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Memórias duma Mulher da Época/Diana de Lis vista por Marta M. da Camara

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Diana de Liz
vista por Marta
M. da Camara


 

Aí por 1924, numa tarde luminosa e enternecidamente poética de Setembro, uma destas tardes em que o céu entorna sobre a terra, prodigiosamente, as suas ultimas migalhas de oiro, eu tive ensejo de conhecer essa gentilissima figura de mulher que foi Maria Eugenia Haas da Costa Ramos.

Foi-me apresentada por meu pai, na sua casa da rua Nova do Loureiro. Tenho presentes na memoria, como se essa visão fosse de ontem apenas, a graça da sua figura, a dôce melancolia dos seus olhos enormes e profundos e, sobretudo e acima de tudo, um ar supremo de desprendimento e modestia que eram o maior penhor de conquista para quantos a abordassem.

Quando ela saíu, meu pai teceu-lhe os maiores elogios em palavras que conservo na memória: «A Mimi Haas é um talento. As suas crónicas publicadas no Correio da Manhã sob a epígrafe de «Pedras Falsas», são verdadeiras joias do maior apreço... E tão grande o seu valor como a sua modestia!»

Dobou o tempo, passaram-se os anos neste torvelinho insano que nos arrasta insidiosamente e com tal perversidade que nos faz parecer, por vezes, eterno o espaço de uma hora, para se assemelhar á fulguração de um instante quando olhamos para traz a interrogarmos, surpresos, sôbre a rapidez da Vida...

Da ultima vez que estive em Lisboa, aí por 1931, eu soube que desaparecêra prematuramente do número dos vivos o vulto inconfundivel de Diana de Liz, que ficará sendo, indiscutivelmente, como um dos maiores valores literários femininos da nossa terra.

Casualmente, e na propria rua Apeles Espanca, onde os lindos olhos de Maria Eugenia se apagaram de vez, renunciando ás visões d'este mundo, eu tive conhecimento da triste notícia.

E' estranho aquele acontecimento, participado em meia duzia de palavras, ficou ecoando nos meus ouvidos como o estrondo de uma derrocada...

Volvido um ano ou pouco mais, surge á luz da publicidade, na ingrata feira da literatura, o volume das Pedras Falsas, de Diana de Liz.

Nunca poderei esquecer a persistencia com que os meus olhos leram e releram e teimosamente se fixaram sôbre as cinco folhas do seu Prefacio, que são o melhor acompanhamento, a mais delicada e sentida sinfonia de abertura que poderia dar-se á obra verdadeiramente magistral e de tão grande significado literário.

Ferreira de Castro, erguendo bem alto o calix da sua amargura, fê-lo num gesto inesquecivel que foi a melhor homenagem do coração amante e saudoso de um homem.

Ferreira de Castro falou de maneira que nos obrigou a chorar com êle uma dôr verdadeiramente sobrehumana! Dez paginas que são a mortalha de flores mais mimosa, mais enternecida e mais linda que jámais se desfolhou sobre a campa de uma mulher.

Não é preciso conhecer as ciências nem falar as línguas estranhas para entender aquele brado que é de entendimento universal, cujo sentido cabe dentro de todas as religiões e no limite de todas as almas:

«O' vós todos que passais, atendei e vêde se ha dor igual á minha...»

De facto, é dificil encontrar uma antecâmara de dôr onde se sinta mais intensa, perduravel e cruciante a mágua da Saudade!

Ainda pertenço ao grupo, cada vez mais restrito e feliz, das mulheres que acreditam no vinco da superioridade que sublinha a inteligencia do homem e o põe, para nossa ventura, em plano superior donde possa debruçar-se sobre a nossa vida, realizando a imagem da árvore que dá sombra, do manto que abriga, da voz que comanda, do braço que protege... Como mulher, sinto que esse vinco de superioridade nos foi equiparado por um dom de presciencia, uma especie de sexto sentido que afina pela sensibilidade de cada alma feminina. E porque assim o creio, foram bem sentidas as lagrimas silenciosas que me arrancou o prefacio de Ferreira de Castro.

Há nada que comova mais uma mulher como vêr chorar um homem?

Atravez de essas paginas senti ainda como devia de ter sido dificil o arrancar da vida de quem na vida tinha raizes tão profundas!

Não há nada melhor do que sentirmo-nos amados, é certo, mas haverá dôr mais cruel do que partir para a viagem de onde se não volta, deixando no mundo, a sofrer, a melhor parte do nosso coração, debatendo-se como uma aza presa e constantemente lacerada na ansia de voar?

 

Pedras Falsas, quer nos seus «Dialogos Novelescos», quer nas suas «Cartas Femininas», quer nas suas «Pequenas Novelas», quer nas suas espirituosas «Crónicas», é a obra de um altissimo interesse, que fica como monumento indestrutivel á memoria saudosa de Maria Eugenia Haas da Costa Ramos.

A Ferreira de Castro devemos a publicação de este volume encantador. A ternura com que o fez e as palavras de carinho e de saudade de que acompanhou tão interessante realisação, são bem a mais delicada e completa homenagem do coração amante de um homem a esse altíssimo espírito da mulher — «o unico brinde que a vida lhe fez!»

 
Marta de Mesquita da Camara
 

— Do Primeiro de Janeiro, do Porto —