Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/III/III

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Esta segunda fuga foi muito mais dolorosa ao coração de José Luís do que a primeira. Já amava extremosamente sua filha, e tinha a mais terna solicitude por aquela interessante menina, cuja criação lhe tinha custado tantos cuidados e desvelos, cujo fruto em um só momento vira esvaecer-se. Era à semelhança de uma flor peregrina e rara, em cuja cultura o jardineiro se esmera com o mais desvelado amor. Um dia porém, quando pela manhã vai visitar o tenro botão, que de dia a dia anseia por ver desabrochar em flor, acha-a cortada pela raiz por verme daninho, murcha e perdida para sempre.

José Luís fez altas diligências para reaver sua filha, mas sempre sem resultados. Bem quisera ele para reivindicá-la armar uma bandeira e levar a guerra a todas as tribos sel­vagens, como outrora Menelau levou toda a Grécia armada aos muros de Tróia para reconquistar a esposa, que um peralta lhe havia seduzido e roubado. Mas não lhe era isso possível, e contentava-se em dirigir súplicas ao céu, e fazer promessas a Nossa Senhora Mãe dos Homens para que lhe res­tituísse a filha.

Nas selvas Jupira cresceu linda e garbosa como a palmeira das campinas, mas esquiva e soberba como a ema, rainha dos chapadões. Suas graças fascinaram as vistas de todos os jovens bugres, que a seguiam, admirando-a e adorando-a como a um manitô caído do céu; mas a nenhum deles foi dado colher aquela peregrina flor das selvas. Baguari era chefe de uma forte e numerosa horda estranha. Encontrando-se com o bando de Jupira, encantado de sua beleza, abandonou os seus para segui-la.

Mas Jupira fugia dele como a tímida lontra foge do ja­caré, ou como a pomba se esconde do gavião. Era à sombra de sua mãe que vinha arquejante e espantada como a caça acossada pelo jaguar, abrigar-se das perseguições do cacique. Temerosa de cair-lhe nas garras a menina mal ousava arre­dar-se alguns passos da companhia dos seus.

Os outros bugres pretendentes aos favores de Jupira, que sabiam das intenções de Baguari, furiosos de raiva e de ciúme, e não ousando opor-se de viva força ao possante cacique, ainda que desejassem devorar-se uns aos outros, uniam-se para fa­zer face ao inimigo comum e mais forte, e seguiam e vigia­vam por toda a parte a formosa menina a fim de obstar a que o cacique lograsse seus intentos. Assim Jupira sem que­rer e sem o pensar tinha sempre ao pé de si uma escolta ativa e vigilante para a defender contra qualquer tentativa violenta de seu sanhudo amante, como sói acontecer entre as brutas alimárias, pouco acima das quais se achavam aqueles selvagens na categoria dos entes. Baguari era valente e terrível; membru­do e robusto como a anta, ágil e veloz como a onça, já tinha sufocado nos braços um dos seus rivais, e traspassado o cora­ção a outro com uma flecha, por terem ousado disputar-lhe abertamente a posse da formosa Jupira. Mas era só e detes­tado por todos, e eram muitos contra ele. Por isso também da parte dele havia constrangimento e receio.

O tronco do ipê já se tinha de novo toucado de seus tufados cachos de flores amarelas. Baguari que conforme a pro­messa de Jurema, estava esperando com impaciência aquela quadra, foi ter com ela, e disse-lhe: – Olha, Jurema, o ipê já está florescendo. É tempo de cumprires a promessa que me fizeste, e entregar-me tua filha.

– Ah! minha mãe! minha mãe! dá-me antes a um sucuri, – exclamou Jupira, atracando-se com a mãe.

– Jupira, – disse Jurema para sua filha, – olha que Baguari é forte e te quer muito bem. Vai com ele, minha filha.

– Se minha mãe teima, eu irei lançar-me na lagoa dos sucuris retorquiu a menina com firmeza.

A lagoa dos sucuris era um banhado, que por ali havia e onde existia enorme quantidade desses formidáveis répteis. Quem nela caía era irremissivelmente devorado pelos mons­tros. Jurema sabia, que sua filha era bem capaz de pôr em prática a sua ameaça, e disse ao cacique:

– Estás ouvindo, Baguari? – ela não te quer ainda. É que ainda não é tempo. Espera ainda, Baguari;... mais tarde...

– Cala-te, filha de Anhangá! – bradou o índio rugindo e batendo o pé com força – não quero mais te escutar, boici­ninga enganadora... ou hoje ou nunca!...

Ouvindo os gritos e vendo a atitude ameaçadora do cacique, os outros bugres, que estavam de alcatéia, aproximaram-se de arco e flecha em punho, murmurando palavras de ameaça. Baguari lançou-me de revés um furibundo olhar, sol­tou um rugido de raiva e de despeito, e retirou-se vagarosa­mente rosnando como um tigre enfurecido.

Vendo que nem por bem, nem por violência lhe era possível obter a posse da virgem indiana, Baguari que não desistia de seus intentos sobre ela, recorreu às ciladas.

Jupira gostava de caçar pássaros. Com um pequeno arco e flechas proporcionadas às suas forças, ela varava os jaós, inhambus, macucos, capoeiras e outras aves que abundavam naquelas florestas, e abastecia de copiosa caça o rancho de seu pequeno bando. Um dia à hora do pôr-do-sol ela estava sozinha com sua mãe à beira de um capão embalando-se indolentemente em sua maca de palhas de buriti e abanando o rosto e enxotando as mutucas com o cocar de penas, que havia tirado da cabeça. Seus companheiros vagueavam pelo campo a pouca distância. Um jaó começou a piar dentro da mata. Jupira saltou lestamente da rede, tomou o arco e fle­chas, e embrenhou-se no capão, sem que sua mãe, que estava ocupada em esfolar um tamanduá, desse fé daquele movi­mento.

O jaó é uma ave grande e excelente de se comer, mas muito arisca e dificílima de se caçar.

Os índios e os sertanejos, que com eles aprenderam, empregam uma engenhosa astúcia para os atrair e apanhar. É de ordinário ao pôr-do-sol que os jaós costumam piar, vagueando pelas sombras da mata. O caçador esconde-se cui­dadosamente em alguma moita junto ao lugar, em que os ouve piando, e começa também a piar, imitando-os com toda a perfeição. O jaó acudindo àquele chamado, que cuida ser de algum de seus companheiros, vem se aproximando, descobre-se, e então o caçador atira-lhe ou flecha-o muito à vontade.

Jupira, que era habilíssima neste manejo foi se escon­der e começou a responder ao jaó. Mas este em vez de apro­ximar-se, ia-se afastando aos poucos, e piando cada vez mais ao longe. Jupira piando sempre e mudando de esconderijo em esconderijo o foi acompanhando, sem nunca conseguir avis­tá-lo, entranhou-se a uma grande distância pelo capão adentro. O sol já era entrado, e as sombras do crepúsculo começavam a escurecer a floresta; Jupira desanimada ia já voltando, quan­do sentiu pelas costas mão de ferro agarrar-lhe o ombro, e uma voz medonha bradou-lhe – Jupira, agora és minha!– Era Baguari que usara daquela negaça para atrair Jupira e arredá-la dos seus. Assim a pobre menina cuidando ser a caçadora era a caça, que vinha descuidada cair nas mãos de seu feroz perseguidor.

Jupira deu um grito de terror; mas o cacique levou-lhe imediatamente a mão à boca, e nem os companheiros dela po­deriam ouvi-la, na distância em que se achavam. Viu que ne­nhum partido poderia tirar da resistência, e procurou aplacar o seu feroz agressor.

– Espera, Baguari! – dizia ela arquejando de susto: – Não me faças mal; eu me entrego... mas larga-me.

– Não; tu queres enganar-me; mas é escusado; desta vez não me escaparás.

– Não quero te enganar, não, Baguari. Vamos onde está minha mãe... ela me entregará a ti, e eu te juro que não hei de pôr dúvida nenhuma em ser tua.

– Por Tupã!... nesse laço não caio eu, minha formosa garça do Paraná. Já agora não sairás mais dos meus braços, quer tu e tua mãe queiram, quer não queiram.

– Pois bem, Baguari; sou tua; não te fugirei mais;... mas larga-me... tu assim me sufocas... ai...

Falando assim e debatendo-se Jupira procurava ganhar tempo a ver se seus companheiros dando por falta dela vinham em seu socorro, ou a excogitar algum ardil para arrancar-se dos braços do seu brutal amante. Melhor porém do que ela esperava, veio o destino ou o céu em seu auxílio. Pisada pelo índio uma enorme jararaca que dormia em uma moita de capim quase debaixo de seus pés, salta enfurecida, e enrosca-se-lhe nas pernas. O índio dá um grito de horror, sacode vigorosamente a perna, e atira longe o medonho réptil, que felizmente não o havia picado, recua em dois pulos com Jupira nos braços, larga-a no chão, e investe de tacape alçado sobre a cobra, que ia se esgueirando pelo matagal adentro. Jupira não perdeu um só instante; mal se viu solta dos braços do truculento cacique, enquanto este a rijos botes de tacape perseguia a cobra, mais veloz e sutil do que uma irara desapareceu pela mata, e chegou suando e arquejante ao pé de sua mãe.

–Está morta!... – bradou triunfante o cacique. – Jupira!... Jupira!... Jupira!... Onde estás?

Mas Jupira já estava longe.