Horto (1910)/Creanças

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A Antônia de Araújo, companheira
amada dos tempos do colégio.

Moro na rua da Ventura. Perto,
Há um ninho - é a aula das meninas;
Trazem-me sempre o coração desperto
Os risos dessas almas cristalinas.


Sinto-me alegre. Vivo sem saudade,
Sem, desconforto, sem desesperanças.
Sou bem feliz na minha soledade
Ouvindo o pipilar d’essas crianças.

A’s duas horas ergo-me da banca
Onde medito: vai fechar-se a escola...
Que bem me faz esta algazarra franca
De aves gentis que voam da gaiola!

Gosto de vê-las quando saem rindo
Alegremente, as mansas andorinhas.
São doze ao todo. Que rebanho lindo
De inocentes e castas ovelhinhas!

Vem na frente a maior. Já quase moça,
Olhos azuis e fronte cismadora:
Uma açucena de esquisito louça,
De face cor de neve e trança loura.

É séria e triste. Chama-se Laurita;
Tem uma voz que me seduz e encanta;
Veste sempre de azul e é tão bonita
Com os seus ares de pequena santa!

Passa depois Sophia, uma criança
De olhar mais negro do que a noite escura.
Vive sempre a sorrir como a Esperança,
Vive sempre a cantar como a Ventura!


E aquela doida que lá vai correndo
Em risco de tombar nas pedras duras?
É Lúcia. A vida quer levar fazendo
Todos os dias essas travessuras.

Depois, Sarah e Rebecca... Borboletas
Irmãs no olhar, no rosto e nos vestidos;
São dois anjinhos de madeixas pretas,
Gêmeos sorrisos, corações unidos!

Segue-as a linda e ingênua moreninha
De nome terno e encantador: Dolores,
Uma singela e pálida amiguinha
Que todas as manhãs guarda-me flores.

Hoje, está triste. Nem me deu bom dia!
Deixou cair as rosas pela estrada.
- Que é do teu canto, doce cotovia?
(Reparem ela como vai zangada!)

Desce em seguida a meiga Valentina,
Dez anos tem. Parece um Querubim...
Uma açucena pálida e franzina,
Um encantado e pálido jasmim!

E a Inocência? Vem chorando tanto!
Que te fizeram, minha sensitiva?
Quem foi que os olhos te inundou de pranto,
Quem te causou essa amargura viva?


Já sei: a mestra quis ralhar contigo,
E foi bem feito, colibri travesso!
Fiquei alegre com o teu castigo;
Por que não me dás beijos quando os peço?

Ouço chamar pelo meu nome... É Santa,
Um diabrete muito engraçadinho...
- Soube a lição? - Não me responde, canta...
- Graça inocente, voa para o ninho!

Puxando a trança de Lucília, passa
Celeste, a loura; correm como doidas...
Por que é que tarda a pequenina Garça,
A mais mimosa e mais gentil de todas!

Ei-la! É um anjo a divagar na terra,
Um beija-flor que prendem na gaiola...
Quanta candura o seu sorriso encerra,
Quanta inocência d’esse olhar se evola!

Como eu a amo e que tristeza infinda,
Sinto nos dias em que não a vejo...
Ah! como adoro essa mãozinha linda,
Tão pequenina que parece um beijo!

E eu digo ao ver das criancinhas mansas
O bando alegre e luminoso e forte:
Vós sois no mundo claras esperanças,
Rosas da vida, embalsamando a morte!


O vosso olhar é como um livro aberto
Onde soletro as minhas alegrias...
Oásis santo num cruel deserto,
Negro e sem fim, de fundas agonias.

Em breve as férias chegarão, e eu triste
Quantas semanas vou passar distante
De vosso olhar onde a Candura existe,
De vosso riso claro e hilariante!

E para não ficar tão só, tão louca,
Presa da cisma ao doloroso enleio,
Dai-me as cantigas que levais na boca,
Dai-me as quimeras que guardais no seio!

Pois já suspiro pela aurora mansa
Que há de trazer com o sol do novo ano,
Para a voss’alma mais uma esperança,
Para a minh’alma mais um desengano.

Anjos da terra, flores animadas,
Aves do céu que a chilrear passais...
Como vos quero, evocações amadas
Do meu passado que não volta mais!

Ah, quem me dera os sonhos perfumados
D’aquele tempo de ideal fragrância...
Cantai! cantai! ó rouxinóis sagrados,
Lembrai-me os dias da primeira infância!