Iracema/V

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V

O galo da campina ergue a poupa escarlate fora do ninho. Seo limpido trinado anuncia a aproximação do dia.

Ainda a sombra cobre a terra. Já o povo selvagem colhe as redes na grande taba e caminha para o banho. O velho Pagé que vellou toda a noite, fallando ás estrelas, conjurando os máos espiritos das trevas, entra furtivamente na cabana

Eis retroa o boré pela amplidão do valle.

Travão das armas os rapidos guerreiros, e correm ao campo. Quando forão todos na vasta ocára circular, Irapuam, o chefe, soltou o grito de guerra:

— Tupã deo á grande nação tabajara toda esta terra. Nós guardamos as serras, donde manão os corregos, com os frescos ipús onde cresce a maniva e o algodão; e abandonamos ao barbaro Potyuara, comedor de camarão, as areias nuas do mar, com os secos taboleiros sem agua e sem florestas. Agora os pescadores da praia, sempre vencidos, deixão vir pelo mar a raça branca dos guerreiros de fogo, inimigos de Tupan. Já os emboabas estiverão no Jaguaribe; logo estarão em nossos campos; e com elles os Potyuáras. Faremos nós, senhores das aldeias, como a pomba, que se encolhe em seo ninho, quando a serpente enrosca pelos galhos?

O irado chefe brande o tacape e o arremessa no meio do campo. Derrubando a fronte, cobre o rúbico olhar:

— Irapuam falou; disse.

O mais moço dos guerreiros avança:

— O gavião paira nos ares. Quando a nambú levanta, elle cahe das nuvens e rasga as entranhas da victima. O guerreiro tabajara, filho da serra, é como o gavião.

Troa e retroa a pocema da guerra.

O jovem guerreiro erguerão o tacape; e por sua vez o brandio. Girando no ar, rapida e ameaçadora, a arma do chefe passou de mão em mão. O velho Andira, irmão do Pagé, a deixou tombar, e calcou no chão, com o pé ágil ainda e firme.

Pasma o povo tabajara da ação desusada. Voto de paz em tão provado e impetuoso guerreiro! E' o velho heróe, que cresceo na sanha, crescendo nos annos, é o feroz Andira quem derrubou o tacape, nuncio da próxima luta?

Incertos todos e mudos escutão:

— Andira, o velho Andira, bebeo mais sangue na guerra do que já beberão cauim nas festas de Tupan, todos quantos guerreiros allumia agora a luz de seus olhos. Elle vio mais combates em sua vida, do que luas lhe despirão a fronte. Quanto craneo de Potyuara escalpellou sua mão implacavel, antes que o tempo lhe arrancasse o primeiro cabello? E o velho Andira nunca temeo que o inimigo pisasse a terra de seus pais; mas alegrava-se quando elle vinha, e sentia com o faro da guerra a juventude renascer no corpo decrepito, como a arvore secca renasce com o sopro do inverno A nação tabajara é prudente. Ella deve encostar o tacape da luta para tanger o memby da festa. Celebra, Irapuam, a vinda dos emboabas e deixa que cheguem todos aos nossos campos. Então Andira te promette o banquete da victoria.

Desabrio emfim, Irapuam a funda cholera:

— Fica tu, escondido entre as igaçabas de vinho, fica, velho morcego, porque temes a luz do dia, e só bebes o sangue da vítima que dorme. Irapuam leva a guerra no punho de seo tacape. O terror que elle inspira vôa com o rouco som do boré. O Potyuára já tremeo ouvindo rugir na serra, mais forte que o ribombo do mar.

Notas[editar]

Pag. 26.—I. Espiritos da treva.—A esses espiritos chamavão os selvagens curupira, meninos máos—de curumim, menino, e pira máo.

II. Boré—frauta de bambú,—o mesmo que muré.

III. Ocara—praça circular que ficava no centro da taba, cercada pela estacada, e para a qual abrião todas as casas. Composto de oca casa e a desinencia ara, que tem; aquillo que tem a casa, ou onde a casa está.



Pag. 17.—I. Potyuara—comedor de camarão; de poty— e uara. Nome que por despreso davão os ennemigos aos Pytiguaras, que habitavão as praias e vivião em grande parte da pesca.

Este nome dão alguns escriptores aos Pytiguaras, porque o receberão de seus ennemigos.

II. Pocema—grande alarido que fazião os selvagens nas occasiões solemnes como em começo de batalha, ou nas expansões da alegria; é palavra adoptada ja na lingua portugueza e inserida no diccionario de Moraes. Vem de po -mão, e cemo clamar; clamor das mãos, porque os selvagens acompanhavão o vozear com o bater das palmas e das armas.

III. Andira—morcego: é em allusão á seu nome que Irapuam dirige logo palavras de despreso ao velho guerreiro.