Memorial de Aires/1888/LVIII

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Ora bem, a viúva Noronha mandou uma carta a D. Carmo, documento psicológico, verdadeira página da alma. Como eles tiveram a bondade de mostrar-ma, dispus-me a achá-la interessante, antes mesmo de a ler, mas a leitura dispensou a intenção; achei-a interessante deveras, disse-o, reli alguns trechos. Não tem frases feitas, nem frases rebuscadas; é simplesmente simples, se tal advérbio vai com tal adjetivo; creio que vai, ao menos para mim.

Quatro páginas apenas, não deste papel de cartas que empregamos, mas do antigo papel chamado de peso, marca Bath, que havia na fazenda, a uso do pai. Trata longamente dele e das saudades que ela foi achar lá, das lembranças que lhe acordaram as paredes dos quartos e das salas, as colunas da varanda, as pedras da cisterna, as janelas antigas, a capela rústica. Mucamas e moleques deixados pequenos e encontrados crescidos, livres com a mesma afeição de escravos, têm algumas linhas naquelas memórias de passagem. Entre os fantasmas do passado, o perfil da mãe, ao pé o do pai, e ao longe como ao perto, nas salas como no fundo do coração, o perfil do marido, tão fixo que cheguei a vê-lo e me pareceu eterno.

Vou reconhecendo que esta moça vale ainda mais do que me parecia a princípio. Não é a questão de amar ou não o defunto marido; creio que o ame, sem que essa fidelidade lhe aumente a pureza dos sentimentos. Pode ser obra dele, ou dela, ou de ambos a um tempo. O maior valor dela está, além da sensação viva e pura que lhe dão as coisas, na concepção e na análise que sabe achar nelas. Pode ser que haja nisto, da minha parte, um aumento de realidade, mas creio que não. Se fosse nos primeiros dias deste ano, eu poderia dizer que era o pendor de um velho namorado gasto que se comprazia em derreter os olhos através do papel e da solidão, mas não é isso; lá vão as últimas gabolices do temperamento. Agora, quando muito, só me ficaram as tendências estéticas, e, deste ponto de vista, é certo que a viúva ainda me leva os olhos, mas só diante deles. Realmente, é um belo pedaço de gente, com uma dose rara de expressão. A carta, porém, dá a tudo grande nota espiritual.

Acredito que D. Carmo sinta essa dama como eu a entendo, mas desta vez o que lhe penetrou mais fundo foi o cumprimento final da carta, as três últimas palavras, anteriores à derradeira de todas, que é o nome: "da sua filhinha Fidélia". Percebi isto, vendo que ela desceu os olhos ao fim do papel três ou quatro vezes, sem querer acabar de o dobrar e guardar.