Livro de uma Sogra/XI
Mas o homem põe, e Deus dispõe; um ano decorreu sem que eu descobrisse, para minha filha, um oficial de marinha que lhe conviesse. Ela acabava de fazer dezenove anos e era um mimo de graça e de inocência; amava-me extremamente, e jurava que me faria todas as vontades — só para me ver feliz.
Coitada! — Ver-me feliz!... a mim! Como se no mundo houvesse, para mim, outra felicidade que não fosse a dela própria.
Durante todo esse ano dei festas em minha casa; comecei a receber, às quartas-feiras, todas as semanas. Como sabiam por aí que éramos ricas, não faltavam pretendentes à mão de minha filha; e o bom acolhimento que dispensei logo à farda de marinha encheu-me as salas de velhos e jovens oficiais dessa milícia, com tamanha profusão, que cheguei a recear ter inutilizado o gênero, barateando-o aos olhos de Palmira.
Minha casa parecia já uma repartição de Marinha, e no entretanto a rapariga não se decidia por nenhum dos oficiais. Verdade é que bem raros se me afiguravam corresponder aos requisitos exigidos. Só um, Saturnino da Rocha, primeiro-tenente, de vinte e cinco anos, me deu vivas esperanças. Um belo moço! Mas o Dr. César disse que ele tinha a solitária. Pusemo-lo à margem.
Com o que eu não contava foi o que sucedeu, como acontece quase sempre. Entre os candidatos, colhidos pela rede que atirei ao mar para pescar um noivo, veio, de mistura com os legítimos representantes daquele poético elemento, um empregado público, de segunda ou terceira ordem, um amanuense de secretaria, amador de música; um verdadeiro contrabando, impingido já me não lembro por quem. Era ainda muito moço, bonito e bem apessoado. Estudei-o de relance; não me pareceu mau de gênio e revelou inteligência quase regular. Tocava piano e bandolim com certa graça; falava inglês, francês e espanhol. Era pobre.
— Quem sabe?... pensei eu. Talvez apesar da idade, cuja diferença da de Palmira me parecia pequena demais, estivesse naquele contrabando um rapaz aproveitável para os fins que eu tinha em vista... Mas, que pena! não era oficial de marinha!... De todos os proponentes era, todavia, e sem termo de comparação, o melhor como estampa.
Interpelei minha filha, a respeito dele, frouxamente, como por descargo de consciência. E qual não foi o meu espanto quando a vi reproduzir fielmente todos os gestos retraídos, que eu própria fizera quando me consultaram, nas mesmas condições, sobre o meu defunto esposo?
Ela abaixou os olhos, corou, sorriu quase imperceptivelmente, e começou a percorrer com os dedos da mão direita os botões do corpinho do seu vestido.
Tomei-lhe as mãos; estavam frias e ligeiramente trêmulas. Interroguei-a de novo, e Palmira, em vez de responder, caiu-me nos braços, soluçando.
Era a coisa, não havia dúvida! Comigo tinha sido tal e qual!
— Gosta dele... Não é verdade, minha filha?... perguntei-lhe, beijando-a na testa.
— Eu o amo, minha mãe... foi a sua única resposta.
— Tu o amas! — Sabes lá o que é isso! Queira Deus que não estejas procurando iludir-te; iludir a ti e a mim! Não te deixes levar por falsas impressões!...
— Só com ele me casarei por meu gosto! Só com ele serei feliz!...
— Isso é o que todas nós dizemos nas tuas condições, minha filha... Mas não te mortifiques, que, se o rapaz te ama deveras, e se estiver em condições de casar contigo, não serei eu que a tal me oponha, porque bem sabes que só procuro e quero a tua felicidade.
Ela, transportada, beijou-me repetidas vezes, agradecendo-me com as suas carícias as minhas palavras.
Todavia, talvez que de nós duas fosse eu a mais comovida nesse momento. Quando me separei de Palmira, encerrei-me no quarto e chorei copiosamente. Por quê? Não sei dar a razão; só afianço que um doloroso sobressalto se apossou de mim, e uma dura e fria tristeza, tristeza de velho, encheu-me o coração e escureceu-me a vida.
Procurei consolar-me, refugiando-me na idéia da felicidade de minha filha. Ah! pobres corações de mãe! pobres corações, que tanto sofreis para depois ainda mais vos amesquinhardes, chorando sob o peso infamante e ridículo desta terrível palavra — Sogra!
E apressei-me a procurar o meu amigo. Fui logo no dia seguinte à casa dele. César, ao receber-me, percebeu a minha tristeza; compreendeu-a talvez. Mas não me disse uma só palavra a respeito dela; apenas tomou-me a mão e afagou-a entre as suas, como de costume.
Para bem nos entendermos, os dois, bastava-nos o olhar!
Assentei-me junto à secretária, bem perto da sua cadeira e, em voz baixa e comovida, dei-lhe parte de tudo, e concluí, pedindo-lhe que viesse à minha casa na próxima reunião. — O pretendente lá estaria. César prometeu ir.
E não faltou com efeito.
Tínhamos muita gente essa noite em casa. Havia concerto e depois dança. Os uniformes da marinha, rebrilhantes de galões dourados, cruzavam-se em todas as salas, ofuscando as casacas pretas e dando àquela minha modesta quarta-feira, oficiais realces de uma festa de corte. As damas afidalgavam-se, pareciam até mais amáveis e mimosas ao reflexo das refulgentes dragonas.
Minha filha cantaria ao piano, acompanhada pelo seu preferido. Ela resplandecia de sedução, naqueles primeiros arrulhos de pomba amorosa, que procura fazer ninho; estava alegre, saltitante, ébria de ilusões e de esperanças.
E pensar eu que, daí a algum tempo, toda aquela gárrula confiança no amor, toda aquela louçania de inocência e toda aquela frescura de mocidade, poderiam emurchecer e transformar-se no que eu sofri pouco depois que me casei!... Ah! mas eu lá estaria ao lado dela para vigiar-lhe o leito de recém-casada, como lhe vigilara, outrora, o berço de recém-nascida. E o meu coração de mãe tremia tanto agora, ao vê-la assim sorrir de ventura às primeiras pulsações do amor, quanto tremera dantes, aos seus primeiros vagidos e às primeiras lágrimas que lhe vi nos olhos.
O concerto correu bem, Palmira foi feliz no que cantou acompanhada pelo namorado, creio até nunca lhe ter ouvido cantar com tamanha expressão. Mal deixaram o piano, apontei o rapaz ao meu velho amigo, que começou logo a observá-lo disfarçadamente.
Daí a pouco apresentei-os um ao outro, e não os perdi de vista.
César, insinuante como é, ganhou logo a simpatia, e suponho até que a confiança do pretendente de Palmira. Vi-os passear juntos durante longo tempo, sem deixarem nunca de conversar com o mesmo interesse. Depois tomaram uma das janelas da saleta de estudo, e continuaram na palestra, mais à vontade. Eu, do lugar em que estava, podia observá-los. O médico com certeza falava já de coisas concernentes à boa disposição física, porque notei que o outro sacudia com desembaraço as pernas e os braços, empinando soberbo a cabeça e o peito, como para dar idéia da sua perfeita compleição muscular.
Não pude deixar de rir, principalmente quando César, lá do fundo de sua janela, me fez sinal com os olhos de que a coisa caminhava bem.
O rapaz parecia com efeito muito bem constituído. Era delgado e forte, rico de espádua; boa estatura, pernas e braços bem proporcionados; bom cabelo, olhos vivos, de azul forte; tez limpa, de um moreno pálido, sadio e fresco; barba vigorosa, bem preta, luzidia e fina; unhas másculas e rijas. E os dentes pareciam-me de primeira ordem.
Já morria de impaciência quando meu bom César, arranchando-se comigo para tomar chá a um canto da sala de jantar, me veio dar conta de sua missão.
— Creio que temos o homem! declarou logo, antes de assentar-se ao meu lado. E segredou-me depois: — Mas não dou por enquanto a minha opinião definitiva...
— Ah!...
— Ficamos amigos... acrescentou César. Ele, sabe? vai depois de amanhã à minha casa, e, como tem gosto pelos jogos e exercícios de força e faz grande vaidade da sua musculatura, creio que o convencerei de que deve por sistema tomar duchas no meu estabelecimento hidroterápico. Ah! então sim, poderei dar com segurança o meu veredito!
— Aqueles dentes?... Reparou se são verdadeiros?
— São. Afianço!
Daí a dias, o meu zeloso ajudante-de-ordens procurava-me para dizer-me radiante:
— Completo sucesso! auscultei e observei minuciosamente o rapaz. Creio até que o maganão adivinhou, ou compreendeu, qual era a razão particular que me dirigia, porque veio, por bem dizer, ao encontro do meu desejo e prestou-se ao exame, sorrindo, sem esconder a sua vaidade de homem forte, consciente da sua riqueza orgânica!
Estávamos a sós, na biblioteca, lá em casa. Aproximei-me mais do meu velho amigo, com interesse; e ele acrescentou, dando com ambas as mãos duas palmadas simultâneas nas próprias coxas:
— Um rapagão, Olímpia! o que se pode chamar um rapagão! Equilíbrio perfeito entre o sistema nervoso e o sistema muscular! Órgãos em belo estado de pureza! Uma autópsia seria a mais esplêndida vitória para as suas vísceras! Devia deixar-se dissecar, por orgulho!
— Então, César!... Fale a sério, meu amigo!
— Não lhe descobri o menor vício no organismo. Os pulmões são os de um ferreiro; o coração funciona como um Patek Philippe; o fígado não parece fígado nacional; os rins fariam inveja aos de um atleta! Tórax soberbo; bíceps de gladiador! Em minha presença manejou, com a maior facilidade e destreza, halteres de trinta quilos cada um!
— Sim?...
— É o que lhe digo! E a conformação geral do corpo, esteticamente falando, é simplesmente maravilhosa! Quando o vi nu, pensei ter defronte dos olhos uma estátua grega. Marte e Apolo fundidos, formando um homem. Que belo conjunto de força e delicadeza anatômica! Nem sei como, com a degeneração da raça latina e com a crescente depravação de costumes, ainda possa haver — no Brasil! um moço em semelhantes condições físicas! Verdade é que ele é de raça catalã!
— Que entusiasmo, meu amigo!
— Entusiasmou-me com efeito, o demônio do rapaz! Nunca vi, na minha clínica, um espécime tão puro! É verdadeiramente um belo animal!
— Acha-o então, César, quanto ao físico... no caso de preencher cabalmente o nosso ideal de... de marido de Palmira?
— Oh! Por esse lado não poderíamos desejar melhor!
— E, pelo outro! Que tal será ele? Diga-me achou-o simpático!...
— Ora! Um homem naquelas condições é o orgulho da sua espécie e há de ser fatalmente simpático. O que mais é a simpatia senão o reflexo da bondade? e a bondade é um produto lógico da saúde perfeita e da força, como são a coragem e a alegria. Fiquei gostando dele infinitamente. Ah! se aquele ladrão fosse meu filho?
— Ainda bem, meu amigo...
— Oh! Pode estar amplamente satisfeita com ele, Olímpia, e dá-lo, quanto antes, para noivo da nossa formosa Palmira. Aquele, se não for vítima de algum acidente, ou não apanhar algum diabólico micróbio que o estrague, morrerá de velho!
Agradeci penhoradíssima os bons serviços do meu querido amigo e pedi-lhe que me ajudasse a colher, logo desde o dia seguinte, informações sobre o passado e sobre o caráter do pretendente de minha filha.
Desde o dia seguinte, com efeito, pusemo-nos em campo. E foram quatro meses de ininterrompidas pesquisas, em que eu despendi um grande capital de dedicação, de atividade e de paciência, cujo segredo só mesmo um coração de mãe poderia achar. Mas não lamento tais canseiras, porque cheguei ao completo resultado do que eu queria.
Eis o que colhemos:
O rapaz chamava-se José Leandro de Oviedo. (Isso já eu sabia). Nasceu na província do Rio de Janeiro, numa fazenda em Teresópolis. Era filho de Manuel Oviedo, pintor espanhol, que o teve de uma tal Margarida Porto, senhora brasileira por ele tomada do marido, um rico fazendeiro de café, e com a qual viveu o pintor dez anos.
Leandro foi o primeiro filho de Oviedo, (Esta circunstância animou-me a seu favor) e o único que sobreviveu aos pais. Criou-se na fazenda, mas ao cinco anos fez com a família uma viagem à Europa, donde voltou com dez, já órfão de mãe. O pai destinava-o ao comércio e quis, ao tornar aqui, pô-lo de caixeiro em uma loja de ferragens, mas o padrinho, um tal Gonçalves, com quem o rapaz fora habitar de volta ao Brasil, remeteu-o, três anos depois, para um colégio na Inglaterra, donde Leandro voltou aos dezoito de idade, por morte do seu protetor. Não consegui saber se deste herdou alguma coisa; soube, sim, que nesse tempo fez ele uma excursão pelas províncias do sul do Brasil, dando com pouco sucesso concertos de piano e bandolim. Dois anos depois morreu-lhe o pai em completa miséria.
Alguns quadros, e outros objetos que deixou, foram vendidos para pagar o enterro e o último mês de tratamento em uma casa de saúde. Aos vinte anos entrou Leandro, como amanuense, para a secretaria, onde era segundo oficial quando pretendeu minha filha.
Não me souberam informar se foi bom filho, não descobri quem era ao certo o tal padrinho, que o mandou a educar em Londres, nem tampouco a razão por que este, homem rico naturalmente, o protegeu tanto em vida, sem dele se lembrar depois no testamento; afiançaram-me, porém, que Leandro era moço de bom caráter, regularmente estimado, e que havia rejeitado casamento com a filha de um negociante forte, mas rapariga feia e pretensiosa. Não me constou também que se desse ao jogo, tampouco ao álcool nem fizesse loucuras por mulheres de má vida. Descobri que ultimamente morava ele, havia um ano, numa casa de família honesta, que lhe alugava um quarto; e soube que tinha um amigo íntimo, com quem era visto sempre aos domingos no clube ginástico a que ambos pertenciam, um Leão da Cunha, rapaz rico e viajado, sócio comanditário de uma casa de comissões no Rio de Janeiro.
E tudo isto descobrimos, César e eu; tudo desenterramos, por amor de minha filha; e foi tudo obtido e foi tudo feito com a máxima reserva e discrição. Leandro, ao que suponho, não desconfiou de coisa alguma.
Estudando-o de mais perto reconheci que as suas maneiras eram, de fato, convenientes e não afetadas para nos engodar durante o namoro; pareceu-me até que, por debaixo daquela forte robustez física, havia um caráter tímido e paciente. Notei com satisfação que ele não abusava do fumo e detestava o cachimbo. Não me pareceu absolutamente ambicioso. Falava pouco do seu piano e do seu bandolim. No entanto, as suas cartas a Palmira, as quais esta me mostrava sempre, eram discretamente escritas, na forma como no fundo, e pareciam sinceras no que dizem de amor.
Convenci-me afinal de que a coisa única que me restava a fazer era casá-los, dando ainda graças a Deus por ter-me deparado tão bom partido.
Minha filha mostrava-se cada vez mais empenhada por ele, e Leandro cada vez mais disposto a obedecer-me e respeitar-me nos meus desígnios. Íamos bem.
Quanto a mim, tomava-lhe já a estima e habituava-me à idéia de ver nele um futuro filho. Tudo, não obstante, dependia da sua boa ou má disposição para aceitar as condições do casamento. Deliberei impor-lhe as provas preliminares. Entrei em campanha — principiei a contrariá-lo.
Comecei a ser sogra!