Mater (Cruz e Sousa)

Wikisource, a biblioteca livre

Naquela hora tremenda, grande hora solene na qual se ia inicar outra nova vida, foi para mim uma sensibilidade original, um sofrimento nunca sentido, que me desprendia da terra, que me exilava do mundo, tal era o choque violento dos meus nervos nesse momento, tal a delicada e curiosa impressão de minh'alma nesse transe supremo.

Ela, abalada por gemidos, na dor que a dilacerava, quase desfalecia, com a mais rara expressão misteriosa nos grandes olhos, os lábios lívidos, o semblante de uma contemplatividade de martírio, transfigurada já pela angústia sagrada daquela hora, no instante augusto da Maternidade.

Todo o meu ser, arrebatado por essa imensa tragédia de sacrifícios, de abnegação cristã, de heroísmos incomparáveis, sofria com o estranho ser da Mater toda a amargura infinita do majestoso aparato da Vida prestes a surgir do caos, da chama palpitante, prestes a irromper da treva...

Como que outra natureza, uma paixão viva e forte, um carinho maior me inundava, subia vertiginosamente pelo meu ser, me incendiava numa onda flamante de luz virginal, de claridade vibrante, que me trazia ao organismo alvoroçado rejuvenescimentos inauditos, mocidade viril, poderosa, alastrando em seiva fremente de sensações, nervosamente, nervosamente impulsionando o sangue.

Às vezes ficava como que num vácuo, só, numa sinistra amplidão vazia de afetos, sob o eletrismo de correntes invisíveis que me prendiam, me arrastavam ao pensamento da Morte, ao auge do dilaceramento, da aflição, do delírio despedaçador da lembrança de vê-la morta, sem estremecimentos de vitalidade; sem que as suas mãos cheias de afago, as suas mãos dementes, bem-aventuradas, misericordiosas, perdoadoras, sagradas, relicariamente sagradas, me acariciassem mais; sem que os seus braços longos, lentos, lânguidos, me acorrentassem de tépidos abraços; sem que o contato dos meus beijos apaixonadamente profundos a acordasse, — fria, insensível, horrível, gelada ao meu clamor de adeus, ao meu grito tenebroso, tremendo, de leão despedaçado, ferido pela flecha envenenada de uma dor onipotente, rojado de bruços, baqueando em soluços sobre a terra maldita e bárbara!

De súbito, porém, as lancinantes incertezas, as brumosas noites pesadas de tanta agonia, de tanto pavor de morte, desfaziam-se, desapareciam completamente como os tênues vapores de uni letargo...

E uma claridade inefável de madrugadas de ouro, alvorecida das aves brancas de um país sideral, apagava em mim a dor fria, exacerbante, desses pensamentos impacientes e torvos; dava-me o vigoroso alento, a grande esperança de que ela sobreviveria, de que ela sentiria, com Orgulho sagrado, nesse primeiro movimento da Maternidade, correr nas veias todo o impulso delicioso e nobre, toda a delicada aptidão ingênita, poderosa, profunda, para amamentar, fazer florir e cantar no hostiário sacrossanto dos seus seios, aquela doce e vicejante existência que na sua atribulada existência se gerara.

E toda a antiga e virtual castidade, a adolescência promissora, prenuncial, o mago segredo púbere da sua passada virgindade se transfigurariam na opulência, no fausto de sensibilidade, de nervosidade, da complexa paixão materna.

Mas o momento da angústia suprema se aproximava, fazia-se uma pausa religiosa nesse monólogo mental que me agitava em febre, na concentração aflitiva dos meus pensamentos — agora mudos, no reverente silêncio, na ansiedade calada de quem espera...

Era chegado o momento, grande, grave e belo momento entre todos, em que a mulher, perdendo a volubilidade, a gracilidade diáfana e o alado encanto de virgem, se transfigura e recebe uma auréola, um sério resplendor de nobre martírio, de simpático consolo, envolve-se numa sombra e num silêncio de piedade e de sacrifício, num Angelus abençoado de amor.

Era chegado o momento em que aquelas formas se espiritualizavam, se eterizavam, tomavam asas de sonho, inflamadas por um novo e alto sentimento, tão tocante e tão augusto, que parecia afinado e fecundado nos céus pela graça divina e peregrina dos anjos. É quando a mulher parece desprender-se, libertar-se suave e secretamente da argila que a gerou e criar para si, solenemente, uma esfera perfeita e eleita de abnegação infinita e de resignação sublime. Quando os seus seios magnificentes, nos renascimentos da Beleza, símbolos delicados da maternal Ternura, florescem à vida dos pequenos seres que nascem, numa alvorada carinhosa e tépida de agasalho, amamentando-os com o néctar delicioso do leite.

Nessa hora extrema em que parece desprenderem-se da mulher, desatarem-se, evaporarem-se véus translúcidos de virgindade, para surgir, como de um caule misterioso, a meiga e mágica flor da Maternidade.

Todo aquele organismo fecundado estremecia, estremecia, nesse inicial e materno estremecimento virgem, vagamente lembrando as fugitivas vibrações nervosas de sonora harpa nova, de ouro puro, original e intacta, pela primeira vez vibrada com excepcional emoção por dedos inviolados e ágeis...

E, em pouco, então, como num suntuoso levante de púrpuras, através de gemidos pungentes, de gritos e ânsias delirantes, a cabeça docemente pendida numa contemplativa amargura, os olhos adormentados pelas brumas crepusculares e lacrimosas de um pressentimento vago, magoado e esmaecida toda a suave graça feminina, na extrema convulsão do corpo dela, todo aquele surpreendente fenômeno foi como que acordando, alvorecendo, surgindo das névoas mádidas e sonolentas, letárgicas, de pesadelo... E a flor maravilhosa e rubra da matéria, gerada na imensa dor, abriu, enfim, em prodígios, pomposamente.

Numa apoteose de sangue, respirando o sangue impetuoso, abundante, que jorrava em auroras, em primaveras vermelhas de viço germinal, raiara como clarão aceso de Vida, num grito íntimo, latente, do seu tenro organismo elementar ainda — um grito talvez selvagem, um grito talvez bárbaro, um grito talvez absurdo, arremessado para além, ao Desconhecido do mundo em cujos dédalos intrincados esse delicado ser acabara de penetrar agora por entre ensangüentamentos.

Parecia que de uma zona fantástica, dessa Índia ouro e verde, opulenta, feérica, como caprichoso tesouro de Lendas e de Baladas, alvorara o Encanto, criara asas e viera, com o pólen radiante da fecundação, insuflar a vertigem, dar o fremente sopro criador à cabeça, aos olhos, à boca, aos braços, ao tronco, a todo o corpo num movimento quebrado, voluptuoso, lânguido, de germens que se concretizam, que se condensam e vão adquirindo aos poucos, com infinitas delicadezas e inefabilidades, todas as formas perfeitas, todas as linha dúcteis, todas as curvas e flexibilidades sensíveis, todas as fugitivas expressões corretas e harmoniosas.

Ali estava aquele vivo e eloqüente rebento, iluminado pelos idealismos da minh'alma, vivendo dos florescimentos olímpicos, da alacridade cantante, do ruído em festa, da imaculada frescura da minha livre e forte alegria antiga de adolescente.

Ali estava, para o meu amor sereno, para o consolo meditativo das minhas grandes horas de anseio, para o recolhimento ascetérico da minha fé estesíaca, a Imagem palpitante, gárrula, trêfega, da Infância já passada.

Ali estava agora a vida desabrochante, o encanto alegre, aflorado, ridente — hino viçoso e verde e virgem e evocativo e sugestivo de uma ventura morta, saudade intensa, chamejante, como que espiritualizada no Filho, rememorando, evocando, numa expressão elegíaca, todos esses longínquos, remotos e significativos deslumbramentos, cânticos, miragens, sóis e estrelas da primeira idade tão enternecivelmente assinalada.

Era como que a retrospectividade luminosa de um tempo, que subia, em incensos, de um fundo enevoado: terra sagrada e extinta, saudosa e verdejante Palestina que eu entrevia longe, nas brumas vagas da memória, dentre hosanas e sicômoros; — página recordativa que as estrelas e os aromas docemente fecundaram de amor e de sonhos.

E eu ficava por muito tempo a olhá-lo, a olhá-lo, a rever-me na frescura cândida daquela carne, a aspirar com avidez o perfume violento daquela flor viva, considerando, meditando sobre todos os seus traços, sobre a expressão curiosa, de pequenina múmia, do seu corpo veludoso, como que embalsamado no óleo virtuoso de preciosas ervas verdes e virgens.

Ali estava, enfim, quem me tornava de ora em diante soturno, calado, no êxtase mudo da contemplação, como sob o impressionante poder cabalístico, sob a eloqüência vidente de hieróglifos mágicos...

E, assim mentalmente considerando, eu sentia o mais reverente, o mais profundo, o mais concentrado respeito, o afeto mais vibrantemente tocante, aureolado de lágrimas, pelo templo majestoso e santo daquele belo ventre, onde enfim se oficiara a primeira Missa de Propagação perpétua.

Todas as perfeições espirituais do ser que se liberta da materialidade vil, todos os anseios supremos pelas formas intangíveis das transcendentes sensibilidades, me transfiguravam, contemplando em silêncio aquele ventre precioso e bom, onde tomara corpo, se consolidara em organismo o gérmen quente e intenso da Paixão.

Contemplando em silêncio aquele ventre venerando e divino — Vas honorabile! — de onde o sentimento épico e místico das sempiternas Abnegações ondulou como aroma eterno e celeste; ventre gerador e poderoso que se purificara e sagrara triunfalmente com os sacrificantes milagres da Fecundação; Olimpo glorioso que abrira os pórticos fabulosos à dominativa emoção, à fantasia heroica, à graça d'asas seráficas, do Gênio consolador, estoico e elíseo das amparadoras, misericordiosas Mães!

Ó Ventre obscuro e carinhoso, soberbo e nobre pela egrégia função de gerar! Ventre de afetivas sublimidades, donde cantou e floresceu à luz a dolente vitória de uma existência, a encarnação soberana, a fugitiva tulipa negra para idealizar singularmente os Infinitos nostálgicos da minha Crença! Ó Ventre amado. Como foram extremamente puros e penetrantes e frementes os beijos de apaixonada volúpia e reverência sacrossanta que eu depus sobre o teu ébano!

Em torno, no ambiente carregado da intensidade de toda essa maravilhosa sensação, errava o segredo ritmal de Litanias, de preces que Visões rezavam baixo, por Céus inefáveis, num abrir e fechar d'asas arcangélicas, d'asas límpidas, d'asas e asas rumorejantes, aflantes, cujo suave e ciciante ruído eu na Imaginação escutava enlevado...

E a doce Mater, mais calma, numa unção de bem-aventurança, numa auréola deifica, serenada já da dor profunda da Maternidade, parecia penetrada de um sentimento celeste, de fluídos virtuais do grande Amor, de resignada piedade, — água lustral, da maternal paixão, que a lavava do mal do torturante pecado, purificando a sua alma simples, iluminando-a toda com o altivo esplendor de uma força heróica.

Lembrava uma dessas excelsas Divindades espirituais, a Entidade das Abstrações dos reclusos místicos, Aparição imortal, cuja face, no resplendor translúcido daquele sofrimento regenerante, tinha para mim o encanto mais alto, a ternura mais bela, a abnegação mais serena.

Sentia-me diante de completa Religião nova que evangelizava a Crença naquela Mãe e naquele Filho, — inteira Religião nova, cujos rituais e cultos eternos eram para mim agora esses dois seres extremadamente amados, cujo sangue irradiava no meu sangue, cuja vida penetrava na minha vida, inoculando-a de um júbilo e de uma graça profética — graça de Anjos e Astros em claridades, músicas e cânticos, por fios sutis de múltiplas cordas d'harpas, d'harpas e harpas, dentre os Azuis e as Constelações...

Ao mesmo tempo sentia então que profundos e penetrantes frêmitos me abalavam, me convulsionavam todo, como se se operassem no meu organismo transformações recônditas, gerando uma outra alma, trazendo-me sede insaciável da Vida, o ressurgimento de estesia particular e rara.

Força estranha, que eu até aí não conhecia, circulava com veemência nos meus nervos, dava-lhes tensibilidade e vibratilidade mais leve, mais fina; e, grandes asas diáfanas de Aspiração e Sonho, alavam-me às supremas serenidades da Piedade e do Amor.

O desejo que me clamava dentro do peito, em claras trompas guerreiras, numa onda sonora e impetuosa, era o de ir além, fora, longe do tédio das cidades murmurejantes, longe das curiosidades indiscretas, dos indiferentes e frívolos, das sentimentalidades aparatosas, dos enternecimentos calculados, decorativos e clássicos, das expansões d'estilo, ornamentais como corpos em tatuagem, de tudo o que grulha e reina na boçalidade majestática da espécie humana.

O meu desejo indômito era de ir além, fora das brutas portas de pedra da Região dos Egoísmos, gritar, gritar, clamar, livremente, à natureza virgem, aos campos, às florestas, aos mares, às ululantes tempestades, aos sóis em febre, às noites triunfais, coroadas d'estrelas, aos ventos coroados de pesadelos, que esse Filho extravagantemente amado nascera, que surgira enfim do mistério sonâmbulo da Maternidade...

A ansiedade que me agitava, levantando dentro de mim o desconhecido, convulsionando este organismo num incêndio de sensação, era de deprecar ao Indefinido das Cousas, ao Abstrato das Formas, ao Intangível do Espírito, à Eloqüência dos Presságios, para que me dissessem o que ia ser desse frágil obscuro, dessa tímida flor da Desgraça, o que ia ser daqueles membros tenros, débeis; que estupendos augúrios dormiriam no brilho fugitivo daqueles olhos inconscientes, perdidos no vago de um fluido sentimento, sob o fundo fatal das impurezas da Carne, das inquietações do Pecado — germens latentes ainda, apesar do desdobramento milenário das eras, da absoluta e primitiva Culpa humana.

Ansiava que me dissessem que mágicos filtros de gnomos da Noite o predestinariam; que frêmitos de desejo convulsionariam essa boca ainda tão impoluta, sã, ainda sem laivos visguentos; que luxúria intensa e nova inflamaria, acenderia centelhas nessa boca úmida, fresca, viçosa, apenas entreaberta já num indefinido anelo, sedenta, inquieta, impaciente, ávida já da instintiva volúpia do leite...

Todo o evocativo estremecimento das saudades, das esperanças, das alegrias, das lágrimas, me invadia a alma num sonho esquisito, exótico, oriental, por entre os nardos quentes, perturbadores e magnéticos, da Abissínia e da Arábia Ideal de todos os meus pensamentos fugidios, circulando, girando, torvelinhando, como silfos procriadores, em torno àquela meiga e venerada cabeça.

Eu ficava absorto, contemplativo ante as sugestões delicadas que o supremo fenômeno trazia, nessa manifestação singular de curiosidades de preciosas revelações ingênitas e caprichos ignotos da Natureza, sentindo que o Filho poderosamente me fascinava, que a mais irresistível atração me chamava para ele, atração vital, imediata, eterna, do sangue comunicativo e fraterno que clama pelo sangue fraterno.

Ela, afetiva Sacrificada, Mater, dolorosamente aí ficaria na terra, gravitando nos centros nervosos da Vida, — Sombra divina e errante! —para o futuro, para a obscuridade, para a velhice, para o silêncio e esquecimento dos tempos...

Ele, Filho, surgindo das nebulosidades da Matéria, caminhando, caminhando a Via-Sacra das horas e dos dias pelas ermas e infinitas encruzilhadas dos Destinos, iria então, resignado ou desesperado, para o Vilipêndio ou para as medíocres conquistas do Mundo, através dos conclamadores Anátemas, através dos lancinamentos inconcebíveis, através das taciturnidades melancólicas, através de tudo, tudo, tudo o que chora d'alto, profunda e apocalipticamente, o Réquiem solene, a soberana majestade, tremenda, trágica, da imponderável Dor!...