Lucíola/XV

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Decorreram vinte dias.

Chegando uma tarde vi Lúcia assustar-se e esconder sob as amplas dobras do vestido um objeto que me pareceu um livro.

— Estava lendo?

— Não, estava esperando-o.

— Quero ver que livro era.

Meio à força e meio rindo consegui tomar o livro depois de uma fraca resistência. Ela ficou enfadada.

Era um livro muito conhecido-A Dama das Camélias. Ergui os olhos para Lúcia interrogando a expressão de seu rosto. Muitas vezes lê-se não por hábito e distração, mas pela influência de uma simpatia moral que nos faz procurar um confidente de nossos sentimentos, até nas páginas mudas de um escritor. Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vaga para o amor? Sonharia com as afeições puras do coração?

Ela tornou-se de lacre sentindo o peso de meu olhar.-Esse livro é uma mentira!

— Uma poética exageração. mas uma mentira, não! Julgas impossível que uma mulher como Margarida ame?

— Talvez; porém nunca desta maneira ! disse indicando

— De que maneira?

— Dando-lhe o mesmo corpo que tantos outros tiveram. Que diferença haveria então entre o amor e o vício? Essa moça não sentia, quando se lançava nos braços de seu amante, que eram os sobejos da corrupção que lhe oferecia? Não temia que seus lábios naquele momento latejassem ainda com os beijos vendidos ?

O amor purifica e dá sempre um novo encanto ao prazer. Há mulheres que amam toda a vida; e o seu coração, em vez de gastar-se e envelhecer, remoça como a natureza quando volta a primavera.

— Se elas uma só vez tivessem a desgraça de se desprezar a si próprias no momento em que um homem as possuía; se tivessem sentido estancarem-se as fontes da vida com o prazer que lhes arrancavam à força da carne convulsa, nunca mais amariam assim. O amor é inexaurível e remoça, como a primavera; mas não ressuscita o que já morreu.

— Pelo que vejo, Lúcia, nunca amarás em tua vida!

— Eu?... Que idéia! Para que amar? O que há de real e de melhor na vida é o prazer, e esse dispensa o coração. O prazer que se dá e recebe é calmo e doce, sem inquietação e sem receios. Não conhece o ciúme que desenterra o passado, como dizem que os abutres desenterram os corpos para roerem as entranhas. Quando eu lhe ofereço um beijo meu, que importa ao senhor que mil outros tenham tocado o lábio que o provoca ? A água lavou a boca, como o copo que serviu ao festim; e o vinho não é menos bom, nem menos generoso, no cálice usado, do que no cálice novo. O amor!. . . O amor para uma mulher como eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe! Mas o verdadeiro amor d'alma; e não a paixão sensual de Margarida, que nem sequer teve o mérito da fidelidade. Se alguma vez essa mulher se prostituiu mais do que nunca, e se mostrou cortesã depravada, sem brio e sem pudor, foi quando se animou profanar o amor com as torpes carícias que tantos haviam comprado.

Lúcia falou com uma volubilidade nervosa. Às vezes o rosto se tornava sombrio e torvo para esclarecer-se de repente com um raio de indignação, que cintilava na pupila; outras, a sua palavra sentida e apaixonada estacava no meio da vibração, afogando num sorriso de desprezo.

— E houve um homem que aceitasse semelhante amor?

— Ele também a amava; e certamente não pensava como tu.

— Mas é impossível amar uma mulher que se compra, e se tem apenas a desejam! A menos que não se ame por especulação e cálculo para obter-se de graça o que não se pode pagar.

— Seria uma infâmia! Não dês a isto o santo nome do amor.

— E podemos nós ser amadas de outro modo? Como? Arrependendo-nos, e rompendo com o passado? Talvez o primeiro que zombasse da mísera fosse aquele por quem ela desejasse se regenerar. Pensaria que o enganava, para obter por esse meio os benefícios de uma generosidade maior. Quem sabe?... suspeitaria até que ela sonhava com uma união aviltante para a sua honra e para a reputação de sua família. Antes mil vezes esta vida, nua de afeições, em que se paga o desprezo com a indiferença! Antes ter seco e morto o coração do que senti-lo viver para semelhante tortura.

— Está bem: deixemos em paz A Dama das Camélias. Nem tu és Margarida, nem eu sou Armando.

— Oh! juro-lhe que não!

Esse juramento teve uma solenidade que me pareceu caricata. Ou porque o percebesse, ou por uma das inexplicáveis transições que lhe eram freqüentes, Lúcia soltou uma gargalhada.

— Realmente este livro não presta. Nem quero acabá-lo. Cometeu-se aí um sacrilégio literário.

As folhas desse primor da escola realista voaram despedaçadas pelas mãos crispadas de Lúcia, que parecia antes estrangular uma víbora, do que rasgar o livro inocente que tivera a infelicidade de irritar-lhe o humor.

Tinha ido levar a Lúcia um bilhete de teatro, que ela aceitou. As nossas relações tinham-se modificado insensivelmente, depois do choque violento que sofreram.

Há de ter visto em nossas matas algumas árvores estreitamente abraçadas pelas delgadas enrediças que lhes cingem o tronco, confundindo na mesma copa as suas folhas e flores. Um dia vem a borrasca que abala com rudeza o arvoredo: não conseguem os ímpetos da ventania quebrar os elos que prendem as duas plantas amigas; porém a enrediça deslizando inclinou para a terra. Volta a bonança: a seiva expande-se com as águas que passaram; o pâmpano tocando o chão começa se lastrar; a haste da árvore desassombrada se lança. No ano seguinte, quando de novo por aí passar, verá o tronco nu e isolado, e o verde dossel bordado de flores que o cobria se estenderá ao longe humilde e rasteiro.

É a imagem fiel do que nos acontecera. O mundo soprando o seu hálito frio na intimidade de nossa existência não tinha podido separar Lúcia de mim; porém o estame delicado de sua vida desprendeu-se do meu seio, onde ela o escondera e abrigara. A flor mimosa de sua alma talvez sentisse que a sombra das ramas ia faltar-lhe contra os sóis abrasadores, como a proteção do tronco contra os vendavais. E inclinou-se, langue e desfalecida. Eu, que a devia erguer, não o fiz, porque também sentia o mundo que me impelia; as aspirações do futuro me chamavam à vida de estudo e trabalho.

Involuntariamente pois, sem queixas nem recriminações, apenas com uma doce saudade dos tempos que fugiam rápidos, ambos cedíamos a uma lei natural, e víamos afrouxarem os laços que nos uniam. Lúcia, sempre meiga e terna para mim, não podia já esconder a frieza com que recebia 0 gozo que outrora era a primeira a provocar. Quando as minhas instâncias redobravam, ela, que a princípio se expandia entre o rubor, sorria constrangida como uma escrava submissa ao aceno do senhor.

Eu assistia em silêncio a essa transformação. Algumas vezes tentava ainda soprar naquelas cinzas para ver se ateava uma chama do intenso fogo que lavrara ali; mas esmorecia, porque já o frio me ia invadindo; e só colhia as pálidas rosas que ainda espontavam breves e rápidas como flores de chuva. Contudo, ou por um doce hábito, ou por uma misteriosa influência do passado, preferia a frieza dessa mulher aos transportes de qualquer beleza; guardava-lhe sem sacrifício, como sem intenção, uma fidelidade exemplar.

Não se admire pois se eu lhe disser que já não ia todos os dias à casa de Lúcia, apesar de suas instâncias; contudo sentia que a minha presença ainda lhe era agradável, e que ela a desejava, senão ardentemente, com uma doce emoção. Parecia que o prazer fugindo deixava a amizade calma e serena.

Qual era a existência de Lúcia durante o tempo que não passava em sua casa? Ignorava completamente; tinha até receio de conhecê-la; quando nalgum circulo a conversa caía sobre ela, de ordinário me retirava. Adivinha a razão. Lúcia não tinha compromissos para comigo; devia usar de sua liberdade; se eu lhe havia guardado uma fidelidade espontânea, não tinha por isso direito de exigir retribuição, sobretudo depois que minhas visitas se tornavam mais curtas e menos freqüentes.

Contei-lhe tudo isto a propósito do teatro, onde nos devíamos encontrar.

Lá estava a família do Sr. R. . . a quem fui cumprimentar apenas caiu o pano. A mãe, absorvida por uma velha titular, que lhe contava maravilhas do teatro 3. João, depois de acolher-me com a sua costumada amabilidade, deixou-me à filha, que estava desesperada por achar um cúmplice para a inocente critica feminina. Não tendo nada que me ocupasse, entretive-me mais tempo do que era natural com essa conversa, que não deixava de ser agradável para quem aprecia como eu a botânica da flor viva, gênero zoófito, que se chama mulher. A menina as vezes debruçava-se para comunicar-me alguma observação mais cáustica; e eu tinha ocasião de sentir um hálito fragrante, e entrever na sombra a marmórea saliência de um seio virgem.

Saindo vi sentada na porta do seu camarote uma das poucas lorettes de Paris, que por um belo dia de inverno, como verdadeiras aves de arribação, batem as asas, atravessam o Atlântico, e vêm espanejarse ao sol do Brasil nas margens risonhas da mais bela baía do mundo. Ela tinha e tem, comi a cor da Espanhola e os cabelos da Italiana, a suprema elegância do passo e da atitude que o solo parisiense inocula pelas plantas de suas filhas prediletas. Admirava e conhecia essa mulher de a ter encontrado algumas vezes, mas as nossas relações não passavam de uma polidez mútua.

Vendo-a, tive como um pressentimento de que essa mulher era a única que poderia apagar a lembrança de Lúcia. Levado por semelhante idéia, e também por esse desejo que temos todos de tocar com o ciúme o ouro de uma afeição, a fim de lhe conhecer o quilate, aproximei-me: conversamos alguns instantes.

Não sei se a senhora achará prazer na leitura destas cenas sem colorido, estirado diálogo entre dois atores, raro interrompido pelo mundo, que lhes atira um eco de seus rumores. Já tenho tido vezes de arrependimento depois que comecei estas páginas, que eu podia tornar mais interessantes, se as quisesse dramatizar com sacrifício da verdade: porém mentiria às minhas recordações e à promessa que lhe fiz de exumar do meu coração a imagem de uma mulher.

Fui ver Lúcia. Ela estava pensativa e distraía-se continuamente para fitar o óculo na direção do camarote do R... Nem uma palavra a respeito da francesa, o que me contrariava, como deve supor.

— Ainda há pouco te vi de um camarote!

— Onde está uma família?

— Não, de outro mais chegado à cena, disse sorrindo.

— Sei, também o vi na porta.

— E uma bonita mulher, não achas? repliquei fingindo indiferença, mas realmente humilhado pela calma e sossego de Lúcia.

— Não conheço nem uma no Rio de Janeiro, nem mais bonita, nem mais graciosa. Merece todas as atenções de que a cercam.

— Estive conversando com ela; achei-a muito agradável. Se não tivesse receio de desgostar-te, iria vê-la.

Lúcia calou-se e levou o binóculo aos olhos. Era demais; nem sequer um despeito simulado. A consciência de sua infidelidade a pungiria tanto que se reconhecia indigna até de fingir ciúmes? Ou desejava ela ver romper-se o último véu que ainda nos ocultava a ambos a realidade de uma afeição partida?

— Sabes o provérbio, Lúcia. Quem cala consente.

— Como! Não ouvi! disse-me retirando o óculo e voltando-se para mim com a expressão lesa de quem procura apreender uma idéia no vácuo da memória.

— É indiferente para ti que eu veja aquela francesa! O teu silencio é claro!

— Tenho acaso o direito de me queixar? disse com melancolia. O prazer que ela lhe promete, sinto que já não posso dá-lo.

— Porque não queres; porque já não és a mesma'

— Não decerto, não sou a mesma! Mudei tanto!

— Para mim unicamente!

Ela fitou-me com um olhar ingênuo. Hoje que me lembro da expressão desse olhar leio nele perfeitamente: << Vive no mundo alguém mais?>> Era a frase muda de seus olhos.

Lúcia ergueu de novo o binóculo.

— Aquela família com quem esteve não é a mesma que o convidou para a partida? A filha é muito bonita! O senhor dançou com ela!