menor vestígio de semelhante fato. Quanto aos hebreus, as frases da bula são inexatas e capciosas no mais subido grau. Os judeus não se haviam afastado (discesserant) da lei de Moisés: tinham-nos arrancado brutalmente a ela. Judaizando, não voltavam ao judaísmo; conservavam-se imutáveis na sua crença. Por outra parte, que indivíduos eram esses que, nascidos no seio do cristianismo, trocavam a religião do Gólgota pela do Sinai? Eram os filhos dos supostos conversos; eram os filhos desses homens que, para evitarem a perseguição e a morte, os levavam à pia batismal sem crerem no batismo e que, depois de uma cerimônia para eles irrisória, os educavam na religião de seus avós. Os únicos culpados de tais sacrilégios eram os hipócritas e os fanáticos que substituíam a intolerância à liberdade e à doçura evangélicas. Nas expressões da bula havia uma anfibologia vergonhosa. Não se reputavam cristãos os que, judaizando a ocultas, só na aparência eram sectários do evangelho. Estes vinham a ser renegados. Em relação, porém, a seus filhos bastava que eles os tivessem levado a batizar, sem crerem no batismo, para os reputarem bons cristãos e ser, portanto, válido o sacramento. A mesma circunstância das exterioridades valia ou não valia, conforme servisse a favor ou contra eles.

Cumpre confessar que nas disposições da bula de 17 de dezembro a cúria romana soube evitar, até certo ponto, o absurdo contido nas instruções enviadas a Brás Neto, segundo as quais elrei pretendia tornar o inquisidor geral instrumento exclusivamente seu e, por via dele, exercer despotismo absoluto sobre as consciências dos súditos. Embora a escolha do indivíduo em quem o cargo havia de recair naquela conjuntura fosse indicada de Lisboa; oficialmente, era ela feita pelo papa, que podia demiti-lo, suspendê-lo ou substituí-lo sem revogar, em tese, ou, sequer, modificar, a nova instituição. O instinto do próprio interesse e o ciúme do próprio poder tinham bastado para acautelar a cúria romana contra semelhantes pretensões. Alterado assim este ponto, essas condições aviltantes que se impunham ao episcopado e essa inferioridade em que o colocavam relativamente à Inquisição, longe de ofenderem a cúria, só ofendiam as tradições primitivas da igreja, ao passo que aumentavam indiretamente o poder de Roma. Ressalvando a concorrência dos prelados diocesanos no julgamento das causas sujeitas ao novo tribunal, mas deixando incertos a extensão e os limites desta concorrência e referindo-se vagamente ao direito, aos costumes e à utilidade, o papa abria campo imenso às colisões e competências, cuja resolução lhe pertencia. Como Moisés tocando o rochedo com a vara, criava um manancial opulento de dependências e proventos nas dúvidas e antagonismos que preparava. Se a bula de 17 de dezembro não brilhava nem pela solidez dos motivos, nem pelos princípios de justiça e de boa disciplina contidos nas suas provisões mais importantes, não deixava por isso de ser monumento digno de uma política artificiosa e previdente.

Enquanto estas cousas se passavam, D. João III não se esquecia de tomar providências para que os primeiros atos da Inquisição fossem ruidosos e demonstrassem, pelo número das vítimas e pelas provas da gravidade e extensão do mal, a necessidade do remédio. Os meios empregados para obter este fim foram análogos àqueles a que até aí se recorrera para achar fatos conducentes à ereção do tribunal, isto é, as revelações obtidas nas trevas. O que, porém, aquele sistema constante indica é que à vigilância odienta de um fanatismo exaltado continuavam a faltar atos externos e positivos dos cristãos-novos que justificassem o encarniçamento implacável dos seus inimigos. Elrei dirigiu uma carta aos membros da Inquisição de Sevilha, onde era o centro daquele terrível instituto, pedindo que se lhe comunicassem as informações que houvesse acerca dos judaizantes, tanto espanhóis como portugueses, residentes em Portugal. Hesitaram os inquisidores. Temiam que, procedendo-se neste país com menos prudência e segredo, por falta de hábito dos usos inquisitoriais, os réus capturados, especialmente os castelhanos que, tendo podido evadir-se, haviam sido justiçados em estátua, viessem a saber quem tinham sido em Castela os seus denunciantes e as testemunhas que contra eles haviam jurado. Os protetores e amigos que lá restavam ainda a muitos dos foragidos podiam assim exercer vinganças ocultas que, intimidando outros, tolhessem o progresso das delações e a eficácia do tribunal. Tomaram, portanto, um termo médio. Ofereceram ao embaixador português, Álvaro Mendes de Vasconcellos, por quem o negócio correra, comunicar-lhe traslados das confissões e depoimentos de alguns judeus que, condenados por contumazes e queimados em estátua, se tinham posto em salvo, passando a Portugal. Quanto aos mais, deixariam examinar os processos ao embaixador e a outros cavalheiros portugueses que se achavam então na corte de Castela e tomar desses processos as notas que julgassem oportunas para informarem secretamente D. João III daquilo que desejava saber(156).

À vista dos fatos que se passavam em Portugal antes de se obter o resultado das solicitações que se faziam em Roma, fácil é de prever quais seriam as conseqüências da publicação da bula de 17 de dezembro. Os privilégios e garantias dos cristãos-novos, que a autoridade civil havia concedido e roborado sucessivamente desde 1507, desapareciam diante daquele ato pontifício, solicitado e, portanto, avidamente aceito pelo poder temporal. Não era só a essência do direito de proteção que se invalidava; eram as próprias fórmulas judiciais que ficavam anuladas. As delações, as prisões, a ordem do processo, tudo isso ia ser regulado por um sistema novo, e tudo isso vinha a ser entregue ao alvedrio dos inveterados inimigos dos conversos. Não eram, porém, unicamente o novo tribunal e os novos juízes, a perseguição metódica e regular, que tinham de temer: eram, também, os ódios acumulados sobre suas cabeças, que se podiam agora manifestar despejadamente; era o fanatismo popular, exaltado pelo triunfo e certo do favor assim do chefe da igreja como do chefe do estado. Nada mais fácil do que renovarem-se as cenas de 1506, e, se alguma cousa havia que pudesse mitigar os furores que se desencandeavam, seria o excesso da perseguição legal. Atenta a irritação dos ânimos, o único meio de conter a anarquia consistia em oferecer bastantes vítimas no altar da intolerância; consistia em substituir uma crueldade tranqüila, mas ativa e inexorável, à ferocidade turbulenta do vulgacho fanatizado.

Só em fevereiro de 1532 podiam chegar a Portugal os diplomas necessários para o estabelecimento da delineada Inquisição(157). Por maiores que fossem os desejos d’elrei e dos seus conselheiros para realizarem quanto antes os desígnios de tantos anos, a organização definitiva do novo tribunal carecia das providências indispensáveis para se proceder regularmente, visto que a bula de 17 de dezembro não indicava, nem podia indicar, o? meios de execução. Por outro lado, as informações pedidas à Inquisição de Castela estavam dependentes dos exames propostos pelos inquisidores, exames que deviam ser longos e tediosos. Estas circunstâncias, independentes de quaisquer outras, explicar-nos-iam por si sós a falta de todos os vestígios da publicação e execução da bula de 17 de dezembro, pelo menos nos primeiros seis ou oito meses de 1532. Se, porém, acreditarmos as narrativas feitas, anos depois, pelos cristãos-novos perante a cúria romana, aquele importante diploma ocultou-se cuidadosamente até se poder completar a série de deslealdades e violências que contra eles se tinham até aí praticado. Posto que se deva dar desconto às afirmativas dos conversos, a quem os atos dos seus implacáveis inimigos serviam de desculpa para empregarem contra eles todas as armas, é altamente plausível o motivo a que, sobretudo, atribuiam aquela demora. Este motivo vinha a ser a promulgação de uma lei que se preparava e que cumpria fosse posta em vigor ao mesmo tempo, não só nos lugares marítimos do reino, mas também nos que avizinhavam a raia entre Castela e Portugal, e isto antes que a Inquisição começasse a exercer as suas terríveis funções(158).

Essa lei veio, finalmente, a aparecer a 14 de junho daquele ano. Por ela se ampliavam e punham de novo em vigor os alvarás de 20 e 21 d’abril de 1499, suscitando-se ao mesmo tempo a rigorosa observância da ordenação do reino, que, em harmonia com a limitação imposta na carta de lei de 1 de março de 1507, proibia a passagem dos cristãos-novos para África(159). Esta carta de lei era, porém, revogada indiretamente na parte favorável à raça hebréia. Todos os indivíduos dessa raça, portugueses e espanhóis, quer fossem dos primitivos conversos, quer fossem filhos ou netos destes, ficavam inibidos de sair do reino, não só para terras de mouros, mas também para qualquer país onde dominasse o cristianismo. A própria mudança para os Açores ou para as outras ilhas e colônias portuguesas lhes era proibida. Cominavam-se aos contraventores maiores de 17 anos a pena última e o confisco e aos menores uma penalidade arbitrária. Aos que lhes dessem adjutório ou os conduzissem para além da fronteira d’Espanha impunha-se degredo e perdimento de bens, e os capitães e mestres de navios que os transportassem por mar aos outros países da Europa, além da perda da fazenda, seriam condenados à morte. Decretavam-se degredos e confiscos contra os cristãos-novos que enviassem seus haveres para os outros países e contra quaisquer indivíduos que lh’os levassem: proibia-se-lhes tomarem letras de câmbio para fora do reino sem o declararem primeiro perante os magistrados, dando, além disso, fiança de fazerem entrar dentro de um ano nos portos do reino mercadorias de valor igual aos saques feitos sobre as praças estrangeiras. Finalmente, vedava-se absolutamente a todos os indivíduos e corporações comprarem aos cristãos-novos bens de raiz ou qualquer título de rendimento, sob pena de perderem para o fisco a cousa comprada e de pagarem, tanto o vendedor como o comprador, uma multa equivalente ao preço da transação. Os efeitos desta lei deviam durar por espaço de três anos, começando-se a contar esse prazo dois dias depois da sua publicação na corte e nas cabeças de comarca, e passados oito nos termos de cada uma delas(160).

A promulgação de semelhante lei era o complemento de todos os atos que a precederam. Havia em parte dela a franqueza do despotismo, posto que, noutra, fosse modelo de má fé. O seu preâmbulo tinha um mérito raro na legislação daquela época, a simplicidade. Constava a elrei que muitos cristãos-novos, saindo para terras de cristãos, passavam às dos infiéis. Eis o fundamento de todas aquelas bárbaras provisões. Nada, porém, mais natural do que esse fato. Dos que saíam, bom número, por certo, conservavam ainda as crenças de seus maiores ou as da sua infância, e, portanto, deviam buscar viver nos lugares onde achassem maior tolerância da parte da religião dominante. Mas o que faziam agora tinham-no feito sempre, e isso não obstara a que D. Manuel lhes concedesse as liberdades de 1507 e lh’as prorrogasse até 1534, nem que ele próprio, rei legislador, revalidasse por atos sucessivos e espontâneos as justas e judiciosas concessões de seu pai. Consideradas à luz da conveniência material do país e, ainda, do interesse da religião, essas concessões haviam sido evidentemente salutares. A liberdade de saírem do reino com suas famílias e bens devia ter sido aproveitada pelos hebreus mais exaltados nas suas crenças; pelos fanáticos da religião mosaica, que os tinha, por certo, como todas as outras religiões. Os que ficavam, ou eram tão tíbios que aceitavam a máscara de cristãos, renegando exteriormente da própria fé, ou eram indivíduos sinceramente convertidos. Desamparados dos sectários mais ardentes, obrigados a preterir as fórmulas externas do culto, fórmulas indispensáveis para conservar quaisquer doutrinas religiosas entre os espíritos vulgares, os hebreus portugueses não tinham meio de evitar, dentro de certo período, a transformação religiosa. Um dos indícios dela mais significativos acha-se, de feito, assinalado já em vários documentos desse tempo escritos pelos seus adversários. É a acusação de que muitos deles não eram nem judeus, nem cristãos. Essa fase da transição era obviamente inevitável. Assim, a tolerância teria sido fatal ao judaísmo, ao passo que as fogueiras da Inquisição não fizeram senão fortificá-lo para uma luta passiva, mas enérgica, de perto de três séculos, perpetuando-a pelo que há mais prolífico para qualquer crença, quer religiosa, quer política: pelo sangue dos mártires. Os efeitos econômicos dessa tolerância não teriam sido menos importantes, pelos motivos que já mais de uma vez temos ponderado. Tanto é verdade que as doutrinas evangélicas, na sua pura e bela simplicidade, são as mais próprias para desenvolver na terra, não só o bem moral, mas ainda a ventura e o progresso material da sociedade civil.

O leitor estará lembrado da opinião que havia em Roma, e da qual, a princípio, se tornara intérprete o cardeal Lourenço Pucci (homem entendido, como vimos, em matéria de extorsões feitas à sombra da religião) de que as pretensões de D. João III acerca do estabelecimento de um tribunal da fé tinham, sobretudo, por incentivo a idéia de espoliar os hebreus, que constituíam a classe mais opulenta do país. A lei de 14 de junho parecia ter por alvo justificar aquela opinião. A respeito das provisões nela contidas, pelas quais os indivíduos de raça hebréia eram postos, quanto aos seus bens, fora do direito comum, isto é, pelas quais se lhes impunha uma pena antes de se lhes provar o delito, o preâmbulo daquele documento legislativo não dava explicações algumas. Ao ver os meios violentos que se empregavam para obstar a toda e qualquer alienação de propriedade que eles pretendessem fazer e o rigor com que se vedava a saída do reino aos seus cabedais e, ainda, à mínima parte deles, dir-se-ia que os fautores e propugnadores da Inquisição estavam persuadidos de que a ímpia lei do Sinai(161) eivava já dos seus erros os campos, as árvores, as alfaias e, sobretudo, os cofres dos indivíduos pertencentes àquela raça maldita. Não era só necessário obrigar os homens a crer aquilo a que repugnavam as suas convicções; era indispensável cristianizar-lhes a fazenda. Convencidos de hereges no novo tribunal, seguia-se para eles, além de outras penas canônicas e civis, o perdimento dos bens, e o fisco, pondo remate à obra dos inquisidores, iria verter a miséria e a fome, no meio das agonias de dolorosa saudade e da desonra do suplício de pais, maridos e irmãos, entre as famílias das vítimas.

Por mais disfarces que se inventassem, por maior recato que houvesse em esconder o conteúdo da bula de 17 de dezembro, era impossível que os cristãos-novos o ignorassem, eles a quem não fora possível ocultar as diligências que se faziam em Roma para a obter. Quando, porém, não conhecessem perfeitamente a extensão do perigo que os ameaçava, a lei de 14 de junho era como um facho de luz sinistra que iluminava a voragem aberta a seus pés. A rapidez quase incrível, atentos os difíceis meios de comunicação daquele tempo, com que ela se publicou por todos os ângulos do reino acabava de revelar a eficácia com que se pretendia que as suas provisões não ficassem numa vã ameaça(162). Qual devia ser o terror desta gente, que tantas provas tinha ultimamente recebido da malevolência popular, vendo-se encerrada subitamente no país como numa vasta prisão, fácil é de imaginar. Já nos anos passados, quando começaram a rebentar por diversas partes as violências que anteriormente descrevemos, os cristãos-novos haviam recorrido a elrei para que lhes fizesse manter seus privilégios e nele tinham achado, senão boas obras, ao menos as boas palavras da dissimulação. Persuadidos de que nenhuma outra cousa havia a esperar, alguns mais previdentes tinham abandonado a pátria(163); mas o grande número ainda confiava em que elrei não ousaria colocar-se abertamente à testa da perseguição, com quebra da fé pública. A lei de 14 de junho vinha dar-lhes cruel desengano. A Inquisição, com todas as atrocidades de que o resto da Península era teatro, surgia ante seus olhos como um espectro. Para eles cifrava-se a perspectiva do futuro na morte e só na morte(164). Os mais audazes, apesar do rigor das penas impostas contra os que buscassem esquivar-se à sorte que os esperava, tentaram a fuga, uns com feliz, outros com infeliz êxito. Se acreditarmos as memórias escritas pelos cristãos-novos, as barbaridades usadas com os apreendidos na tentativa foram tais, que reputavam preferível o viver na Turquia e, até, na companhia dos demônios a residir em Portugal(165). Sem que deixemos de crer que nas queixas dos perseguidos houvesse, uma ou outra vez, exageração, é certo que os fatos até aqui narrados, o ódio do povo e o espírito que inspirara as provisões de 14 de junho habilitam-nos para avaliarmos as terríveis dificuldades que teriam a vencer os que tentassem a fuga, e quais seriam as conseqüências da tentativa para aqueles que fossem colhidos na empresa. Quanto mais conspícuos ou mais abastados, mais custoso lhes seria salvarem-se; porque com maior vigilância lhes observariam os passos. Para aqueles cuja fortuna consistia em propriedade territorial tornava-se impossível tal empenho; porque não tinham meio de realizar as avultadas somas que seriam necessárias para corromper os oficiais públicos ou para mover os cristãos-velhos a porem-nos em salvo. Nesta situação, o primeiro expediente que lhes ocorreu foi o das súplicas ao rei. Eram tão óbvios, tão indubitáveis os fundamentos dessas súplicas, que, por isso mesmo, se tornavam inúteis. D. João III e os seus ministros bem sabiam que a lei de 14 de junho representava a quebra de toda a fé pública, a violência levada ao grau de tirania, o escárnio do direito comum. Não nascera d’ignorância o seu proceder; nascera de propósito deliberado. Invocar, portanto, a moralidade, o direito, os foros da liberdade civil era aos olhos do poder uma petição de princípios; era uma inutilidade. Elrei havia-se colocado acima de tudo isso e, caluniando a religião, tinha condenado em nome dela todas as idéias da moral e do direito. Como se devia ter previsto, as diligências dos cristãos-novos para obter a revogação da lei foram completamente baldadas(166).

Restava-lhes o recurso extremo: apelar para a cúria romana, visto que este negócio se resumia, ao menos ostensivamente, numa questão religiosa. Adotaram-no. Cumpre, porém, apreciar o valor deste arbítrio. A primeira conseqüência dele vinha a ser exacerbar o ânimo d’elrei, suscitando-lhe resistências demasiado sérias ao complemento dos desígnios que nutria(167). Associados e organizados, como já vimos que estavam para se defenderem, e possuindo avultadas riquezas, tinham os meios de criar em Roma um partido seu, partido que, naturalmente, havia de encontrar ali simpatias desinteressadas entre os homens justos, sensatos e que estivessem possuídos do verdadeiro espírito evangélico. Mas, supondo que esse partido chegasse a fazer inclinar o ânimo do pontífice a favor dos cristãos-novos, quaisquer resultados que d’aí proviessem seriam mais eficazes para incomodar e irritar os seus adversários do que para os salvar a eles. Estava provado que o poder civil não recuava diante de nenhumas considerações de ordem moral, e, ainda que pelo favor de Roma obtivessem evitar os horrores da Inquisição, ao rei e aos instigadores da perseguição não faltariam expedientes para realizarem por outro modo os seus planos d’extermínio.

Entretanto a publicação da lei de 14 de junho produzia no ânimo do povo os efeitos que era fácil prever. Necessariamente, a notícia da bula de 17 de dezembro tinha transpirado e corrido pelo reino, mais ou menos desfigurada. Os sectários da intolerância que penetravam nos conselhos do monarca e que, até, o impeliam, não poderiam resistir por muito tempo à vaidade de assoalhar o próprio triunfo. A promulgação daquela lei confirmava esses vagos rumores. A plebe, movida pelo fanatismo e por paixões vis, habituada já a insultar os cristãos-novos, agitou-se e começou a perpetrar novos excessos. As cenas representadas anteriormente em Gouveia repetiram-se por diversas partes. Lamego tornou-se um dos principais teatros desses escândalos. O quadro do que aí se passava faz-nos conceber quais cenas se representariam obscuramente por outras partes. Apenas se publicou ali a ordenação que inibia os conversos de saírem do reino, logo correu voz do que tal procedimento significava. Dizia-se que a mente d’elrei era estabelecer a Inquisição e mandá-los queimar a todos. A gente baixa afirmava que era uma inutilidade construir novos edifícios; porque facilmente se acharia depois morada nas ermas habitações dos judeus. Faziam conventículos nos quais se discutia a quem havia de tocar tal ou tal propriedade ou as alfaias deste ou daquele cristão-novo, e lançavam sortes sobre os prédios urbanos que eles possuíam. Vociferavam, acusando elrei de tíbio, porque não os mandava meter todos à espada, sem esperar por demorados processos. Este dizia que estava fazendo plantios de bosques para criar lenhas com que os queimassem; aquele que tinha de afiar a espada para se armar cavaleiro no dia da matança. Os camponeses que vinham ao mercado associavam-se nos ferozes gracejos à gentalha da cidade, assegurando que já estavam prontos os feixes de vides para acender as fogueiras, e que deixariam em herança a seus filhos perseguirem os judeus a ferro e fogo. Havia, até, quem afirmasse ter já prestes todos os seus parentes para irem jurar contra eles. Os mais moderados limitavam-se a atribuir a elrei a intenção de os mandar queimar a todos dentro de três anos, deplorando que não fosse o prazo mais curto, para poderem quanto antes comprar os bens deles a vil preço. A princípio, só os insultavam indiretamente, mandando alguns moços cantar-lhes cantigas ameaçadoras e insolentes debaixo das janelas; mas os próprios oficiais públicos temiam que estas demonstrações chegassem mais longe. Foi o que sucedeu. Aproveitando uma ausência temporária do primeiro magistrado da cidade, ajuntaram-se vários grupos, certa noite a horas mortas, na rua principal, habitada em grande parte por cristãos-novos. Estes grupos não se compunham só da plebe: tinham-se unido a ela indivíduos da classe mais elevada. Ali prorromperam em pregões, condenando os cristãos-novos ao fogo. Qualificando-os de cães infiéis e judeus, clamavam em desentoados gritos que lhes pertenciam os bens deles, e que suas mulheres e filhas lhes deviam ser entregues, para as violarem, depois do que, tudo se poderia arrojar às chamas. Espalhada a voz do tumulto, o alcaide da cidade marchou com alguma gente para a rua nova; mas não pôde prender nenhum dos amotinados, porque lhe resistiram ousadamente, até que julgaram oportuno retirarem-se(168).

A narrativa circunstanciada destas desordens, de que existem provas autênticas, vem confirmar-nos na idéia que resulta de tantos outros fatos; isto é, que debaixo do manto do fanatismo se escondiam paixões, se não mais atrozes, por certo mais torpes. Essas paixões manifestavam-se impudentemente desde que as multidões se persuadiram de que a perseguição, digamos assim, oficial contra a gente hebréia ia organizar-se. Sabemos que nas próprias ilhas dos Açores e da Madeira, nesses pequenos tratos de terra como que perdidos nas solidões do oceano, se repetiam os insultos e as acusações de judaísmo, em cujo abono apareciam facilmente testemunhas que, depois, se provava serem falsas(169). O que sucedia com os cristãos-novos de Lamego subministrava um triste documento de que o mais escrupuloso respeito à religião dominante e o proceder mais digno de bons cidadãos, a doçura e a caridade para com os seus semelhantes, quaisquer das virtudes, em suma, que podem tornar o homem respeitado e benquisto, eram inúteis para os que tinham a desventura de pertencer àquela raça proscrita. Essas famílias insultadas, ameaçadas de espoliação, de desonra e de morte por grupos de indivíduos entre os quais se achavam muitos que não pertenciam ao vulgo, recebiam dias depois um testemunho solene e insuspeito de que, ainda admitindo como legítima a intolerância, nem assim deixavam de merecer o respeito e a benevolência de todos aqueles que não escondiam debaixo do manto do zelo católico os ignóbeis desígnios do roubo, da devassidão e do assassínio(170).

Foi no meio desta recrudescência da perseguição popular, e depois de esgotados todos os recursos ordinários para obstar à execução da bula de 17 de dezembro, que os conversos se resolveram a buscar remédio ao mal, recorrendo ao papa. Era para isso necessário enviar a Roma um homem ativo e hábil, a quem se houvessem de confiar as armas de que a gente hebréia podia servir-se em sua defesa e que principalmente consistiam em avultados cabedais. Foi escolhido para isso um cristão-novo chamado Duarte da Paz, cuja origem é obscura. Sabemos só que exercia um cargo de certa importância, de justiça ou de administração, e que foi cavaleiro da ordem de Cristo, dignidade que, provavelmente, obteve em conseqüência de seus serviços em África, onde, segundo parece, perdera um olho. Este homem, que veremos figurar por dez anos na longa luta do estabelecimento da Inquisição, havendo sido violentado no batismo ou tendo-o recebido em idade anterior à da razão, educado, depois, aparentemente numa crença e ocultamente noutra, viera achar-se, como acontecia a tantos outros, sem religião alguma. É, peio menos, o que indicam os atos posteriores da sua vida. Generoso no trato, bizarro no jogo, audaz, astucioso, eloqüente e ativo, Duarte da Paz tinha os dotes mais eficazes para sair com os seus intentos na cúria romana(171). Munido das instruções e recursos necessários, esperou ensejo favorável para sair do reino sem perigo. Não tardou este a proporcionar-se-lhe. Elrei, que já por mais de uma vez aproveitara a sua destreza em comissões árduas, precisou de empregá-lo fora do país em negócio importante, cuja natureza ignoramos. Foi no dia da partida que o astuto cristão-novo recebeu o grau de cavaleiro. Em vez, porém, de se dirigir ao lugar onde era enviado, partiu para Roma e ali começou a advogar a causa dos conversos, posto que não se apresentasse abertamente como seu procurador(172).

Desde que perante Clemente VII se tratara do estabelecimento da Inquisição em Portugal, a corte pontifícia pensava também em enviar a Lisboa um homem de confiança, revestido do carácter de núncio(173). Vacilou-se muitos meses na escolha; mas, enfim, foi nomeado Marco Tigerio della Ruvere, bispo de Sinigaglia, que, partindo de Roma nos fins de maio de 1532, chegou a Portugal nos princípios de setembro desse ano(174). Por outra parte, D. João III tratava de substituir o embaixador Brás Neto por um indivíduo que melhor representasse a enérgica vontade com que ele estava resolvido a sustentar a nova instituição, e que fosse capaz de empregar com zelo e destreza todos os arbítrios para defender as obtidas concessões, as quais o governo português bem sabia que os cristãos-novos haviam de combater com todas as suas forças. Não podia a escolha recair melhor do que em D. Martinho de Portugal, os traços de cujo carácter já anteriormente delineámos. O seu passado representava, ao menos na aparência, o excesso da intolerância, e o tempo mostrou que ele era homem incapaz de se prender com quaisquer considerações que se opusessem aos seus desígnios. Tinha, além disso, experiência do modo de tratar os negócios na cúria, havendo estado por embaixador junto a ela, e gozava ali, como vimos, de crédito bastante para o terem revestido do carácter de núncio quando voltara a Portugal. Desde junho de 1532 constava em Roma a nomeação do novo agente, e, todavia, ele só partiu nos últimos meses do ano, eleito já, segundo parece, arcebispo do Funchal, dignidade que lhe foi depois confirmada por Clemente VII, continuando a residir ali conjuntamente com ele, e, ainda, como representante da corte portuguesa, o Dr. Brás Neto, pelo menos até o seguinte janeiro(175).

A escolha do bispo de Sinigaglia para núncio em Portugal, se não era moralmente a melhor, era a mais apropriada para a cúria tirar vantagem da situação dependente em que o furor inquisitorial punha D. João III. As inevitáveis solicitações, as queixas, as lutas que deviam aparecer todos os dias, desde que a Inquisição começasse a operar e, ainda, antes disso, não podiam deixar de ser um poderoso instrumento para aumentar a influência do núncio, trazer-lhe proventos e dar dobrado vigor à intervenção pontifícia nos negócios da igreja portuguesa. Supostas a vontade inabalável do rei de manter nos seus estados o tribunal da fé e a necessidade absoluta que os cristãos-novos tinham de se opor à sua permanência, Roma podia negociar tanto com o numeroso e opulento grupo que invocava a tolerância, como com o bando dos fanáticos que proclamava a perseguição, inclinando-se ora para um, ora para outro lado, e fazendo com essa política vacilante multiplicar os esforços do desfavorecido, ao passo que suscitaria a generosa gratidão do que triunfasse. Não havia receio de chegar aos extremos, porque sempre era tempo de seguir oposta política. Em relação às questões individuais, aos negócios que ao núncio tocava resolver por si, verificavam-se as mesmas vantagens para ele que a luta, considerada em geral, havia de produzir para a cúria. De feito, nunca, talvez, se dera conjuntura igual para um indivíduo pouco escrupuloso poder auferir avultados lucros do cargo de que Marco della Ruvere fora revestido por Clemente VII.

Se acreditarmos as queixas feitas posteriormente contra o bispo de Sinigaglia, este era homem talhado, não só para granjear os interesses da sua corte, mas também para cuidar seriamente nos próprios. Estabeleceu logo como regra que das apelações vindas dos ordinários para ele como delegado do papa não tomasse conhecimento o auditor da nunciatura sem comissão sua especial, e esta comissão tornou-a dependente da solução de uma taxa(176). Tinha-se-lhe dado faculdade para conceder que qualquer clérigo tivesse dous benefícios quando não fossem entre si incompatíveis; mas as incompatibilidades desapareciam logo que o dinheiro se mostrava. Para ele, o dinheiro substituía as habilitações eclesiásticas nos provimentos que competiam ao papa e purificava os homicidas que caíam debaixo da sua alçada como delegado pontifício. Por peitas, autorizava-os, até, para continuarem a residir nos lugares onde haviam perpetrado o delito. Ideou um sistema engenhoso para impor pensões nos benefícios: era fazer indiretamente com que os próprios postulantes lhe requeressem como favor o pagarem-lh’as. Sem isso, escrupulizava. Não assim quando a pensão tinha de ser paga a algum familiar seu. Neste ponto ia direito ao alvo; impunha-a simples e francamente. Os pactos ilícitos e simoníacos celebravam-se em sua própria casa, e o mais é que se lançavam as provas disso nos registros da nunciatura com admirável singeleza, de modo que era natural suspeitar que o representante da corte de Roma não receava os resultados de quaisquer acusações futuras(177). Foi neste homem que os cristãos-novos começaram a achar favor(178). Supostas as riquezas deles, a grandeza do perigo e o carácter do núncio, não é fácil de crer que essa proteção fosse gratuita; mas, segundo parece, o astuto italiano soube fingir com arte por algum tempo que não se inclinava nem para uma, nem para outra parte(179).

Um fato, que seria inexplicável, se naqueles tempos não lavrasse a corrupção tão largamente, como no decurso desta narrativa teremos muitas vezes ocasião de notar, veio favorecer mais que tudo os ameaçados conversos. Apesar das cautelas com que Duarte da Paz negociava, não lhe tinha sido possível ocultar aos agentes d’elrei o progresso das suas diligências. Além do embaixador Brás Neto, D. João III tinha em Roma quem mais de perto pugnasse pelos seus interesses. Era o novo cardeal Santiquatro, Antonio Pucci. Que o agente diplomático de Portugal comunicasse para Lisboa o que se tramava contra a concedida Inquisição é mais que provável. Sabemos, porém, positivamente que o cardeal expediu, um após outro, dous correios ao bispo de Sinigaglia para avisar elrei do que se passava, pedindo a este instruções sobre o modo de proceder naquele caso: mas a corte de Portugal, que tão extraordinários esforços fizera para obter a bula de 17 de dezembro, parecia ter adormecido depois do triunfo, e nem Pucci, nem o embaixador receberam resposta alguma(180). Sabia Duarte da Paz que ela não havia de vir, ao menos a tempo de embaraçar o golpe que ia preparando? Parece que sim, visto que procurava remover a oposição de Santiquatro às suas pretensões, visitando-o com freqüência e dando-lhe a entender que para as diligências que fazia tinha consentimento d’elrei(181). Das causas de tão singular silêncio não nos restam vestígios; mas, se nos lembrarmos de que D. João III não tinha nem a ciência, nem os talentos necessários para evitar o fiar-se nos seus ministros e privados, não nos será difícil conjecturar de que meios ocultos os opulentos conversos se poderiam servir dentro do próprio país para ajudar os esforços do seu procurador junto à cúria romana.

Entretanto outro sucesso, não menos singular, ocorria em Portugal, sucesso que, ainda passados dous anos, um hábil e ativo diplomático, ao qual o negócio da Inquisição foi especialmente cometido, reputava como origem e causa principal das dificuldades que depois sobrevieram. O mínimo Fr. Diogo da Silva, que fora revestido do cargo de inquisidor geral por proposta de D. João III, quando se tratava de reduzir a efeito as provisões da bula de 17 de dezembro esquivou-se a tomar sobre si a responsabilidade daquele odioso encargo(182). Se os cristãos-novos contribuíram para isso, o que ignoramos, cumpre confessar que haviam tido uma feliz inspiração. Forçosamente o inquisidor fora consultado antes de ser proposto para Roma, e do mesmo modo a sua anuência devia ter precedido a proposta. Que motivos extraordinários tinham sobrevindo para uma recusação que havia de produzir vivo desgosto no ânimo do monarca? Fossem quais fossem as razões que movessem Fr. Diogo da Silva, é certo que a renuncia tornava indispensável nova nomeação e, por conseqüência, a expedição de nova bula, quando já os cristãos-novos tinham quem perante o pontífice advogasse a sua causa e quando, portanto, já não era fácil ilaquear o papa.

A este conjunto de circunstâncias acrescia a profunda impressão que faziam no ânimo de Clemente VII as alegações de Duarte da Paz. Entre elas havia uma à qual poderiam opor-se muitos sofismas, mas a que uma consciência reta e um coração probo não achariam nunca plausível resposta. Era a que se referia à conversão forçada dos judeus portugueses e às promessas solenes de D. Manuel, revalidadas por seu filho. Devia também movê-lo à compaixão a bárbara lei de 14 de junho, que, impedindo-lhes a fuga, os amarrava ao poste do suplício. A deslealdade com que se haviam omitido na súplica para o estabelecimento da Inquisição os fatos que vinham depois invalidar moralmente os fundamentos dessa súplica era só por si motivo sobejo para revogar a bula de 17 de dezembro ou, pelo menos, para suspendê-la, até se ponderar o negócio à sua verdadeira luz (*). Foi a resolução que o papa adotou. A 17 de outubro de 1532 expediu-se um breve(183), dirigido ao núncio Sinigaglia, pelo qual Clemente VII declarava suspensos os efeitos daquela bula e de quaisquer outros diplomas pontifícios concernentes ao mesmo objeto, inibindo, não só o inquisidor geral Fr. Diogo da Silva, mas também os bispos, de procederem por esse modo excepcional contra os conversos. Declarava-se, porém, expressamente que a suspensão era temporária, e que o pontífice não abandonava a idéia de se proceder extraordinariamente contra os ofensores das doutrinas católicas. Assim, a arena ficava aberta para a luta, e nem de uma parte, nem de outra os contendores deviam perder as esperanças de conciliarem o favor da cúria romana para as suas pretensões.

Não era, porém, só uma suspensão temporária da Inquisição que Duarte da Paz requerera desde o começo. Insistia em que, fosse qual fosse a resolução definitiva acerca do estabelecimento do tribunal, se concedesse também perdão absoluto a todos os que se achassem culpados de erros contra a fé, não se dando efeito retroativo à nova instituição. Estas pretensões constaram em Lisboa pelo mesmo tempo em que chegava o breve da suspensão; mas nem o embaixador Brás Neto, nem o cardeal Santiquatro, que exercia as funções de protetor de Portugal, receberam instrução alguma sobre o modo como deviam proceder neste caso, e apenas Pucci soube, por cartas do núncio, que elrei tomava a mal serem nesta parte atendidas as súplicas dos cristãos-novos(184). Aproveitando o silêncio da corte portuguesa, silêncio que hoje parece um fato inexplicável, mas cujos motivos ele provavelmente não ignorava, o astuto Duarte da Paz soubera conciliar o favor do próprio Santiquatro para a causa que defendia. Avisado, porém, por Sinigaglia do desgosto d’elrei, o cardeal proibiu a entrada de sua casa ao procurador dos cristãos-novos. Era tarde. Duarte da Paz redobrou de esforços até alcançar que a maioria dos membros influentes do colégio cardinalício protegessem resolutamente a causa da raça hebréia, e, como veremos, as suas diligências, ajudadas, na verdade, pelo poder oculto que entorpecia a atividade e fechava os lábios dos ministros do rei de Portugal, obtiveram, dentro de pouco tempo, prósperos resultados(185).

Foi, conforme dissemos, nos últimos meses de 1532 que D. Martinho de Portugal chegou a Roma, onde ainda Brás Neto continuava a exercer as funções d’embaixador. D. Martinho recebeu, partindo, instruções escritas, nas quais, apesar de assaz extensas, não se encontra uma palavra acerca da Inquisição(186); mas como crer que o próprio D. João III não as desse, ao menos vocalmente? Compreende-se a inação do antigo agente: não se compreende a do novo. Só hipóteses podem explicá-la, e essas hipóteses ocorrem à vista de um fato assaz significativo. Desde 1534, as minutas que nos restam da correspondência oficial sobre os negócios com Roma são, talvez sem exceção, do punho de Pedro de Alcaçova Carneiro, elevado por aqueles tempos ao cargo de secretário dos negócios da Índia. Vê-se d’aí que Pedro de Alcaçova se tornou nessa época o homem da plena confiança de D. João III no que tocava à difícil matéria da Inquisição. Desconfiava o rei da inteireza dos outros ministros? Eram as suas desconfianças fundadas? Esse desleixo aparente, tão misterioso como inesperado, acerca de um objeto que, havia anos, quase exclusivamente preocupava o ânimo do monarca, nascia da corrupção dos seus ministros? Nada mais natural do que aproveitarem os cristãos-novos também este meio de salvação. É pelo menos, quase certo que, habilitados largamente para isso pelas suas riquezas, haviam de tentá-lo. Eis, quanto a nós, a única explicação plausível de um silêncio que, anos depois, o cardeal Pucci exprobrava à corte portuguesa, e que se prolongou, ainda após a saída de Brás Neto de Roma, e de ficar ali por único agente D. Martinho de Portugal(187).

Se, porém, como suspeitamos, o ministro ou ministros por cujas mãos corriam as matérias da Inquisição traíam a confiança do soberano, restam provas indubitáveis de que os cristãos-novos não tinham razão para se reputarem mais felizes com o seu procurador, posto que este procedesse de modo diverso. A deslealdade daquele homem era mais perigosa e disfarçada. Trabalhara ativamente, como acabamos de ver, para bem desempenhar a sua missão: mas, fosse porque não quisesse perder para sempre a esperança de voltar à pátria, fosse por cega cobiça ou por quaisquer outras miras futuras, Duarte da Paz, pouco depois de expedido o breve de 17 de outubro, tratava seriamente de se congraçar com elrei. O carácter cinicamente abjeto deste homem revela-se plenamente na carta que para tal fim dirigiu a D. João III, onde alude a outra que escrevia na mesma conjuntura a um valido(188), na qual se desculpava dos cargos que davam contra ele em Portugal. Dir-se-ia, à vista da insolente familiaridade dessa carta, que o astuto hebreu conhecia assaz a inclinação de D. João III a aproveitar os resultados de ocultas delações, sistema que até aqui temos visto empregado sempre por ele contra os cristãos-novos. Porventura, o próprio Duarte da Paz já teria antes de sair do reino exercido o repugnante mister d’espia. Leva-nos, pelo menos, a suspeitá-lo, não só a confiança com que falava, mas também uma frase daquela singular missiva(189). Aí, o procurador dos conversos propunha a elrei dar-lhe secretamente conta, não só de tudo quanto se passava em Roma, mas também daquilo que lá se pudesse indiretamente saber do que se fazia na corte de Portugal contrário aos interesses ou à vontade d’elrei. Duarte da Paz não desejava, porém, desempenhar sozinho as vis funções que solicitava. Era de parecer que se espalhassem mais seis pessoas de confiança por Itália e Turquia, que exercessem o mesmo ofício. Remetia, além disso, a D. João III uma engenhosa cifra(190), por cujo meio poderiam comunicar entre si as cousas de máxima importância. O hebreu mostrava-se experimentado nas dissimulações do mister. Estabelecia algumas regras de prudência, que elrei devia seguir, e declarava francamente que semelhantes precauções tinham, em grande parte, por alvo o salvar-se a si mesmo das conseqüências das suas delações, se estas fossem conhecidas(191). Apesar da cifra, o hebreu recomendava a D. João III nunca escrevesse, exceto no caso de extrema necessidade. Desejava obter a certeza de que esta carta, que só elrei devia abrir(192), chegara às suas mãos; mas, para isso, pedia-lhe que ordenasse a D. Martinho de Portugal lhe dissesse, a ele Duarte da Paz, que mandasse entregar em Lisboa ao procurador de sua alteza o cartorio que estava a seu cargo. Esta comunicação do novo embaixador seria a senha de que fora entregue a missiva. O último conselho que dava a D. João III era que dissesse muito mal dele, não só em público, mas, até, em particular. Num postscriptum rogava-lhe que queimasse a carta que lhe remetia inclusa, escrita por uma alta personagem, carta que devia ser importante e que o converso confessava ter furtado a seu próprio pai(193). Terminava pedindo a elrei não o culpasse por ter vindo a Roma e por continuar a requerer o perdão dos cristãos-novos; porque o faço — dizia ele — cuidando que sirvo nisso a vossa alteza(194).

Na boca de um homem virtuoso, esta última frase teria um sentido óbvio. Impedir que a intolerância pudesse despeiadamente saciar os seus furores; alevantar tropeços no desfiladeiro por onde o poder se precipitava era em rigor fazer bom serviço ao rei e ao reino. Na boca, porém, de um miserável, que queria negociar do modo mais abjeto com os dous bandos contendores, semelhantes palavras só podiam ter uma significação odiosa. Procurador dos hebreus, mostrando zelo ardente, atividade incansável, audácia e talento na agressão e na defesa, nada haveria por mais secreto que fosse que os cristãos-novos lhe ocultassem. Com tal espia, elrei teria sempre meios de impedir os resultados de quaisquer vantagens que eles pudessem obter em Roma. Valia a pena de aceitar as ofertas de Duarte da Paz. Aceitou-as D. João III? Posteriores documentos nos virão esclarecer a este respeito e mostrar como aquele homem infernal soube representar os dous papéis de que se encarregara, até o momento em que, num ímpeto de despeito, lançando fora a máscara, se apresentou perante o mundo qual era, isto é, como um malvado capaz de adotar todas as religiões, mas incapaz de crer em cousa alguma que não fossem o próprio interesse e a satisfação das suas paixões ignóbeis.

Neste estado estavam as cousas nos primeiros meses de 1533. O teatro em que temos visto passar as cenas iniciais do drama horrível, e, ainda, mais repugnante que horrível, do estabelecimento da Inquisição ampliou-se. Os outros atos representar-se-ão em Portugal e em Roma. Se, até aqui, o fanatismo disputou à hipocrisia e à corrupção moral o primeiro plano, vê-lo-emos nessa tela, cuja vastidão duplica, alongar-se para o fundo do quadro. Mas a lição será ainda mais profícua. O fanatismo tem a nobreza de todas as paixões ardentes: ergue os olhos para Deus, que calunia, mas a quem crê servir e honrar: é a tempestade do coração humano que passa grandiosa, como as da natureza, e que deixa após si um sulco de estragos. A hipocrisia, suprema perversão moral, é o charco podre e dormente que impregna a atmosfera de miasmas mortíferos e que salteia o homem no meio de paisagens ridentes: é o réptil que se arrasta por entre as flores e morde a vítima descuidada. A civilização, nos seus progressos, enfraquece gradualmente o fanatismo, até o aniquilar. A hipocrisia vive com todos e com tudo e acomoda-se a qualquer grau de cultura social. Se mão robusta lhe rasga o manto da religiosidade de que se cobriu, rindo impiamente, e aponta aos que passam as suas pústulas asquerosas, brada contra a calúnia, chora e declara-se mártir, reservando no peito para os dias propícios vinganças que ultrapassem a ofensa e que, vindas dela, são sempre implacáveis.

Foi por isso que o Salvador assinalou a hipocrisia com o selo da sua tremenda maldição. Aquele para quem o futuro não tinha mistérios sabia que ela seria em todos os tempos a mais cruel inimiga do cristianismo e da humanidade.

FIM DO TOMO I

Notas

(1) Este ponto foi debatido na viva contenda levantada entre os dous membros da antiga academia d’História, frei Pedro Monteiro, dominicano, autor da História da Inquisição, e frei Manuel de S. Damaso, franciscano, autor da Verdade Elucidada, a propósito de saber quem fora o primeiro inquisidor geral português no século XVI; questão fútil, mas em que a inteligência do franciscano aparece bem superior à do seu adversário. Livro II

(2) Orden. Afons., L. 2 passim. Veja-se, em especial, a Memória sobre os Judeus em Portugal, por Ferreira Gordo, c. 4. (Memórias da Acad., T. 8, P. 2) e as Reflexões Históricas por J. P. Ribeiro, P 1, n.º 18. — Lei de Afonso III de 1274, intitulada Da Comunidade dos Judeus, no Livro de Leis e Posturas, no Arquivo Nacional.

(3) Ferreira Gordo, op. cit. — Ribeiro, l. cit — Orden. Afons., l. cit.

(4) Ibid.

(5) Ibid.

(6) Ibid.

(7) R. de Pina, Cron. de Afonso V, c. 130 nos Inéditos d’Hist. Port., T. I, p. 439.

(8) Miscelâneas. Mss., vol. 31, n.º 74, na Bibliot. da Ajuda.

(9) Cortes de 1475, cap. II.

(10) Ibid. cap. 22, 23 e 30.

(11) Cortes de 1481 e 1482, capítulos Da dessulução dos judeus — Dos estantes estrangeiros — Dos judeus aljabebes.

(12) Cortes de 1490, c. I

(13) Ibid.

(14) D. Agost. Manuel, Vida de D. João II, p. 270. — Monteiro, História da Inquisição, vol. 2, p. 425.

(15) Pina, Crôn. de D. João II, c. 65. — Num volume de Memórias Históricas (Ms. da Bibliot. da Ajuda) que parecem de João de Barros e de Fernão de Pina, f. 192, atribui-se à maioria do conselho a opinião contrária à d’elrei.

(16) «Com emposição de certos cruzados por cabeça»: Pina, l. cit.; — «que pagassem por cabeça huu tanto; o tanto era huú cruzado»: Memór. Mss. da Ajuda, fl. 193, — Mariana eleva a capitação a oito escudos de ouro: Hist. Gener. L. 26, c. I. — Goes (Cron. de D. Manuel, P. l. c. 10) diz que foi de oito cruzados.

(17) Pina, l. cit. — Memór. Mss. da Ajuda, l. cit.

(18) Memór. Mss. da Ajuda, l. cit.

(19) Pina, l. cit. — Goes, Crôn. de D. Manuel, l. cit. — Memór. Mss. da Ajuda, l. cit. Estas Memórias subministram muitas das particularidades que vamos narrando e que, naturalmente, não era lícito ao cronista Pina inserir numa crônica oficial, posto que Goes, escrevendo meio século mais tarde, revela já uma parte dos escândalos então praticados.

(20) Mem. Mss. da Ajuda, l. cit.

(21) Goes, Crôn. de D. Man., P. I, c. 10, 19, 23. — Provas da Hist. Genealog., T. 2, p. 392 e segg. — Mariana, Hist. Gener., L. 26, c. 13. — Memor. Mss. da Ajuda, f. 194 v.

(22) Goes, op. cit., c. 18. — Osorius, de Rebus Emmanuelis, L. I, p. 18. (ediç. de 1571).

(23) Goes, l. cit. — Memor. Mss. da Ajuda, f. 196 v. Orden. Manuelina, L. 2, tit. 41.

(24) A bula de 3 de abril de 1487, mencionada por Llorente (Hist. de l’Inquisit., T. 4, p. 294 et alibi) acha-se, em instrumento, na Gav. 2. M. 1, n.º 32, no Arquivo Nac. da Torre do Tombo.

(25) Goes, P. 1, c. 20. Muitas particularidades que vamos narrar constam de uma curiosa sentença de D. Fernando Coutinho, bispo de Silves, já septuagenário, dada em 1531 acerca de um cristão-novo acusado de judaizar e que o bispo mandou soltar como não sendo, na realidade, cristão. Nos fundamentos da sentença, o velho prelado refere-se às violências que ele próprio vira praticar em tempo de D. Manuel e às opiniões que, sendo conselheiro do mesmo rei, tinha sustentado com outros colegas seus. Acha-se copiada do instrumento autêntico na Symmicta Lusitana, vol. 31, f. 70 e segg. na Biblioteca da Ajuda.

(26) «Possunt habere characterem sed non rem sacramenti... Omnes litterati, et ego insapientior omnibus monstravi plurimas auctoritates et jura, quod non poterant cogi ad suscipiendam christianitatem quae vult et petit libertatem et non violentiam, et licet ista non fuerit precisa, scilicet cum pugionibus in pectora, satis dum violentia fuit»: Episcop. Silv. Sententia, l. cit.

(27) «Dicendo, quod pro sua devotione hoc faciebat, et non curabat de juribus»: Ibid.

(28) Goes, Crôn. de D. Man., P. 1, c. 20. — Mem. Mss. da Ajuda, f. 197 e 219 v. e segg.

(29) Goes, l. cit. — Mem. Mss. da Ajuda, l. cit.

(30) «Patrem filium adducentem, cooperto capite in signum maximæ tristitiæ et doloris ad pillam baptismatis, protestando, et Deum in testem recipiendo, quod volebant mori in lege Moysé»; Episc. Silv. Sentent., l. cit.

(31) «E porque a tenção delRei era fazer cristãos a todos, como depois se fizeram, tomaram muitos da idade de XX anos»: Memor. Mss. da Ajuda, f. 220.

(32) Ibid

(33) Goes (I. cit.) diz que foram vinte mil os indivíduos reunidos por esta ocasião nos Estáos. Os Estáos eram um palácio que ocupava, pouco mais ou menos, o terreno do teatro de D. Maria II. A afirmativa de ali se ajuntarem e agasalharem 20.000 pessoas é materialmente impossível. A narração de Goes é absurda, porque, apesar de horrível, oculta metade da verdade. As Memór. Mss. da Ajuda concordam com Goes em que vieram ali 20.000 pessoas, mas, descobrindo o painel das atrocidades que então se praticaram, painel que a sentença do bispo do Algarve alumia de uma luz sinistra, fazem-nos compreender como era possível ir-se recolhendo aí avultado número de indivíduos.

(34) «ali lhe tornaram a tomar novamente os outros filhos sem olhar a idade»: Mem. Mss. da Ajuda, l. cit.

(35) «e finalmente dos filhos vieram aos pais a os fazerem todos cristãos»: Ibid. — «Multos vidi per capillos adductos ad pilam: Episc Silv. Sentent., l. cit. — «Abraham Usque, Isahak Abarvanel, Rabbi Juhudá Hayat y Rabbi Abraham Zacuto refieren estos hechos como testigos»: De los Rios, Estudios sobre los Judios d’España, pag. 211.

(36) «somente sete ou VIII cafres contumasses a que elRei mandou dar embarcaçam para os lugares dalem»: Mem. Mss, da Ajuda, l. cit.

(37) Seguimos o original da provisão (G. 15, M. 5, N.º 16 no Arqu. Nac.) datada de 30 de maio de 1497. O transumpto que se acha no Corpo Cronológico (P. 1, M. 2, N.º 118) e que foi publicado por J. P. Ribeiro (Dissertações Cronológicas, T. 3, P. 2, p. 91) varia na data e, ainda, na redação. O que foi apresentado pelos judeus em Roma vertido em latim varia por omisso (Symmicta, T. 31, f. 88). E singular que em ambos eles falte a restrição à anistia que se lê no original. Aquela restrição está, todavia, em harmonia com a cláusula do contrato de casamento de D. Manuel, pelo qual ele se obriga a expulsar todos os judeus refugiados perseguidos pela Inquisição. Esta cláusula já devia estar proposta e aceite na conjuntura em que se expediu a provisão de 30 de maio.

(38) Liv. 16 da Remessa de Santarém, f. 84, no Arqu. Nac. — Figueiredo, Sinóps. Cronol., T. 1, p. 148, 149.

(39) «huu gonçalo de loulé foi culpado em os passar do algarve a larache». Mem. Mss. da Ajuda, l. cit.

(40) Ibid.

(41) «quin ordinaru pastores, visitatione ordinaria mediante, infirmos in fide non monuissent et si necesse erat non castigassent»: — diziam os cristãos-novos, referindo-se a esta época, no Memorial oferecido em Roma no tempo de Paulo III contra a Inquisição, a qual precede os documentos contidos nos volumes 31 e 32 da Symmicta Lusitana na Biblioteca da Ajuda. Numas instruções de que adiante nos havemos de servir, e das quais se acha publicado um fragmento na História da Inquisição por Monteiro (P. I, 1. 2, c. 43) alude-se a este procedimento dos bispos nos últimos anos do século XV e primeiros do XVI

(42) Doc. origin. no Corpo Cronol., P. 2, M. 3, Doc. 75 no Arqu. Nac.

(43) «maximè frates, et praecipuè ordinis Predicatorum»: Memoriale, Symm. Lusit., vol. 31, f 4.

(44) Memor. Mss. da Ajuda, 202 v.

(45) Llorente, Hist. de 1’Inquis., T. 1, c. 10, art. 1.º

(46) Não encontrámos em parte alguma o alvará relativo a este objeto; mas refere-se a ele a circular de 12 de outubro de 1515, cuja minuta se acha na G. 2, M. I, N.º 30, no Arqu. Nac.

(47) Ibid.

(48) Carta de Fernando V a D. Manuel (12 de julho de 1504) acompanhando o transumpto da bula Pessimum genus de Inocêncio VIII, G 2, M. 1, N.º 32 e 33, no Arqu. Nac.

(49) Goes, Cron. de D. Man., P l. c. 102 — Memor. Mss. da Ajuda, f. 204.

(50) «O qual (milagre) a parecer de todos era fingido»: Memor. Avulsas dos Reinados de D. Manuel e D. João III (Mss. contemporâneo), vol. 2 de Miscel., f. 120 v. na Biblioteca da Ajuda. — «Ou a imaginação dos devotos se afigurou que lhe pareceu verem fogo em o lado do crucifixo» Memór. Mss. da Ajuda, f. 219. — Goes (l. cit.) diz confusamente o mesmo.

(51) As Memórias Avulsas do Ms. contemporâneo dizem expressamente que neste dia o milagre foi mostrado por alguns frades. As narrativas variam quanto às expressões do incrédulo. Segundo as Memórias Mss. da Ajuda ele perguntou «como havia um pau seco de fazer milagres?» Segundo Goes disse «que lhe parecia uma candeia (vela) posta ao lado da imagem.» Esta versão crêmo-la mais verossímil, porque, naturalmente, esse era o fato.

(52) Um destes frades, chamado Frei João Mocho, era português, e o outro, Fr. Bernardo, aragonês. Azenheiro, Cron., p. 333, e Memor. Mss. da Ajuda, f. 219.

(53) «com a qual oniam foram queimadas no Resyo CCC pesoas»: Memor. Miss. da Ajuda, l. cit. — «E traziam XV e XX cristãos nouos em manada à fogueira.» Ibid.

(54) «E nos próprios cristãos lindos queriam vingar injúrias se as deles tinham recebidas»: Memor. Avulsas, vol. cit., f. 121 — «Alguns cristãos velhos ... convei-lhes fezer mostra que não eram circuncidados»: Memor. Mss. da Ajuda, f. 219 v

(55) «e compridas suas desordenadas vontades as levavam às fogueiras» Memor. Avuls., vol. cit., f. 121

(56) Os judeus, na Alegaçâo a Paulo III (Symmicta, vol. 31, f. 5), elevavam o número dos mortos a mais de 4.000; mas as memórias do tempo e os historiadores são conformes em o orçarem por 2.000.

(57) Mem. Mss. da Ajuda, l. cit. — Goes, l. cit.

(58) Acenheiro, l. cit — Goes, l. cit.— As Memor. Mss. da Ajuda dizem que os supliciados foram 46 ou 47, 32 em Lisboa e 14 ou 15 no Termo.

(59) Goes, P. l. c. 103. — Acenheiro, l. cit. — Memor. Mss. da Ajuda, l. cit. — Figueiredo, Sinopse Cronol., T.I, p. 162 e 163.

(60) Minuta da resposta dada por elrei a câmara de Lisboa: G. 2, M. 2, N.º 61, no Arqu. Nac.

(61) Mem. Mss. da Ajuda, l. cit

(62) Carta de lei de 1 de março de 1507, impressa junto à Lei de 25 de maio de 1773.

(63) Provisão de 13 de março de 1507, na Hist. da Inquis. de Monteiro, P. I, L. 2, c. 43, e vertida em latim na Symmicta, vol. 31, f, 88.

(64) «nemo ex eisdem ab miseris eisdem (regnis) cum uxore et família recessit»: Memoriale etc. (Symmicta, vol. 31, f. 7 v.)

(65) Ibid.

(66) Vejam-se os Doc. do Corpo Cronol., P. I, M. 9, N.ºs 37, 41, 47.

(67) Symmicta, l. cit.

(68) Doc. da G. 2, M. 1, N.º 30, no Arqu. Nac.

(69) Privilég. de 21 de abril de 1512 incluído em confirmação de 18 de julho de 1522 na Chancelaria de D. João III, L. I, f. 44 v.

(70) Corpo Cronol., P. 1, M. 11, N.º 91, no Arqu. Nac.

(71) Acerca deste § veja-se a carta original do governador da Casa do Cível a elrei, datada de 7 de dezembro de 1515, no Corpo Cronol., P. 1, M. 19, N.º 50, no Arqu. Nac.

(72) Minutas das cartas ao papa e a D. Miguel da Silva que se dizem remetidas a 22 de agosto de 1515, na G. 2, M. 1, N.º 23, no Arqu. Nac.

(73) Doc. da G. 2, M. 1, N.º 30, no Arqu. Nac. Livro III

(74) Sousa, Anais de D. João III, P. 2, c. 3 e 4.

(75) Goes, Cron. de D. Manuel, P. 4, c. 26. — Osorius, De Reb. Emm. L. II.

(76) Sousa, Anais de D. João III, P. I, c. 2. — Faria e Sousa, Europa Port, T. 2, P. 4, c. 2.

(77) Será difícil encontrar no Arq. Nacional, e ainda nas coleções das bibliotecas e de outros arquivos, minutas de correspondências, instruções, providências etc, expedidas em nome de D. João III, pelo menos desde o ano de 1532 ou 1533, que não sejam da letra de Pedro d’Alcaçova, sobretudo no que toca à Inquisição, e em que não se encontre um fundo de idéias e uma forma de as exprimir sempre análogas, como filhas de uma inteligência única. Ainda abstraindo das minutas hoje perdidas, custa a crer como um indivíduo só bastou ao trabalho de redigir tantos papéis que nos restam sobre uma infinidade de negócios, desde as mais ridículas questões fradescas até as mais graves matérias do governo do estado.

(78) Faria e Sousa, Europa Port., T. 2, P. 4, c. 2, n. 12.

(79) Sousa, Anais, P. I, c. 5.

(80) Ibid. c. 5 e 6. — Castilho, Elog. de D. João III. — Trigoso, Memórias sobre os Escrivães da Puridade e sobre os Secretários dos Reis, etc.

(81) «Serenissimo Joanne,... nunc rege, regnum intrante... publicus rumor esset... Joannem juvenem istos novos christianos odio habere»: Symmicta Lusit., vol. 31, f. 7 v. — «quan odiosos le fueron siempre desde su niñez los que tienen errores contra nuestra sancta fé»: informe da Inquis. de Sevilha em 1531: G. 2, M. I, N.º 17, no Arqu. Nac.

(82) «post mortem regis Emmanuelis... pluries de illis omnibus occidendis, per totum regnum detestandas fecerunt conjurationes»: Symn. L., vol. 31, f. 8 v.

(83) «rationibus publicis et notoriis, quibus rex Emmanuel fuit motus, de consilio suorum magnatorum aquiescens... eadem privilegia... confirmavit»: ibid. f. 8.

(84) Chancelaria de D. João III, L. I, f. 44 v. e L. 4, f. 86 e 87 v.

(85) Sousa, Anais, L. 2, c. 14.

(86) Hoje é difícil distinguir os capítulos das cortes de 1525 dos apresentados de novo em 1535, porque uns e outros e as respectivas respostas só foram publicadas conjuntamente em 1538 com as leis que em virtude deles se promulgaram. Provavelmente em 1535 pouco mais se fez do que repetir o que estava dito por parte dos povos em 1525. Sousa (Anais, L. 3, c. 3) parece ter tido esta mesma opinião.

(87) Cortes de 1525 e 35 (Lisboa, 1539, in fol.) c. I, 3, 5, 7, 14, 16, 17, 20, 35, 37, 43, 50, etc.

(88) Ibid. c. 150.

(89) Ibid. c. 183.

(90) Ibid. c. 182.

(91) Ibid. c. 98, 99, 102.

(92) Ibid. c. 103.

(93) Ibid. c. 98 e 157.

(94) Ibid. c. 161, 162, 163, 194.

(95) Ibid. c. 136.

(96) Ibid. c. 172, 176, 177.

(97) «Foi S. A. de muitos annos a esta parte per muitas vezes enformado e assy lhe foi noteficado por pregadores e confessores, homées vertuosos dignos de muita fee e assim per prelados... que os cristãos-novos judaizavam... o que também se soube... por alguns feitos... e pera disso ser mais certificado quiz ver... algumas inquirições tiradas pelos ordinarios»: Apontamentos para as Instruções ao embaixador em Roma: G. 2, M. 2, N.º 35. — Estes apontamentos sem data são de 1533, porque se referem à conversão dos judeus como efetuada havia 35 anos. As delações feitas a elrei muitos anos antes deviam, pois, coincidir com os primeiros do seu reinado.

(98) Sobre estes sufrágios do oitavo dia e do fim do ano e sobre os trintários vejam-se as antigas constituições dos bispados do reino, J. P. Ribeiro (Reflex. Histór. P. l, N.º 12) e o Elucidário de Viterbo, Suplem v. Trintairo.

(99) Carta do Dr. Jorge Themudo a D. João III, G. 2, M. 2, N.º 60, no Arqu. Nac.

(100) Era tão freqüente como hoje. Eis o que a tal respeito respondeu Fr. Francisco da Conceição, consultado sobre este e outros objetos pelos padres do concílio de Trento, desejosos de se informarem do estado da religião de Portugal: «Multi vel sine hoc sacramento (unctione) díscedunt, vel tunc suscipiunt quum vix jam sentiant, quod nemo audet eis (est enim extremum ut putant, mortis nuncium) persuadere»: Symmicta Lusit. (vol. 2.º, f. 186). O mesmo motivo que se dava para os cristãos-velhos morrerem sem extrema-unção não se daria para morrerem sem ela os conversos?

(101) Fr. F. a Conceptione, Annotatiunculae in Abusus etc.: Symmicta Lusit. (vol. 2, f. 183 v.).

(102) Consta que esta alcunha lhe fora posta por elrei do inquérito mandado fazer pelos inquisidores de Llerena em fevereiro de 1525 acerca da morte de Henrique Nunes. Deste inquérito e dos documentos a ele anexos (G. 2, M. 1, N.º 36, no Arqu. Nac.) nos havemos principalmente de servir nesta parte do nosso trabalho. Pelo mister que Firme-fé exercia, seria imprudência dar-lhe logo este título, ao menos publicamente.

(103) Acenheiro, Crônic., p. 350.

(104) Llorente, Hist. de l’Inquisit., T. I, p. 354, 345 e segg. — Discussion del Proyecto sobre el Tribunal de la Inquisicion (Cadiz, 1813), p. 18, 19, 346, 406 e segg.

(105) Acenheiro, l. cit.

(106) «o dito rei queria fazer Inquisição em Portugal, e por esta causa o mãodara chamar»: Acenheiro, l. cit.

(107) «V. A. me mandô que escreviesse nesta parte mi parecer»: Carta I.ª do Apenso ao Inquérito da G. 2, M. I, N.º 36, no Arqu. Nac — «S. A. deve ser acordado que en ia segunda audiencia quando me mandô a Santarém me mandô S. A. que me metiesse con ellos e comiesse e beviesse e lo que más se ofereciesse para que S. A. por mi fuesse enformado de la verdad, por lo qual mandado oyo e suffro e callo hasta que S. A. sea servido etc.» Ibid. carta 2.ª.

(108) Acenheiro, l. cit.

(109) Inquérito de G. 2, M. I, N.º 36 — Acenheiro, 1 cit.

(110) Orden. Manuel, L. 5, tit. 10, § 2.

(111) Inquérito, l. cit. — Acenheiro, l. cit.

(112) «Oyó dezir este testigo que otros christianos nuevos de Portugal lo mandaron matar e le dieron muchos dineros a los que lo mataron»: Inquérito, l. cit.

(113) Acenheiro, l. cit. Nem no inquérito mandado fazer pelos inquisidores, nem no instrumento das cartas achadas no vestido do morto, instrumento dado pela autoridade civil de Badajoz, aparece o menor vestígio deste conto.

(114) Inquérito, l. cit. — Acenheiro, l. cit.

(115) Inquérito, l. cit. — Apenso, Carta 3.ª.

(116) Ibid. Carta 1.ª.

(117) «em la primera audiencia que me hizo mercêd de me oyr me quexè deste mi hermano... que lo habia mandado hurtar de acá para Castila... por lo hazer catholico, como lo tenia hecho, e vino a Lisbona a hazerse judio como los otros»: Ibid. Carta 2.ª.

(118) «apud dictum serenissimun regem etiam medio quamplurium dicti regni praelatorum, et, quod peius et, fratrum dicti ordinis (praeditorum) hispanorum, quibus etiam totius Castellae, et praesertim serenissimae reginae hodiè viventis inordinatus favor non defuit, insteterunt»: Memoriale Christianor. novor.: Symm. Lusit., vol. 31, f. 12.

(119) «eadem privilegia...: prout ejus pater concesserat... purè et resolutè confirmavit... quo multo magis et magis dicti novi christiani a dictis regnis non recesserunt.» Ibid. f. 11.

(120) O inquérito e seus Apensos, que se acham na G. 1, M. 2, N.º 36, no Arqu. Nac., posto que autênticos, oferecem dúvidas quanto à exação dos fatos que neles se contém. A primeira singularidade é terem-se achado na algibeira do morto as cartas que dirigira a elrei, o que, até certo ponto, se explica, supondo que fossem as minutas delas, mas que, aliás, eram papéis que, por interesse próprio, ele devera ter aniquilado. A segunda singularidade é que os assassinos não examinassem o cadáver e não lh’as tirassem, ignorando, como necessariamente ignoravam, que já elrei as havia recebido. Não poderia D. João III ter empregado a corrupção para fazer ajuntar ao auto do corpo de delito as cartas que estavam em seu poder, para depois obter delas transumpto autêntico? Seja como for; nas costas daquele documento há duas notas, cada uma de diversa letra, mas ambas da época, nas quais se lê o seguinte: «Apontamentos que deu elrei, que lhe trouxe de Castella mestre Margalho, que foram achados a Anrique Nunes Firme-fé quando o mataram: em Coimbra o primeiro dia de outubro de 1527.» — «Desta cota se infere que este traslado mandou elrei a Roma quando começou de pedir ao papa Clemente Vir a Inquisição.» — Acerca de mestre Margalho veja-se Leitão Ferreira, Memórias Cronolog. da Universid., § 1020, 1024 e segg.

(121) Doc. orig. de março e maio de 1528, na G. 2, M. 1, N.º 46 e G. 20, M. 7, N.os 14, 35 e 36, no Arqu. Nac.

(122) Carta do Dr. Selaya, março de 1528, G. 2, M. 1, N.º 46

(123) O desacato consistira em derribar a imagem e fazê-la pedaços: Symmicta, vol. 31, f. 15.

(124) Carta dos juízes ordinários de Gouveia de 8 de nov. de 1528: Corpo Cronol., P. 1, M. 41, N.º 108, no Arqu. Nac.

(125) Orden. Manuel., L. I, tit. 44, § 1.

(126) «plurimos falsis testimoniis morti tradiderunt, facta, ut dictum est, inter testes conjuratione»: dizem os dous jurisconsultos Parisio e Veroi na consulta que lhes mandou fazer Clemente VII sobre a matéria da Inquisição (Symmicta, vol. 31, f. 229). Veja-se, também, o Memoriale (Ibid. f. 12 e segg.).

(127) Corpo Cronol., P. I, M. 32, N.º 56 e 60. — Maço 20 de Bulas N.º 10 e M. 11 de dictas N.º 20. — Gav. 7, M. II, N.º 4, no Arqu. Nac.

(128) Estas graves acusações que fazemos aqui serão plenamente justificadas pela correspondência original de D. Martinho, quando, anos depois, foi, de novo, embaixador em Roma, sobre o negócio do estabelecimento da Inquisição.

(129) «Tandem traditi sunt igni et in Christum D. N. usque ad ultimum anhelitum inspirantes, sanctoque crucifixo adherentes vitae suae extremum clauserunt diem»: Memoriale, l. cit., f. 15.

(130) «Tirei devassa assy sobre estes como sobre os que la na corte estão: consta... serem judeus como o eram ante que os fizessem cristãos. La mando todo. E por serem pessoas riquas e correrem risquo em irem desattados, mandey com eles o meirinho etc.»: Carta do Licenciado Sebastião Duarte a elrei: 16 de setembro de 1529: Corpo Cronol., P. I, M. 4, N.º 84, no Arqu. Nac.

(131) Memoriale, l. cit, f. 16.

(132) Ibid. f. 15 v.

(133) Instrumentum de Injuriis et Tumultibus in opido de Gouvea etc.: Symmicta, vol. 31, f. 102 e segg.

(134) Fr. M. de S. Damaso, Verdade Elucidada, p. 19.

(135) Memoriale, l. cit., f. 12 e 13. — Instrumentum oppidi Oliventiae etc: Ibid. f. 96 e segg.

(136) Carta de Gil Vicente a D. João III (26 de janeiro de 1531) nas suas obras, T. 3, p. 385 (edição de 1834).

(137) «Qua de causa episcopus funchalensis et doctor Joannes Petrus et ego illos qui ad manus nostras veniebant, propter símiles causas haereseos, dimiti mandamus»: Episc. Silviens. Sentent. 1.ª in Symmicta Lusit, vol. 31, f. 79. — «Doctor Joannes Petrus et episcopus funchalensis, et doctor Ferdinandus Rodericus cum aliis clericis eos pronunciabant liberandos, quia eos judaeos reputabant, et non haereticos.» Ibid. Senten. Definit. 2.ª Ibid. f. 76 v.

(138) «Quia ego, si septuagenarius non essem, et fueram hujus modernae aetatis, hanc probationem pro falsa habueram; quia est tam clara et tam aperta quod jus ilam pro falsa habet. Et barricellus qui quaerelavit et testes omnes debuerant venire ad torturam ... Lavo manus ab isto processu, licet non sim Pilatus: judicent alteri literati moderni»: Id-Ibid. f. 77 v. e 80.

(139) Id Ibid

(140) «per reginam uxorem suam et altos potentes dominos»: Memoriale, Ibid. f. 21 v.

(141) Minuta das instruções ao dr. Brás Neto (sem data), G. 2, M. 2, N.º 39, no Arqu. Nac.

(142) «vos encomendo e mando que o mais breve que poderdes com muita diligência e segredo peçais etc.» Ibid

(143) «Faley a Santiquatro nisto: acheyo um pouco aspero, e disseme que isto parecia que se ordenava pera proveyto, e aqueryr as fazendas desta gente, como se dizia da de Castela»: Carta de B. Neto a elrei de 11 de junho de 1531, no Corpo Cronol., P. 1, M. 46, N.º 102, no Arqu. Nac. Neste documento, em parte lacerado, falta a assinatura; mas é original da letra de Brás Neto.

(144) «e quem quysêse ficar que ficasse, e estes esfolassem se fizessem o que não devessem»: Ibid.

(145) Ibid.

(146) Ibid

(147) Carta de B. Neto, a elrei de 1 de agosto de 1531, no Corpo Cronol., P. 1, M 47, N.º 2.

(148) Ciacconius, Vitae Pontific. vol. 3, col. 338.

(149) Chamava-se protetor de qualquer país o cardeal que, entre os mais influentes da cúria romana, o governo desse país escolhia para servir de seu agente e procurador perante o consistório. Pode-se imaginar o preço por que ficariam procuradores de tal ordem.

(150) Ciacconius, Op. cit., vol. 3, col. 522.

(151) «Nec aliquo pro istis miseris in curia tunc temporis residente»: Memoriale, Symmicta Lusit., vol. 31, f. 23 v.

(152) Ibid. Nota marginal

(153) Sousa, Anais, Memór. e Doc p. 375.

(154) «ad ritum judaeorum, a quo discesserant»: Bula Cum ad nihil magis 16º kal. Jan. 1531, no Maço 2, N.º 6 de Bulas e na G. 2, M. 1, N.º 35 e 44 no Arqu. Nac.

(155) Ibid e Breve a Fr. Diogo da Silva de 13 de janeiro de 1532, no M 2 de Bulas nº 13.

(156) informação dada ao embaixador Álvaro Mendes pelos Inquisidores de Castela etc. (sem data), G. 2, M 1, N.º 17. Do contexto deste documento se depreende que foi feito antes de haver Inquisição em Portugal, e Álvaro Mendes começou a ser embaixador em Castela desde setembro de 1531 (Visc. de Santarém, Quadro elementar, T. 2, p. 69 e segg.). Assim o documento pertence aos últimos três meses deste ano.

(157) Como vimos acima, o breve especial a Fr. Diogo da Silva, para que aceitasse o encargo de inquisidor, é datado de 13 de janeiro de 1532.

(l58) «Rex vero, seu potiús ejus consiliarii, aut fratres praedicti, futuri (ut credebant) inquisitores, considerantes quod si Inquisitionem... obtentam publicassem omnes novi christiani erant a regnis illis tanquam a crudelibus terris recessuri, priusquam aliqui eorum de dicta Inquisitione notitiam habuissent, fecerunt cum rege praefato ut legem quandam tyrannicam et mandatum, alias jugum, contra istos miseros priùs fecisset et publicasset, quod ita factum fuit»: Memoriale, l. cit., f. 24 et v.

(159) V. ante p. 191 e segg. — Ord. Manuel., L. 5, t. 82, § 1.

(160) Figueiredo, Synops., T. I, p. 346 — Traslados autênticos desta lei inseridos nos autos da publicação em Entre Douro e Minho, no Alentejo, no Algarve acham-se na G. 2, M. 1, N.º 41, e M. 2, N.º 47, e G. 15, M. 2, N.º 14, no Arqu. Nac. e em outras partes. Na Symmicta (vol. 31, f. 168 v.) está inserta uma versão latina com a data de 14 de maio e no fim Petrus de Leacova fecit. Evidentemente é o nome alterado de Pedro d’Alcaçova, que já começa a figurar como secretário de D. João III. Porventura, essa versão foi feita de alguma cópia obtida furtivamente pelos cristãos-novos. Em tal hipótese, a data de 14 de maio seria a da lei redigida um mês antes de publicada.

(161) Uma das cousas mais curiosas nos documentos daquela época relativos ao estabelecimento da Inquisição é a variedade de impropérios vomitados contra a religião mosaica, religião estabelecida por Deus e santificada nas divinas páginas da Bíblia, embora abrogada depois pelo cristianismo. As acusações de mentirosa, de ímpia, de embusteira, de blasfema são das mais suaves. Tais eram o furor cego do fanatismo e o despejo da hipocrisia.

(162) Dos autos da publicação em Braga e em muitos outros concelhos d’Entre Douro e Minho vê-se que a lei chegara ali dentro de três dias depois de promulgada em Setúbal, e dos autos relativos ao Alemtejo se conhece que a Elvas e a outros lugares da fronteira chegara dentro de dous dias, G. 2, M. 1, N.º 41, e M. 2, N.º 47, no Arqu. Nac.

(163) aqui (rex) bona verba, factis tamen... peni-tús contraria adhibendo, ilios ad animorum inquie-tudinem... conduxit, adeò quod eorum aiiqui futura praedicentes, regiamque, etsí latentem, indignatio-nem, seu potiús animi corruptionem sentientes, a dictis regnis recesserunt»: Memoriale, l. cit., f. 21.

(164) «seipsos pro mortuis mérito reputarunt»: Ibid f. 27 v.

(165) «et in quamplurium fuga talia contra ipsos pluriès comprehensos perpetrata sunt, quod mirandum profecto quod non ad turcharum dominia, sed ad diabolorum domos non transferrentur»: Ibid.

(166) Ibid. f. 28.

(167) «licet, alias, pro certo habuissent... quod rex ipse eosdem novos christianos, et praecipuè eorum capita, duriore et acerbiore mente tratare et tenere habebat si ad sedem apostolicam recursum habuissent, tamen videntes, aliam eisdem non superesse salutem, omni timore ac metu postposito, pro remédio a Vicario Christi obtinendo... una voce clamarunt, et statim recurrerunt ad Clementem praefatum»: Ibid.

(168) Instrumentum Lamecense, Symm., Vol. 31, f. 178 v.

(169) Fazem disto fé os instrumentos judiciais, apresentados pelos cristãos-novos em Roma pelos anos de 1544, que se acham na Symmicta, vol. 31, f. 137 e segg., e, acerca do que se passava no reino, além do instrumento relativo a Lamego, os que se acham a f. 109 e segg., 116 e segg., 119 e segg., 151 e segg., parte dos quais ainda teremos de aproveitar

(170) No inquérito de testemunhas feito judicialmente em Lamego, a 17 de julho, sobre a vida, costumes e religião dos cristãos-novos depuseram largamente a favor deles, entre outros fidalgos, cavaleiros e eclesiásticos, o governador da cidade, o alcaide, o custódio e o guardião dos franciscanos, D. Cristovão de Noronha, sogro do Marquês de Vila Real, o chantre da sé, etc: Symmicta, l. cit.

(171) Estas espécies acerca de Duarte da Paz são tiradas de uma carta sua a elrei, de que brevemente nos aproveitaremos, e de dous ofícios curiosíssimos de D. Martinho, arcebispo do Funchal, embaixador em Roma, de 14 de março e 13 de setembro de 1535, que se acham na G. 2, M. 1, N.º 48 e M. 2, N.º 50, no Arqu. Nac.

(172) «Duarte da Paz procura não embuçado, como fazia em vida de Clemente, mas público»: Carta de D. Martinho de 14 de março de 1535, l. c. Veja-se também a minuta da carta de João III a Santiquatro de ? de 1536 (G. 2, M. 1, N.º 28) onde se acham as outras particularidades relativas a Duarte da Paz e à sua saída do reino.

(173) Cartas de B. Neto de 11 de junho e de 1 de agosto de 1531, l. cit.

(174) Breve de 15 de maio de 1532, no M. 19 de Bulas N.º 20. — Carta de B. Neto de 3 de junho de 1532, no Corpo Cronol., P. 1, M. 49, N.º 10. — Carta do bispo de Sinigalia a D. João III de 2 de setembro de 1532, ibid. N.º 101; tudo no Arqu. Nac.

(175) Da carta de B. Neto de 3 de junho de 1532, se vê que ele esperava ser substituído por D. Martinho. No M. 20 de Bulas N. 11, no Arqu. Nac, está um breve de 16 de novembro, recomendando a elrei B. Neto, que voltava a Portugal; mas do documento do C. Cronol., P. 1, M. 50, N.º 76, se vê que ainda em janeiro de 1533 este exercia em Roma as funções de embaixador. É depois que começa a figurar como tal D. Martinho. A 4 de novembro, porém, já este se achava em Roma, como se conhece da carta de Duarte da Paz (C. Cronol., P. 1, M. 49, N.º 20) que adiante havemos de citar.

(176) Cartas Missivas, sem data: M. 3, N.º 291, no Arqu. Nac.

(177) Vejam-se os capítulos dados contra este núncio na G. 13, M. 8, N.º 12, no Arqu. Nac. Parece ser a esses capítulos que se refere D. João III na carta ao arcebispo do Funchal que se acha na G. 2, N.º 21.

(178) No Memorial dos cristãos-novos de 1544 invoca-se mais de uma vez o testemunho do bispo de Sinigaglia sobre as injustiças praticadas contra eles por essa época e alude-se, até, à proteção que lhes dava.

(179) É o que se deduz de ser Sinigaglia quem comunicou para Roma o desprazer d’elrei sobre o procedimento da cúria quando foi suspensa a bula de 17 de dezembro. Veja-se a carta de Santiquatro de 14 de março, na G. 2, M. 5, N.º 51.

(180) Carta de Santiquatro de 14 de março de 1535, l. cit.

(181) Ibid.

(182) «considere bem V. A. que neste negócio o que nos tem feito grande mal foi o nom aceitar Fr. Diogo da Silva a posse dele»: Carta de D. Henrique de Meneses a elrei de 17 de março de 1535; G. 2, M. 5, N.º 55, no Arqu. Nac.

(183) Breve Venerabilis frater, dirigido ao bispo de Sinigaglia. É singular que este breve não se encontre, nem no original, nem em transumpto, no Arqu. Nac. Dele não podemos achar cópia por íntegra em parte alguma. Aproveitamo-nos, portanto, do largo extrato publicado por Fr. Manuel de S. Damaso (Verdade Elucid., p. 23). Na cópia do processo da Inquisição que pertenceu ao cônego Lazaro Leitão, e de que o autor da Verdade Elucidada se serviu, vinha ele inserido: mas falta, bem como outros documentos, na cópia do mesmo processo que constitui os volumes 31, 32 e parte do 33 da Symmicta Lusitana. No breve de perdão aos cristãos-novos de 7 de abril de 1533 (G. 2, M. 2, N.º 11), Clemente VII refere-se expressamente a esse anterior documento.

(184) Carta de Santiquatro cit., loc. cit.

(185) Ibid.

(186) Destas instruções, que não encontrámos na Torre do Tombo, há cópia num volume de Memórias de Pedro de Alcaçova Carneiro, existente ns Academia R. das Ciências.

(187) Carta de Santiquatro cit., l. cit.

(188) «Eu escrevo ao conde (talvez o da Castanheira) muito verdadeiramente quam pouca culpa tenho em nenhuma das cousas que ma dão». Carta de Duarte da Paz a elrei de 4 de novembro de 1532, recebida em Évora a 19 de dezembro por via de Álvaro Mendes embaixador junto a Carlos V: Corpo Cronol., P. I, M. 49, N.º 20.

(189) «sempre estou, como estava nesse reino, prestes a serviço de V. A.».

(190) A cifra acha-se inclusa na carta: compunha-se de quatro sinais para cada letra do alfabeto de modo que se evitasse a repetição constante de um único sinal para representar qualquer letra. O nome do signatário era já escrito em cifra.

(191) «por me non succeder algum perigo aa pessoa tomando alguma minha letra»: Ibid.

(192) O sobrescrito é: «A elrey nosso senhor — de muito seu serviço pera a S. A. abrir.

(193) «Esta carta do duque (provavelmente o de Bragança, D. Jayme) furtey a meu pai; mande-a V. A. queimar». Ibid.

(194) Ibid.