José de Anchieta à Luz da Historia Patria
AUCTORES CITADOS:
A Vida de José de Anchieta, por Charles Sainte Foy traduzida em portuguez em 1878.
Appontamentos para a Historia dos Jesuitas, pelo Dr. Antonio Henrique Leal—1874.
A Historia dos Jesuitas, pelo Dr. Mello Moraes.
Historia da Litteratura Brazileira, pelo Dr. Silvio Romero.
Chronica da Companhia de Jesus, pelo P.e Simão de Vasconcellos, publicada em 1672, editada pelo Conego Joaquim C. Fernandes Pinheiro 2.ª Edicção 1864.
Historia do Brazil, por Southey.
””” Americo Braziliense.
””” General Abreu Lima
””” Joaquim Manoel de Macedo.
Roma Perante o Seculo, por Carl von Koseritz.
Consagra
José de Anchieta
Tratando o Congresso Paulista de levantar uma estatua ao jesuita P.e José de Anchieta, julga o auctor destas linhas que é justo patentear ao povo paulista quem foi esse varão illustre, á luz da Historia Patria.
Nestas paginas encontrará o leitor uma compilação historica arrancada das obras dos amigos e admiradores de Anchieta.
São, portanto, depoimentos insuspeitos, isto é, depoimentos que não tiveram em vista depreciar o caracter e a reputação desse celebre jesuita.
A՚ luz desses depoimentos, vejamos quem foi José de Anchieta para que a elle se preste a homenagem de que trata o Parlamento do Estado de S. Paulo.
José de Anchieta nasceu em Tenerife, uma das ilhas Canarias, no anno 1553. Entrou para a Universidade de Coimbra (com ligeiros conhecimentos de leitura e grammatica) quando tinha dezesete annos de idade. (Vide, Vida de José Anchieta p. 2). Mostrou desde logo vocação religiosa, ajudando seis a oito missas por dia todas de joelhos, (obra citada p. 11. Apontamentos para a Historia dos jesuitas p. 62 Vol. I.) Por isso e muitas outras penitencias, depois de um anno, veio a cahir gravemente enfermo e a render pelas costas. Esta enfermidade, que durou dous annos, fel-o vir para o Brazil, a conselho medico. (Vide, Vida de José p. 11 —13) Partio para o Brazil, em companhia.de outros jesuitas, a 8 de Maio de 1553.
Poucos mezes depois de chegar a Bahia, partio para S. Vicente, onde rezidia o P.e Manoel Nobrega, então provincial dos jesuitas.
Por ordem e iniciativa de Nobrega, partiram elle e mais treze jesuitas collegiaes, sob a direcção do P.e Manoel de Paiva, em demanda dos campos de Piratininga, onde deveriam estabelecer um collegio a 25 de janeiro de 1554, realizou-se ahi a primeira missa pelo P.e Manoel de Paiva, denominando-se então.o collegio de — S. Paulo.
Em maio de 1563, depois de derrotados os francezes, por Men de Sá, foram Nobrega e Anchieta pacificar os Tamoyos, ficando Anchieta como refem e conseguindo, depois de alguns mezes, a paz que não foi duradora.
Durante a sua estada entre os Tamoyos, compoz Anchieta, em latim, o poema sobre a Vida da Virgem Maria, cujos versos escrevia sobre a areia e gradativamente os ia confiando á sua prodigiosa memoria.
Em 1564 partiu para a Bahia, afim de completar os seus estudos theologicos e ordenar-se, o que aconteceu em 1566, celebrando então, a sua primeira missa.
Em 1567, regressou Anchieta para o Rio de Rio de Janeiro, indo em companhia de Men de Sá, que vinha aniquílar os destimidos Tamoyos. Nessa serie de combates Anchieta muito auxiliou, determinando as melhores posições e dando ás informações estrategicas afim de serem aniquillados os rebeldes que então pouco tempo esqueceram-se da paz combinada e que não queriam se sujeitar ás leis da Egreja Romana—Vide Southey. Vol. I p. 399.
Neste mesmo anno chegou prezo da Bahia, o celebre ministro protestante João Bolés que desde 1559 tinha sido prezo por influencia do P.e Luiz da Gran. Foi Bolés condemnado a morte, e não sendo perito o algoz, prestou-se a au̟xilial-o o Padre José de Anchieta, servindo elle mesmo de carrasco.
Fundado o Rio de Janeiro, ficou Anchieta como reitor do Collegio ahi estabelecido, desde 1569—1578.
Visitando Toloza, provincial, o collegio de S. Vicente, resolveu mandar Anchieta para Bahia, como reitor do collegio alli estabelecido.
Nesse mesmo anno, ante a Communidade, foi lida por Toloza, a Patente de Provincial dos Jesuitas, em que, em Roma, se reconhecia os serviços prestados por Anchieta á Companhia de Jesus.
Como Provincial, visitou Anchieta as diversas Capitanias, sendo a de S. Vicente em 1583.
Concluidas as visitas ás Capitanias do Sul, voltou á Bahia, e achando-se gravemente enfermo, deixou Anchieta o provincialado em 1585, succedendo-lhe o Padre Marçal Beliarte.
Em 1586 veio para o Rio de Janeiro, cuja collegiada, com as das capitanias de S. Vicente e do Espirito Sancto eram governadas pelo Padre Fernão Cardin.
Em 1587, tendo melhorado, passou Anchieta para o Espirito Sancto, residindo em Rerigtyba, onde juntamente com o Padre Diogo Fernandes, doutrinava os indios com os quaes, dizia elle, melhor se dava que com os portuguezes.
Reuniu-se em 1591 ou principios de 1592, á Congregação Provincial para enviar-se procurador a Roma, e é de notar que achando-se presente Anchieta, recahisse, entretanto, a escolha no Padre Luiz da Fonseca.
Em 1593, o provincial Marçal Beliarte, escreveu a Anchieta pedindo-lhe que por serviço a Deus e a bem da Companhia tomasse o governo da casa e residencia do Espirito Sancto, como seu superior.
Dá. Anchieta fim ao seu superiorado em 1595, mas já gravemente enfermo. Volta a Rerigtyba, porém, como melhorasse, toma de novo por cinco ou seis mezes o superiorado, até que o substituisse Padre Pedro Soares. Regressando a Rerigtyba, ahi aggravaram-se os seus incommodos, vindo a fallecer a 9 de junho de 1597, com a edade de 64 annos.
O seu enterro foi muitissimo concorrido, sendo conduzido o corpo para Espirito Sancto, sepultado na Egreja de S. Thiago, ficando o seu tumulo junto á sepultura do Padre Gregorio Serrão,
Mais tarde o Geral Agua Viva mandou que fossem trasladados os seus ossos para o collegio da Bahia, ficando sepultados junto ao altar, « e seus ossos buscados e estimados em Portugal pelos milagres que faziam nos enfermos de maleita»!...
Segundo a rezenha historica que acaba de ser feita torna-se evidente que Anchieta residiu em S. Paulo durante dez annos mais ou menos isto é, desde 1534 até 1564, data em que saio de S. Paulo para Bahia, onde ordenou-se, e só regressando com Men de Sá, para o Rio de Janeiro. E ahi ficou Anchieta, tomando conta (1569) do Collegio alli estabellecido.
Vejamos, pois, o que fez Anchieta em S. Paulo e que o possa tornar merecedor de uma estatua, levantada pelo Congresso, e á custa dos dinheiros do Estado.
1.° Foi elle fundador de S. Paulo e do collegio ?
Folheando as paginas de nossa « Historia Patria» se reconhece que a iniciativa da fundação de um collegio nas planicies de Piratininga, não partiu de Anchieta, mas sim do Padre Manoel Nobrega, o primeiro provincial dos jesuitas no Brazil. Vide historia do Brazil de Americo Braziliense, pg. 51 ; do General Abreu Lima pg. 44; do Dr. Joaquim Manoel de Macedo pg. 84.)
2.° Foi Anchieta quem escolheu o lugar para o estabelecimento do collegio ?
Não é de crer, visto como o superior dos 13 jesuitas collegiaes de S. Vicente e que vieram para os campos de Piratininga, não podia ser Anchieta que era simples coadjutor professo—não era sacerdote—mas sim o Padre Manoel de Paiva. Historia do Brazil, por Americo Braziliense p. 3 e 26.
3.° Poderia Anchieta ser o director do Collegio?
Claro está que não, visto o P.e Paiva ser o—superior e o reitor do mesmo collegio, a quem estava incumbido pelo Provincial Nobrega de seu estabelecimento.
4.º Foram os treze collegiaes dirigidos pelo P.e Paiva os primeiros que vieram a Piratininga ?
Tambem não. Antes já deveriam ter visitado as villas de S.to André e Piratininga outros jesuitas: Nobrega, Vicente, Leonardo, o irmão Diogo Jacome e outros. Appontamentos para Historia dos Jesuitas por Antonio H. Leal I vol. pag. 40-65.
5.° Depois da chegada de Anchieta houve paz entre os Paulistas nos campos de Piratininga ?
Dizem todos os historiadores que desde que os jesuitas escolheram o local para a fundação do 'collegio e villa de S. Paulo, principiaram e tomaram incremento horriveis discordias. Os mamelucos, diversas vezes, vieram attacar o collegio de Piratininga. Taes foram essas luctas sangrentas, que o Bispo da Bahia procedeu logo contra taes malfeitores ; porém, não tendo o apoio da auctoridade civil, do governo geral, dicidiu-se a ir pessoalmente a Lisboa afim de patentear a El-rei as discordias do clero com o governador.
Essas luctas continuaram entre paulistas e emboabas. A Villa de S.to André foi destruida e a povoação de Piratininga, junto ao Rio Tieté, só deixou de existir, a pedido de Nobrega e Anchieta, a força, por imposição de Men de Sá. Vide Historia do Brazil de Abreu Lima p. 45, de Macedo p. 92, Am. Braz. cap. 7 p. 52-57.
Mesmo depois de destruidas as povoações de S.to André e Piratininga, continuaram os odios contra os jesuitas por serem elles os causadores de profundas discordias entre paulistas e emboabas, sendo por isso expulsos á 13 de julho de 1640.
Assim, pois, é incontestavel, o prestigio de Anchieta não se tornou bastante evidente, durante a sua estada em S. Paulo.
Outro facto que evidencia a influencia quasi nulla de Anchieta, na Capitania de S. Vicente, é a celebre pacificação com os Tamoyos, onde elle ficou como refem. (Vide Hist. de Americo Braziliense p. 57) Ainda assim, essa paz não foi perduravel, mesmo não se realizou sem um quasi complèto aniquillamento desses destimidos e altivos selvagens, por Men de Sá, em 1567, custando a vida de milhares e a morte de Estacio Correa,
Estas discordias eram fomentadas pelos jesuitas para desprestigiar aos portuguezes contra os quaes accuzavam de serem escravizadores dos indios.—Vide---Os Bandeirantes Vol II cap. IV pelo Cons. José da Silva Mendes Leal.
6.° «Os jesuitas não escravizaram indios ?
No Brazil, no Chile, no Peru, no Paraná, nas ilhas de S. Domingos Martinica e Guadalupe, e principalmente no Paraguay, se introduziram, entrando como carneiros e governando como lobos, na phrase do jesuita-Borgia» Roma perante o Seculo p. 39.
« A missão dos jesuitas limitava-se á tornar os indios seus escravos, e a obrigal-os a trabalhar, mediante exigua recompensa (ob—citada p. 40).
« Isto quanto aos meios ; porque quanto ao fim parece que se propunham a liberdade dos indios. Mas Deus, que delles se servia segundo as vistas de sua alta providencia, tinha disposto que elles, que se declaravam protectores dos indigenas, não fossem senão o instrumento da sua aniquilação, para que os portuguezes podessem na America estabelecer e consolidar o seu dominio» Apontamentos para a Historia dos jesuitas I Vol p. 12.
Quem, lendo a historia de nossa patria, não comprehenderá a razão dos jesuitas, hypocritamente, defenderem a liberdade dos indios, quando em todos os paizes os escravizavam ? Quem não reconhecerá que usavam desse meio, si não para que os indios se indispuzessem contra os portuguezes, promovessem lucta, para elles tirarem de tudo isso partido para seu prestigio, para seu predominio ?
E quanto ao espirito abolicionista de Anchieta, a historia, em todas as obras aqui citadas, não menciona, em S. Paulo, um facto siquer !...
7° Como cathechisava José de Anchieta em S. Paulo ?
«Procurando fallar exclusivamente aos sentidos, sobrecarregavam os seus templos com enfeites theatraes, entretinham os convertidos com esplendidas procissões, representavam scenas da historia sagrada, disfarçavam-se com vestes de anjos e de demonios para fazerem apparições e empregavam, finalmente,. novos adeptos do meio daquellas tribus selvagens que com supersticioso terror encaravam aquelles homens com negras sotainas, que tanto os impressionavam com o explendor dos seus templos, com as suas doutrinas de soffrimento eterno nas chammas do inferno, em caso de desobediencia, e de gozos materiaes no ceo, no caso de perfeita sujeição por parte desses mizeros, que não eram mais que um povo de escravos, encadeado nos vinculos da superstição e do despotismo espiritual. »
8.° Usava Anchieta de meios brandos na cathechese ?
«Repito: não tenho intenção de abocanhar nem amesquinhar os serviços que alli prestaram os primeiros missionarios. Deus terá acolhido a infinidade de almas de innocentes e convertidos QUE TODOS OS DIAS MANDAVAM AOS CEUS ; mas a missão dos jesuitas, segundo hoje nos diz a historia, se a lemos sem prevenção, não foi outra senão conter os indigenas, ASSEGURANDO COM A EXTINCÇÃO E REDUCÇÃO DELLES O dominio portuguez no Brazil. Era disso que se tractava nessa epocha» — Appontamentos para Historia dos jesuitas no Brazil Vol I p. 25.
Ainda, continua o auctor:
«Importa por derradeiro, não louvar só as excellencias do systema da cathechese e de aldeiamento dos jesuitas, escurecendo o que ha nelle de pernicioso e incompleto. Se se proclamtavam estremos defensores da liberdade dos indios, se lastimavam as crueldades de que estes eram victimas, não foi por amor e dó dos infelizes indigenas, senão como meio de opposição ás outras ordens religiosas e aos colonos, seus competidores no commercio e lavoira, bem como de contrariar os governadores, os bispos e todos quantos não pactuavam com a Companhia.
«Houve, é certo, converções pela predica, pela persuasão, pelos meios brandos ; A MOR PARTE DELLAS, PORÉM, PELA COACÇÃO E VIVA FORÇA DE QUE FORAM CONSELHEIROS E INSTIGADORES ATÉ OS PRIMEIROS MISSIONARIOS E OS MAIS SANCTOS E APOSTOLICOS MEMBROS DA SOCIEDADE.»
«O P.e Nobrega, escrevendo ao primeiro governador do Brazil, Thomé de Souza, expressava-se a este respeito do seguinte modo : em mentes o gentio não for senhoreado por guerra e sugeito como o fazem os castelhanos nas suas terras que conquistam, não se faz nada com elle».
« O P.e José de Anchieta insistia por sua parte: «sobre os indios já temos sabido que por temor se hão de converter mais que por amor».
« O P.e Vieira comparava-os na sua opulenta phrase ás moitas de murta : que nos jardins facilmente se talham á tesoira, mas como as deixem algum tempo a vontade, logo volvem ao natural tortuosa e agreste».
«Tal conceito» affirma o Conselheiro Mendes Leal, «provinha exactamente dos mais activos e meritorios missionarios. Concordavam na necessidade do rigor, e a elle incitavam os primeiros chefes capitães europeus».—Vide Appontamentos p.ª Hist. Jesuitas por H. Leal Vol. I pp. 227-250.
9.° Que instrucção dispensava Anchieta e seus collegas, aos indios do Brazil e, particularmente, aos paulistas ?
Escutemos ao proprio Anchieta, que escreveu ao Provincial Nobrega em Agosto de 1554» : «Desde Janeiro até agora aqui vivemos, não menos de vinte pessoas, contando meninos cathecumenos, em uma pobre casinha, feita de madeira e de barro, coberta de palha, com uma esteira de cannas por porta, a qual não chega a ter quatorze passos de comprido com dez de largura : este estreito lugar serve de eschola, enfermaria, dormitorio, cosinha e refeitorio, e nem por isso cobiçamos habitação mais folgada e agasalhada.
Segundo affirma o padre Balthasar de Vasconcellos, foi Anchieta « o padre que ensinou latim, no Brazil, ao mesmo tempo que aprendia a lingua geral ! »
Refere o P.e Simão de Vasconcellos trechos da carta annua de Anchieta, que diz: « Passaram por muito tempo grande fome e frio e comtudo proseguiam seu estudo com fervor, lendo as vezes a licção fóra, ao frio, com o qual se haviam melhor que com o fumo dentro da casa».
Assevera Simão de Vasconcellos que Anchieta escrevia as apostillas, uma para cada discipulo, por faltarem livros. «Vieram os filhos dos indios criados no Seminario de S. Vicente (Este Seminario foi fundado muito antes de chegar Anchieta ao Brazil, e o seu reitor era Leonardo Nunes), sabendo já muitos delles ler e escrever e contar e continuaram na eschola ajudando os officios, cantando com instrumentos musicos, que era o maior gosto e incitamento que podia haver aos paes. eram estes os mestres dos outros. No fim da licção cantavam na egreja a ladainha, e a tarde a Salve Rainha com outras pias orações. Os paes se emendavam com isto dos seus grandes vicios, taes como mulheres e vinho».
«A nenhuns tinham mais contrarios estes vicios do que seus proprios filhos ; porque estes, com zelo já christão, vigiavam os paes e os accuzavam aos padres e ajudavam a quebrar as talhas de vinho em suas bebedices». Vide Appontamentos Hist. dos Jesuitas Vol. I p. 112-113.
Ouvidos os depoimentos dos jesuitas, escutemos ao Conselheiro Mendes Leal:
«A apregoada liberdade dos indios nos aldeiamentos dos jesuitas pareceria irrizão a homens cujo espirito sinceramente se houvesse illuminado. Por isso não convinha á tradiccional precaução, dos padres esclarescer os conversos. Que a mais zelosa cathechese exercida sobre homens tomados no estado selvagem não conseguisse delles senão amansal-os, podia ter explicação e desculpa. Mas que os filhos e netos e descendentes dos primeiros neophitos, nascidos, criados, e educados sob a tutela dos padres e com elles os proprios mesticos, que muita vez participavam de sangue europeu, conservassem tão boçaes e nunca passassem d՚aquella meia barbarie essencialmente favoravel á sujeição passiva, singularidade é que bem demonstra um plano e premeditação.
«Esta é, porém, com effeito, uma das mais graves provas contra o preconizado systema. Das artes mechanicas ensinavam os padres aos indios, aos seus indios, como elles, com muita propriedade lhes chamavam, tudo o que aos estabelecimentos da Companhia era necessario, e não só das artes mechanicas, senão tambem de mais altos misteres. Conseguiram assim fazer delles tecelões, pedreiros, canteiros, marcineiros, carpinteiros, oleiros, alfaiates e até esculptores e pintores. Não faltava, portanto, a estes cathecumenos intelligencia susceptivel de todos os desenvolvimentos. Por que seria, pois, que em tudo o que noutras espheras lhes podia allumiar a razão os deixavam como em perpetua infancia ?
« Ainda mais: PORQUE LHES NÃO GENERALIZAVAM A LINGUA PORTUGUEZA ou hespanhola, segundo o paiz a que nominalmente pertenciam, antes preferiam apprender os dialectos barbaros, não já para as primeiras conversões, o que seria indispensavel, mas para uso permanente e commum, o que muito menos se explica ? E não era incapacidade dos indios para fallarem idioma diverso do seu, pois, que, alem do tupy, ou lingua geral, vulgar por todo o sertão, as diversas tribus e nações facilmente se familiarisavam com os termos que ouviam ou precizavam empregar quando se achavam em contacto com gente civilizada. Naquella constante pratica transluzia evidentemente o proposito de segregar os seus tutelados de quaesquer relações que podessem communicar-lhes ideas diversas das, que exclusivamente lhes incutiam. Escravidão em verdade era esta, e maior de todas, e a mais profunda e completa, porque em trevas encerrava o entendimento, e até os impulsos da vontade supprimia.
Teve sempre a Companhia o segredo e o methodo de quebrantar o espirito e o animo aos seus educandos por modo que todos nas mãos lhes ficassem. Que melhor o não lograria com gente rude e simples como era aquella !»
«Os Banderantes—citado nos Apontamentos da Hist. dos Jesuitas, já citada, p. 227—250.
E՚ admiravel que Anchieta, se empenhasse em ensinar latim ; escrevesse apostillas de latim ; estudasse o tupy, escrêvesse uma rudimentar grammatica e vocabulario da lingua tupy ; e se esquecesse de ensinar portuguez ! de escrever uma grammatica elementar da lingua portugueza, um vocabulario da lingua da nação em cujo serviço estava e de onde recebia a Companhia regia protecção ?... Ah! mas era conveniente que fossem os jesuitas os unicos mediadores entre os indios e portuguezes !... Era mesmo, absolutamente necessario, aos interesses da Companhia, que jamais fosse facultado aos brazilienses poderem se relacionar com os extrangeiros, visto como, assim poderiam aspirar pelo progresso, luz, e liberdade !
E quaes foram as artes ensinadas por Anchieta aos paulistas ?
Responde o P.e Simão de Vascocnellos que escreveu em 1640: « Anchieta apprendeu a fazer alparcatas de cardos bravos, e ensinava artes e modo que pudessem servir de allivio a seus irmãos naquelle desterro do mundo, e até sangrava. Fizeram egrejas de taipa, a mão, e as cobriam de palha»
Tendo apparecido uma peste de priorizes, parecendo-lhes que era força de sangue, Anchieta, com um canivete sangrava, e raro foi o que depois morreu». (!!...) Obra acima citada p. 111—114.
E՚ evidente, pois, que Anchieta, como educador, merece uma estatua enfrente a secretaria da Instrucção Publica para gloria de S. Paulo, tambem chamada «Athenas do Brazil» !...
Assim, pois, Anchieta nada de real fez a S. Paulo que o torne digno de uma estatua, foi um missionario jesuita, que unicamente soube obedecer, e nada fez em S. Paulo por sua iniciativa. Como jesuita recebeu a recompensa—foi elevado a Provincial e por Dect. de 31 de Julho de 1736 foi canonisado pelo Papa Clemente XII. E՚ um sancto ! não merece estatua na praça publica, mas devem os devotos levantar altares, prestando a elle o culto de dulia, e, á sua imagem, o culto relativo, como prescreve a doutrina da Egreja Catholica e Apostolica Romana.
José de Anchieta não pertence ao povo que não tem religião official, pertence a Egreja Romana.
Seria até um desrespeito levantar a estatua de um sancto na praça publica, porque, claro está, que só lhe prestarão homenagem devida os catholicos romanos !
Não é da competencia do Estado mandar fazer imagens de sanctos. Isso é de exclusiva competencia da Religião Romana.
A Cezar o que é de Cezar.
9.° Foi José de Anchieta uma illustração?
Dizem-nos os seus biographos que aos dezesete annos entrou Anchieta para a Universidade de Coimbra, porém, tal era a sua devoção que ajudava oito missas por dia, todas de joelhos, alem das muitas penitencias e jejuns que realizava !
Depois de 3 annos de estudos, missas, jejuns e penitencias que o deixaram encurvado e que necessariamente lhe roubavam muito tempo, os medicos aconselharam que saisse da Europa, vindo então para o Brazil, contando apenas 20 annos. No Brazil, é enviado para os campos de Piratininga, onde não havia livros para estudar, nem ao menos grammaticas latinas !. . Alem disso o seu trabalho de cathechese e mais affazeres como coadjuctor professo, não lhe facultavam tempo para estudar, tanto assim que foi para a Bahia (1564) completar os estudos theologicos para sua ordenação. Durante o tempo que esteve em S. Paulo, Anchieta não era sacerdote !
As obras que publicou ou publicaram por elle, refere P.e Simão de Vasconcellos : «Compoz um vocabulario, traduziu a doutrina e mysterios da fé, tractados, interrogatorios e avisos necessarios para os que houvessem de confessar e instruir». E alem destas o poema á Virgem Maria tão conhecido que os historiadores affirmam ter 4.000, 5.000 ou 7.500 versos!... Esse poema foi escripto em latim, e com certeza já tem sido revisto e correcto pelos que a elle se referem, sem ainda assim, ter merecido as honras de uma traducção completa, tal é a sua celebridade, tal é o seu valor litterario !..
Quanto a grammatica tupy, affirma o Visconde de Porto Seguro, que alem de ser laconica e obscura é modelada sobre a lingua latina!... Qual destas obras importantes ordenará o congresso Paulista, para gloria da nossa litteratura latina ou tupynesca que seja vertida para o portuguez e para o uso das nossas escholas ?
10.° Qual o valor litterario de Anchieta ?
Escutemos ao mestre Dr. Silvio Romero :
«O mais antigo vulto da historia litteraria é o P e José de Anchieta. A critica mesquinha, que ha presidido a organização de nossas chronicas litterarias, o tem excluido do seu quadro. Anchieta é geralmente considerado um portuguez, um extrangeiro, de certa influencia religiosa, e nada mais. Na historia civil elle apparece mais ou menos, conforme a maior ou menor carolice do escriptor.
Encaro as cousas por um prisma diverso. Anchieta foi um insular, um quasi indigena das Canarias, um apaixonado, um hysterico, que até certo ponto se abrazileirou.
«Alma arrebatada e poetica, elle não era homem de arrecuar, encarava o seu ideal com enthusiasmo. Um dia entrou para a Companhia de Jesus, e foi o mais acabado modelo do jesuita no bom sentido da palavra.
«Um dia partiu para o Brazil e fez-se um dos nossos, isto é, um amigo desta terra, um devotado aos.selvagens, um agente, um factor de nossa civilização. Não poderei escondel-o, Anchieta é a meus olhos altamente sympathico, Chegado ao Brazil aos vinte annos de idade, aqui viveu quasi meio seculo e nunca mais passou pela mente voltar para a Europa ; dedicou-se fortemente, fanaticamente á cathechese dos seus brazis ; viveu para elles ; para elles escreveu grammatica, lexicon, comedias, hymnos ; por amor delles soffreu. Entre seus queridos indios morreu».
«No estudo desta individualidade, tão nobremente accentuada, não temos a colher ideas novas, principios originaes por ella espalhados. Foi um missionario nada mais ; foi um jesuita, e um filho de Loyola não tem, não pode ter ideas suas ; é um ente que se annulla para melhor devotar-se. Perinde ac cadaver vai, préga a sua doutrina e tem comprido o seu mandato. Anchieta só tem uma idea ; servir a sua ordem ; só tem uma missão : fazer o que ella lhe ordena. Num homem destes, por maior que seja a força impulsiva, a acção automatica quasi offusca a independencia do pensamento. Nelle temos a apreciar somente o exemplo ; mas sem desejos de seguil-o. A nós outros filhos deste seculo XIX, habituados a rebeldia de pensamento, estes exemplos de homens que se sujeitam cegamente a uma ordem superior, podem servir de specimens ou amostras da candidez das almas ; mas não são muito para prender-nos.
«Preferimos um Luthero que protesta a um Anchieta que obedece. E, todavia, o typo ameno e poetico do missionario não perde valor aos nossos olhos. Homem de paixão, alma ardente e lyrica, atira-se ao serviço do seu Deus ; a vontade é nelle um principio de obediencia, alguma cousa de heroica, de selvagem, que acha prazer em seguir uma regra, uma norma como quem tira a prova de um calculo arimethico, exacto, perfeitissimo. A paz de sua alma é perfeita, alegria intima, intensissima.»
«Apreciado pelo lado litterario, Anchieta não foi propriamente um escriptor ; em seu temperamento nervoso e arrebatado predominava a vontade; era um homem de acção».
«Inspirados e escriptos os seus trabalhos pela necessidade da prédica e da conversão dos gentios, ainda hoje comtudo, são interessantes ao linguista, ao historiador e ao litterato. Ao primeiro porque entre elles nos veio uma grammatica tupy e algumas poezias e autos escriptos nessa lingua, que podem servir de base para o estudo do americanismo ; ao historiador, porque Annuas e cartas são um rico manancial de informações sobre o primeiro seculo de colonisação do Brazil ; ao litterato, porquanto contem versos portuguezes e bellos specimens de poezia latina. Anchieta escreveu em quatro linguas : portugueza, hespanhola, tupy e latina».
«Qualquer que seja o juizo que a critica venha a formar um dia sobre os trabalhos grammaticaes e lixicographos de Anchieta qualquer que possa vir a ser esse juizo sobre as suas producções poeticas e dramaticas, quer me parecer que o melhor patrimonio que elle nos legou são as suas despretenciosas cartas».
«Não é nos versos latinos que deve ser estudado, é antes em suas cartas, e em suas poesias portuguezas, ou ainda nas tupys. Nestas deve sentir o bafejo popular».
«Mello Moraes aventou a idea de considerar Anchieta o creador da poesia e da litteratura nacionaes, considero Anchieta um ponto de partida, um simples precursor». Entre outras razões pelas seguintes :
«O P.e não teve intuitos litterarios porém somente designios de religião e cathechese.»
«Para verdadeiro creador no sentido nacionalista, faltava-lhe o mysterioso impulso do nascimento, unico que sabe dar completamente a nota patria.»
«Escreveu principalmente em tres linguas que não são a nossa.»
«Não foi elle só o jesuita do seu tempo que escreveu autos e poesias ; outros o fizeram entre elles, o P.e Navarro, denominado o Orpheu brazilico.»
«Os versos do Canarim passaram desapercebidos durante os ultimos trez seculos ; não foram publicados, não influiram sobre o espirito nacional, são hoje apenas uma descoberta tardia de erudicção.»
«E՚, certamente, um equivoco querer tirar do cosmopolitismo abstracto da intuição generalizante e universalista de um jesuita a ideia particularista do nacionalismo litterario.
«Os versos publicados agora e os existentes na Bibliotheca do Instituto Historico, enviados de Roma, são sob o ponto de vista litterario, social e ethenologico, de valor muito problematico para sobre elles levantar-se a theoria que combato».
«Por taes motivos é justo conservar-se o P.e em seu lugar, sem ser necessario exagerar-lhe as proporções».
"E՚ o que faço neste livro" Historia da Lithe. Brazizileira. Vol. I p. 149 e seguintes.
11.° Anchieta foi carrasco ?
Escutemos a respeito o que diz o P. Simão de Vasconcellos, que escreveu As Chronicas da Companhia de Jesus.
”Animados os tamoyos das boas relações e protecção dos francezes que conviviam com elles no Rio de Janeiro, mostravam-se insolentes, e discorriam e perturbavam a costa. Villegallion, chefe dos francezes, era capitão catholico, zeloso de justiça e vingador dos aggravos que se faziam aos indios, principalmente ás mulheres.
”Aconteceu que pretenden castigar quatro soldados, todos herejes, por erros commettidos, estes fugiram e são bem recebidos em S. Vicente. Achava-se entre estes João Bolés, homem versado nas linguas latina, grega, hebrea e sabedor das Escripturas.
Entrou a fallar de imagens, sanctas, bullas e indulgencias de modo que fazia rir. Apega-se ao P.e Luiz da Gram em 1559 a quem argue por deixar os portugaezes sem a Palavra de Deus, para a prégar aos gentios contra o preceito de S. Paulo, que manda começar pelos proprios.
”O povo dizia que Bolés era homem doutissimo e que Luiz da Gram não ousava disputar com elle, e por isso o perseguia, como de facto o fazia, até que se metteu de permeio a justiça ecclesiastica e Bolés foi prezo com trez companheiros moços e idiotas, e remettidos ao Bispo da Bahia, deixando de acompanhar um delles por se ter reduzido a fé catholica” — Appont. Hist. dos jesuitas. Vol I p. 132.
Vasconcellos affirma no livro IV cap. XVI n.° 5 o seguinte:
”Chegaram diz, elle, noticias ao P.° Luiz da Gram, que estava em Piratininga, e incontinenti se partiu para combater ao principio desta peste (a heresia) que quando appareceu tinha logo infeccionado as povoações maritimas, levando após si gente ignorante.
O mesmo foi chegar Luiz da Gram que declarar-se nos pulpitos, nas praças, no publico, no secreto e confutar as heresias de um homem tão attrevido.
”Affrontado cara a cara, quando ousava mostrar-se para ouvir a prégação do padre, irritado nessas occasiões, tentou Bolés applacal-o. O P.e Paternina diz claramente que elle procurara por todos os meios as boas graças do sacerdote intolerante !
”Eis as proprias palavras desse auctor, que o chama João Bouller : y tenia gracia de entretener una conversacion. Descia dissimuladamente entre sus gracias, alcunas que mordiam en la autoridad del Summo Pontifice, en el uso de los sacramentos, en el valor de las indulgencias, y en la veneracion de las imagines.procuró escusar con el atrevimento su peligro. Tuvo traça para applacar al padre Luiz de Grana y carteo՚se amigablemente con el, como un hombre docto con otro, y comunicole muchas opiniones theologicas professando-se siempre en las palabras enteramente catolico (note-se bem). Pero aunque entonces vistio piel de oveja nunca desnudó el alma de lobo... Para atajarl-a, el tribunal ecclesiastico prendio al hombre (P.e Paternin—Liv. II cap. VII.) Vid. ob. cit. Vol. II p. 100 a 105.
Estavam no Rio de Janeiro, P e Manoel Nobrega, Bispo Leitão e Anchieta quando ”apparece, continua o P.e Simão de Vasconcellos.” João Bolés que tanto dera que fazer a Luiz da Gram, e que vinha agora (1567) remettido preso da Bahia. (Estava no Rio de Janeiro Men de Sá). Manda-o justiçar o governador por um algoz. Pede então Anchieta que se sobrestivesse na execução emquanto procurava converter o hereje. Uma vez logrado o seu intento, foi o pobre Bolés relaxado ao braço secular. Não era, porém, perito o algoz e fazia soffrer o paciente. O P.e Anchieta que se doia DESTE ERRO DE OFFICIO, SEM QUE TEMESSE A SUSPENÇÃO CANONICA POR ACCELERAR A MORTE, PASSOU A ENSINAR AO INEXPERIENTE CARRASCO COMO DEVIA MANOBRAR.” — Appontamentos para Historia dos Jesuitas. Vol. I pg. 158-159.
Referindo-se o Dr. Henrique Leal a Historiae Societatis Jesu Auctore R. P.e José Juvencio diz: ”que quanto ao caso de Bolés, occupa-se delle de uma maneira assaz perfunctoria relatando apenas que, acusado perante o bispo, foi preso e lançado ás chamas” Pg. 16o Vol. II.
Na Historia dos Jesuitas no Brazil, ”o Dr. Mello Moraes affirma que Anchieta abateu o orgulho de Bolés, baptizou-o e ajudou-o a morrer com admiração de todos” !...
Escutemos ainda Charles de Sainte Foy que publicou em francez a Vida do P ° Anchieta calcando a sua obra sobre documentos encontrados em Roma ; authenticos, e ahi collecionados para beatificação de Anchieta. Esta obra foi traduzida para o portuguez e dedicada ao bispo D. Lino. (1878).
”Baldados todos os esforços que a caridade christan suggeriam para abrandar aquelle endurecido coração, recorreram o P.ª Anchieta como a ultima taboa de salvação. Foi este ter com o hereje, e tanto que o viu, abraçou-o, e com toda a ternura apertou-o ao peito, usando com elle todas as finezas que só uma ardente caridade sabe inspirar. Desta arte ganhou-lhe o coração ; depois do que, sem custo, convenceu-lhe o entendimento, e, em poucas horas, fez desse hereje um catholico sincero e penitente. João Bolés abjurou o calvinismo, retractou em publico os seus erros, pediu perdão a todos dos escandalos que havia dado, entregou-se completamente nas mãos do seu, — como elle chamava, pae Anchieta, e finalmente morreu em fervorosos actos de fé, de contrição e amor a Deus, deixando a quantos presenciaram a morte, bem fundadas esperanças de sua eterna salvação” pg. 56.
Tendo obtido a obra do P. Simão de Vasconcellos, editada pelo conego Joaquim C. Fernandes Pinheiro, em 1864, 2.ª edicção, passo a transcrever o referido trecho :
«Para ajudal-o em tão duro trance foi chamado o P.e Anchieta : achou o hereje pertinaz em seus errados fundamentos, pediu que se detivesse mais tempo a execução da justiça, e entre aquellas treguas de vida fallou o novo sacerdote ao réu com tão grande espirito e efficacia de razões, que converteu o endurecido coração, e veio a reconciliar com a sancta egreja aquella ovelha perdida, e quasi tragȧda do lobo infernal com applauso do céu e dos homens. Porém, aconteceu aqui um caso digno de ser sabido : porque o algoz, quando foi a execução do castigo, como era pouco destro no officio, detinha o penitente no tormento demasiadamente, em agonia e impaciencia conhecida. Anchieta que via este erro tão grande, e arreceiava que por impaciencia se perdesse a alma de um homem, por natural colerico, e tão pouco havia convertido, entrou em zelo, reprehendeu o algoz e instruio elle mesmo de como havia de fazer seu officio com brevidade desejada : acto de fina caridade! Sabia muito bem Anchieta a pena das leis ecclesiasticas, que suspendem de seu officio a todo aquelle que sendo sacerdote accelera a execução da morte em qualquer occasião que seja ainda que pia ; porém, preponderava com elle mais a caridade que devia ao proximo e respondeu aos que lhe perguntaram a causa desta resolução, desta maneira: ”Porque o damno de minha suspensão não é offensa a Deus, e tem remedio na absolvição da egreja, porém o damno daquella alma, si ella alli se perdera por impaciencia, era peccaminoso e não podia remediar-se ; e pela salvação de uma alma vivera eu suspenso toda a minha vida !” Chronicas pg. 226 n. 116.Southey Vol. I p. 425.
Bolés, pois, foi enforcado por José de Anchieta e é muito provavel que o seu corpo, depois de cahir do patibulo, fosse como affirma o P.e Juvencio em sua Historiae Societatis Jesu Auctore, lançado ás chammas.
Este facto referido pelos proprios jesuitas, que não poderiam invental-o para desprestigiar um dos mais celebres provinciaes, realizou-se, póde se asseverar, de modo muito mais cruel, visto o temperamento ”nervoso” de Anchieta que era ”um homem de acção”
O que se pode considerar como accrescentado—é a conversão, quasi instantanea, de Bolés, por Anchieta: 1.° Porque as convicções profundas em um homem douto, como foi esse. ministro, francez huguenote, segundo affirmam os proprios chronistas, não se destroem em instantes ; 2.° Porque, si de facto elle se converteu, e Anchieta foi o instrumento de sua conversão, não seria necessario consummar-se tão degradante punição ; 3.° porque, todos os chronistas, para tornar o facto prestigioso á Egreja Romana e particularmente á Anchieta, emprestaram, (é natural a quem pratica fraudes pias, para quem o fim justifica os meios) a Bolés, esse acto de abjuração. Entretanto, si tudo for verdade, a perversidade de Anchieta, em ser algoz de seu proprio filho na fé, vai até a monstruosidade a mais inaudita !
Anchieta seria digno de um monumento, si, com a sua decantada influencia, em vez de auxiliar o carrasco, livrasse a Egreja Romana de mais essa nodoa, e a nossa historia, dessa manifestação de attrazo, superstição e barbara intolerancia !
Finalmente escutemos a respeito a opinião do Conego Pinheiro, a nota 29,
«Só por uma mal entendida caridade, ou por condemnavel fanatismo, podia o venerando e apostolico Anchieta, rebaixar-se ao ignobil papel de ajudante de carrasco» !
E՚ pois um facto incontestavel ! Anchieta foi intolerante e fanatico ! Anchieta, foi mais, foi carrasco ! mestre de carrasco !
E é a este roupeta, que hoje, no seculo das luzes, da tolerancia e da liberdade ; que a egreja está separada do Estado ; que ha plena liberdade de consciencia ; se trata em pleno congresso de levantar uma estatua que personifica a annullação da liberdade do direito e da moral !
Não ! A dignidade republicana ainda não morreu !
A Camara e o Senado não podem, sem trahir a dignidade do seu mandato, sem calcar aos pés a lei, sem perjurar a fé de officio republicana, approvar semelhante monstruosidade !
Ainda quando por uma verdadeira desgraça isso viesse a acontecer, o que parece ser absolutamente impossivel, erguer-se-ia, como uma muralha inexcalavel o vulto do benemerito paulista que se acha a frente do governo do Estado ! A sua palavra honrada e inflammada desde os tempos da propaganda, propugnando contra a intolerancia, e o fanatismo inquisidor; pugnando pela separação da Egreja do Estado, por elle mesmo referendada a 7 de Janeiro de 1890; não poderá ter nesse monumento, o monumento de sua morte moral ! Não, porque elle nunca se ha de levantar ! Não ! porque essa alma de paulista relembra a nobreza altiva dos celebres bandeirantes que estavam promptos a morrer na pugna sacrosancta do direito, da dignidade e da honra !
Não mil vezes não! Levantar uma estatua a um jesuita é dar prestigio a uma Companhia expulsa de todas as nações pelos fins sediciosos e perversos que a nutrem. E՚ dar prestigio ao clero ultramontano inimigo, irreconciliavel da Republica ! E que tem promovido tudo para desmoralizar a Republica, os seus fundadores, e as suas leis !
E a lei que o clero mais tem calcado aos pés com uma insolencia inqualificavel, é a lei sabiamente delineada pelo M. D. Presidente de S. Paulo—a Lei do Casamento Civil ! Levantar uma estatua a José de Anchieta é prestigiar o ultramontanismo ao mesmo tempo que esbofetear o auctor da Lei do Casamento Civil, o M. D. Ministro do Governo Provisorio—o Ex.mo Sr. Dr. Manoel Ferraz de Campos Salles.
Semelhante insulto e desprestigio á primeira auctoridade de S. Paulo—o povo paulista não deve, não pode consentir !

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.

