Memórias duma Mulher da Época/Folhas de Outono (Diálogo entre o coração e a razão duma mulher)
— Porque choras?
― Porque morreu o meu maior amôr.
— Ah!... Que alívio para mim! E de que morreu?
— Á mingua de emoções...
— Quem o matou ?
— O hábito e o cansaço.
— E sentes uma tão profunda mágoa?! Devias exultar, como eu exulto, por ficares liberto dêsse sentimento absorvente, sufocante, que plenamente te preencheu, em tempo.
— Pois se a unica razão de existir, para aquela cujo delicado côrpo completamos, é o amôr, e se sempre a minha influência sobre ela tem sido incomparavelmente maior do que a tua, se nêste momento as lágrimas lhe brotam dos olhos lindos com a mesma abundancia com que dantes os beijos lhe brotavam da boca vermelha, como não hei-de chorar, tambem torturado, ao reconhecêr-me na mais completa impotencia de fazer reflorir êsse amor?!
— Mas se sofreste imensamente, enquanto esse amôr viveu, como sofres agora, que já não o sentes?!
— E como póde a razão mais lúcida explicar os mistérios dum coração de mulher?
— E' verdade isso que dizes, embora um tanto humilhante para mim... Mas ainda bem que já posso falar, reflectir, trabalhar, o que não sucedeu enquanto durou em ti êsse sentimento cuja morte deploras e que me aniquilava, imperando despóticamente no sêr encantador de que fazemos parte... Estou radiante!
— E estou inconsolável. Lembrar-me de que tanto vibrei, de que tão intensamente vivi, de que fui sus- ceptivel das maiores dedicações, dos mais estranhos sacrificios, dos mais loucos impulsos, e encontrar-me agora vasío, árido, espreitado de perto pela dúvida e arrefecido pela ingratidão, não será doloroso, indi- sivelmente doloroso?"!
— Não sei...
— E, é desoladôr. Tu disséste-me, há pouco, que sofri durante o tempo que viveu o grande afecto que nêste momento chóro; sofri, sim, mas quem me déra outra vez êsse sofrimento! Porque é muito melhor sofrer por amôr do que sofrer pela ausência de afeições. Antes mil vezes as perturbações duma paixão do que a impressão desconsoladora do vácuo, da aridez... Que pêna, que pêna imensa a de não poder dar nova vida a um afecto morto, fossem quais fôssem as consequências dessa ressurreição!
— Vejo, com efeito, que a recordação dêsse sentimento extinto te agita ainda, mas lembra-te de que, tendo sido o teu maior amôr, não foi o teu único amôr... Recordo-me bem doutros que mais ou menos te têm perturbado; sei de mil febres amorosas, de curta duração mas de grande violência, que me obscureciam e manietavam, sem que eu pudesse reagir...
— E' certo, tudo isso tenho sentido. E é tão triste vêr crestados pelo sôpro ardente da Vida, cortados pela foice cruel do Desengano, os tenros e viçosos rebentos dum coração todo amôr, todo ternura !...
— E talvez, tambem, todo capricho... (O coração finge não ouvir. Silêncio prolongado).
— Tantos sonhos lindos arrebatados pelo vento agreste da desilusão...
— Que te constipou...
— O momento não é para gracejos.
— Deixa essas reflexões pessimistas. Largos anos de mocidade te esperam ainda e, se bem que a meu pezar, novos amôres te esperam tambem...
— Talvez... para terem o mesmo fim... para acabarem, murchos, sêcos, dispersos pelo vento!
— Como folhas de outono.
— Como folhas de outono...
Lisboa, 1923.