O Caminho de Damasco/VII

Wikisource, a biblioteca livre

Não saiu convertido, como pensava o austero velho; os conselhos e as promessas não lhe deixaram vestígios na memória. Dentre tudo o que lhe havia dito o padre Barroso, uma coisa flutuava no espírito de Jorge: era a idéia de que a Clarinha o amara.

Se lho houvessem dito noutro tempo, é provável, é quase certo que Jorge levantaria os ombros e iria contar o caso aos amigos mais íntimos. Ser amado por ela, queria dizer um casamento, uma vida menos solta, obrigações sérias, coisas que Jorge achava inconciliáveis com a sua razão. Mas agora mudava o caso de figura; a idéia de que uma senhora casada o havia amado em solteira, abria aos olhos de Jorge uma perspectiva de esperanças e dava à sua vida um aspecto novo.

— Na verdade, dizia ele consigo, esta vida já me enfada. É bom descansar um pouco; achar-lhe-ei depois mais sabor. Um amor de romance tem toda a vantagem de ser uma coisa nova para mim. A Clarinha amou-me; quem sabe se me não amará ainda?

Nestas e outras reflexões do mesmo teor, gastou Jorge a noite inteira. Meter-se numa aventura de romance, apaixonar-se pela prima, tinha até a vantagem de lhe dar aparências de reabilitação, pois forçosamente havia de consagrar a isso o tempo que era agora aplicado às loucuras da mocidade.

Com estas idéias, acordou no dia seguinte. Achou o pai ainda severo; e para começar a ilusão que premeditava não saiu de casa nesse dia. Recolheu-se ao gabinete, onde a mãe o foi encontrar a ler. Desse dia em diante, adotou um programa de vida, que de todo ponto iludiu a família e o padre. Silvestre recobrava a alegria que o sucesso do teatro lhe fizera perder, enquanto o padre, cheio de sincero regozijo, perdoava de coração as loucuras do rapaz. A felicidade ia renascendo naquela casa.

Até então, quando Clarinha ia visitar os tios não encontrava o primo em casa, o que era para ela uma grande felicidade. A primeira vez que lá foi, depois dos acontecimentos que acabo de referir, não só o achou em casa, mas até lhe pareceu mudado o tom das relações entre ele e os pais. Antes falavam dele com lástima, agora rejubilavam-se ao pé do filho pródigo. Marques não hesitou em manifestar o seu pasmo ao vê-lo restituído ao lar doméstico.

— Que quer? respondeu Jorge; estou curado.

— Para sempre?

— Para sempre.

Marques alegrou-se com esta alteração inesperada. Não pensou assim Clarinha, que vira na presença de Jorge um obstáculo às suas relações com os tios, não porque ainda o amasse, não porque temesse por si, mas porque ele era uma recordação viva de um passado ainda recente.

Jorge adquiriu hábitos de dissimulação que não diziam com a sua idade ainda verde. Houve-se, em relação à prima, apenas com a afabilidade ordinária; mas nem por gestos nem por palavras manifestou o menor conhecimento ou suspeita do amor que ela lhe tivera.

Não lhe escapou, entretanto, a reserva de Clarinha, a comoção que a sua pessoa lhe causava, vagos indícios de que realmente o amara antes de casar com o médico.

— Muito bem, doutor, dizia Jorge consigo; eis-te entrado em nova e melhor campanha. Até aqui tudo foram escaramuças e recontros. Ofereço-te a batalha campal: é necessário vencer ou morrer.

Jorge começou a freqüentar a casa do médico; Clarinha, ao princípio, não lhe aparecia; mas o primo era sagaz e astucioso; deu-se um dia por convidado a jantar. A moça não pôde deixar de lhe aparecer. A reserva continuou por parte dela, mas era difícil conservá-la diante das maneiras respeitosas, da linguagem afetuosa do rapaz. O pecador parecia arrependido e glorificado no céu.

De mais, Clarinha fez um raciocínio singular e perigoso, conquanto nascesse da sua consciência honrada e pura. Imaginou que este fugir ao primo era uma prova de fraqueza, um receio vergonhoso, e que mais servia os deveres conjugais afrontando a pessoa que amara do que fugindo-lhe. Fugir-lhe era reconhecer um resto de poder que ela vira estar já extinto.

Não tardou, pois, que entre os dois se estabelecesse a intimidade antiga, intimidade que aliás fora sempre aparente e superficial. Jorge iludiu-se a respeito do pensamento da moça; julgou que o amor lhe havia renascido, e que ela dava o primeiro passo para ele. Ainda assim, não julgou prudente arriscar um passo que podia ser fatal.

— Cansemos o inimigo, refletia ele; é uma tática boa, tática de guerra.

E com este pensamento deixou correr os dias sem romper o silêncio que se impusera.

Jorge notava o desvelo da moça pelo marido, o afeto que lhe manifestava, a paz que reinava entre ambos, e invejava a sorte do primo. Pode-se dizer que só então lhe começou a raiar, tenuíssimo embora, um raio de redenção. O espetáculo da felicidade alheia convidou-o a buscar a própria felicidade, mas ele reconheceu que a única possível era aquela, e aquela estava perdida para ele.

Um dia de manhã, entre o charuto e o café, fez consigo a seguinte reflexão:

— Mas que estou eu a fazer? Isto não pode continuar nesta situação; é preciso sair da inação. A rapariga já há de fazer de mim uma tristíssima idéia.

Nesse mesmo dia, estando a conversar com a prima, disparou-lhe à queima-roupa uma declaração de amor.

Clarinha levantou-se indignada, e respondeu com um silêncio de desprezo à declaração do primo; saiu da sala e deixou-o só.

Não desanimou o rapaz. Deixou de lá ir alguns dias; mas voltou com a família. Clarinha não pôde deixar de vir à sala. Jorge compreendeu que a prima não havia de referir ao médico o que se passara entre ambos.

— Bem, pensou ele, nem tudo está perdido.

Com o tempo, foi renovando a situação anterior. Um dia, escreveu uma carta à moça, e deixou-lha sobre o piano na ocasião em que ela tocava. Clarinha debalde chamou por ele.

— Há de abrir a carta, disse Jorge.

Não a abriu. Quando ele lá foi entregou-lha intacta:

— Primo, disse ela; reconheça na minha bondade uma prova do afeto de parente que lhe tenho; porque é bondade ter ouvido da sua boca palavras insultantes e de eu não ter, como devera, comunicado a meu marido. Se alguma coisa, entretanto, pode reparar o seu erro, é esquecer-se de que eu existo e não voltar à minha casa.

— Mas por que razão é assim cruel comigo? disse Jorge, procurando dar à voz um tom de lástima e desespero. Clarinha não respondeu.

— E todavia, continuou Jorge, houve um tempo...

A moça levantou a cabeça e cravou nele um olhar de espanto.

— Houve um tempo em que o seu coração palpitou por mim.

— Está dizendo uma loucura, respondeu Clarinha empalidecendo; tratei-o sempre com estima; mas... aí vem meu marido; ouse repetir diante dele a afronta que me faz.

Marques vinha efetivamente no corredor e entrou logo na sala. Clarinha levantara a voz nas últimas palavras para que ele as ouvisse; preferia uma solução violenta; Marques, entretanto, não ouvira as palavras da mulher; entrou alegremente na sala, e apertou com efusão a mão de Jorge.

Jorge deixou de lá ir três dias; no quarto dia entrou pela sala com a franqueza que a intimidade lhe dava, e que Marques estabelecera como uma condição das relações entre as famílias.

Marques estava no sofá; Clarinha, sentada em um banquinho a seus pés, olhava para ele com uma expressão tão suave de afeição e respeito, que o moço curvou insensivelmente a cabeça. Mas foi então que, pela primeira vez, a serpente do ciúme lhe mordeu no coração.

— Entre, disse o médico, vendo que o primo parara à porta; não se assuste: são duas criaturas felizes, e felizes um pouco por sua causa.

Clarinha olhou para o marido.

— Admiras-te? disse Marques à mulher; foi ele quem me animou quando eu apenas ousava querer-te em silêncio. A idéia de escrever a primeira carta, à qual não deste resposta, foi do nosso amigo Jorge.

— Ah! disse a moça.

E estendendo a mão ao primo, acrescentou:

— Obrigada!

A expressão de felicidade com que ela fez este gesto e disse esta palavra, encheu de júbilo o marido; enquanto Jorge, despeitado e picado de ciúme, mal tocara os dedos da moça.

Esta, porém, ficara pensativa.

— Não sabia então nada naquele tempo, dizia ela consigo; mas quem lhe confiara o meu coração? O padre... Impossível!... E contudo ninguém mais o sabia; foi ele, foi. Com que fim?