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Lupe/I

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Frisco
I


Muito triste a minha partida de S. Francisco da California, — Frisco, — segundo o dizer vulgar dos respectivos habitantes.

Eu passara alli uma semana, no maior isolamento.

Com obsequioso interesse, o consul geral do Brazil nos Estados Unidos, Salvador de Mendonça, me havia recommendado ao seu agente n’aquella cidade, Mr. J. L. M. Randolph.

Dispensara-me este a inexcedivel amabilidade dos americanos, quando condescendem em se mostrar affaveis.

Mas era um negociante occupadissimo, sempre ás carreiras, para quem constituia séria contrariedade o desperdicio de um minuto.

Morava no Cosmos-Club com varios rapazes celibatarios, quasi todos empregados no commercio.

Obteve a minha admissão, como socio temporario, n’esse club, luxuosa e confortavelmente installado; offereceu-me ahi excellente jantar, regado de saborosos e variegados vinhos, fabricados sem excepção na California, inclusive o champagne e o porto; presenteiou-me teiou-me com minucioso guia illustrado da povoação; forneceu-me concisamente preciosas informações, de perspicassissimo cunho pratico, sobre tudo aquillo de que poderia precisar um viajante na minha idade e condições (eu entrara então nos 24 annos); e, abalando-me os ossos n'um formidavel shake-hands, concluio, ao entregar-me o seu cartão de visita, em cujo dorso se alinhavam algarismos manuscriptos, semelhando uma taboada:

— Sinto não me ser da do acompanhal-o sempre, mister Cilso. Eis aqui os numeros telephonicos deste club, onde durmo; do escriptorio onde trabalho; do bar, onde bebo; do bilhar onde jogo; da egreja, onde rezo; do centro politico, onde discuto; das casas de cavalheiros e damas que frequento. Em precisando de mim, a qualquer hora do dia ou da noite, chame-me desassombradamente e accorrerei logo, cheio de prazer, para lhe prestar serviços. E good bye, my dear, good bye...

Assim, eu visitara sosinho as curiosidades locaes, vivendo dias inteiros sem conversar com quem quer que fosse.

Em 1845, S. Francisco, a antiga Yerba Buena dos mexicanos, contava 1.500 moradores; accusa o recenseamento ultimo cerca de 300.000.

Valle entre morros parallelos, entremeado de outeiros, com o seu magnifico porto e as suas casas brancas, guarnecidas ordinariamente de varandas, trasbordantes de plantas tropicaes, nota-se em sua physionomia algo da do Rio de Janeiro.

Mas as ruas são ali mais largas e limpas, usando commummente numeros em logar de nomes; os edificios mais altos; o typo architectonico mais extravagante; a população mais heterogenea e vivaz, talvez offerecendo ainda vestigios dos audaciosos aventureiros de que descende. Em compensação menos grandiosa do que a nossa a natureza, somenos a perspectiva, e inferior a bahia em extensão, magestade, segurança e bellezas naturaes.

Entre as construcções normaes de Frisco, destacam a miude torres, cupulas, columnatas. Causa surpreza a infinidade de fios telegraphicos suspensos em póstes e nos telhados. Galgam ingremes collinas filas de bonds movidos por um cabo metallico que róla occultamente dentro de apertado tubo, no meio dos trilhos, abaixo do nivel do caminho. Por meio de um apparelho em forma de pinça, o vehiculo se engata facilmente no motor.

Interessante a enseada, na qual ancoram navios tripolados de gente extranha, oriunda de mysteriosas regiões asiaticas.

A communicação com o pleno mar faz-se, como na capital brazileira, por estreito corredor, — porta de ouro (Golden Gate) chamado.

Descortina-se d’esse ponto esplendido panorama, — feliz combinação de ilhas, montanhas, planicies, agglomerações caprichosas de predios, sob amplissimo horizonte assiduamente colorido de violentos e sumptuosos matizes.

A originalidade de S. Francisco, porém, reside no seu quarteirão chinez.

Em todos os angulos da cidade cruzam com o transeunte filhos do celeste imperio, — olhos obliquos e microscopicos, cara redonda, cutis bronzea, maçans do rosto salientes, vestuarios soltos e vistosos, chapéos de sol de côres vivas, sapatos de páo, cabeça raspada a meio, longo rabicho fluctuante ou enrolado no pescoço. Andam dois a dois, lentos e impassiveis. A sua presença dá incisivas notas exoticas à multidão banal.

Mas cumpre, para devidamente aprecial-os, percorrer o bairro especial que occupam.

Imaginai dilatado labyrintho de viélas sujas, esguias, tresandando olores acidos, que irritam a pituitaria, ladeiadas de edificações excentricas, coalhadas de inscripções estapafurdias e de estramboticos objectos, onde pullulam representantes da raça amarella em todos os recantos, n’um indizivel formigamento, emquanto cães e gallinhas remechem tranquillamente montes de lixo abandonados ás portas...

Todavia, apresentam-se excellentes as condições sanitarias d’esse perimetro, a despeito do desaceio e da incrivel promiscuidade que n’elle dominam.

Milhares de creaturas humanas alli se empilham, exercendo toda sorte de industrias e profissões. O Globe Hotel acommodava em 50 aposentos acanhados mais de 1.600 chins.

E são ordeiros, resignados, sobrios, pessoalmente limpos, habilissimos, refractarios a epidemias, respeitadores das autoridades, de extraordinaria aptidão para qualquer trabalho, inflexiveis na observancia de suas usanças e tradições. Vivem n’aquella circumscripção como em seu proprio paiz. Os materiaes de certas moradias, — blocos de granito finamente lavrados, — vieram inteiros da China, preparados de modo a se armarem promptamente.

Restaurantes, assignalados por enormes disticos vermelhos, e innumeraveis lanternas de papel na fachada, e onde se servem inverosimeis iguarias em maravilhosa louça de porcelana; artisticos salões de chá; templos de diversas seitas, nos quaes se adoram divindades de interminaveis bigodes; casas de exquisitos jogos; theatros em que se desenrola durante mezes o entrecho da mesma peça militar; reductos clandestinos para fumadores de opio; lindas lojas de sedas e artefactos de ebano embutido; medicos que só recebem honorarios quando o cliente goza saude e os perdem se este adoece: — as mil peculiaridades caracteristicas do immenso estado mongolico, encontram-se no centro de S. Francisco, emergindo da espurcicia extrinseca, de Pacific street a Sacramento street, verdadeira incrustação de perfeito fragmento do Oriente n’um activo nucleo de civilisação norte-americana.

Bastaram-me oito dias para examinar attentamente tudo isto.

Satisfeita a anciedade de touriste, urgia-me partir para diante. Tomei passagem no Colima, velho vapor de uma companhia de cabotagem entre os Estados Unidos, Mexico, America Central e Panamá.

Intensa melancholia, ao embarcar. Ia aventurar-me n’uma viagem, tentada por poucos brazileiros: as costas do Pacifico até ao estreito de Magalhães, tocando, além das regiões já mencionadas, no Equador, Perú, Chile e Patagonia.

Eu sahira do Brazil na direcção do norte. Visitara Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará, Barbadas, S. Thomaz, antes de chegar a Nova-York. Atravessara o continente, depois de percorrer o Canadá, na grande linha ferrea que liga os dois oceanos. Regressando ao Rio de Janeiro, com escala em Montevidéo, traçaria enorme circulo em torno da America.

Iniciava-se agora a phase mais penosa do trajecto. Até então vinham-me noticias constantes da familia; não raros compatriotas se me deparavam; promptos seriam, em centros que mantêm frequentes relações com o Brazil, o regresso e os soccorros, se necessarios.

Mas, de ora avante, Guatemala, Honduras, Costa-Rica me apartariam absolutamente da patria, alheia em tudo a esses paizes. Era entranhar-me no desconhecido, destituido de qualquer amparo natural, sem o menor ponto de apoio affectivo, cada vez mais separado dos meus.

— Que será de mim, adoecendo? Se me achar privado de recursos materiaes? Se fallecer inopinadamente?! Que de difficuldades para que os meus amigos e parentes venham a descobrir o paradeiro de meus despojos!...

D’estas proprias reflexões, comtudo, provinha-me singular encanto. Acariciava-me a imaginação a possibilidade de conhecer, sob a imminencia do perigo, novos aspectos de homens e cousas.

Em pé, no tombadilho do Colima, prestes a levantar ferro, eu contemplava um alteroso paquete, atracado, como aquelle, a uma dóca. Entrara horas antes de Yokohama. Agitava-se no interior d’elle multidão compacta, — typos de oppostas raças, semblantes e trajos disparatados.

O espectaculo enleiava-me a attenção.

Bateram-me, porém, no hombro.

Era Mr. Randolph que tivera a gentileza de roubar alguns minutos aos seus affazeres para se despedir de mim.

Com a habitual presteza, dentro em pouco, apresentou-me elle ao commandante, recommendou-me ao commissario, presidiu á collocação das minhas malas no camarote escolhido, ministrou-me dados estatisticos sobre a marcha do navio, duração do percurso, logares em que parariamos para carregar ou descarregar.

Quasi ao se retirar, murmurou sorrindo:

Fui informado de que terá uma agradavel companheira, graças á qual a travessia lhe parecerá curta.

— Quem?

— A celebre Miss Lupe Hedges que, depois de haver imperado em S. Francisco, como soberana da moda e do bom gosto, perdeu a realeza e recolhe-se, em companhia da mãe, a Acapulco, sua terra natal. Mister Hedges, o pai, um agente de cambio, antigo caixeiro viajante, vivia com inaudita opulencia. Consideravam-n’o riquissimo, posto ninguem explicasse satisfactoriamente a origem de seus cabedaes. Fulminou-o ha perto de dous mezes uma apoplexia. Deu-se-lhe balanço. Completamente insolvavel, meu caro; só legou aos herdeiros incommensuraveis dividas. Os credores tomaram quanto a familia possuia. Colossal ainda assim o prejuizo. A viuva e a filha, habituadas ao maior luxo, reduzidas inesperadamente á penuria, não se afazendo a vegetar n’uma posição modesta na terra em que sobrancearam, resolveram regressar ao patrio ninho. Mudam-se para o Mexico, donde Hedges as trouxera ha annos e onde possuem um parente empregado do governo, ao que dizem.

— Que casta de gente é?...

— Oh! Summamente aprazivel a moça.

— Apenas isso?

— Que mais deseja um rapaz que viaja? — inquirio o meu interlocutor. Trate de captar a amizade de Lupe e não se arrependerá. Aposto que entreterá com ella optimas relações. Rosna-se por ahi muita cousa, — casa de jogo mantida por Hedges e da qual a filha constituia o principal chamariz etc., etc. Mas eu não acredito. Em summa...

N’isto, ouviram-se toques de sineta, seguidos de um apito surdo do vapor. Observava-se a bordo a lufa-lufa da partida immediata.

Mr. Randolph, sem terminar a phrase, segurou-me a dextra, sacudindo-a vehemente.

— Adeus... adeus... exclamou. Bôa viagem. Divirta-se. Confio em que levará excellentes impressões da nossa gloriosa nação.

E sumiu-se de prompto, no meio das pessoas que desciam apressadamente a escada do portaló.

Breve o Colima desligou as amarras e desprendeu-se lento de terra, n’uma suave manobra.

Já se cavava regular intervallo entre elle e o caes, quando surdio n’este, correndo esbaforido, um joven chinez. Trazia na mão um papel e fazia gestos desesperados a outro chinez que da prôa do navio lhe respondia, com acenos igualmente furiosos. O espaço intermediario augmentava a cada segundo. Então o chinez que ficava apanhou bruscamente uma pedra no chão, envolveu-a no papel e arremessou-a esforçado ao chinez que partia. Grande, porém, a distancia interposta. O projectil descreveu no ar um arco de circulo e cahio n’agua, submergindo-se. Soaram gargalhadas.

No rosto amarello do arremessante transpareceu profunda magua. Poz-se a chorar. Nada mais engraçado do que um chinez chorando. Dos olhinhos sardonicos saltitavam-lhe lagrimas, na apparencia differentes das nossas, emquanto os traços se lhe amarfanhavam n’uma inconcebivel careta.

Sentirão elles como nós? Serão identicas ás que nos impellem as suas paixões? Corresponderá á dissemelhança physica um contraste moral? Não revestirá o desgosto d’elles, bem como a alegria, formas e expressões caracteristicas, de accordo com as feições e vestuarios? Haverá raças d’almas, — tartaras, ethiopes, japonezas, diversas das européas e americanas?!...

Um corcóvo do navio cortou-me as cogitações. Sahiamos barra fóra, atravessando Golden-Gate.

O Colima entestara com o pleno oceano. Ao primeiro embate, curveteava. Diante de nós se desdobrava até roçagar no firmamento o chamalóte verde das vagas.