O Cabeleira/XVII

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XVII


Grande concurso de povo tomava uma tarde uma das embocaduras da Rua-do-amparo da illustre villa de Goyanna.

Depois de algum tempo chegaram de longe, do lado do Barro-vermelho, ao ponto da reunião os sons de um clarim, que logo cessaram para deixarem ouvir os rufos de um tambor.

A este signal, sofregamente esperado, alvorotou-se a multidão. As mulheres compuzeram seus lenços no pescoço, os lençóes na cabeça, os cabeções de rendas, então muito em uso. As mãis conchegaram bem a si os filhos menores, que tinham pela mão; os pais foram occupar seu posto, que não mais desampararam, ao pé das consortes e filhas, que se mostravam temerosas do que poderia vir a acontecer, porque, em muitos dos circumstantes, á curiosidade se substituiu logo o terror panico, difficil de vencer, e sempre contagioso e pegadiço.

A Rua-do-amparo contava então uma só casa de sobrado.

Via-se na varanda deste d. Leonor, mulher do capitão-mór Seus bellos olhos estavam voltados para o extremo da rua onde era tudo confusão e borborinho. Entre os anneis dos seus negros cabellos brilhavam ricas flores de ouro e coral, semelhantes a malmequeres e pitangas. Um vestido de seda azul, com ramos de rosas brancas que lhe subiam da fimbria á cintura, deixava adivinhar as fórmas admiravelmente correctas da nobre senhora, cuja gentileza impunha a todos preito com que se não daria mal uma princeza. A seu lado mostravam-se outras senhoras pertencentes ás primeiras familias da villa.

De repente ouviu-se de novo o clarim, a quem coube a distincção de annunciar a entrada da tropa com o grande prisioneiro.

A soldadesca rompeu por entre a multidão, e encaminhou-se á casa do capitão-mór.

Este vinha á frente do batalhão, e montava sua cavalgadura de estimação ricamente ajaezada. Ao lado do capitão-mór mostravam-se alguns coroneis de ordenanças.

O prisioneiro apparecia no centro da tropa. Sua physionomia estava triste; mas não tinha a carregada expressão da perversidade, nem o vil abatimento da cobardia. Seu passo, posto que forçado, era firme, qual devêra ser o de um homem de poderosa organização, aos vinte e quatro para vinte e cinco annos de idade.

Faltava porém a esse homem a promptidão nos movimentos physicos a que por innumeras vezes devêra sua salvação. Uma corda de couro crú prendia-lhe em differentes anneis os braços, poucos dias antes prestes a levar a destruição e a morte a afastadas regiões.

Poucos foram os que não tiveram os olhos arrazados de lagrimas quando viram escravo de uma cadeia ignobil o infeliz moço, que, ainda hontem, tinha a immensidão a seu dispor, e era livre como as féras no deserto. A presença do infeliz despertára a piedade de quasi todos os espectadores.

Naquelle tempo a cadeia de Goyanna não tinha a solidez da que se vê presentemente na Rua-direita. Era uma casa de um só pavimento a que faltavam quasi todas as condições de segurança e hygiene que as penitenciarias modernas reunem.

Viam-se em suas janellas não grades, mas varões de madeira. Muitos criminosos conseguiram evadir-se quebrando alguns desses varões. Nem é de admirar que taes fossem as condições da cadeia publica daquella villa em 1776, si ainda hoje, com excepção das capitaes e de algumas cidades interiores de mais nota, se apontam localidades importantes e até sédes de comarcas que não têm melhores prisões que as do tempo colonial.

Não só pela manifesta incapacidade da prisão publica, mas tambem por não confiar de ninguem a guarda de um réo dos quilates do Cabelleira resolveu Christovam de Hollanda têl-o em sua propria casa durante o tempo que fosse necessario para os preparativos da jornada ao Recife.

As primeiras autoridades de Goyanna reuniram-se á noite em casa do capitão-mór, que a tuba da fama começou logo a apregoar como o salvador da provincia.

Emquanto essas autoridades praticavam da questão do dia – a prisão do malfeitor, este, no pavimento inferior, de que uma parte lhe fôra dada por menagem, entregava-se a fundas cogitações.

Um soldado, que delle se compadecêra, o tinha persuadido a ir passar alguns momentos no quintal, a fim de se divertir de suas idéas tristes. O Cabelleira sentára-se a um canto, á sombra de uma cajaseira.

Em qualquer parte para onde volveu os olhos só lhe appareceram guardas que não perdiam um só dos seus movimentos. Ergueu os olhos acima dos altos muros que o cercavam, e deu com a vista nas bellas estrellas que tinham sido suas companheiras no deserto. Aquelles astros saudosos, guias leaes e constantes do filho da liberdade, não allumiavam agora nesse filho sinão o escravo da justiça que qualquer criança poderia impunemente insultar.

Lembrou-se de Luiza, cujo cadaver não lhe havia permittido dar á sepultura o instincto da propria conservação, o mêdo irresistivel da morte que o impellira para o seio da floresta antes que elle houvesse cumprido este piedoso dever.

— Ah! Luizinha! pensou elle. Si eu tinha de cahir alguns dias depois no poder da justiça, porque fugi então sem ter primeiro posto teu corpo ao abrigo dos urubús, ou dos cães de caça? Ah! meu amor, perdôa minha crueldade, perdôa minha ingratidão.

As lagrimas saltaram-lhe dos olhos em impetuosa torrente.

— De que choras, Cabeleira? perguntou-lhe o soldado que delle se mostrára compassivo. Estás com mêdo da morte?

— Não, não tenho mêdo de morrer, disse elle. Estou chorando de me haver lembrado da unica mulher, a quem, depois de minha mãi, quiz bem nesta vida.

— Qual mulher? Será a que deixaste morta junto das cabeceiras do rio?

— Essa mesma. Vossê a viu?

— Sim, eu a vi. Mas que bem poderias querer a ella, si foste tu proprio, Cabelleira, que a mataste?

— Não, eu não a matei; ella morreu, ella mesma, quando se considerava feliz comigo, e quando eu via nella meu maior prazer, minha maior dita. Ah Luizinha, tu bem sabes que eu te queria muito bem, muito! Que pena tenho eu quando considero que te perdi para sempre, que te deixei no deserto, que os carcarás furaram teus bellos olhos, que os urubús despedaçaram tuas carnes, e que os anuns, pretos como meu coração, esvoaçam por cima de teus ossos!

Os soluços embargaram a voz do desgracado.

— Si é por isso, não chores, Cabelleira. O corpo de Luizinha não ficou ás aves nem aos animaes do mato.

— Não ficou?

— Eu o enterrei com minhas proprias mãos.

— Vossê?

— Eu e mais outro companheiro.

O bandido correu ao soldado para o apertar em seus braços em signal de reconhecimento. Mas a corda que os prendia pelos lagartos tolheu que elle lhe désse esta demonstração.

— Não tem que me agradecer, disse-lhe o miliciano. Eu vi Luizinha menina. Vossê não me conhece, mas eu tambem o vi pequeno; e si sua prisão estivesse em minhas mãos, nunca ella se teria feito.

O soldado afastou-se do Cabelleira para que este não lhe visse as lagrimas que de quatro em quatro estavam banhando suas faces.

— Não se afaste, camarada, disse-lhe o prisioneiro. Tenho certeza de que vossê não me quer mal, e por isso quero pedir-lhe um favor. Não sei como poderei passar esta noite com a tristeza que tenho. Poderá vossê arranjar-me uma viola ?

Pouco depois ignotos sons, que estão acima do maior elogio, levaram melancolia e saudade ao coração de todo aquelle de quem se fizeram ouvir.

Fôra já servida a ultima refeição, e os hospedes se haviam retirado a suas casas. Era tudo mudez na rua e vizinhanças.

Os sons mellifluos que já haviam imposto silencio aos soldados chegaram ao terrado da casa de Christovam como uma torrente de celestiaes melodias, que lembraram a harpa de David, ou a lyra de Amphião. Estas melodias commoveram o capitão-mór e sua joven senhora, que iam ficar dentro em algumas horas separados de novo.

— Como são tristes os sons desta viola! disse elle. São as ultimas despedidas de quem está a entrar no reino da verdade.

— Mais me entristecem estas palavras suas, Christovam, disse dona Leonor. Si nós o pudessemos salvar

— Que diz, Leonor? Elle é um grande assassino. Sua mão tem derramado rios de sangue innocente. Os monstros não têm entranhas mais cruas do que as delle.

— Pobre moço! Para attestar que seu coração não é tão máo, nem siquer lhe vale a expressão de bondade que tem no rosto! Escute, Christovam. Conversavamos aqui ha pouco eu e dona Catharina; Gonçalo Paes estava ao nosso lado. Sinão quando vieram trazer-nos delicias e despertar em nós saudades commoventes os sons que o prisioneiro extrahe com rara delicadeza de seu inspirado instrumento. Dona Catharina manifestou então grandes desejos de o conhecer.

— E que fizeram?

— Descemos ao quintal acompanhadas de Gonçalo. Assim que nos viu, elle levantou-se, e nos saudou respeitosamente. « Continúe a tocar, Cabelleira » disse-lhe eu. « Ah senhora, mal posso pegar na viola. Além disso eu não sei tocar cousa capaz, senhora minha. Mas estes sons grosseiros podem melhorar si vossa senhoria, por sua bondade, mandar que me afrouxem um pouco estes laços. A corda penetrou-me na raiz das carnes, e tira-me toda a acção. » Fiz signal a Gonçalo para que satisfizesse o pedido do prisioneiro, mas Gonçalo hesitou.

— Fez bem, disse o capitão-mór.

— « Póde fazer sem susto o que minha senhora manda, sr. tenente. Cabelleira não fugirá porque está cansado de viver » disse o prisioneiro. Faltam-me expressões para lhe dizer, Christovam, o que ouvimos então. Notas de orgam inspirado não dizem os mysterios, as melancolias que se debulharam da viola do desgraçado. Vendo-o tão moço, tão artista e tão infeliz, todos nos sentimos commovidos da sua sorte; e elle, elle o prisioneiro, chorava e soluçava como uma criança.

— Basta, Leonor, disse Christovam abalado com a narração que acabava de ouvir.

Dona Leonor, sorprendendo este sentimento do marido, propoz-se tirar delle o maior proveito para o infeliz. Atirou-se a Christovam de Hollanda, e o cobriu de afagos e carinhos.

Fez mil rogativas para que se amerceasse da sorte do Cabelleira. A seu entender, alguns annos de prisão bastariam para que elle se corrigisse e emendasse.

— Mas quem diz que não será esta a pena que se lhe vai impôr? perguntou o capitão-mór.

— Não o disse já o senhor, Christovam? Sou eu que lhe peço que dê escapúla ao infeliz.

— Escapúla, Leonor, escapúla! exclamou Christovam. E minha honra, e meu dever?

— Elles não ficarão manchados com um acto de humanidade. Todos dizem que a máos conselhos e funestas instigações deve o Cabelleira o ter commettido tantos crimes. Pois bem; aquelle que o aconselhou e instigou á pratica desses crimes, o verdadeiro criminoso, lá está para responder pelo que fez, e mandou filho fazer. Sua condemnação servirá de exemplo á sociedade e ao proprio filho delle; mas a condemnação deste será uma grande injustiça, e o céo não permittirá jámais que para ella concorra Christovam Cavalcanti que sempre trouxe limpo o brazão que lhe legaram seus avós.

O capitão-mór levantou-se com a pallidez na face. A poderosa dialectica da consorte o havia feito sentir mais alterações na alma do que seus proprios carinhos no coração. A verdade sobre o Cabelleira era justamente aquella que sua mulher havia resumido em meia duzia de palavras vivas e violentas.

Depois de ter dado alguns passos pelo terrado, Christovam caminhou para dona Leonor, que o não tinha perdido de vista.

— Tudo o que disse é verdade, Leonor: mas sou eu acaso juiz? Não sou mais do que o executor de uma ordem do governador. Acredito que prendi um criminoso, para o qual, si a mim competisse julgal-o, teria eu uma condemnação mais branda. Mas o direito de o mandar ir embora não o tenho eu. Si usasse de semelhante faculdade, Christovam dei Hollanda teria lançado sobre seu nome honrado uma mancha indelevel.

Tendo dito estas palavras, Christovam de Hollanda recolheu-se immediatamente a seu gabinete em companhia de Gonçalo Paes.

Quando a lua appareceu no céo triste e pallida como os anjos dos sepulchros, a tropa recebeu ordem para partir no mesmo instante. O capitão-mór precipitava a jornada que havia dilatado para o dia seguinte.

Pouco depois a tropa moveu-se. Dona Leonor, anjo de amor e de benevolencia, deixava cahir nesse momento, em silencio, algumas lagrimas, limpidas como sua alma.

A respeitavel senhora tinha saudades do esposo que novamente se ausentava, e pena do infeliz, que a morte attrahia a si na fórma de um patibulo, e em nome da lei.