Iracema/XXXI
Iracema cantava docemente, embalando a rêde para acalentar o filho.
A areia da praia crepitou sob o pé forte e rijo do guerreiro tabajara, que vinha das bordas do mar depois da abundante pesca.
A jovem mãe cruzou as franjas da rêde, para que as moscas não inquietassem o filho acalentado, e foi ao encontro do irmão:
— Cauby vae tornar ás montanhas dos Tabajaras! disse ela com brandura.
O guerreiro annuviou-se:
— Tu despedes teu irmão da cabana para que elle não veja a tristeza que a enche.
— Araken teve muitos filhos em sua mocidade; uns a guerra levou e morrerão como valentes; outros escolherão uma esposa, e gerarão por sua vez numerosa prole: filhos de sua velhice, Araken só teve dois. Iracema é para eele como a rôla que o caçador tirou do ninho. Só resta o guerreiro Cauby ao velho Pagé, para suster seu corpo vergado, e guiar seu passo tremulo.
— Cauby partirá quando a sombra deixar o rosto de Iracema.
— Como a estrella que só brilha de noite, vive Iracema em sua tristeza. Só os olhos do esposo podem apagar a sombra em seu rosto. Parte, para que elles não se turvem com tua vista.
— Teu irmão parte para te agradar tua vontade; mas elle voltará todas as vezes que o cajueiro florescer, para sentir em seu coração o filho de teu ventre.
Entrou na cabana. Iracema tirou da rêde a creança; e ambos, mãe e filho, palpitarão sobre o peito do guerreiro tabajara. Depois, Cauby passou a porta, e sumio-se entre as arvores.
Iracema, arrastando o passo tremulo, o acompanhou de longe até que o perdeu de vista na orla da mata. Ahi parou: quando o grito da jandaia de envolta com o choro infantil, a chamou a cabana, a areia fria onde esteve sentada, guardou o segredo do pranto que embebera.
A jovem mãe suspendeu o filho a teta; mas a boca infantil não emmudeceu. O leite escasso não apojava o peito.
O sangue da infeliz diluia-se todo nas lagrimas incessantes que não lhe estancavão dos olhos; pouco chegava aos seios, onde se forma o primeiro licor da vida.
Ella dissolveu a alva cariman e preparou ao fogo o mingáo para nutrir o filho. Quando o sol dourou a christa dos montes, partio para a mata, levando ao collo a creança adormecida.
Na espessura do bosque estava o leito da irara ausente; os tenros caxorrinhos, grunhem enrolando-se uns sobre os outros. A formosa tabajara aproxima-se de manso. Prepara para o filho um berço da macia rama do maracujá; e senta-se perto.
Põe no regaço um por um os filhos da irara; e lhes abandona os seios mimosos, cuja teta rubra como a pitanga ungio do mel da abelha. Os caxorrinhos famintos, precipitarão gulosos e sugão os peitos avaros de leite.
Iracema curte dôr, como nunca sentio; parece que lhe exhaurem a vida; mas os seios vão-se entumecendo; apojarão a final, e o leite, ainda rubro do sangue, de que se formou, esguicha.
A feliz mãe arroja de si os caxorrinhos, e cheia de jubilo mata a fome ao filho. Elle é agora duas vezes filho de sua dôr, nascido della e tambem nutrido.
A filha de Araken sentio afinal que suas veias se estancavão; e comtudo o lábio amargo de tristeza recusava o alimento que devia restaurar-lhe as forças. O gemido e o suspiro tinhão crestado com o sorriso e o sabor em sua boca formosa.
Notas
[editar]Pág. 147.—Cariman.—Uma conhecida preparação de mandioca. Caric, correr, mani, mandioca. Mandioca escorrida.