O Anjo Rafael/V

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Quando o doutor se achou só no quarto entrou a meditar na situação conforme se lhe desenhara ela depois da conversa com o major. O velho parecia-lhe singularmente extravagante, mas falava-lhe do pai, mostrava-se afável, e afinal de contas oferecia a filha e uma riqueza. O espírito do moço estava mais um pouco tranqüilo.

É verdade que ele opusera objeções à proposta do velho, e parecera agarrar-se a todas as dificuldades, por menores que fossem. Mas eu não posso ocultar que a resistência do rapaz era talvez menos sincera do que ele próprio pensava. A perspectiva da riqueza disfarçou por algum tempo a singularidade da situação.

A questão agora era ver a moça; se fosse bonita; se tivesse uma fortuna, que mal havia em se casar ele com ela? O doutor aguardou a hora do jantar com uma impaciência a que já não eram estranhos os cálculos da ambição.

O criado tinha-lhe posto à disposição um guarda-roupa, e meia hora depois serviu-lhe um banho. Satisfeitas essas necessidades de asseio, o doutor deitou-se na cama e tirou à vontade um dos livros que se achavam sobre a mesa. Era um romance de Terrail, adormeceu logo à segunda página.

Quando acordou era tarde; recorreu ao relógio, e achou-o parado; esquecera-se de lhe dar corda.

Receava que o criado o tivesse vindo chamar, e se retirasse por encontrá-lo a dormir. Era estrear mal a sua vida na casa de um homem que talvez fizesse dele aquilo de que já nem tinha esperanças.

Imagine-se, pois, a ansiedade com que ele esperou as horas.

Valia-lhe, porém, que, apesar dos receios, a sua imaginação trabalhava sempre; e era de ver o quadro que ela desenhava no futuro, os castelos que construía no ar; credores pagos, casas magníficas, salões, bailes, carros, cavalos, viagens, mulheres enfim, porque nos sonhos do dr. Antero havia sempre uma ou duas mulheres.

O criado veio enfim chamá-lo.

A sala do jantar era pequena, mas ornada com muito gosto e simplicidade.

Quando o doutor entrou não havia ninguém; mas pouco depois entrou o major, já vestido com uma sobrecasaca preta abotoada até o pescoço e contrastando com a cor branca dos seus cabelos e bigodes e a tez pálida do rosto.

O major sentou-se à cabeceira da mesa, e o doutor à esquerda; a cadeira da direita estava reservada para a filha do major.

Mas onde estava a moça? O doutor quis fazer a pergunta ao velho; mas reparou a tempo que a pergunta seria indiscreta.

E sobre indiscreta, seria inútil, porque alguns minutos depois abriu-se uma porta que ficava fronteira ao lugar em que o doutor estava sentado, e apareceu uma criada anunciando a chegada de Celestina.

O velho e o doutor levantaram-se.

A moça apareceu.

Era uma figura delgada e franzina, nem alta nem baixa, mas extremamente airosa. Não andou, deslisou da porta à mesa; seus pés deviam ser asas de pomba.

O doutor ficou profundamente surpreendido com a aparição; até certo ponto contava com uma rapariga nem bonita nem feia, uma espécie de fardo que só podia ser carregado aos ombros de uma fortuna. Pelo contrário, tinha diante de si uma verdadeira beleza.

Era, com efeito, um rosto angélico; transluzia-lhe no semblante a virgindade do coração. Os olhos serenos e doces pareciam feitos para a contemplação; os cabelos louros e caídos em cachos naturais assemelhavam-se a uma auréola. A tez era alva e finíssima; todas as feições eram de uma harmonia e correção admiráveis. Rafael podia copiar dali uma das suas virgens.

Vestia de branco; uma fita azul, presa à cintura, delineava-lhe o talhe elegante e gracioso.

Celestina dirigiu-se ao pai e beijou-lhe a mão: depois cumprimentou sorrindo ao dr. Antero, e sentou-se na cadeira que lhe estava destinada.

O doutor não tirava os olhos dela. No espírito superficial daquele homem entrava a descobrir-se uma profundidade.

Pouco depois de sentar-se, a moça voltou-se para o pai e perguntou-lhe:

— Este senhor é o que vai ser meu marido?

— É, respondeu o maior.

— É bonito, disse ela sorrindo para o rapaz.

Havia tanta candura e simplicidade na pergunta e na observação da moça, que o doutor voltou instintivamente a cabeça para o major, com ímpetos de perguntar-lhe se devia acreditar nos seus ouvidos.

O velho compreendeu o espanto do rapaz, e sorriu maliciosamente. O doutor olhou outra vez para Celestina, que o contemplava com uma admiração tão natural e tão sincera, que o rapaz chegou... a corar.

Começaram a jantar.

A conversa começou tolhida e esquerda, por causa do doutor, que caminhava de espanto em espanto; mas dentro de pouco tornou-se expansiva e franca.

Celestina era a mesma afabilidade do pai, realçada pelas graças da juventude, e mais ainda por uma singeleza tão agreste, tão nova, que o doutor se julgava transportado a uma civilização desconhecida.

Quando acabaram o jantar passaram à sala da sesta. Chamava-se assim uma espécie de galeria de onde se descortinavam os arredores da casa. Celestina deu o braço ao doutor sem que este lhe oferecesse e seguiram os dois adiante do major, que ia resmungando uns salmos de Davi.

Na sala da sesta sentaram-se os três; era a hora do crepúsculo; as montanhas e o céu começavam a despir os véus da tarde para vestir os da noite. A hora era propícia aos enlevos; o dr. Antero, posto que educado em outra ordem de sensações, sentia-se arrebatado nas asas da fantasia.

A conversa versou sobre mil coisas de nada; a moça disse ao doutor que tinha dezessete anos, e perguntou a idade dele. Depois, contou por menor todos os hábitos da sua vida, as suas prendas e seu gosto pelas flores, o seu amor às estrelas, tudo isso com uma graça que tirava um pouco da juventude e um pouco da infância.

Voltou-se ao assunto do casamento, e Celestina perguntou se o rapaz tinha dúvida em casar com ela.

— Nenhuma, disse ele; pelo contrário, tenho sumo prazer... é uma felicidade para mim.

— Que lhe disse eu? perguntou o pai de Celestina. Eu já sabia que bastava vê-la para ficá-la amando.

— Então posso contar que seja meu marido, não?

— Sem dúvida, disse o doutor sorrindo.

— Mas o que é marido? perguntou Celestina, depois de alguns instantes.

A esta pergunta inesperada, o rapaz não pôde reprimir um movimento de surpresa. Olhou para o velho major; mas este, encostado na larga poltrona em que se achava sentado, começava a adormecer.

A moça repetia com os olhos a pergunta feita com os lábios. O doutor envolveu-a com um olhar de amor, talvez o primeiro que teve em sua vida; depois pegou docemente na mão de Celestina e levou-a aos lábios.

Celestina estremeceu toda e soltou um pequeno grito, que fez acordar sobressaltado o major.

— Que é? disse este.

— Foi meu marido, respondeu a moça, que tocou com a boca dele na minha mão.

O major levantou-se, olhou severamente para o rapaz, e disse à filha:

— Está bem, vai para o teu quarto.

A moça ficou um pouco surpreendida com a ordem do pai, mas obedeceu imediatamente, despedindo-se do rapaz com a mesma descuidosa simplicidade com que lhe falara pela primeira vez.

Quando os dois ficaram sós, o major pegou no braço do doutor, e disse-lhe:

— Meu caro senhor, respeite as pessoas do céu; quero um genro, não quero um tratante. Ora, cuidado!

E saiu.

O dr. Antero ficou atônito com as palavras do major; era a terceira vez que lhe falava em pessoas ou enviados do céu. Que queria dizer com aquilo?

Pouco depois veio o criado com ordem de acompanhá-lo até o quarto; o doutor obedeceu sem fazer objeção.