O Cabeleira/VII

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VII


A victoria, não obstante o lugar e o numero que deram superioridade aos fortíficados, custou-lhes consíderaveis damnos. Com outra investida da mesma força que a primeira, ou ainda menor, o couto arriscava-se a ser dissolvido. Os malfeitores não eram muito numerosos e qualquer perda, por pequena que fosse, os expunha a desastres certos e quiçá fataes. Além disso, achavam-se divididos por differentes pontos d’onde protegiam as correrias emprehendidas pelos mais destemidos. A organização protectiva era tal, que o mameluco e o filho, d’entre todos os mais temerarios e valorosos, percorriam, não já sómente a provincia d’onde eram naturaes, mas Parahyba e Rio-grande-do-norte em todas as direcções sem maior perigo, porque, quando as justiças os perseguiam, elles achavam sempre perto de si um refugio amigo onde se acolhiam, e si ahi eram buscados, como muitas vezes aconteceu, resistiam, ajudados por seus iguaes, com tanta energia e denodo que sempre a victoria ficava de seu lado.

Desta vez porém não lhes fôra muito favoravel o lance.

O Cabelleira, cuja bravura estava acima de todo o encarecimento, e seu pai que a nenhum cedia o lugar na crueldade, tinham ficado cobertos de golpes, alguns delles mortaes. Maracajá, cabra de más entranhas e por isso de creditos colossaes entre elles, ficára com uma mão horrivelmente destruida, e o hombro esquerdo mutilado. Ventania, outro matador de fama, apresentava no rosto e peito feridas extensas e profundas. Jurema, Jacarandá, Gavião e dous negros fugidos tinham morrido nas pontas das facas dos assaltantes.

Á vista de tudo isso, tanto que considerou restabelecida a ordem na lôbrega estancia, Joaquim reuniu o restante das suas forças, e lhes fallou nestes termos:

— A luta foi feia, camaradas, e devemos dar um exemplo de estrondo para que ella não venha a repetir-se tão cêdo. É certo que dos cabras que se atreveram a vir bater-nos, não voltou um só que fôsse contar a sua derrota, mas o abalo que padecemos foi grande, e, si a justiça vier por ahi nestes dias, correremos grande perigo, só não si nos ausentarmos. Entendo que devemos obrar um feito que a todos dê que fallar, que aterre a população e o capitão-mór, que faça crer que nunca estivemos tão fortes nem mais dispostos a sustentar o nosso posto.

— Estou prompto para ir pôr fôgo agora mesmo na povoação — disse Manoel-corisco, calcêta evadido da cadeia do Recife por occasião do segundo arrombamento praticado nos ultimos tempos da administração do governador Henrique Luiz.

Este sentenciado tinha tomado parte, aos dezeseis annos, no levante dos soldados que se verificou quando governava Pernambuco d. Manoel Rolim de Moura. Do dito levante existe ainda viva lembrança na provincia, pelo grande saque a que procederam, não só na villa do Recife, mas tambem na rica e populosa cidade de Olinda, a perola de Coelho. Os sessenta eseis annos, que contava, ainda lhe permittiam forças e animo para attentar contra os bens e a vida com tanto maior firmeza quanto era fragueiro no crime por uma pratica de longos annos.

— Em vez do incendio, o saque — acudiu Miguel-mulatinho.

— Para tanto não temos forças, mas si o querem, encontram-me prompto, como sempre — observou Manoel-corisco.

— A minha opinião é que apanhemos os cavallos e gado que ainda existem por estas beiradas. Elles devem render na feira dinheiro fresco para irmos resistindo á secca. Feito isto, levantemos o acampamento por algum tempo — tornou Miguel.

— Que é que resta por aqui? perguntou Corisco. Na fazenda de Liberato poucas rezes se contam. Antes de morrer, o ladrão do negro já estava limpo; só tinha em casa os cachorros, os gatos, a mulher e a filha.

— Boa idéa, boa idéa — gritou Joaquim, cujos olhos nadavam em ferocidade. Terão vossês coragem para darem conta da empreza?

— Diga lá, Joaquim. Vossê não está com patativas choronas, vossê está com carcarás que tem boa vista, boas azas e melhores unhas — acudiu Miguel-mulatinho, librando-se nos pés para imitar o passaro que quer voar.

— Vamos lá ver o que propõe vossê — acrescentou Manoel-corisco.

— Proponho o roubo das melhores raparigas da povoação. Isto, sim, ha de dar a todos a medida da nossa audacia, e por todos será considerado uma prova de que estamos fortes como nunca estivemos.

— Sim, senhor, muito bem lembrado — disse o Mulatinho, melhor não podia ser, mas a cousa é séria, Joaquim.

— Ora! Tens medo?

— Medo! O medo comi eu com as papas que minha mãi me deu quando era pequenino — retrucou o malfeitor como por demais.

— Dito e feito, Joaquim. Quando será isso? Hoje? Amanhã? perguntou José-trovão, negro hediondo, cuja cara apresentava profundas cicatrizes e cujos olhos, vermelhos como tomates, padeciam de estrabismo divergente.

— Hoje não. Amanhã, ou depois, conforme entender melhor Zé Gomes — respondeu Joaquim.

E logo acrescentou:

— Mas onde se metteu Zé Gomes que o não vejo aqui?

O lugar onde se achavam reunidos os bandidos era um dos pontos mais centraes da mata.

Tinham elles assentado o seu arraial ao pé de um olho-d’agua que não seccava ainda no rigor do verão. Este arraial compunha-se de meia duzia de ranchos abertos por todos os lados e unicamente cobertos de palhas de pindoba. Dos caibros pendiam surrões, vestias e chapeus de couro. Algumas rêdes estavam armadas dentro das palhoças. Á noite alumiavam-se ordinariamente com fogueiras; tinham porém sempre em quantidade fachos de que se serviam nas suas idas e voltas por dentro da mata, quando fazia escuro. Tudo annunciava que o ponto era sempre provisorio, e podia ser deixado de um momento para outro sem prejuizo nem saudades.

O Cabelleira estava longe delles naquelle instante.

Apenas viu passada a borrasca, reappareceu-lhe a imagem de Luiza em quem elle via dous typpos cada qual mais seductor — em um a menina de oito annos com o rosto banhado da expressão da meninice, que é agradavel até aos olhos dos que tem o coração mais endurecido do mundo; no outro a moça ingenua, corajosa, banhada em pranto, de rojo a seus pés, pedindo-lhe misericordia, insultando-o, amaldiçoando-o, bella, tanto mais bella quanto mais augmentavam sua dôr e sua indignação, ambas tão profundas como era o affecto que ella votava ao bandido.

Este não tinha tido até aquelle momento predilecção amorosa para alguma outra mulher.

Sua vida nomada, arriscada, cheia de sobresaltos, ensopada em sangue só lhe tinha permittido querer bem á imagem da menina que ainda na vespera se debuxava em seu espirito como um vago e pallido reflexo do passado. Inesperadamente porém, este reflexo se illumina com todos os brilhos do mais primoroso iris. A reminiscencia desmaiada, quasi desapparecida, tomou corpo, fórma, côr, contornos suaves, olhos matadores, cabellos escuros, voz harmoniosa, energico sentimento, e com soluços o commove, e com exprobrações o faz conhecer e sentir a dor, nunca talvez experimentada, de um remorso cruel. Seu coração, que se havia convertido em fóco de paixões sanguinarias, era agora ninho de doce e indefinivel sentimento.

O bandido estava experimentando, não a lascivia bruta que proporciona rapidos prazeres, delle conhecidos como a aguardente que bebia nos dias quentes e nas noites frias, mas uma fatalidade benevola, branda e terna que o impellia para a moça, primeiro pelo espirito, e só depois pela beileza da fórma que o attrahia; e essa fatalidade era tão poderosa que elle não achava forças em si para lhe resistir apezar do seu querer.

Chegando á beira do rio para onde se dirigira correndo em busca da visão que ahi deixára, achou em seu lugar a solidão infinita, a solidão só.

Era em maio. Frouxo estava o luar. Elevava-se das margens, com os ruidos do deserto, fresca e grata emanação, que teve para o seu peito abrazado o effeito do balsamo fragrante.

Pareceu-lhe que debaixo da folhagem do joazeiro onde, segundo o seu pedido, esperava encontrar a moça, um corpo indeciso e vago se agitava brandamente.

— Luizinha? Luizinha? chamou elle.

Ilusão! Estava alli o vacuo mais cruel do que um raio que o houvesse fulminado. A sombra da arvore movida pela brisa nocturna representava a fórma graciosa que o bandido acreditou ser Luiza.

— Foi-se embora! disse o Cabelleira esmagado.

Então com olhar de gavião abrangeu a vasta planicie que se estendia diante de si. Ninguem! Nem siquer um vulto que por um instante ao menos lhe désse o prazer de uma nova esperança, fallaz embora como a que se despedaçára a seus pés naquelle momento. Só o deserto lhe appareceu, menos vago, mais real com sua taciturna immensidade, só o deserto lhe respondeu com a mudez do descampado, das selvas profundas, e das aguas mortas.

Assim desmascarada em plena natureza, a realidade o fez voltar a si. Sentiu as dores dos golpes recebidos, pouco havia, dentro na mata. Lembrou-se de banhar as feridas como costumava depois de identicos desastres. Mas a agua fresca que tantas vezes lhe havia servido de balsamo refrigerante, produziu-lhe agora differente effeito. A vista do bandido foi pouco a pouco escurecendo, a cabeça pesou-lhe mais do que o corpo, e elle cahiu sem sentidos á beira do poço.

Deste modo passou horas. Quando tornou em si de seu deliquio, a aurora vinha rompendo as nuvens do horizonte, com sua luz extensa e vasta que se confunde no infinito. A viração matutina transmittiu-lhe aos ouvidos uns sons cadenciados que vinham de longe. Era o echo das lôas cantadas pelas meninas e raparigas da povoação que vinham encher os potes nos póços como de costume.

Levantou-se ainda aturdido. Seus olhares foram logo cahir sobre o lugar onde na tarde anterior elle havia deitado Florinda em terra com o couce do bacamarte. Não se achava, porém, alli o cadaver da curibóca. O bandido deu então o andar para a estancia, com o pensamento concentrado em Luiza que, ten- do-se visto livre de suas mãos, corrêra em soccorro de Florinda.

— Minha mãi? minha mãi? chamára ella, abraçando o corpo da victima, e chorando como criança.

No seu prantear e no seu carpir, Luiza tivera todavia espirito para lembrar-se das ultimas palavras do Cabelleira. « Com pouco elle estará aqui outra vez, pensou ella. Deus me livre de que elle venha ainda encontrar-me neste ermo. Que seria de mim si tal acontecesse? Mas posso eu deixar aqui o corpo de minha mãi só e desamparado?! Não, não; não o deixarei ainda que me matem. Ficarei até que amanheça. Ha de apparecer alguem que me ajude a leval-o para casa. »

E afflicta, e consternada, Luiza olhára ao longo da margem a vêr si descobria quem a soccorresse. Por mais de uma vez uns vultos escuros moveram-se sobre a areia, á beira dos poços. Ella sentira então voltar-lhe o animo, fallára, perguntára quem estava alli, pedira que a fossem amparar em tamanha afflicção, mas ninguem a ouvira, ninguem acudira ao seu chamamento. Tudo fora illusão. Esses vultos foram as sombras das arvores movidas pelo vento, as quaes enganaram depois o bandido como vimos.

A noite, porém, corria com rapidez. A lua que descia a occultar-se por detraz da floresta, dentro em breve deixaria em trevas toda a natureza. O silencio tornava-se mais profundo, tornava-se absoluto. O sitio, de si ermo, estava agora lugubre por se haver convertido em mansão de morte e luto.

Luiza lembrára-se de ir chamar alguem, visto que ninguem lhe apparecia para a tirar daquelle afflictivo transe. Mas a casa que ficava mais proxima era a de Liberato, a qual distava, entretanto, pouco menos de meio quarto de legua do lugar. Além disso, ella não queria deixar o corpo de Florinda desacompanhado ainda que fosse por momentos, quanto mais por horas.

De uma vez corrêra ao longo da margem a ver si o céo lhe tinha enviado algum protector. Mas logo voltára, lembrando-se de que o cadaver podia, de um instante para outro, ser offendido por algum animal.

— Não, não, minha mãi! exclamara ella. Não te deixarei, haja o que houver.

Então ella vira que o cadaver erguêra os braços para conchegal-a, ao que parecia, ao seu seio. A moça fizera conta que estava sonhando e delirando, e que o movimento de Florinda fôra como illusão dos olhos della.

— Abraça-me, minha mãi, abraça-me. Leva-me comtigo que eu, sem ti, sou o ente mais desgraçado do mundo.

Mas, sentindo a pressão physica e irrecusaveldos braços que tinha por mortos, recuou pera, á pallida claridade do escasso luar, certificar-se da verdade.

— Não fujas, Luiza. Vem. Não estou morta. Ajuda-me, que me levantarei.

Não podia ser mentira dos seus ouvidos. Era a voz de Florinda, aquella voz branda e benevola que ella estava acostumada a escutar desde a infancia como o echo de maternal providencia.

— Minha mãi! Vive ainda, minha querida mãizinha? perguntára Luiza, chorando e sorrindo alternativamente, beijando, como louca, sem ordem nem moderação, aquelle cadaver que se tornára vivente, aquella vida que resuscitára no seio da natureza onde lhe parecêra que se havia afundado para nunca mais voltar como se afundam as borboletas que as tempestades arrojam aos charcos e marneis.

— Vê si pódes levantar-me, Luizinha.

— Sim, saiamos já daqui antes que tornem os malfeitores. Elles não tardam por ahi, creio eu. Vamos, já minha mãi. Está-me parecendo que dalli, daquelle mato traiçoeiro, um homem nos acommette, ou um tiro nos vem ferir.

Cambaleante e trôpega, Florinda déra o andar arrimando-se no hombro da filha.

— Que tens, Luizinha, que olhas tão horrorizada para aquella banda? Fez-te algum damno o assassino?

— Não, nada me fez. Mas eu tenho mêdo destes lugares. Nunca mais virei buscar agua aqui.

— Conta-me tudo, Luizinha. Como te livraste do malfeitor? Quem era elle? Não o conheceste? Seria o Cabelleira?

— Não sei, não sei, minha mãi. Estava já tão escuro quando elle appareceu... Sei porém, que elle se compadeceu de mim.

— Estás dizendo a verdade, Luizinha?

— Sim, minha mãi; elle não me offendeu. Dando mostras de estar arrependido, fugiu logo depois, e não voltou mais.

— Malvado! disse Florinda. Que pancada me deu elle! Põe a mão em minha fonte. Vê como fiquei. Virgem santissima! Não sei como não me saltaram os miólos. Mas... ampara-me bem, que uma nova perturbação me vem tirar os sentidos. Ampara-me, sinão caio. Não posso andar mais.

— Temos de feito andado muito, minha mãi, e deve estar cansada.

Luiza, novamente afflicta, volvendo os olhos em torno de si, viu, a poucas braças, uma sombra immovel que brilhou aos seus olhos como um astro de protecção e conforto.

Estavam salvas. Era a casa de Liberato.