Memória sobre a ilha Terceira/V/III/X

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CAPÍTULO X Governo do general Stockler. Movimento revolucionário em 2 de abril de 1821. Contra-revolução e morte do general Araújo. Organização do governo constitucional na ilha Terceira De longa data era previsto o aniquilamento de Portugal, perante as nações civilizadas da Europa, pela inépcia dos seus governantes, pela indolência dos governados. Brilhante e majestoso durante séculos, começou a sua ruína com o domínio espanhol, aumentando com a subida de D. João IV ao trono. A derrota foi-se acelerando nos reinados subsequentes até D. José, em que o seu primeiro ministro, o grande Marquês de Pombal, levantou heroicamente o nível de Portugal, colocando-o a par das primeiras nações da Europa, já com o desenvolvimento das indústrias e o levantamento da instrução, já reorganizando todo o serviço público, por tal forma que as rendas do Estado aumentaram, ficando os cofres da nação completamente cheios: mas faltava quem soubesse substituir tão grande vulto e continuasse a sua obra grandiosa, após a sua morte. Não era uma Rainha, quem devia e podia colocar-se à frente de uma nação que recomeçara a florescer. Fraca por natureza e reacionária como poucas, deixou-se levar pelos ambiciosos políticos e inimigos do progresso, até que, por fim, enlouqueceu. Ficou regendo o reino seu filho D. João, que foi o VI do nome, entrando a política portuguesa numa fase nova. Recrudesceu a guerra às ciências e às letras, às quais atribuíram os males da humanidade. D. João VI tornou-se dócil instrumento nas mãos de Luís Pinto de Sousa Coutinho e de Pina Manique, os dois agentes mais poderosos do partido reacionário.


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Foi ao seu governo inepto e bem nefasto que Portugal ficou devendo as invasões francesas, para depois entregar nas mãos do déspota e ambicioso Beresford o país quase moribundo, que governou do mesmo modo como se governam os negros de África, tornando-se a sombra negra de Portugal e humilhando a coroa portuguesa. E foi nesta época que a Inglaterra, a nossa sempre fiel aliada, considerou Portugal no Congresso de Paris como colónia sua, entregando à França, para a contentar, a nossa Guiana, sem disso dar conta ao governo português! Com os empréstimos para as primeiras campanhas de 1793 e 1797, com as perdas sofridas até 1801, e com a contribuição de guerra imposta por Junot,1 perdeu Portugal a bagatela de sessenta e três milhões e novecentos contos de réis, não entrando os impostos lançados para sustentar a 1.ª, 2.ª e 3.ª invasões, os navios aprisionados pelos franceses, pelos espanhóis e pelos nossos fiéis aliados, etc., etc. Tais foram as causas principais que originaram o grito da revolução portuguesa de 1820. Tornava-se urgente repelir a humilhação de Portugal, destruindo o seu execrando governo e tentar a sua reabilitação. Foi na cidade do porto que primeiramente se levantou o brado da revolução que teve lugar no dia 24 de agosto de 1820. Beresford, temendo que a revolução de Espanha se repercutisse em Portugal e que se efetuasse qualquer levantamento no país, partira para o Brasil, onde estava a corte portuguesa, a pedir ao Rei plenos poderes para combater qualquer movimento político, tornando-se mais déspota que alguns imperadores romanos. Mal cuidava ele que, ao sair a barra do Tejo, o povo português levantaria o grito de Liberdade! Era já conhecido em quase todo o país a Revolução do Porto; e o governo português, para obstar ao seu desenvolvimento, organizara três corpos de exército: um, na Estremadura, comandado pelo Conde de Barbacena; outro, na Beira, com o general Victoria; e o terceiro, em Trás-os-Montes, sob o comando do Conde de Amarante. De nada serviram estas providências. As ideias liberais espalhavam-se com rapidez por todos os pontos de Portugal e o pensamento humano vencia a espada e a bala. Em pouco tempo foram aderindo ao movimento político do país as províncias do reino, até que em Lisboa se reuniu um punhado de homens, que a história venera e respeita, com os nomes de Borges Carneiro, Fernandes Tomás, Cabreira e outros, formando a nova constituição portuguesa. Em setembro de 1820 chegava à ilha Terceira a notícia deste movimento político, e o capitão-general Francisco António de Araújo, que ainda governava, ouvindo o parecer das principais autoridades da ilha Terceira, resolveu pôr-se em observação e evitar, provisoriamente, quaisquer comunicações com um país onde reinava a guerra civil. Pouco depois sabia-se que os governos do


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Porto e Lisboa se tinham unido e instalado Cortes, sendo obrigados todos os portugueses ao juramento da constituição. Foi nesta ocasião que chegou o general Stockler e com a sua presença nasceram lisonjeiras esperanças de uma nova fase para a política portuguesa, que poria termo ao estado de abatimento e servilismo a que se viram reduzidos os Açores e especialmente a ilha Terceira. Triste foi a desilusão do povo terceirense! Revelou-se imediatamente anti-constitucional, motejando dos procedimentos políticos e personagens de Portugal, proibindo passaportes para o «país dos rebeldes», como ele lhe chamava, negando licenças para se publicarem jornais, mandando proceder a buscas e visitas policiais, e ameaçando com graves castigos os que se inclinavam à constituição. Arvorou-se em senhor absoluto, exercendo as funções do Desembargo do Paço, nomeando as Câmaras da capitania, repreendendo-as depois e estabelecendo na ilha Terceira uma verdadeira época de Terror. O espírito revolucionário havia-se manifestado na ilha Terceira com a convivência dos deportados políticos de 1810; e, logo que se espalharam as notícias do continente e se reconheceu a política de Stockler, o desembargador Alexandre de Gamboa Loureiro e o juiz de fora Eugénio Dionísio Mascarenhas Grade conceberam o projeto de proclamarem a constituição na Terceira. Para porem em execução os seus planos precisavam, em primeiro lugar, da tropa e Castelo de São João Baptista, onde a maior parte dos comandantes manifestaram relutância na adesão ao movimento político, oespecialmente o comandante do batalhão de infantaria, João Pereira de Matos Rite, e o da artilharia, João José da Silva. Nesta época havia-se formado em Angra uma Sociedade Patriota, da qual faziam parte o tenente-coronel de engenharia José Carlos de Figueiredo, o morgado José Leite, o inspetor da agricultura Tomás José da Silva e o cirurgião Inácio Quintino de Avelar, um dos deportados. Numa das suas reuniões foi apresentado o plano da revolução constitucional, ao qual todos aderiram, deliberando-se ao mesmo tempo lançar mão dos oficiais subalternos e do ex-governador Araújo, que ainda residia em Angra, para dirigir os atos militares e fazer parte da futura Junta Provisória. Tornando-se suspeitas para Stockler as reuniões desta sociedade, redobrou de vigilância, mandando espionar o seu figadal inimigo Francisco António de Araújo. No dia 1.° de abril soube este general que seria preso no dia seguinte, e, temendo ser vítima de Stockler, correu a casa Tomás José da Silva para conferenciar com José Leite, resolvendo-se pôr em execução o movimento revolucionário nessa mesma noite. Era quase meia noite quando Loureiro, ao recolher-se a casa, a encontrou cercada por uma patrulha comandada pelo tenente Agapito Pamplona. Depois de unta pequena conversa, juntaram-se a Araújo e marcharam para a


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vizinhança do castelo, aonde chegaram, pouco depois, o tenente-coronel José Carlos com outra patrulha, o morgado José Leite e as demais rondas da cidade que iam ser rendidas. Não podia ser melhor a ocasião: abertas as portas do castelo puderam os constitucionais entrar facilmente, apoderando-se logo da fortaleza, indo Araújo prender imediatamente, no seu quartel, o governador Caetano Paulo Xavier. Loureiro quis fazer o mesmo ao comandante Rite; mas não o encontrando por ter ficado fora do castelo, passou imediato aviso aos oficiais subalternos que fizeram reunir na praça do castelo toda a tropa disponível que, em altas vozes, aclamaram unanimemente a Religião, as Cortes, a Constituição e o Rei constitucional. Foi dada uma salva de artilharia, enquanto se expediam ofícios para o Bispo, coronel Francisco do Canto e Dr. José Maria Osório, participando-lhes a sua nomeação para comporem a Junta Provisória do Governo Supremo das ilhas dos Açores e para o general Stockler anunciando-lhe a sua deposição. Grande foi o erro cometido pelos constitucionais em não prenderem o governador-general no seu próprio palácio, o que de certo evitaria os factos subsequentes. Acordando Stockler sobressaltado com o estrondo da salva e vendo-se sem guarda, mandou chamar os milicianos e bater à porta dos habitantes de Angra para o acompanharem ao bloqueio do castelo. Na proximidade deste, uma peça disparada ao acaso, pôs tudo em debandada e a presença dalgumas patrulhas acabou de dispersar o resto. Stockler e os seus companheiros viram-se obrigados a fugir para a Praia, onde chegaram às dez horas da manhã, aquartelando-se na casa da alfândega. Vejamos o que se passava na cidade. Senhores do Castelo de São João Baptista, conservando sob prisão os adeptos de Stockler, dirigiram-se os promotores da revolução para a casa da Câmara de Angra, acompanhados pela tropa e ali, perante o juiz de fora Grade e os vereadores Francisco Moniz Barreto, Alexandre Martins Pamplona, Francisco de Menezes Lemos e Carvalho e o procurador Tomás José da Silva, aos quais se agregaram o corregedor João Bernardes Rebelo Borges e o Dr. Osório, prestaram todos juramento à constituição, falando primeiramente o desembargador Loureiro; e acabando este ato solene com grandes vivas a El-Rei, à Constituição e à Religião Católica, do que se lavrou o seguinte auto: «Nós o excelentíssimo Francisco António de Araújo, o ilustríssimo corregedor da comarca, o ilustríssimo desembargador Alexandre de Gamboa Loureiro, o ilustríssimo José Leite Botelho de Teive, o ilustríssimo senhor José Maria Osório, secretário com voto, juramos aos Santos Evangelhos obediência à nossa santa religião católica romana, ao muito alto nosso Rei o Senhor D. João VI, a toda a sua real família, às Cortes de Lisboa, e à constituição


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que delas vai resultar; e também juramos governar estas ilhas dos Açores pelas leis do reino de Portugal, na forma que nos for determinado pelas cortes, e assinamos. — Francisco António de Araújo — João Bernardo Rebelo Borges — Alexandre de Gamboa Loureiro — José Leite Botelho de Teive — José Maria Osório Cabral. — E não assinaram o ilustríssimo e excelentíssimo Bispo diocesano, e o coronel José Francisco do Canto e Castro, por não estarem presentes. — E logo o senado da Câmara presente, composto do ilustríssimo doutor juiz de fora Eugénio Mascarenhas Grade, o ilustríssimo Francisco Moniz Barreto do Couto, o ilustríssimo Alexandre Martins Pamplona Corte-Real, o ilustríssimo Francisco de Menezes Lemos e Carvalho, estes dois últimos por serem chamados na falta dos atuais, e Tomás José da Silva, procurador do concelho, também chamado pela mesma razão, e os mesteres presentes atuais Joaquim Homem, serralheiro, José Ferreira, marceneiro, e Manuel Joaquim, barbeiro, juramos aos Santos Evangelhos obediência à nossa santa religião católica romana, ao augustíssimo Senhor D. João VI, nosso legítimo Rei, e a toda a Sua Real Família, às Cortes que se estão celebrando em Lisboa, e à constituição que delas vai resultar; também juramos obediência à Junta Provisória do Governo Supremo destas ilhas dos Açores, instalada para nos governar pelas leis de Portugal interinamente, até à resolução das Cortes e assinamos. — Eugénio Dionísio Mascarenhas Grade — Francisco Moniz Bareto do Couto — Alexandre Martins Pamplona Corte-Real — Francisco de Menezes Lemos e Carvalho — Tomás José da Silva — Joaquim Homem — José Ferreira — Manuel Joaquim Maciel. — E logo a fidalguia, nobreza, homens bons e mais pessoas abaixo assinadas, juraram na mesma conformidade. — Eugénio Dionísio Mascarenhas Grade — Francisco Moniz Barreto do Couto — Alexandre Martins Pamplona Corte-Real — Francisco de Menezes Lemos e Carvalho — Tomás José da Silva — Joaquim Homem — José Ferreira — Manuel Joaquim Maciel. — (Seguem muitas assinaturas das três classes, nobreza, clero e povo).» Ao mesmo tempo que se davam estes acontecimentos políticos em Angra, Stockler, na Praia, reunia um conselho militar com os oficiais que o acompanharam e o coronel de milícias Cândido de Menezes. Decidiu-se capitular em presença da desigualdade de forças e falta de munições. Astuto e cobarde como sempre, mandou Stockler para a cidade o juiz de fora da Praia, Joaquim Firmino Leal Delgado, com os artigos da capitulação e abdicação do governo, assinados pelo seu próprio punho. No dia 3 de abril continuaram nas Câmaras de toda a ilha os juramentos à constituição e no dia 4 partia Stockler para a cidade, indo repousar na Rua Direita a casa do negociante João da Rocha Ribeiro, seu particular amigo, e aonde concorreram os seus melhores adeptos.


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Ignora-se qual fora a entrevista; mas é natural que se planeasse a contra-revolução que teve lugar durante a noite desse mesmo dia. Espalharam-se logo os boatos de uma nova revolução, obrigando os governadores a reunirem-se no palácio do castelo, para resolverem a atitude a tomar, assinando as ordens para o embarque de Stockler, que devia ter lugar no dia seguinte. Pelas dez horas da noite, pouco mais ou menos, ouviram-se os gritos da soldadesca na praça do castelo, acompanhados de um vivo tiroteio contra o palácio onde estavam reunidos os membros do Governo Provisório. Apesar das recomendações dos seus colegas, quis o general Araújo chegar a uma das janelas para falar à tropa; mas, ao abri-la, caiu redondamente no chão, mortalmente ferido. A confusão tornou-se geral: os tiros continuaram durante uma hora, enquanto alguns dos amotinadores investiam pela casa dentro, com armas brancas, dando morras aos governadores; mas, perante o cadáver do infeliz general, serenaram um pouco, contentando-se com a prisão dos constitucionais, que foram levados para o corpo da guarda no meio da soldadesca desenfreada, que os cobria de insultos e ameaças. Ao mesmo tempo corriam alguns soldados a casa de João da Rocha Ribeiro, com a sege em que recolhera ao castelo o coronel Canto, e nela conduziram Stockler para a fortaleza. Diz a história que nesta ocasião se fizeram brindes pelo bom resultado da contra-revolução, e que da janela da casa de João Ribeiro fora lançado dinheiro ao povo que, tão vilmente comprado, soltava vivas a Stockler. Chegado ao castelo foi aquele general recebido entusiasticamente pela tropa; e, dirigindo-se ao quartel do major de artilharia, ali esteve até alta noite dando ordens para que o Bispo, corregedor e coronel Canto fossem à sua presença, facultando-lhes depois o regresso a suas casas. O mesmo fez com Loureiro que, tendo fugido para casa do quartel-mestre de infantaria, ali foi preso e levado para o corpo da guarda, onde já estavam o morgado José Leite e seu filho Luís Leite, Tomás José da Silva, Máximo José de Azevedo, o tenente Agapito Pamplona e outros. No dia seguinte mandou Stockler postar toda a tropa da 1.ª e 2.º linha defronte da casa da Câmara, para a qual fez convocar a nobreza e povo de Angra e, perante toda a assembleia, invetivou os membros presentes do Governo constitucional, exprobando-lhe asperamente o ato de rebelião que tinham praticado contra a sua autoridade constituída pelo legítimo e único Soberano, aclamando um governo rebelde e unindo-se à causa dos rebeldes de Portugal. A presença da força armada e o carácter rancoroso de Stockler impuseram medo a todos os membros do Governo, que facilmente se manifestaram a favor do general, anulando o que tinham feito dias antes e terminando a sessão com vivas a El-Rei e ao capitão-general, e por último um solene Te Deum na Sé Catedral. Triste servilismo do género humano! O cadáver de Araújo ficou por muito tempo exposto aos insultos duma


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soldadesca desenfreada, até que, por ordem de Caetano Paulo Xavier, foi conduzido, de rastos, para um quarto próximo, onde esteve servindo de irrisão aos inimigos do governo constitucional. O ajudante Manuel José Coelho, compadecido do fim tão desgraçado do seu ex-general e repugnando-lhe aqueles atos de selvajaria, mandou sepultar o cadáver à sua custa, na igreja do castelo, que estava profanada por um incêndio que teve lugar no dia 28 de setembro do ano de 1818, e sem que ao menos lhe fossem prestadas as honras militares. Os bens do general Araújo foram todos confiscados por ordem de Stockler e presos os seguintes indivíduos: D. Marquesa Ermelinda Pinto de Araújo, D. Francisca Ludovina de Araújo, D. Rosa Angélica de Araújo, D. Margarida Amália de Araújo, D. Joana Máxima Gualberto, irmã de Máximo José Pereira, a criada Catarina de Sena, tenente Agapito Pamplona Rodovalho, tenente Mateus Homem, alferes Manuel José Ferreira de Sampaio, desembargador Alexandre de Gamboa Loureiro, tenente-coronel engenheiro José Carlos de Figueiredo, o morgado José Leite Botelho de Teive, juiz de fora Eugénio Dionísio Mascarenhas Grade, major João Silveira Machado, capitão Luís Manuel de Morais Rego, capitão Luís Diogo Leite Botelho de Teive, Padre José de Paula Leite, Padre Manuel Elias, Padre Joaquim José Silveira, tenente António Homem da Costa Noronha, tenente Manuel Homem da Costa Noronha, tenente Luís de Barcelos, tenente João Pinto de Araújo, cirurgião-mor Luís António de Oliveira, ajudante Francisco José da Cunha, quartel-mestre Tomás José dos Reis, alferes José António da Silva, alferes Alexandre da Gama Pimenta, alferes Francisco Augusto da Silva, cadete Manuel Gustavo de Barcelos, sargento António Luís de 'Amaral Frazão, o soldado Francisco Pereira, Máximo José Pereira, Inácio Quintino de Avelar, Guilherme Quintino de Avelar, Martiniano Evaristo Serpa, Fernando de Sá Viana, Alexandre de Oliveira, Tomás José da Silva, José Maria da Silva, José Inácio da Silveira, António Joaquim da Costa, José Lourenço Justiniano, os criados João António e António dos Santos, e, por último, o carcereiro da cadeia José Narciso Lopes, por ser humano com os presos que ali se achavam, permanecendo com ferros nos pés, mãos e pescoço durante vinte e um dias. Todos estes constitucionais foram metidos em lugares imundos e maltratados; e, durante muitos dias, ninguém esteve seguro em suas casas, porque a soldadesca a tudo dava busca, para prender os constitucionais. Stockler conseguira impor-se ao povo terceirense, com o seu despotismo, patenteando claramente o seu carácter perverso. Encheram-se as cadeias públicas e os cárceres particulares, ficando todos incomunicáveis e algumas casas fechadas e pregadas, sem se atender a foros, privilégios ou graduações. A 9 de abril dirigia Stockler a seguinte proclamação aos angrenses:


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«Francisco de Borja Garção Stockler, do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima, Tenente-General dos Seus Exércitos, Comendador da Ordem de Cristo, Governador e Capitão-General das ilhas dos Açores, etc. — Nobres e leais Angrezes! Se a contra-revolução operada pelos valorosos Soldados dos Batalhões de Artilharia e Infantaria desta Cidade, a quem a minha presença no dia 3 do corrente mês acabou de determinar ao heroico esforço com que salvaram a sua Pátria dos horrores da Anarquia, e lavaram uma grande parte dos seus Camaradas da vergonhosa mancha que momentaneamente haviam contraído, deixando-se seduzir pelos artífices da Perfídia; se esta pasmosa reação política e militar, talvez sem exemplo nos anais das nações civilizadas, restituiu a ordem civil, e a regularidade da Administração do Estado; nem por isso tem ainda perfeitamente restabelecido a pública tranquilidade. Os Soldados, que em triunfo me levaram ao Castelo de São João Baptista, ainda não consideram a minha presença segura, e ao abrigo de novas traições, senão dentro daquela Fortaleza e rodeado de seus valentes braços. Receios muito gerais, que os bons não ousam ocultar-me, e avisos sérios por muitas partes repetidos; me anunciam, se não a existência provada, ao menos a desconfiança prudente, de que existem com efeito atraiçoados projetos tendentes a precipitar-vos de novo no abismo da desordem, privando-vos, por meio de um aleivoso assassino, do único ponto de apoio da Balança política deste Estado, e do único centro de reunião de vossos generosos esforços. Sem acreditar absolutamente, nem temer como homem, estes funestos anúncios e melancólicas desconfianças, cumpre-me contudo, como vosso General e vosso Governador político, tomar as necessárias medidas para que se tão covardes sentimentos e tão vis e infames ideias tem com efeito entrado em alguns ânimos depravados, não hajam de afetar a ordem política, nem tornar vacilante a pública segurança. É com este prudente e justificado intento, que eu vos anuncio hoje, oh Angrezes, por meio desta Proclamação, que o vosso General permanece constante no sistema de humanidade, moderação e brandura, que adotou desde que apareceu entre vós. Que fiel aos sentimentos de comiseração de que já vos tem dado sobejas provas, está determinado não só a dar aos réus todos os meios de defesa que as Leis Civis deste Reino lhes permitem, mas a implorar em favor de todos a Clemência do nosso beneficentíssimo Soberano, a fim de moderar-lhes as penas em que se acham incursos. Porém Angrezes, é preciso que saibais que a Clemência é uma virtude em quanto se aplica a melhorar o carácter moral dos Criminosos mas que deixa de o ser logo que, segurando a impunidade, só serve de animá-los a cometer afoitamente novos crimes. Para que os réus se qualifiquem dignos da Clemência, é mister que, deixando de relutar contra as Leis, se


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mostrem submissos às suas determinações: e portanto cumpre-me advertir-vos, para inteligência dos que tendes relações de parentesco ou aderência com alguns dos Culpados, que todas e quaisquer tentativas para subtraí-los ao castigo por meios que as Leis reprovam, são novos crimes que se acumulam aos primeiros, e que só devem servir para agravar-lhes as penas, ou para fazê-las extensivas a todos os que se abalançarem a tão repreensíveis intentos. Eu vos declaro portanto, que a continuação de indícios de projetos que possam pôr de novo em risco a segurança e a tranquilidade pública, facilitando a evasão de qualquer dos culpados, será motivo suficiente para que eu, retirando a proteção das Leis civis daqueles que por seus procedimentos a renunciam de facto, me limite em seus processos simplesmente aos termos do Direito Natural. Sabei pois, oh Angrezes, que se os réus ou seus aderentes continuarem a procurar meios de comunicar-se clandestinamente entre si; ou se ao meu conhecimento chegarem indícios veementes de projetos perigosos por quaisquer deles traçados; organizarei sem demora uma Comissão Militar, aonde sejam sumarissimamente julgados, e em consequência de cujas sentenças sejam imediatamente punidos. Firmar a segurança do Estado, sem ofensa dos princípios do Direito Natural, é no meu conceito o primeiro dos meus deveres. Tenho-vos manifestado os meus sentimentos: refleti sobre as minhas razões: fazei-vos dignos, pela vossa fidelidade e constância, da confiança do vosso Soberano, e da estimação e respeito não só dos homens que hoje vivem, mas da posteridade inteira. — Angra, 9 de abril de 1821.» Demitiu também alguns oficiais sem culpa formada, suspendendo o soldo a outros, e foi tal o rancor de Stockler, que chegou a comprar, à custa da Fazenda Nacional, um navio inglês, por dois contos de reis, no qual mandou fazer camarotes nos porões, grilhões e algemas, para remeter para o Rio de Janeiro todos os presos que ali coubessem. Por mais de quarenta dias jazeram as vítimas do infame Stockler nas frias masmorras, até que no dia 13 de maio de 1821, fundeou no porto de Angra a fragata Pérola, com a notícia oficial do Decreto do Juramento constitucional, prestado por Sua Majestade D. João VI e com ordens para Stockler e para Bispo, para se instalar o respetivo governo. Tentou Stockler reagir, fingindo não acreditar, mas perante as ordens tão categóricas, deu-se por convencido, induzindo a tropa e o povo a declararem que não consentiam no seu embarque nem do Bispo, para ficarem adidos ao governo. No dia 15 de maio de 1821, era instaurado na Câmara de Angra o novo Governo Constitucional, pronunciando Stockler o seguinte discurso:


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«Nobres e leses Angrezes! — Raiou finalmente o dia da concórdia. Já não existe motivo algum para que hesiteis em reconhecer a Constituição sobre que trabalham as Cortes de Lisboa a fim de ligar por vínculos indissolúveis os diversos Povos e Estados que compõem a Monarquia portuguesa. O nosso amado Soberano, a quem tendes dado à face do mundo inteiro os mais irrefragáveis testemunhos do vosso amor e fidelidade, adotou finalmente a mencionada Constituição, e a manda observar em todos os Domínios do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, pelo seu Real Decreto de 24 de fevereiro próximo passado, o qual ontem foi por mim lido nesta Sala na vossa presença. É mister que, constantes do nosso respeito ao tão digno Monarca, e firmes na subordinação que deveis a Seus Régios Mandados, vos presteis de bom grado a jurar a devida obediência às Bases da Constituição, as quais também vos serão lidas com a mesma publicidade, bem como às Leis que delas hão-de ser deduzidas pelos sábios e zelosos varões portugueses que se acham encarregados de tão augusta tarefa. Uma Constituição é a coleção das Leis fundamentais que naturalmente se derivam dos princípios do Direito Natural e dos fins para que os homens se ajuntam em Sociedades Civis. A Liberdade, a Segurança, e a Propriedade, são os três grandes bens que as Leis constitucionais têm em vista para dar-lhes a maior estabilidade possível. A Liberdade, é o poder de exercitar sem temor de castigo ou censura legal todas as ações que Leis não proíbem. A Segurança, é o resultado da proteção que as mesmas Leis dão à tranquilidade interna dos Povos, e da energia e sabedoria com que dispõem e providenciam a sua defesa externa. A Propriedade finalmente, consiste na fruição pacífica do fruto dos talentos, indústria e trabalhos pessoais, e da posse e domínio dos bens moveis ou imóveis, rurais e urbanos, que a cada um de direito pertencem. Eis aqui, Nobres e Leais Angrezes, os bens que a Constituição se dirige a segurar-vos. Os Povos que por Leis sábias, claras e bem ordenadas, conseguirem firmar a posse destes três preciosíssimos objetos, são os únicos que verdadeiramente podem dizer-se venturosos. Mas esta felicidade não pode jamais conseguir-se, se as Leis destinadas a esse fim não são conformes aos princípios da Religião e da Moral, cuja perfeição aquela tem unicamente em vista. Esta é a razão pela qual os sábios Legisladores que hoje se acham congregados em Lisboa rematam todas as suas Proclamações, e atos de pública solenidade, dando vivas à Religião, ao Rei, e à Constituição; porque sem Religião, sem Leis conformes a esta, e sem um sábio, prudente, reto e imparcial executor delas, não pode haver um Povo que seja feliz. A vossa felicidade é o objeto dos desvelos dos vossos Concidadãos congregados em Lisboa para formarem as Leis constitutivas da Monarquia: aquelas Leis que, assegurando os direitos imprescritíveis dos homens, são de sua natureza as menos sujeitas a mudanças, e das quais todas as outras devem ser derivadas segundo circunstâncias dos


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Povos a que se aplicam. É mister portanto, Ilustres Angrezes, que todos prestemos às Leis fundamentais da Monarquia e às suas Bases o mais profundo respeito e fiel obediência; e é por isso que a Nação inteira, de acordo com o nosso amabilíssimo Soberano, exige que a nossa promessa de obedecer-lhes e respeitá-las seja vigorizada pela santidade do juramento que a torna sagrada. Nós vamos pois jurar à face de Deus vivo, e daquele ser eterno a quem tudo é presente, de quem todos dependemos, e que é testemunha e há-de ser juiz de todas as nossas ações, a obediência devida às Leis que, de acordo com a sua Santa Religião, hão-de fixar a nossa futura felicidade. O vosso Governador e Capitão-General, cheio de júbilo e penetrado do respeito devido a um ato tão venerando, vai dar-vos exemplo, sendo o primeiro que, pondo a mão nestes sagrados Evangelhos, jura obediência firme e constante às Bases da Constituição portuguesa, à Constituição mesma, e às Autoridades pelas Cortes constituídas. Em consequência deste juramento que espontaneamente acabo de dar na vossa presença, a primeira prova que me cumpre dar-vos e à Nação inteira á a de resignar desde já o Governo destas Ilhas nas mãos das pessoas que a Lei chama para exercê-lo na minha falta ou ausência, em conformidade do que a Regência do Reino me ordena e da deliberação que já ontem vos anunciei neste mesmo lugar.» Vendo Stockler que nada mais tinha a fazer, mandou pôr em liberdade os presos políticos, suplicando às Cortes o perdão para os seus crimes. Ficaram servindo de membros do Governo Provisório, os seguintes cidadãos: deão José Maria de Bettencourt e Lemos; João Bernardo Rebelo Borges, corregedor; e Caetano Paulo Xavier governador do castelo; ficando adidos ao mesmo governo, o Bispo D. frei Manuel Nicolau de Almeida e o general Francisco de Borja Garção Stockler.


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