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Memórias Póstumas de Brás Cubas/LIV

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Saí dalli a saborear o beijo. Não pude dormir; estirei-me na cama, é certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu perdia o somno, o bater da pendula fazia-me muito mal; esse tic-tac soturno, vagaroso e secco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dous saccos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dal-as á morte, e a contal-as assim:

— Outra de menos..

— Outra de menos...

— Outra de menos.

— Outra de menos.

O mais singular é que, se o relogio parava, eu dava-lhe corda, para que elle não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos. Invenções ha, que se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relogio é definitivo e perpetuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, hade ter um relogio na algibeira, para saber a hora exacta em que morre.

Naquella noite não padeci essa triste sensação de enfado, mas outra, e deleitosa. As phantasias tumultuavam-me cá dentro, vinham umas sobre outras, á semelhança de devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os minutos ganhados; e de certo tempo em diante não ouvi cousa nenhuma, porque o meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janella fóra e bateu as azas na direcção da casa de Virgilia. Ahi achou no peitoril de uma janella o pensamento de Virgilia, saudaram-se e ficaram de palestra. Nós a rolarmos na cama, talvez com frio, necessitados de repouso, e os dous vadios alli postos, a repetirem o velho dialogo de Adão e Eva.