Lágrimas Abençoadas/II/II

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A vida d'esta familia correra assim tres annos. O dia de hoje, empregado em grangear a subsistencia do de ámanhã, promettia a mesma tranquillidade nos dias successivos. E assim passavam.

Frei Antonio era o mestre de Maria. A educação litteraria, que lhe dava, não era simples. Apaixonado pelos seus, e pelo esplendor da sua patria, frei Antonio affeiçoára o espirito de sua sobrinha aos moldes graves da poesia portugueza do seculo 16º. Fizera-a decorar a historia nos cantos das epopêas; afinára-lhe o gosto no arrebatamento d'aquelle genio, que deu lições de resignação aos desgraçados. Camões era mais que um poema decorado por Maria. A cada verso era interrompida, e o poema tornava-se, commentado pela eloquencia do padre, um fecundo manancial de moralidade. O sabio não se contentava com o amor exclusivo da sua litteratura. Frei Antonio amava alguns livros francezes, e os italianos de todos os seculos. Maria aos dez annos conhecia as duas linguas, e lia, nas horas vagas desoccupadas da noite, com percepção admiravel. As suas lições não interrompiam o trabalho das flôres. Em quanto de entre os dedos lhe brotava a rosa, incendiavam-se-lhe as faces, lindas como a flôr, pelo calor nervoso com que expunha episodios de historia, adaptados á sua intelligencia pelo estylo energico do seu tio. Seus irmãos, mais velhos que ella, porfiavam em imita'-la, e sentiam-se feridos no amor proprio, quando a viam voar pelo mundo da intelligencia, defeso á sua. Maria era um prodigio—dizia o pae:—era forçoso reprimi'-la na audacia das suas duvidas sobre motivos religiosos, porque frei Antonio com horror á superstição e fanatismo não tolerava senão a religião na sua maior pureza. «Maria, tinha uma razão, capaz de perder-se por muito energica» accrescentava o mestre.

Maria, aos doze annos, mostrava singular desenvolvimento de compreensão. Não se lhe difficultavam as entidades ideaes da metaphysica, e leccionava seus irmãos na arte de pensar, como se ao seu espirito descessem do céo revelações das que encaminham a razão direita ao alvo das verdades eternas. O juizo, porém, essa faculdade, que não tem ainda o nome na sciencia do coração, esfriára-lhe o enthusiasmo, que, dois annos antes, lhe acalorava a infantil eloquencia. Havia tristeza na amostra do seu talento. Parecia violentar-se quando a estimulavam a revelar a sua opinião em objectos de sabedoria. Até não queria ser galardoada com applausos, e córava, se a faziam inveja de seus irmãos. Pedia que a deixassem no seu officio de florista, dando-se por contente do pouco que sabia, pois pouco bastava a uma mulher, que não podia repousar a cabeça, e adormecer no seio da sciencia. A formosa artista tivera um piano, em que dedilhava os seus primeiros ensaios, quando seus paes o venderam. Tomara a peito um peso enorme de trabalho, esperando accumular dinheiro que lhe restituisse o seu piano; e conseguiu-o, quando o seu nome se fez celebre, n'aquelle genero de enfeites, que a moda pagava caros.

Em casa do coronel de ***, até esta epoca, nunca se reuniram a um chá pessoas extranhas. Aquellas portas fecharam-se: o habito applaudiu essa deliberação forçada pelas circumstancias; e, quando estas mudaram, não foi levemente alterada a sabia economia, que tanto concorrera para a felicidade d'aquella familia.

Não obstante, o nome de D. Maria dos Prazeres não esquecia nos grandes circulos, nos salões do luxo e da moda. A esse nome estava vinculado o prestigio de uma familia illustre, nublada pelas tempestades politicas. Pintava-se com traços exagerados, talvez, a transição da opulencia para a miseria; faziam-se romances, mais ou menos idealisados pelo gosto da epoca; contavam-se assombros de um genio que o infortunio acanhava, em forçada obscuridade. Ninguem vira de perto D. Maria dos Prazeres, ninguem a encontrára fóra da rua por onde ia á egreja; mancebos, porém, que precisavam interessar na sociedade, cançada de logares communs, diziam que a tinham ouvido um minuto, dois minutos, cinco minutos, maravilhados da sua formosura, e pequenos diante da sua eloquencia.