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História da Província Santa Cruz/Depois que Magalhães teve tecida

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☙ Ao muito illuſtre ſenhor Dom
Lionis pereira ſobre o liuro que lhe
offerece Pero de Magalhães: tercetos
de Luis de Camões.
 


DEpois que Magalhães teue tecida
A breue hiſtoria ſua que illuſtraſſe,
A terra Sancta Cruz pouco ſabida.
Imaginando a quem a dedicaſſe,
Ou com cujo fauor defenderia
Seu liuro, de algum Zoilo que ladraſſe.
Tendo niſto occupada a fantaſia,
Lhe ſobreueo hum ſono repouſado,
Antes que o Sol abriſſe o claro dia,
Em ſonhos lhe apparece todo armado
Marte, brandindo a lança furioſa,
Com que fez quem o vio todo enfiado;
Dizendo em voz peſada & temeroſa,
Não he justo que a outrem ſe offereça
Nenhũa obra que poſſa ſer famoſa,
Se nam a quem por armas resplandeça,
No mundo todo, com tal nome & fama,
Que louuor immortal ſempre mereça.
Iſto aſsi dito, Apolo que da flama
Celeste guia os carros, de outra parte
Se lhe apreſenta, & por ſeu nome o chama

Dizendo, Magalhães, posto que Marte
Com ſeu terror te espante, todauia
Comigo deues ſo de aconſelharte.
Hum barão ſapiente, em quem Talia
Pos ſeus theſouros, e eu minha ſciencia,
Defender tuas obras poderia.
He justo que a eſcritura na prudencia
Ache ſua defenſam, porque a dureza
Das armas, he contraria da eloquencia:
Aſsi diſſe, & tocando com deſtreza
A citera dourada, começou
De mitigar de Marte a fortaleza:
Mas Mercurio, que ſempre costumou
A despartir porfias duuidoſas,
Co caduçeo na mão que ſempre vſou,
Determina compor as perigoſas
Opiniões dos Deoſes inimigos,
Com razões boas, justas & amoroſas,
E diſſe, bem ſabemos dos antiguos
Heroes, & e dos modernos, que prouaram
De Bellona os grauiſsimos perigos,
Como tambem muitas vezes ajuntaram
As armas eloquencia, porque as Muſas
Mil capitães na guerra acompanharam:
Nunqua Alexandro, ou Ceſar nas confuſas
Guerras, deixarão o estudo um breue eſpaço,
Nem armas das ſciencias ſam escuſas.

Nũma mão liuros, noutra ferro & aço;
A hũa rege & enſina, & outra fere
Mais co ſaber ſe vence que co braço.
Pois logo barão grande ſe requere,
Que com teus dões Apollo illustre ſeja,
E de ti Marte palma & gloria espere.
Este vos darey eu, em quem ſe veja,
Saber & eSforço no ſereno peito,
Que he Dom Lionis que faz ao mundo enueja.
Deste as Irmãas em vendo o bom ſogeito,
Todas noue nos braços o tomaram,
Criando o com ſeu leite no ſeu leito.
As Artes & ſciencia lhe enſináram,
Inclinaçam diuina lhe influiram,
As virtudes moraes que logo o ornáram.
Daqui nos exercicios o ſeguiram,
Das armas no Oriente, onde primeiro,
Hum ſoldado gentil instituiram.
Alli taes prouas fez de caualleiro,
Que de Chriſtão magnanimo & ſeguro,
A ſi meſmo venceo por derradeiro.
Depois ja capitam forte & maduro,
Gouernando toda a Aurea Cherſoneſo,
Lhe defendeo co braço o debil muro.
Porque vindo a cercala todo o peſo
Do poder dos Achens, que ſe ſustenta
De ſangue alheo, em furia todo aceſo.

Eſte ſo que a ti Marte repreſenta
O castigou de ſorte, que o vencido
De ter quem viuo fique ſe contenta.
Pois tanto que o gram Reino defendido
Deixou: ſegunda vez com mayor gloria.
Para o ur gouernar foy ellegido.
E nam perdendo ainda da memoria
Os amigos o ſeu gouerno brando,
Os immigos o dãno da victoria.
Hũs com amor intrinſeco esperando
Eſtam por elle, & os outros congelados
O vão com temor frio receando.
Pois vede ſe ſeram desbaratados
De todo, por ſeu braço ſe tornaſſe,
E dos mares da India degradados.
Porque he juſto que nunqua lhe negaſſe
O conſelho do Olympo alto & ſobido
Fauor & ajuda com que pelejaſſe.
Pois qqui certo està bem dirigido,
De Magalhães o liuro, eſte ſo deue
De ſer de vós, ò Deoſes eſcolhido.
Iſto Mercurio diſſe: & logo em breue
Se conformáram niſto, Apolo & Marte,
E voou juntamente o ſono leue.
Acorda Magalhães, & ja ſe parte
A vos offerecer Senhor famoſo
Tudo o que nelle pos, ſciencia & arte.

Tem claro estylo, ingenho curioſo,
Pera poder de vos ſer recebido,
Com mão benigna de animo amoroſo.
Porque ſo de nam ſer fauorecido
Hum claro espirito, fica baixo & eſcuro,
E ſeja elle com vosco defendido,
Como o foy de Malaca o fraco muro.