O Beija-Flor (1830)/Número 8/1
LITTERATURA.
Os Barōes d՚Arnheim , cujo castello, tāo forte , como magnifico , era sito na margem direita do Danubio no Districto chamado Malla preta (forėt noire). Occupavāo-se , por gosto hereditario que passava de Pai , a Filho, d՚estudos mysteriosos , sem comtudo despresar os exercicios bellicosos , e os divertimentos da caça , unicas occupaçōes dos outros nobres allemāes aquella época.
Herman d՚Arnheim distinguio-se , entre toda sua nobre descendencia , pela paixāo simultanea com que se entregou ao estudo das sciencias secretas , e manejo das armas; elle se prezava de ter magnificas estrevarias , e de possuir o melhor ginete que jamais se vira em toda Allemanha. Nāo me seria possivel descrever por miudo semelhante animal: bastará dizer que era preto por inteiro , sem que da ponta do nariz á exiremidade das unhas se pudesse achar hum só pelo branco, rasāo porque, a vista do seu genio furioso , o Barāo lhe puzesse o nome d՚Apollyon, o que occultamente contribuio a acreditar a má fama que havia sobre os Barōes d՚Arnhein , accusados de entreter relações com entes da peor especie , quando se vio que este dava ao seu cavallo de maior estima o nome de hum demonio.
Aconteceo hum dia que , o Barāo tendo ido caçar na Matta , nāo voltou á caza senão de noite. Nāo havia neste momento nenhum hospede no castello , pois que raras vezes os donos admittiāo visitas que nāo fossem de homens doutos , dos quaes se podiāo aproveitar liçōes. O Barāo estava só no seu salāo , iluminado com toohas e alampadas. Em huma māo elle segurava hum livro cujos caracteres haveriāo de ser inentelligiveis para qualquer outro habitante do castello , ou mesmo do paiz. A outra māo descançava sobre huma meza de marmore , encima da qual se achava hum frasco de vinho de Tokai [1]: hum moço da Camara attendia em pé , em attitude respeitosa , no fundo do vasto aposento, no qual reinava huma meia escuridāo, e cujo silencio nāo era interrompido senāo pela zunida do vento que parecia gemer funebremente entre cotas d՚armas ferrugentas, e bandeiras em farrapos, que faziāo, a guarniçāo da salla feodal. De repente ouvio-se alguem que subia a escada com pressa , e susto. A porta abrio-se com violencia , e Gaspardo, inten dente das cavalarices , ou estribeiro mór do Barāo, apparecendo com as feições todas convulsas como medo, correo para a Meza, sobre a qual o amo se encostava, gritando:
— Excellentissimo Senhor! Excellentissimo Senhor! Ha hum diabo na cavallerice —
— A que vem esta loucura? Perguntou o Barāo, pondo-se em pé, admirado, e agastado de huma interrupçāo tāo extraordinaria, e fóra da etiquecta.
— Entrego-me à toda vossa ira, disse Gaspardo, se nāo digo a verdade; Apollyon.....
Elle parou.
— Falla, em nome de Deos ou do diabo, falla, dondo, gritou o Barāo: ter-te-ha o susto transtornado os miolos? Estará meu cavallo doente? Ou tem lhe acontecido alguma novidade
Tudo quando o estribeiro mór póde fazer, foi repetir — Apollyon!
— E quando Apollyon em pessoa estaria cá, nāo haveria nesta appariçāo nada que merecesse espantar hum homem corajoso.
— O diabo está ao lado d՚Apollyon! exclamou o chefe das cavallerices.
— Doudo, gritou o Barāo, lançando māo d՚huma tocha , que será o que te virou o juizo! Gentes da tua laya , nascidos para servir, deveriāo ter mais poder sobre sua cabeça, senāo por amor de si mesmo , ao menos por respeito as nossas pessoas.
Assim faltando , elle atravessou o patio para ir ter ás cavallerices que occupavāo toda a parte inferior do edificio , e nas quaes cincoenta cavallos d՚escolha, erāo alinhados de huma banda e d՚outra, Ao pé de cada hum d՚elles achava-se a panoplia completa de hum Gendarma , em tão bom estado , e tāo luzida que nāo podia o lustro ir a mais. O Barāo passou apresadamente no meio das duas fileiras de cavallos, acompanhado por dois criados que esta alerta inopinada acordára , e chegou ao pé do cavallo da sua paixāo , que ficava a outra extremidade da cavallerice à māo direita. O animal nāo rinchou , nem bateo a māo , nem sacudio a cabeça, nem deu sinal algum daquelles com que costumava saudar a visita do amo, e se pareceo reconhecel-o , foi porque deitou hum surdo gemido como implorando o seu valimento.
Herman alçou a techa e vio hum vulto alto, com a māo apoyada sobre a espadoa do cavallo.
— Quem es tu? Que queres tu cá? perguntou o Barāo.
— Eu procuro azilo e hospitalidade , respondeo o estrangeiro , e eu te peço isto pela espadoa do teu cavallo, e pelo fio da tua espada: assim elles jamais te faltem no dia da precisāo.
— Portanto hum irmāo do fogo sagrado , disse o Barāo d՚Arnheim. Não te posso negar o que pedes em conformidade do rito dos Magos. Contra quem e por quauto tempo pedes minha protecçāo?
— Contra aquelles que virāo em minha busca antes que o gallo cante, respondeo o estrangeiro , e pelo espaço de hum anno è hum dia á datar deste momento.
— Meu juramento, e minha honra nāo permittem que engeite teu peditorio. Eu pois te protegerei: hum anno, e hum dia tua cabeça terá por abrigo o meu treto. Sentar-te-has á minha meza , e beberás do meu vinho. Mas tu tambem deves obedecer ás vozes de Zoroastro. Da mesma forma que elle diz : « O mais forte protegerá o mais fraco » elle accressenta. « O mais sabio instruirá o de menor saber. » Eu sou o mais forte, e acharás proteiçāo no lugar da minha morada; mas tu es mais sabio , e deverás instruir-me nos mysterios mais occultos.
— Quereis divertir-vos à custa do vosso servo. Mas se Damnischemend souber alguma couza que Hlerman ignore , as instrucçōes que vos dêr serāo como de Pai a filho.
— Sahe pois do teu lugar de refugio. Eu juro pelo fogo sagrado que vive sem alimentos terrestres , pela fraternidade que existe entre nos, pela espadoa, do meu Cavallo, e o fio da minha espada, garantirei a tua segurança durante hum anno e hum dia, em quanto meu poder para isto tiver valimento.
O Estrangeiro sahio da cavallerice , e os que virão o seu aspecto estranho, nāo se admiravāo do susto que infundira em Gaspardo que topou de improviso com elle na estrivaria sem advinhar por donde tinha chegado. Depois de entrado no salāo aonde o Barāo o conduzio. com o mesmo ar , e ceremonias com que introduziria hum hospede respeitavel, cuja visita lhe seria summamente grata , vió se a luz das tochas que era hum anciāo alto , e de aspecto digno , e veneravel. Seu traje de moda asiatica , constava de hum ropāo preto de feitio armenio , e hum barreto quadrado de lāa preta dos carneiros d՚Astracāo ; servindo a cor escura dos vestidos a realçar a brancura da barba que lhe cubria o peito. O vestido era retido hum cinto de filó preto , no qual em vez de punhal , ou de alfange hum estojinho de prata , e hum rolo de pergaminhos estavāo retidos. O unico ornamento que trazia era hum rubim de tamanho acima do ordinario , e de tanto esplendor que a luz que reflectia parecia irradiar da sua substancia. O Barāo offereceo refresco ao estrangeiro; mas este respondeo :
— Nāo posso romper o pāo, nem levar huma pinga d՚agoa aos beiços , antes que o vingador tenha chegado á vossa porta. —
O Barāo depois de ordenar que renovassem o azeite das alampadas , e que accendessem novas tochas ; mandou os criados a deitar , e ficou só na companhia do estrangeiro. A meia noute as portas do castello forāo abaladas como por hum furacāo , e ouvió se huma voz como de hum pregoeiro a pedir que lhe remettessem seu prisioneiro , Damnischemend , filho d՚Ali. O Porteiro sentio entāo que se abria huma janella , e reconheceo a voz do amo que fallava á pessoa que acabava de pronunciar a summaçāo. Mes a escuridāo nāo deu lugar para que inxergasse alguem entre os interlocutores , e se a linguagem de que uzavāo nāo lhe era de tudo incognita , o colloquio achava-se tāo lardeado de termos estranhos , que nāo soube comprehender hum só vocabule. Cinco minutos apenas tinhāo decorrido, quando o pregoeiro levantou novamente a voz em allemāo , e disse:
— Pois bem ; eu adio o exercicio dos meus direitos á hum anno e hum dia ; mas quando eu voltar áquella época para exigir aquillo que me he devido , nāo haverá já meio algum para mo esconder , ou mo negar. —
Desd՚aquelle momento o persa Damnischemend permaneceo no interior do castello d՚Arnheim; e jamais sahio para fóra da Ponte levadiça. Seus trabalhos e passatempos pareciāo concentrar-se na livraria , ou no laboratorio do Barāo , e este , as mais das vezes , tomava parte nas suas occupaçōes. Os habitantes do castello nāo tinhāo outra queixa do persa , ou mago , senāo que elle se eximia de todo dever religioso; poisque jamais ouvia missa , confessava-se ou assistia aqualquer acto piedoso. Verdadeiramente o Capellāo declarava que estava satisfeito do estado da consciencia do estrangeiro; mas havia largo tempo que se suspeitava que o bom do Padre nāo obtivera hum lugar assaz pingue , e pouco trabalhoso , senāo debaixo da condiçāo , mais que rasoavel , que aprovaria os principios de todos aquelles que os Barōes houveriāo por bem hospedar , e os declararia orthodoxos. Aliás observou-se que Damnischemeud era ponctual em praticar suas devoçōes particulares. Jamais faltou á se prosternar ao primeiro raio do sol nascente , e elle , com as proprias māos , tinha fabricado huma lampada de prata das mais formosas proporçōes , que collocou emcima d՚hum pedestal de marmore á modo de huma columna truncada , em cuja base insculpira hyeroglyphos. Ninguem , a excepçāo talvez do Barāo , sabia com que substancia elle alimentava aquella luz , que , de resto , se avantajava por brilhante , pura , e duradoura á qualquer chama conhecida , menos á do mesmo sol ; e era opiniāo geral que na ausencia deste gloriozo astro , ella era o objecto do culto secreto de Damischemend.
O que ainda observarāo nelle foi a severidade dos seus habitos, O extremoso da sua gravidade , a temperança do seu viver , e os seus jejums reiterados á miudo. Excepto em alguns cazos extraordinarios , elle nāo fallava a ninguem senāo ao Barāo ; mas como nāo lhe faltava dinheiro , e que gastava com māo larga , os criados ao mesmo tempo que o veneravāo, nāo o olhavāo com receio , nem odio.
A primavera succedeo ao inverno; a poz ella o verāo deu seu tributo de flores , e o outumno de frutos , os quaes já se achavāo prontos a cahirem de maduros, quando o moço da Camara que algumas vezes os attendia no laboratorio , ouvio o Persa que dizia ao Barāo :
— Bom será , filho que notes bem minhas palavras , poisque-minhas liçōes já estāo a findar , nāo havendo poder humano que me possa salvar por mais tempo do meu destino !
— Alas! Mestre , exclamou o Barāo, e será possivel que eu perca vossas instrucçōes, no prefixo momento em que, com seu auxilio, eu esperava chegar ao tope da sabedoria!
— Não esmorecas, filho, respondeu o sabio ; eu quero legar á minha filha a tarefa de vos adiantar nos vossos estudos, e ella virá cá para este fim. Mas lembrai-vos que se quereis que vosso nome se perpetue , haveis de a considerar sómente como coadjutora das liçōes. Se a formosura de huma moça vos fizer esquecer que ella deve sómente vos instruir, haveis de descer para a sepultura com vossa espada , e vosso escudo, como ultimo descendente macho da vossa geraçāo ; e dai-me credito , outros males ainda surgirāo desta união. Semelhante allianças jamais obtem felizes resultados: e disto se vé em mim hum tocanteexemplo ; mas silencio , o moço nos observa.
Todos os habitantes do castello , que tinhāo pouco em que se occupar , notavāo cum grande attençāo tudo quanto se passava, e quando virāo approximar-se o tempo em que o Persa deixaria de achar resalva no castello , alguns se ausentarāo sob varios pretextos suggeridos pelo medo , e os outros expectavāo com tremor alguma terrivel catastrophe. Aliás seus receios forāo baldados , poisque quando o solemne dia chegou , Damnischemend , muitas horas antes da meia noite , montou á cavallo , e sahio do castello como qualquer outro pacifico viajante. O Barāo despedio-se de Mestre com grandes provas de saudade , e mesmo de tristeza. O sabio Persa o consolou fallando-lhe hem bom bocado ao ouvido: entretanto pesquiçarāo esta phrase.
— Ella estará comvosco ao primeiro raio do sol. Tratai-a com ternura , mas sem vos demasiar neste sentimento.
Ele disse , e se foi , e jamais foi visto no castelio d՚Arnheim ; jamais se soube do destino que levaria.
No dia immediato á partida do Persa , o Barāo conservou-se muito melancolico , e, contra seu costume, ficou no salāo sem visitar a livraria , ou o laboratorio nos quaes ja nāo podia desfrutar a companhia do mestre. Ao outro dia elle ao apontar d՚alva chamou o moço da camara , e occupou-o em arranjar com muito cuidado o seu traje , do qual ordinariamente nāo se lhe dava. Como elle estava á flor da idade , e que era de bella, e afidalgada presença , nāo houve razão para que nāo fosse satisfeito do resultado da sua toiletta , finda a qual esteve esperando que o sol apparecesse no horizonte para pegar de cima da meza a chave do laboratorio , que o moço suppunha fora lȧ depositada de proposito no dia antecedente.
O Barāo , attendido pelo moço , dirigio-se ao laboratorio , e chegado ȧ porta , parou hum instante , e pareceo reflectir se despederia o jovem , e logo depois hesitou a abrir como quem recciava ver alguma cousa extraordinaria. Por fim armando-se com resoluçāo , elle deu a volta a chave , emporrou a porta , e entrou. O moço o seguio , e ficou assombrado á vista de hum objecto mui estranho , se bem que amavel , e encantador aos olhos.
A alampada de prata já nāo estava no pedestal , e em lugar d՚ella figurava huma jovem e linda senhora , vestida ȧ persiana , sendo o carmesim a côr dominante dos trastes. Mas ella nāo trazia nem mitra , nem turbante , nem outro qualquer toucado. Os louros cabellos estavāo amarrados por huma fita azul , retida na testa por ham broche d՚ouro , no centro do qual se via hum magnifico opalo , que entre os reflexos furtacores , distinctivo desta pedra preciosa deitava hum leve raio avermelhado , a semelhança d՚huma faisca de fogo.
Esta jovem senhora era apenas de altura medidiana , porem mui perfeita , e elegante nas proporçōes. O vestido oriental , com as amplas calças ligadas acima do tornozelo , realçavāo peizinhos os mais mimozos que fosse possivel encontrar : e a travez as mangas transparentes divisavão-se brassos, e māos tāo alvos , e symetricos que era huma maravilha. A vivacidade , e espirito dominavāo no animado semblante , e os expressivos olhos pretos com as regulares arqueadas sobrancelhas pareciāo pronosticar as observaçōes maliciozas que a boquinha cor de rosa, meio-risonha , se preparava á expressar.
O pedestal sobre o qual estava em pé , ou para melhor dizer empoleirada , de certo teria sido huma base bem perigosa para huna pessoa menos leve , mas esta , fosse qual fosse o modo por que tinha sido alli transportada , parecia estar tanto a seu commodo , como o Beija-flor que descança hum instante no flexivel ramo de hum jasmineiro.
O primeiro raio do sol nascente , que entrava por huma janella fronteira ao pedestal , augmentava os encantos da bella vivente estatua , que se conservava tāo immovel como se fosse realmente de marmore. Ella nāo manifestou que dava fé da presença do Barāo , senāo porque as palpitaçōes da sua respiraçāo se accelerarāo , em quanto corava , e sorria-se ao mesmo tempo.
Apezar dos motivos que o Barāo d՚Arnheim havia de ter para suppôr que ia á encontrar algum objecto da natureza deste , assim mesmo a pessoa que via tinha prendas , e encantos tanto acima da sua expectaçāo , que ficou hum bom pedaço de tempo immovel , e falto de respiraçāo. De repente elle se lembrou que era seu dever acolher no seu castello com polidez , e agrado a bella escrangeira e tiral-a da situação precaria em que se achava. Elle pois avançou para ella com os beiços meio abertos para lhe dizer o quanto estava a bem chegada , e os brassos estendidos para a ajudar á descer do pedestal que tinha quazi seiz pés d՚alto; mas , ella por agil , e viva , aceitou sómente o apoyo da māo do Barāo , e saltou no chāo com tanta ligeireza , que nāo poderia ir a mais se fosse genio acreo , pois que só com a momentanea pressāo da māozinha , o Barão deu fé que era ente de carne e ossos o que tocára.
— Eu vim em conformidade da ordem que recebi , disse ella , olhando ao redor de si. Podeis contar que tendes em mim huma mestra attenciosa , e lisonjeio-me que vossos progressos , como discipulo exacto e laborioso , farāo muita honra á vossa veneravel professora.
Depois da chegada desta pessoa encantadora a par de singular , varias alteraçōes se effectuarāo no interior do castello. Huma matrona de alto nascimento , e de poucos bens , viuva respeitavel de hum Conde do Imperio Germanico , aceitou o convite do Barāo d՚Arnheim , seu parente , e veio reger a casa d՚este para evitar que a morada d՚Hermiona no castello , tal era o nome da bella persiana , nāo originasse injuriosas suspeitas.
A Condeça Waldstetten teve tanta comtemplaçāo com o Barāo que consentio a assistir a todas as liçōes que este recebia da bella Mestra, que tinha substituido de hum modo tāo inaudito o mago anciāo , e á dar credito á digna matrona , os trabalhos delles no laboratorio , se bem que de huma natureza mui extraordinaria , e produzindo ás vezes effeitos tāo estrondosos que a enchiāo de espanto , assim mesmo nāo tinhāo nada de reprehensivel , pois elles jamais se occupavão de sciencias illicitas , e se limitavāo ás indagaçōes daquelles mysterios innocentes que he permittido ao homem perscrutar.
Hum Juiz de maior autoridade em taes materias , o mesmo Bispo de Bamberg, pagou huma visita ao castello d՚Arnheim , com o intuito de assentar huma opiniāo sobre a sciencia de huma senhora que fazia tanta bulha em todos os paizes regados pelo Rheno. Este teve huma entrevista com Hermiona , e achou a convencida das verdades da relligiāo , e tāo amestrada no conhecimento dos dogmas , e doctrinas , que disse que ella era hun lente de theologia em trages de huma dançarina do oriente: e quando lhe perguntarāo a sua opiniāo sobre o saber d՚ella nas lingoas , e sciencias , elle respondeo que o fim da sua visita á Arnheim tendo sido o assentar hum juizo sobre a realidade de tanta fama , que lhe parecera exagerada , elle agora devia confessar que ainda nāo chegava á metade do que merecia.
Semelhante testemunho , por irrecusavel , pôz termos aos rumores sinistros que a chegada da bella estrangeira ao castello tinha levantado , e tanto mais que as suas maneiras afaveis obrigavāo todos aquelles que a tratavāo , a serem seus partidistas.
Aliás em breve foi facil notar que havia grande alteraçāo no modo em que as entrevistas da engraçada professora , e do discipulo se passavāo. Verdadeiramente nunca ellas tinhāo lugar senāo na presença da Condeça , ou de outra qualquer senhora respeitavel , que podesse certificar a innocencia , e reserva das liçōes ; mas já o laboratorio , ou bibliotheca nāo erāo os lugares exclusivos aonde se davāo. Já os jardins e bosques pareciāo proprios á fornecer o seu entretenimento : até se armavāo partidas de caça , e pescarias; as tardes erāo destinadas á dança , e tudo isto dava claramente á entender o apego ao estudar das sciencias cedia naquelle instante ao alicio do prazer , e nāo era difficil encaminhar a significaçāo desta mudança , se bem que o Barāo e a formosa mestra tinhāo á māo , para conversar , huma lingoagem que ninguem entendia , e por tanto tinhāo tête-à-tétes no tumulto da mais numerosa companhia , e ninguem se deu por achado quando , no cabo d՚algumas semanas , proclamou-se formalmente que o Barāo d՚Arnheim dava seu nome a bella persiana.
As maneiras desta jovem senhora erāo de tal moda amaveis , e seductoras , sua conversaçāo era tāo animada , e seu espirito, apezar de brilhantissimo , tāo realçado pela docilidade , e modestia , que sua origem incognita nāo suscitou tanta inveja da sua fortuna, como se devia expectar em hum caso tāo forá do costume. Alem disto, a sua generosidade era extremosa , e lhe ganhava os coraçōes de quantos se chegavāo á ella, parecendo sua riqueza inexgotavel, poisque distribuio entre as suas amigas tamanha porçāo de joias que nāo imaginavāo como ainda lhe restavāo bastantes para se enfeitar. Ora esta liberalidade, e tantas boas qualidades , ornada com a singelesa de caracter , formavāo hum delicioso contraste com o profundo saber que todos sabiāo que possuia ; isto, e a sua total ansencia de presumpçāo, faziāo que as amigas lhe perdoassem a superioridade: assim mesmo algumas singularidades , talvez exageradas pela malevolencia, pareciāo determinar huma linha de separaçāo entre a linda Hermiona, e as outras mortaes entre as quaes ella vivia.
Na dança ella nāo tinha igoal pela ligeireza e agilidade que se assemelhavāo á de hum ente aereo , podendo entregar-se aquelle divertimento sem se sentir nunca fatigada , a ponto de cançar o mais intrepido dançador. O jovem duque de Hochsprigen , que tinha fama de incançavel na dança , depois de walsar meia hora com Hermonia , attirou comsigo encima de hum sofá, todo exhausto , declarando que nāo acabava de dançar com huma mulher , sim com hum duende.
Dizia-se igualmente ao ouvido , que quando ella brincava no labyrintho , e bosques do jardim com as jovens amigas , ella se mostrava animada daquella sobrenatural agilidade que desenvolvia na dança. No momento em que a julgavāo entre ellas , viāo-na desapparecer , saltar cercas , barreiras , grades , com tal rapidez, que o olho mais attento nāo podia advinhar como se achava do outro lado , e quando a inxergavāo bem longe aquem de qualquer trincheira , eis que d՚alli á hum instante a companhia a achava no seu seio.
Em taes occasiōes , quando os seus olhos scintillavāo , que a cor das faces fexava , e que o gráo d՚animaçāo de toda sua pessoa se exaltava , as gentes asseveravāo que o opalo da cabeça , enfeite que jamais largára , deitava com maior força a especie de faisca , ou de jacto de fogo avermelhado da mesma forma , quando nos serōes da noute , Hermiona se enthusiasmava na conversaçāo alem do costume , a pedra preciosa parecia realçar o esplendor , e lançar aquelle raio luminoso do proprio seio , e nāo o reflectir d՚algum corpo luminoso. Tambem as criadas contavāo que quando a Ama tinha algum attaque passageiro d՚ira, unico vicio que nella se notára , ellas observavāo huma chama de hum vermelho fechado surgir da joya misteriosa , como se esta participasse das emoçōes da Dona. As mulheres que assistiāo ao tourador , assevarāo que nunca largava a tal joya , senāo no curto tempo consagrado ao pentear , e durante este pequeno momento ella se mostrava mais seria , manifestando grande receio que nāo chegasse qualquer liquido á pedra; ate se notou que na occasiāo de tomar agoa benta á porta da igreja . ella jamais tocava na testa para se signar , com medo , assim o supponhāo , de molhar hum enfeite de que fazia tal apreço.
Rumores tāo singulares nāo empatarāo que o Barāo casasse com ella , e desenvolvesse na ceremonia todo o esplendor da sua pequena corte feodal, parecendo desde entāo que os jovens esposos iniciavāo huma vila de felicidade rarissima de se achar encima da terra. No cabo de doze mezes a formos abaroneza deu á luz huma menina que resolverāo appellidar Sybilla , por ser este o nome da Mai do Barāo d՚Arnheim , e como a criança gozava de perfeita saude , retardou-se a ceremonia do baptismo , até o momento em que a jovem mai poderia assistir á ella. Fizerāo-se numerosos convites pora aquelle dia em que huma immensa companhia se reunio no castello.
Entre as pessoas convidadas havia huma Fidalga anciana , bem conhecida para fazer na sociedade o papel que os Ministreis attribuem, nas suas novellas , á qualquer fada má. A Baroneza de Steimfeld, era conhecido em toda a vizinhança por sua insaciavel curiosidade, e insolente soberba. Depois de dois dias de residencia no castello d՚Arnheim , ella , com o socorro de homa sua criada , cujo peculiar cargo era indagar da vidaalheia , já estava ao facto de tudo quanto se acreditava , dizia , ou presumia , á cerca da Baroneza Hermiona. Na mesma manhāa destinada para o baptismo , quando toda a companhia reunida no salāo sómente esperava a Dona da casa para ir ter a capella , suscitou-se huma disputa de precedencia entre a Condeça de Waldstetten e a tal Fidalga de genio achincalhador e orgulhoso. O Barāo d՚Arnheim escolhido por arbitro , pronuncio á favor da Condeça. A Baroneza de Steimfeld ordenou no mesmo momento que lhe trouxessem o seu palofrom , e que todo seu acompanhamento montasse a cavallo.
— Eu , gritou ella , deixo huma morada na qual huma boa christāa jamais deveria ter entrado. Eu deixo huma casa cujo dono he Feiteçeiro , a mulher hum duende que nāo ousa molhar a fronte com agoa benta , e a Camarista-mór huma snjeita que por hum vil interesse , fez-se alcoviteira entre hum bruxo , e hum demonio incarnado.
Ella marchou immediatamente com a raiva no coraçāo , e o furor pintado no semblante.
O Barāo avançou algnns passos , e preguntou se entre os Cavalleiros , e Fidalgos alli presentes , algum havia que quizesse puxar para a espada em abono das infames mentiras que a Baroneza vociferára contra elle mesmo , contra sua esposa , e sua Parenta.
Todos recusarāo defender a Baroneza em causa tāo pessima , e declararāo por huma voz que estavāo convencidos , que fallára com calumnia , e falsidade.
— Sejāo pois consideradas como mentiras as palavras que nenhum homem honrado quer sustentar. Porem todos hoje presenciarāose a Baroneza d՚Arnheim cumpre com os deveres do christianismo.
A Condeça de Waldstetten fazia ao Barāo sinaes com certo ar de ansiedade em quanto elle fallava: e quando ella se pôde aproximar , os mais proximos ouvirāo que lhe dizia em ton diminuto.
— Andai com prudencia ! Nada de experiencia temeraria! Alguma cousa ha de mysterioso neste opalo, ou talismano. O melhor he nāo fazer caso do que aquella furia diz.
O Barāo naquelle momento estava mais irado do que as pretençōes que affixava á sabedoria o deveriāo consentir. Aliás he preciso confessar que tamanha desfeita em semelhante occasiāo bastava para abalar a paciencia do homem mais pacato, e a philosophia do mais sabio. Elle respondeo pois com zanga.
— Vós tambem destes em douda? — e perseverou no que tinha resolvido fazer.
A Baroneza d՚Arnheim appareceo neste instante. O recem bom successo tinha-lhe deixado aquelle gráo de pailidez justamente preciso para tornar mais interessante a engraçado semblante. Depois de saudar com graciosa dignidade a brilhante sociedade , ella principiava a se informar da Baroneza de Stemfeld , quando o marido a interrompeo , convidando todos a que fossem para a capella , e efferecendo o braço a esposa fechou a pompoza marcha. A lustrosa companhia enchia a capella , e todos os olhos se litarāo sobre o Barāo , e a Baroneza quando elles entrarāo precedidos por quatro donzellas , que carregavāo a criança sobre hum andor esplendidamente decorado.
Ao entrar na Capella o Barāo molhou o dedo na pia , e offereceo agua benta á esposa , que a tomou , conforme o costume , tocando com o dedo o do espeso; mas este como para refutar as calumnias da raivosa Baroneza de Stemfeld, e com certo ar de brincadeira , e bom humor , talvez pouco decentes naquelle momento, e naquelle lugar , sacudio na bella testa d՚Hermiona as gotas que ficavāo pegadas ao dedo ; huma pinga cahio sobre o opalo. A Pedra lançou hum jacto de chama , semelhante á huma estrella cahinte , e logo perdeu o brilhantismo , e os reflexos furtacores , ficando semelhaute ao cascalho o mais ordinario. A Baroneza cahio simultaneamente sobre o marmoreo soalho com hum ar d՚agonia. As pessoas presentes correrāo em seu socorro , a levantarāo do chāo, e a carregarão para o scu aposento ; mas neste intervallo houve tal mudança nas feiçōes, e o , e o pulso esmoreceo de tal forma , que todos aquelles que a cercavāo , a considerarāo como já morta. Apenas esteve na sua camara, ella pedio a deixasse sósinha com o marido. Elle se demorou huma hora com ella , e sahindo do quarto fechou a porta á chave , e se dirigio á capella aonde se conservou por espaço de mais de huma hora prostrado ao pé do altar.
Entretanto a maior parte dos convidados ao Baptismo tinhāo-se retirado no maior assombro. alguns que tinhāo ficado ou por polidez , ou por curiosidade conheciāo perfeitamente a inconveniencia de deixar huma mulher moribunda sósinha , e fechada. Mas apezar disto , e do susto que as circunstancias da inopinada doença infundiāo , ninguem se aventurou a perturbar as devoções do Barāo. Por fim alguns physicos que se tinhāo mandado buscar tendo chegado, a Condeça de Waldstetten pedio a chave ao Barāo. Foi precizo repetir trez ou quatro vezes primeiro que percebesse. Finalmente elle entregou a chave dizendo que todos ocorro era já inutil , e que pedia que todos os estrangeiros sahissem do castello.
Poncos desejarāo se demorar , quando na camara aberta nāo se achou sinal algum da Baroneza, que nāo havia duas horas alli se transportára , ha nāo ser hum punhado de cinzas , sobre a cama emcima da qual se depositára , tão esbranquiçadas , e leves como as que resultariāo de papel queimado. Aliás fizerāo-se solemnes exequias; nenhum acto zelligioso se omittio , e cantarāo-se muitas missas para a alma da muito alta e poderosa Sr. Dona Hermiona , Baroneza d՚Arnheim.
No cabo de trez annos , dia por dia , o Barāo foi sepulto nas catacumbas d՚Arnheim , com o capacete e escudo , como ultimo herdeiro macho da sua casa.
- ↑ Vinho da Hungria , tāo estimado , que elle he reservado para a meza imperial. Sómente por presentes diplomaticos, ou contrabando, he que se podem recuperar algumas garafas para satisfaçāo dos gastronomos.
Leitura adicional
[editar]- Wiebke Röben de Alencar Xavier; Marcos Túlio Fernandes (19 de dezembro de 2014). «Uma tradução de Sir Walter Scott e o início do conto fantástico no Brasil». Cultura e Tradução. ISSN 2238-9059

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