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Memórias duma Mulher da Época/Dialogo entre a materia e o espirito duma mulher bonita

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Dialogo
Entre a materia
e o espirito duma
mulher bonita



 
O espirito, trovejando:

Vejamos! Que novo delicto perpetraste esta tarde? Ha mais alguma fraqueza indesculpavel a juntar a tantas outras que tens tido ?!

A materia, um tanto fatigada:

Pois bem, confesso! Pequei mais uma vez e, como das outras vezes, não me sinto arrependida. Peço-te que não sejas intolerante para comigo; tive hoje tantas voltas a dar, tantas compras a fazer, tantos beijos a receber e a retribuir, que me sinto extenuada.

O espirito, colerico:

Sempre essa falta de firmeza que me vexa, que me deshonra! Sempre esse maldito vicio de seduzir os homens, de querer ser amada não por um só, que a isso fecharia eu os olhos, mas por dez, por vinte, por mil, por todos!

A MATERIA, indolente:

Meu Deus! Se eu acho isso tão natural! E, depois, não é bem o que dizes; não sou eu que quero seduzir os homens; eles é que me exigem que eu os ame. Que culpa tenho eu de possuir uns olhos fosforescentes e uns cabelos encaracolados?

O ESPIRITO:

Embevecida com os teus atractivos, esqueces-te de examinar os teus defeitos. Essa boca é demasiado rasgada, esse nariz não tem, certamente, a pureza de forma do de Lais.

A MATERIA, num riso brando:

Mas se eles gostam assim ! Que hei-de fazer?! Tu sabes bem se eles gostam ou não! Creio que já passaste uma vista de olhos ás inumeras cartas amorosas que tenho recebido até hoje de mil adoradores e que conservo, cuidadosamente, naquele cofre que está sobre o toucador.

O ESPIRITO:

Nunca pensaste que eles mentem, na sua maioria?

A MATERIA:

Que importa, se eu tambem lhes minto quasi sempre?

O ESPIRITO:

Vamos a saber: quem é o teu heroi de hoje?

A MATERIA:

Um Galeno do seculo, feio como um tartaro e perspicaz como La Bruyère.

O ESPIRITO, revoltado:

E' incrivel! Um materialista! Nunca poderei harmonizar-me com o espirito dele!

A MATERIA:

Eu sei isso; foi por essa razão que não te consultei antes de aceitar os seus galanteios. Trata-se, desta vez, duma ligação absolutamente material, que eu aceitei, por estar desejosa de saír da dieta espiritual e romantica a que me condenou aquele ingenuo vate que sabes, dieta que parecia eternisar-se e que por fim me aborreceu.

O ESPIRITO:

Eu preferia esse, na sua afeição pura e candida...

A MATERIA:

E eu suportei-o tanto tempo só para te dar prazer. Agora entendo, porém, que é chegada a ocasião de pensar em mim.

O ESPIRITO, reflectindo:

O que nos convinha a ambos era um homem que a ambos contentasse e cuja materia estabelecesse um certo equilibrio com o proprio espirito. Só assim se acabariam todas essas vergonhas por que me fazes passar.

A MATERIA, entusiasmada:

Quem mo dera! Julgas que não penso tambem nessa solução, imaginas que me não preocupo comtigo?! Mas onde está essa preciosidade, onde pára essa Fénix que ainda não logrei descobrir? Queres tu encarregares-te de a procurar?

O ESPIRITO, envergonhado:

Não... Olha: parece-me que para esse efeito tu tens, realmente, mais habilidade.

A MATERIA, desapontada:

Julgava que para essas descobertas eras tu o mais competente de nós dois !

O ESPIRITO:

Deves compreender que eu só não basto. Parece-me, até, que sem ti muito pouco conseguiria. Para as primeiras impressões, tu; para depois, cá estou eu e, em seguida, ajudando-nos mutuamente, talvez possamos obter a felicidade. Como temos vivido até hoje, isto é, descontentes ora um ora outro, é que não podemos continuar. Tu tens procedido até agora vergonhosamente, vexando-me quasi todos os oito dias. Eu, ao menos, nunca te ofendi e, pelo contrario, muitas vezes tenho dado ensejo a que te sintas lisongeada.

A MATERIA:

Apezar de todas as bonitas coisas que tens proferido, eu mentiria se te não dissesse que me acho bem no pecado, se te não afirmasse que o pecado me parece muito humano, muito natural. Não vejo por que razões devas envergonhar-te de coisas que me não envergonham a mim. Da minha parte, confesso-te que ás vezes me sinto receosa quando te vejo a caminho duma mentira escusada ou duma hipocrisia inutil; fico doida de alegria quando consegues evitar essas pequeninas baixesas e quando sucede não poderes furtar-te à tentação do delicto, oh!— então cabe-me a vez de me envergonhar!

O ESPIRITO, tartamudeando:

Mas... não vejo necessidade de recriminações desse genero. Defeitos, temo-los ambos e eu não me suponho impecavel ao censurar os teus erros. (firme) Alem disso, os delictos da matéria são geralmente muito mais perniciosos á humanidade do que os do espirito; quantas lagrimas, quantos rancores, quantos crimes eles teem causado! Não estarás de acordo?

A MATERIA, insinuante:

Estamos de acordo em muito mais coisas do que parece. (felina) Ora dize, dize lá: no teu intimo não desculpas inteiramente, muitas vezes, aquilo a que chamas os meus erros?

O ESPIRITO:

Sempre te tenho dito que não transijo com as tuas fraquezas.

A MATERIA:

Transiges, transiges... As tuas repreensões são motivadas, principalmente, pela tua obediencia aos preconceitos; quasi nunca pelo teu verdadeiro sentir.

O ESPIRITO:

Chamas preconceito a coisas necessarias e justas...

A MATERIA:

Sim... coisas necessarias e justas, contra as quaes todos nós nos revoltamos, em segredo. Tu não me enganas sempre que o queres, fica sabendo. Mais ainda: não só não reprovas intimamente muitos dos meus actos, como até os achas naturalissimos, mesmo quando me censuras acremente e me diriges palavras violentas. Ora confessa, confessa isto mesmo, que agora ninguem nos ouve...

O ESPIRITO, desviando o assunto:

Pelo que observo, já te não sentes fatigada. Vejo-te tão viva!...

A MATERIA:

A prova de que o estou é que vou repousar. Vem comigo, vamos dormir, sim? Que belo sono faremos, muito amigos, sem discutir, sem nos zangarmos! Quando conseguiremos nós viver em harmonia, mesmo acordados?

O ESPIRITO:

Quando tivermos encontrado a rara avis de que ha pouco falámos: o homem de espirito e materia equilibrados, que nos venha equilibrar aos dois.

A MATERIA:

Quem mo dera! Vamos procura-lo já ámanhã?

O ESPIRITO, ironico:

E o Galeno?

A MATERIA, com vivacidade:

Não gosto dele, não gosto! Foi apenas um desfastio. Anseio pelo outro tanto como tu!

O ESPIRITO:

Sim? Vamos dormir.

A MATERIA:

Vamos, mas amanhã principiamos a procurar, sim?

O ESPIRITO:

Sim. Vamos dormir.

 

Lisboa, 1923.