Lourenço (Franklin Távora)/X

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Por alguns momentos ouviu-se, agora perto, depois mais longe, o rude bater dos chifres das reses, uns contra os outros, o som soturno que despedia de si o chão violentamente contundido pelas patas daqueles animais unidos, conchegados, conforme soem correr em semelhantes ocasiões, o estalar dos ramos, o rechinar das folhas, o espadanar das lamas sem empate nem medida, no varjado esplêndido.

Restabelecidos o silêncio e a imobilidade do ermo, os assassinos desceram das árvores, em busca do ferido. Covardes, faltara-lhes coragem para fazerem frente aos animais alvoroçados e infrenes; tiveram-na, porém, de sobejo, para correrem ao tronco de uma árvore que, com um galho baixo e curvo, sob o qual se metera Lourenço, e que os bois na corrida haviam saltado, o protegera e o salvara.

— Já conhecestes para quanto presto, caneludo, moleirão, que só tens parolas e desaforos? disse Pedro de Lima, arrastando por uma perna Lourenço ao meio da trilha onde a lama quase o afoga. Eu bem disse que este cabra não servia para nada.

E porque, através da mutilada camisa do rapaz tomado de mortal delíquio, lhe descobriu o cinto em torno da barriga, imediatamente o cortou, supondo que trazia dinheiro. O que encontrou foi a luva de couro, dentro da qual estava o papel de doação. Indignado por ter sido iludido em sua cobiça, ia cravar o facão no peito de Lourenço, quando sentiu o braço preso por uma vigorosa mão. Viu então, ao seu lado um homem calçado de botas, vestido de preto, com um chapéu de palha na cabeça: era o dono da boiada. Junto dele estava um dos tangerinos e um negro, que minutos antes haviam passado o rio.

Logo que deu com os olhos no primeiro dos novos personagens, Pedro de Lima abrandou a raiva e a arrogância, mostrando-se outro que ninguém diria ser o mesmo.

— Vosmecê me perdoe, seu João Mateus - disse, em tom respeitoso, ao fazendeiro. Há muito que eu tinha umas contas a ajustar com este pé-rapado, que sempre foi muito confiado, e parecia não fazer caso de ninguém. O pior é que, cuidando que ele trazia algum gimbo, só encontrei no cinto magro este papel metido num pedaço de couro velho. Parece que é um patuá para livrar de arma e de prisão; mas o cabra não tem fé, que o patuá não lhe valeu, e ele fica bem castigado.

Assim falando, Pedro de Lima passou o papel de doação ao fazendeiro que, como se vira nos caracteres ali traçados, uma escritura cabalística e maldita, deu um grito - mistura de espanto e consternação, volvendo rápidas vistas a Lourenço. Pedro de Lima e Manoel Hilário, a quem este gesto não escapara, puseram os olhos em cima do fazendeiro, em ar de quem interrogava.

— É uma oração... Não, é uma oração... São palavras diabólicas as que estão aqui escritas, disse-lhes o fazendeiro. Se vosmecês soubessem ler, haviam de reconhecer que este papel tem coisas infernais. Coitado de quem o trazia.

E com gesto nervoso despedaçou o papel, dando mostras de forte comoção, que aumentava de instante a instante.

— Mas - acrescentou logo - que querem ainda vosmecês fazer deste infeliz? Está moribundo, se ainda não morreu. Deixem-no comigo. "Não matarás", disse Deus por boca de Moisés aos Hebreus; e esta sentença é hoje um dos primeiros preceitos da Cristandade. Quererão vosmecês ainda matar alguém que já está quase morto?

O semblante do fazendeiro tinha adquirido feições tão particularmente severas e tristes, que não só os dois assassinos, mas até o tangedor, companheiro daquele, se sentiram tomados de espanto.

Pedro de Lima não se demorou a responder.

— Eu não o quero mais matar. Ainda quando ele desta se levante, o que eu duvido, não teria eu mais para quem é tão mofino a minha arma, porque o ensino está dado. Só peço a vosmecê que me perdoe.

Tendo disto estas palavras, cortejou o dono da boiada como quem se despedia, e encaminhou-se para o fechado em busca do cavalo. Manoel Hilário, acompanhou-o, silencioso e cabisbaixo.

Um quarto de légua distante do lugar onde se deu este encontro, via-se dentro de um capão de mato que vinha morrer à beira do rio, uma casa de tacaniça, de aspecto quase claustral, que convidava ao repouso. À volta, fora roçado vasto espaço, destinado a pequena lavoura e criação de aves e animais miúdos. Entre a casa e o mato, do lado sul, era um extenso curral de vacas, e ao lado do norte um curral de cabras. Logo à primeira vista, reconhecia-se que naquela situação agreste estava fundada uma fazendola de gado.

O dono desta propriedade era João Mateus, sujeito magro, de cabelos e barbas compridos, que no meio das brenhas onde se concentrara, lugar semi-bárbaro, quase inteiramente inacessível à luz das letras, levava grande parte do tempo a ler seus livros. Tipo misterioso e incompreensível, cujo segredo ninguém penetrara. Não era casado, nem tinha família de espécie alguma, com exceção de uma negrota que lhe fazia comida, uma negra idosa que lhe lavava a roupa,e um negro de meia idade que era o seu pajem e confidente.

Levantava-se logo cedo, chamava as aves, e com as próprias mãos dava-lhes a ração de milho ou arroz. As galinhas, os patos, os perus, os capotes, depinicavam os caroços, escarvavam o chão, soltavam as suas toadas - uma baças, outras argentinas - alegres, domésticos, mansos, amigos do seu senhor, em redor do qual se demoravam, como se, presos pela confiança, lhes custasse muito apartar-se de quem era tão bom para eles. João Mateus dirigia-se depois a um e outro curral, e passava as vistas por sobre as reses, algumas cabras que andavam soltas do lado de fora, iam a seu encontro logo que o avistavam, e tomadas de familiar ternura, lambiam-lhe as pernas ou as mãos, na mesma doce entrega da amizade que para o fazendeiro tinha a criação.

Nos primeiros tempos que sucederam à chegada de João Mateus, sumiram-se algumas cabeças de gado; mas depois os ladrões começaram a excluir do número das suas explorações a propriedade do velho, mudança que tinha natural explicação na caridade com que ele tratava aquela gente sem cultura, mas não sem o discernimento necessário para render homenagem à virtude, especialmente se lhe devia gratidão. Os pobres, os viajeiros, os doentes sem encosto encontravam em casa de João Mateus abrigo paternal e piedoso.

A sua fama, porque a fama dos bons homens vai a grandes distâncias como vão os sons, invadira as cercanias e impusera aos que antes o defraudavam, respeitosa afeição que nos últimos tempo se traduziu em estima de filhos para pai. Os próprios bandidos desenfreados não ousavam penetrar na fazenda do Jatobá, senão quando tinham de pedir com que matar as suas necessidades, nunca se apossarem, como dantes, do que lhes não pertencia. A qualquer hora do dia ou da noite, de verão ou de inverno, a porta da casa do Jatobá abria-se para dar agasalho a quem batia nela. Mariana - a negra, e Clara - a negrota, inquiriam do hóspede se precisava de alimentos ou de remédios; os primeiros davam-lhos elas, os últimos era o ancião quem os ministrava; se o caso urgia, levantava-se ele ainda que fosse fora de horas, a fim de acudir àquele a quem os seus socorros deviam oferecer alívio. E porque as moléstias que ordinariamente atacavam as pessoas do povo naquelas circunstâncias, eram uma dor, umas maleitas, uma maligna, quase sempre a limitada ciência prática de João Mateus e os remédios de que ele dispunha, bastavam a minorar senão a extinguir o padecimento alheio.

Ao passo que cuidava tão paternalmente dos outros, não se descuidava inteiramente de si mesmo. De tudo o que havia dentro das suas terras ele vendia a quem estava nas condições de o comprar; estas vendas, porém, eram feitas sem relevar a mínima cobiça, nem usura da parte dele. O ancião, que diziam ter vindo do Ceará ou do Piauí, comprara a fazenda do Jatobá nos começos da guerra. Recebendo-a muito estragada e empobrecida, dentro de uma mão lhe dera aumento que a todos causava admiração. Quando alguém lhe dizia que seu antecessor não prosperara, porque, por preguiçoso ou desmazelado, não era para andar com semelhante ramo de vida, João Mateus acudia logo, refutando estes descaridosos conceitos.

— A razão não é esta; a razão principal é porque ele tinha talvez grande família, enquanto eu não tenho nenhuma; ele despendia talvez com incontáveis credores, doenças graves, ou largas fianças ou pequenos rendimentos; eu, graças a Deus, não tenho sentido a unha ou o dente destes males que amofinam tantos pais de família amantes dos seus, e dignos da consideração de todos. Não devemos fazer mau juízos dos outros, porque não há réu que não possa alegar a sua justificação ou as suas escusas.

A verdade, porém, é que João Mateus, que não possuía senão aqueles três escravos, não sentia falta, e parecia ir amoedando já alguns lucros de manso e manso. Era isto o que dizia o povo.

Certa manhã, pôs-se a caminho para Goiana com uma grande boiada que ali deveria vender por bom dinheiro. O vaqueiro Valentim ficara na fazenda; com João Mateus iam seis tangedores, entre os quais um de nome Cipriano, rapaz de excelente coração, trabalhador e sossegado. Depois que comprara a fazenda era a primeira vez que arredava dali o pé o dono dela. Quando chegaram à beira do rio, começavam a atravessá-lo os três malfeitores que sabemos.

Os tangedores tocaram os bois para água, e iam estes pelo meio do rio, quando soou o primeiro tiro, o que fora disparado por Pedro Lima; e conquanto as boiadas não arranquem de dentro da água, ficaram as reses tão espantadas, que, com a detonação do segundo tiro, quando já estavam da outra banda, deitaram a correr. Quatro dos tangedores seguiram a boiada praticando esforço, gritando aos animais, a fim de os conterem; dos outros dois, um sabedor das proezas dos malvados - deixou-se ficar com o negro ao pé do fazendeiro, para o defender se fosse preciso; o outro - Cipriano - condoendo-se de Bernardina, correra a salvá-la, sem que o vissem os malfeitores. Quanto a João Mateus, resolvera ir em socorro de Lourenço, parte fraca. Posto que o não conhecesse, a nobreza dos seus sentimentos sugeriu-lhe este procedimento; e foi assim que se achou tão a ponto de livrar o moribundo da fúria dos bandidos.

O fazendeiro tomou Lourenço nos braços com especial expressão de dó. De instante a instante escapavam-lhe dos lábios palavras repassadas de mágoa e aflição:

— Meu Deus! Meu Deus! Quem havia de dizer que seria este o seu destino? Está acabado. Somente a misericórdia divina o poderá salvar.

Com o auxílio do tangedor e do negro, conduziu o enfermo para um lugar mais alto, aonde as águas do rio não tinham podido chegar, e em panos que trazia na maleta presa à garupa, tomou-lhe os golpes, e enxugou-lhe o sangue.

Ali esteve com ele enquanto o negro e o tangedor improvisavam uma balsa para transportá-los à outra margem. Enfim, antes do meio dia, Lourenço ocupava o melhor aposento da casa da fazenda.

Por muitas horas esteve sem fala. João Mateus já sentia desampará-lo a última esperança de salvar aquela vida, quando Lourenço, depois de um ai que lhe arrancara a dor dos ferimentos perguntou:

— Bernardina? Onde está Bernardina?

— Estou aqui, Lourenço.

A rapariga estava, de fato, à cabeceira do moribundo. Cipriano pudera salvá-la, metendo-se pelo mato, por fugir aos bandidos, no momento em que estes falavam com João Mateus, tomando depois atalhos que lhe eram usuais, descendo à margem do rio cerca de um quarto de légua abaixo do lugar do conflito, atravessando as águas, e enfim levando-a à fazenda onde presumia já estar o ferido.

Junto de Bernardina, João Mateus tinha as vistas presas em Lourenço. Um dos ferimentos era profundo e mortal; requeria toda a atenção e cuidado. Por isso, aqueles dois entes, que parecia dedicarem igual afeto ao doente, não consentiam em deixá-lo entregue somente a si.

Por volta da meia-noite, taciturno, pálido, os olhos encovados, João Mateus mandou que a rapariga o deixasse só com o enfermo. Ela obedeceu, levando os olhos cheios de lágrimas.

Na sala da frente havia um oratoriozinho com alguns santos. Estava aberto; um candeeiro de metal esclarecia-o com sua luz amarelenta, quase lúgubre. Bernardina ajoelhou-se diante dos santos, e fez uma promessa a S. Sebastião, que se via preso a uma árvore, tendo o corpo flechado, segundo reza a crônica, por selvagens. Feita a promessa, a rapariga retirou-se, cheia de esperança e fé, ao interior da casa.

Enquanto esta cena de piedade, que estava no espírito daqueles tempos, e ainda se pratica no seio de muitas famílias, se passava na sala, o fazendeiro, levado por idêntico sentimento religioso, propunha no quarto ao enfermo a confissão, nestas palavras:

— Lourenço, poderás confessar-te?

Abrindo os olhos a custo, o matuto respondeu com voz pesarosa:

— Quem é que me há de confessar?

— O que te pergunto - retorquiu o fazendeiro, é se podes cumprir este dever de todo bom cristão.

— Posso e desejo, porque sei que desta não hei de escapar.

O fazendeiro levantou-se, puxou a porta do quarto contra si, deu volta à chave, e tomou por uma portinha que parecia estabelecer secreta comunicação com o aposento contíguo. Era neste que ele tinha em bom recado os seus livros e outros objetos que muito zelava. Ao cabo de alguns minutos estava de volta à alcova, e dizia ao enfermo:

— Lourenço, os teus desejos vão ser satisfeitos.

Lourenço abriu novamente os olhos. À sua cabeceira achava-se um padre com a vestimenta negra e tala. Procurando com as vistas, à luz do candeeiro que alumiava a alcova, o fazendeiro que acabara de falar-lhe, não o encontrou. Volvendo-as depois ao padre, e parecendo reconhecer nele um antigo conhecido:

— "Seu" padre Antonio! exclamou espantado.

— Tu me reconheces? respondeu o fazendeiro, que não era outro senão o padre Antonio de Mariz.

Lourenço, sem se poder dominar, tentou um esforço para levantar-se. Estendeu os braços como quem queria prender ente eles o sacerdote; mas, faltando-lhe as forças, recaiu em mortal prostração, banhado de sangue.

O padre, porém, foi em seu auxílio. Inclinou-se sobre o enfermo, e pegando-lhe em uma das mãos, inquiriu brandamente:

— Que queres de mim, Lourenço?

— Que quero? tornou o moribundo. Quero agradecer-lhe a sua bondade, "seu" padre. Estou para morrer, mas ainda me lembro do que vosmecê me fez no Cajueiro, do ensino que me deu, e das terras e casa...

E como estas palavras lhe avivassem uma lembrança obliterada inteiramente, procurou, ainda que com dificuldade, na cintura, o cinto de algodão que sempre trazia consigo.

— Os ladrões até me tiraram o papel... o papel que vosmecê, "seu" padre, deixou em mãos de minha mãe... Roubaram o meu papel...

— O teu papel agora, Lourenço, é o que cumpre a todo bom cristão. Estou pronto a ouvir-te.

Terminada a confissão, o padre dirigiu estas palavras ao penitente:

— Se Deus se lembrar de ti, e te sarar, imponho-te que a ninguém reveles o meu segredo.

— "Seu" padre, a ninguém direi quem é vosmecê; mas meu coração estará a dizer-me, a todo instante, que vosmecê é "seu" padre Antonio, aquele que me ensinou a ler, que me deu muitos conselhos, que ajudou meus pais a fazerem de mim gente, que me deu a casa e as terras do Cajueiro, que tem sido para mim um segundo pai.

— Lourenço, o padre Antonio fugiu, e ninguém sabe onde ele se meteu. Quem está aqui, neste homem que vês, de barbas e cabelos compridos, magro e taciturno, mas conformado com a sua sorte, é o fazendeiro João Mateus. Estás ouvindo?

— Pode vosmecê descansar.

— Agora pega-te com Deus, e repousa.

Desaparecendo na porta que dava para o aposento secreto, o padre foi dizendo consigo estas palavras:

— Podes agora comparecer perante o Supremo julgador dos homens. O teu dever de cristão e o meu de sacerdote estão cumpridos.

Lourenço porém não estava destinado a acabar obscuramente, no seio daquela solidão agreste de poucos conhecida. Dentro de alguma semanas, graças à solicitude do padre e de Bernardina, começou a sair da região da vida que parece pertencer aos domínios da morte, tão confuso e sombrio é o seu horizonte, tão longo o crepúsculo que aí reina. As forças voltavam-se lentamente, por fios tenuíssimos ao princípio, por mais grosso canais depois, que lhe traziam ao coração e o cérebro a riqueza do seu antigo ânimo.

Uma manhã, o padre, que penetrara a forte inclinação de Lourenço por Bernardina, levantou-se muito cedinho, como de costume, e encaminhou-se ao curral das vacas, onde encontrou já Cipriano tirando leite. Imediatamente mandou chamar Bernardina para ajudar o vaqueiro no serviço.

Logo que chegou a rapariga, disse o padre a Cipriano:

— Dize-me cá uma coisa, Cipriano: que idade tens?

— Vou fazer vinte e dois anos.

— É uma idade casadoira, e não sei porque ainda está solteiro.

— Como me hei de casar? O que eu ganho mal chega para mim e para minha mãe.

— Não seja esta a dúvida. Tens-me prestado muitos serviços, e eu não desgosto de ti, porque és um bom rapaz. Venho em teu auxílio. Procura uma rapariga que te agrade, que te darei gado e terras bastante para principiares uma fazendola.

Cipriano, que nesse momento batia no ubre de uma vaca a fim de chamar o leite, ergueu-se e pôs o olhar no seu interlocutor, com quem perguntava se nas palavras proferidas estava uma promessa real e séria.

— É o que te digo - retorquiu o padre. Procura uma consorte. Mas parece que em toda esta redondeza não encontrarás nenhuma. Verdade seja - prosseguiu - que para este inconveniente teríamos um remédio ao pé de nós. Olha lá. Tu salvaste Bernardina das unhas dos bandidos, atravessastes com ela os matos e o Tracunhaém, expuseste por ela a tua vida em terra e nas águas, porque o Andorinha, tanto que deu pela falta, entrou a rastejar a fugitiva, para ver se a descobria. Ora, à vista de tanto risco que correste, de tanto esforço que puseste em salvar esta menina, justo parece que ela sinta por ti, senão afeição, ao menos qualquer inclinação, que possa vir a ser no futuro um respeitável amor conjugal. Que dizem vocês?

Não disseram uma palavra sequer o rapaz nem a rapariga.

O padre, porém, conheceu que as suas palavras tinham tido o efeito que ele calculara.

— Não se vexem com isto - tornou. Pensem no futuro que lhes ofereço, e que Deus há de abençoar. Amanhã a esta hora e neste lugar dar-me-ão a resposta.

E retirou-se, deixando Cipriano e Bernardina no trabalho de ordenhar as vacas.

Tanto que o padre Antonio deu o andar, Bernardina disse, à meia voz:

— Não pensei que seu João Mates me chamava para me fazer esta entrega.

Cipriano acudiu logo:

— Para que você diz isto, sinhá Bernardina? Ele nos quer bem. Se não quisesse, ele não propunha este negócio.

— Mas ele sabe se eu quero casar com você?

— Ele não sabe, nem eu sei. Mas a intenção é tão boa para você como para mim. Lá a você não querer casar comigo, é outro caso.

— Pois eu não quero casar com você, não, seu Cipriano, disse Bernardina com disfarce.

Cipriano não respondeu.

E porque tinham acabado o serviço, cada um se encaminhou para a casa com sua panela cheia de leite.

Logo depois, encontrando-se o vaqueiro com Bernardina, junto do chiqueiro das cabras, disse-lhe estas palavras:

— Pense no que faz, sinhá Bernardina. Olhe que manhã bem cedo tem de dar a resposta a seu João Mates.

— Eu já sei que resposta hei e dar.

— Qual é?

— Você quer saber?

— Quero, sim, porque tenho meu interesse aí também.

— Pois amanhã saberá e talvez o seu interesse tenha a sorte de ovo goro.

E fugiu para dentro da casa. Mas antes de anoitecer de todo, teve ela de ir ao poleiro buscar uma galinha para Lourenço; e quando se aproximava do jirau onde as galinhas dormiam, viu tomando chegada, um vulto que veio para junto dela. Era Cipriano, que, segundo indicavam as aparências, não pensara em outro assunto durante o dia, senão no casamento, e andava rondando a rapariga.

— Então, sinhá Bernardina, que decide você? perguntou ele, pegando de surpresa, da mão da filha de Vitoriano.

A rapariga estava triste. Em lugar da natural vivacidade, que não perdiam nos mais arriscados transes, tinham seus olhos uma expressão de mágoa íntima. Em seu espírito operara-se uma revolução, cruel e devastadora. O padre Antonio chamara-a depois do almoço, e tivera com ela uma larga conferência.

— Menina, dissera ele, seja qual for o favor que a sorte tenha lhe guardado no futuro, não se pode duvidar que o seu casamento com um rapaz de bons sentimentos, e de costumes ainda melhores, fora a maior felicidade, e você não a deverá recusar. Você não conhece Cipriano, mas eu dou testemunho das suas excelentes qualidades. Em toda esta redondeza não há nenhum que possa ombrear com ele na diligência, no trabalho, e no bom coração. Não é de hoje que eu o tenho ao meu serviço. Enfim, basta que eu lhe diga, se Cipriano não fosse digno de minha benevolência, eu não lhe daria o que lhe prometi. E o que mais deseja você, minha filha? Melhor marido posso quase assegurar-lhe que em vão procurará no mundo. Demais, minha filha, você teve a desgraça de lhe haverem roubado o único tesouro que traz como dote a filha do pobre. Aceite portanto a minha proposta. Se Cipriano a quiser para mulher, não enjeite a felicidade.

O vaqueiro não era mal parecido. Bernardina sentia até por ele inclinações vagas, que se não fossem as condições que a ligavam a Lourenço naquele momento, poderiam ter-se convertido talvez em amor. Quando o vaqueiro cortou com sua faca de campo a corda que lhe apertava os pulsos, e a prendia ao tronco da árvore, ela sentiu-se tão grata ao moço por esta ação, filha da sua coragem e da sua caridade, que não teve expressões para manifestar exatamente quanto ficara cativa dele.

Arrancando-a, para que assim o digamos, das mãos do perverso, ele não a livrar somente do Tunda-Cumbe, cujo despotismo já não podia sofrer; ele seguira com ela através de matos, atravessara águas impetuosas, e sem o menor indício de a querer aviltar, trouxera-a respeitosamente até a casa da fazenda. Por muito menos têm-se visto acender-se paixões imortais; e tudo leva a supor que no coração da matuta alguma dessas sublimes paixões teria origem, se não se interpusesse entre o vaqueiro e ela o vulto de Lourenço. Este vulto era simpático à menina por mais de um motivo. Ela conhecia Lourenço desde a sua infância e voltava-lhe afeição fraternal, quando foi roubada pelo Tunda-Cumbe.

O sentimento fraternal não era contudo o que ela aninhara no coração depois que Lourenço, revelando a sua paixão, dera mostras de lhe dedicar especial afeto. A rapariga pouco e pouco habituara-se a querer bem ao rapaz de modo diferente. Em sua longa enfermidade esse bem aumentara. A dor aproxima as almas irmãs. Ela sofria com o sofrimento da vítima.

Ao princípio escrupulizara amar Lourenço. "Lourenço pertence a Marianinha", dissera-lhe a consciência em sua linguagem muda, imperiosa. Mas depois, com os cuidados que se julgava obrigada a prestar, e de feito prestara ao rapaz em sua longa doença, a voz íntima fora pouco a pouco abafada pelo sentimento nascente: e este resultado chegara a tal ponto que o sentimento avultara, se tornara força quase invencível, e a consciência, posto que nunca inteiramente vencida, transigira por último.

O amor contrariado torna-se indagador e discutidor. Bernardina, antes de responder ao fazendeiro, pensara no caso.

— Que interesse tem seu João Mateus em me ver casada com Cipriano? Ele não é seu filho, não é seu irmão, não é seu parente, não é nada seu: donde vem este empenho? Eu bem estou vendo que o casamento não é mau, e até não desgosto de Cipriano, que não é feio, é trabalhador, e tem o gênio muito brando. Também estou vendo que a minha pouca sorte, entregando-me a seu Tunda-Cumbe, aumentou a minha desgraça. Mas quem sabe se assim como fui desgraçada com Tunda-Cumbe, não poderei vir a ser feliz com outro homem que não seja Cipriano? O melhor é dizer a verdade a seu João Mateus, já que ele não compreendeu ainda que eu gosto de Lourenço e Lourenço gosta de mim. O melhor é dizer-lhe que eu quero bem a Lourenço, e que só com ele me casarei.

De acordo com esta ordem de idéias, a rapariga deu ao padre Antonio a resposta seguinte:

— Eu não quero casar-me aqui. Lourenço, quando me tirou do rancho do Cipó, foi me levar para a companhia de minha mãe. Se estou aqui, é porque tivemos a desgraça de encontrar-nos com malvados que nos quiseram matar, e a Lourenço deixaram por morto. Esta é a verdade que estou dizendo a vosmecê. Agora, se eu me quisesse casar, então seria com Lourenço que me conhece, e que é meu conhecido desde menino.

O padre, que não contava com esta resposta, pôs os olhos penetrantes em Bernardina, como quem queria ler todo o passado em seu semblante. Ignorando o como compromisso que Francisco tomara para com Marianinha, ficou supondo, por estas palavras de Bernardina, que esse amor que ele tratava de extinguir, tinha as suas raízes nos corações dos dois jovens desde os seus primeiros anos. A suposição fê-lo por momentos considerar mais difícil do que ao princípio lhe parecera, impedir o consórcio; mas tirando argumentos do que acontecera à rapariga, retorquiu:

— Quaisquer que forem as relações que liguem você a Lourenço, minha filha, o seu casamento com ele me parece altamente inconveniente, para não dizer impossível. Eu tenho amplo conhecimento da vida de Lourenço. Se, pela parte que Lourenço tem tomado pela nobreza, já lhe é muito arriscado, não obstante ser solteiro, viver em Goiana, agora, que ele foi tirar a menina do poder do feroz chefe dos bandoleiros do norte, a sua estada lá, tendo em sua companhia a menina, seria a mais direta provocação à vingança desse chefe, e, pelo estado atual das coisas, Lourenço seria irremissivelmente vencido. O homem que a levasse em sua companhia para Goiana, expor-se-ia a morrer. Você, voltando à casa de sua mãe, pode ter desde já a certeza de ser novamente tirada por Tunda-Cumbe. Somente longe dos lugares onde esse bandoleiro domina despoticamente, poderá ter alguma tranqüilidade. Ora, estas paragens estão neste caso; mas Lourenço está impossibilitado de procurar abrigo nelas, porque a sua família, as suas amizades, os seus benzinhos lá é que se acham, e pode-se dizer que de lá não podem ser deslocados. Seja, pois, cordata, e não enjeite a felicidade que se lhe oferece; Cipriano é de um natural muito estimável, eu conheço-o de há muito, e folgaria de o ter casado aqui, ao pé de mim. Deixe Lourenço seguir o seu destino. Seus pais já não são crianças; mais dia, menos dia, hão e precisar dos serviços e amparo do filho. Estou informado que a mãe e a irmã da menina vivem com a mãe de Lourenço; é portanto de presumir que elas, a quem roubou o único protetor aquele que a você roubou a honra, participem da proteção que Lourenço tem para a mãe. Dê você uma prova de benevolência para a sua mãe e sua irmã, não sendo causa, quando por outra razão não seja, ao menos em atenção ao bem estar de ambas, para que se aparte da companhia delas aquele de quem hoje tudo esperam.

Estas palavras exprimiam tão exatamente a verdade, que Bernardina não teve que retorquir ao padre, em resposta. Inclinou a cabeça, cravou as vistas no chão e dali a pouco as lágrimas começaram a apontar-lhe nos olhos.

— Não chore, minha filha - disse o padre Antonio. Você ficará morando aqui ao pé de mim. Do que eu comer, vocês hão de comer também. Servir-me-ão de companhia neste deserto, e eu guiá-los-ei na vida, cujos caminhos são tão difíceis e enredados. Em Deus fio que havemos de ter aqui a tranqüilidade de espírito, e paz do Senhor, que em vão se buscaria nestas terras, que o vento da anarquia tem revolvido, e continua a revolver.

O padre, como se considerasse vencida a dificuldade do lado de Bernardina, encaminhou-se para o quarto onde estava Lourenço; era preciso destruir ali o outro obstáculo, porventura mais forte que o primeiro. Mas, sem desanimar, antes fortificado com a vitória ganha, ele tinha quase por certo que igual vitória ganharia. Refletiu alguns instantes em silêncio, antes de penetrar no aposento do enfermo.

Lourenço estava sentado na cama, quando o padre entrou.

Pensava precisamente em Bernardina, em quem o seu espírito andava absorvido.

Tinha terminado a primeira refeição, e ficara encostado à parede, os olhos voltados para a natureza que, pela janela, nesse momento aberta, se lhe mostrava fresca, esplêndida e magnificente.

— Há quantos dias estou na cama? perguntou ele ao padre.

— Há talvez, umas cinco semanas.

— Estou doido por me levantar. Tenho muitas saudades da minha vida no campo.

— E dos teus não te lembras?

— De minha mãe me lembro a toda hora. Não vá ela cuidar que já morri por aí além.

— E é natural que não seja outra a sua idéia.

— Coitada! Quantas lágrimas não terá derramado por mim!

— Não te amofines por isso. Vejo-te quase são; em breve hás de levantar-te. Tanto que puderes montar a cavalo, bom será que não retardes a tua volta. Deves encurtar a aflição da pobrezinha e das outras que com ela vivem hoje.

— É verdade. Sinhá Joaquina e Marianinha hão de pensar também muito em mim.

— Mas a estas terás uma boa nova que levar. Quanto souberem que Bernardina está bem, e fica amparada... É verdade: devo dizer-te que Bernardina, que parecia estar condenada a trazer os olhos sempre inclinados para o chão pela sua desgraça, dentro em pouco tempo será digna de entrar em qualquer casa de família sem sentir os sangue subir-lhe as faces, ou sem o fazer subir às faces das donzelas e das damas honradas.

— Que quer dizer com isto, "seu" padre? inquiriu o rapaz, inquieto e como espantado.

— Bernardina casará dentro de algum tempo com Cipriano.

— Bernardina! exclamou Lourenço violentamente, como se lhe tivesse caído junto um raio. Pois Bernardina vai casar-se?

— Não te comovas tanto, meu filho. Condoendo-me da infeliz rapariga, procurei-lhe essa união, que Deus há de abençoar.

— E foi vosmecê "seu" padre, quem lhe arranjou este casamento?

— De que te admiras? Cuidei que esta notícia em vez de te causar escândalo, fosse origem de muita satisfação para ti. Cipriano tem uma parte nestas terras, e tantas cabeças de gado quantas forem bastante para situar, ao lado desta, outra fazenda. Pareceu-me Lourenço, que nenhum outro partido tão favorável se poderia oferecer a essa menina, de quem a sorte tem feito joguete.

— E Bernardina, "seu" padre, e Bernardina casa-se por gosto?

— E por que não há de casar por gosto? Em que parte acharia ela tão bom marido? Em Goiana, onde conheceu seu infortúnio, e onde não pisará sem expor a mil perigos a sua vida e a do homem que a levar em sua companhia?

— Meu Deus! meu Deus! como as coisas se armam! exclamou Lourenço, profundamente abalado. Eu cuidei que Bernardina...

Lourenço não pôde acabar.

A luz fugiu-lhe dos olhos. A razão perdeu-se-lhe em um mar de conjeturas. Caiu sem sentidos sobre o leito.

Correndo a socorrê-lo, o padre Antonio dizia a meia voz, como quem respondia a uma interrogação ou exprobração íntima:

— Antes quero vê-lo morto do que ligado a uma mulher que o não mereça.