O Cemitério dos Vivos/II/II

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Entrei no hospício no dia de Natal. Passei as famosas festas, as tradicionais festas de ano, entre as quatro paredes de um manicômio. Estive no pavilhão pouco tempo, cerca de vinte e quatro horas. O pavilhão de observação é uma espécie de dependência do hospício a que vão ter os doentes enviados pela polícia, isto é, os tidos e havidos por miseráveis e indigentes, antes de serem definitivamente internados.

Em si, a providência é boa, porque entrega a liberdade de um indivíduo, não ao alvedrio de policiais de todos os matizes e títulos, gente sempre pouco disposta a contrariar os poderosos; mas à consciência de um professor vitalício, pois o diretor do pavilhão deve ser o lente de psiquiatria da faculdade, pessoa que deve ser perfeitamente independente, possuir uma cultura superior e um julgamento no caso acima de qualquer injunção subalterna.

Entretanto, tal não se dá, porque as generalizações policiais e o horror dos homens da Relação às responsabilidades se juntam ao horror às responsabilidades dos homens do pavilhão, para anularem o intuito do legislador.

A polícia, não sei como e porquê, adquiriu a mania das generalizações, e as mais infantis. Suspeita de todo o sujeito estrangeiro com nome arrevesado, assim os russos, polacos, romaicos são para ela forçosamente cáftens; todo o cidadão de cor há de ser por força um malandro; e todos os loucos hão de ser por força furiosos e só transportáveis em carros blindados.

Os super-agudos homens policiais deviam perceber bem que há tantas formas de loucura quanto há de temperamentos entre as pessoas mais ou menos sãs, e os furiosos são exceção; há até dementados que, talvez, fossem mais bem transportados num coche fúnebre e dentro de um caixão, que naquela antipática almanjarra de ferro e grades.

É indescritível o que se sofre ali, assentado naquela espécie de solitária, pouco mais larga que a largura de um homem, cercado de ferro por todos os lados, com uma vigia gradeada, por onde se enxergam as caras curiosas dos transeuntes a procurarem descobrir quem é o doido que vai ali. A carriola, pesadona, arfa que nem uma nau antiga, no calçamento; sobe, desce, tomba pra aqui, tomba para ali; o pobre-diabo lá dentro, tudo liso, não tem onde se agarrar e bate com o corpo em todos os sentidos, de encontro às paredes de ferro; e, se o jogo da carruagem dá-lhe um impulso para frente, arrisca-se a ir de fuças de encontro à porta de praça-forte do carro-forte, a cair no vão que há entre o banco e ela, arriscando a partir as costelas... Um suplício destes, a que não sujeita a polícia os mais repugnantes e desalmados criminosos, entretanto, ela aplica a um desgraçado que teve a infelicidade de ensandecer, às vezes, por minutos...

É uma providência inútil e estúpida que, anteriormente, em parte, me aplicaram; contudo, posso garantir que iria para o hospício muito pacificamente, com qualquer agente, fardado ou não. Era o bastante que me ordenassem segui-lo, em nome do poderoso chefe de polícia, eu obedeceria incontinenti, porquanto estou disposto a obedecer tanto ao de hoje como ao de amanhã, pois não quero, com a minha rebeldia, perturbar a felicidade que eles vêm trazendo à sociedade nacional, extinguindo aos poucos o vício e o crime, que diminuem a olhos vistos.

Por mais passageiro que seja o delírio, um ergástulo ambulante dessa conformidade só pode servir para exacerbá-lo mais e tornar odiosa aos olhos do paciente uma providência que pode ser benéfica. A medicina, ou a sua subdivisão que qualquer outro nome possua, deve dispor de injeções ou lá que for, para evitar esse antipático e violento recurso, que transforma um doente em assassino nato involuído para fera.

Dessa feita, porém, pouparam-me o carro-forte. Fui de. automóvel e desde o Largo da Lapa sabia para onde ia. Não tive o menor gesto de contrariedade, quando percebi isto, embora me aborrecesse passar pelo pavilhão.

Não guardava nenhum ressentimento dessa dependência da assistência a alienados, mas o seu horror à responsabilidade, que o impede de dar altas por si, fazia-me ver que eu, apesar de sentir-me perfeitamente são, tendo de passar por ele, teria forçosamente de ficar segregado mais de um ou dois meses, entre doentes de todos matizes, educação, manias e quizílias. Tristes e dolorosas lembranças...

Feria-me também o meu amor-próprio ir ter ali pela mão da polícia, doía-me; e, mais me doeu, quando, nesse dia de Natal, eu tomei café num pátio, sem ser mesa, e, sem ser em mesa, com prato sobre os joelhos, comi a refeição elementar que me deram, servida numa escudela de estanho e que eu levava à boca com uma colher de penitenciária. Jamais pensei que tal coisa me viesse acontecer um dia; hoje, porém, acho uma tal aventura útil, pois temperou o meu caráter e certifiquei-me capaz de resignação.

Quando, pela primeira vez, me recolheram ao hospício, de fato a minha crise era profunda e exigia o meu afastamento do meio que me era habitual, para varrer do meu espírito as alucinações que o álcool e outros fatores lhe tinham trazido. Durou ela alguns dias seguintes; mas, ao chegar ao pavilhão, já estava quase eu mesmo e não apresentava e não me conturbava a mínima perturbação mental. Em lá chegando, tiraram-me a roupa que vestia, deram-me uma da "casa", como lá se diz, formei em fileira ao lado de outros loucos, numa varanda, deram-me uma caneca de mate e grão e, depois de ter tomado essa refeição vesperal, meteram-me num quarto-forte.

Até ali, apesar de me terem despido à vista de todos — coisa que sempre me desagradou — não tinha razão de queixa; mas aquele quarto-forte provocou-me lágrimas. Eis em que tinham dado os meus altos projetos de menino. Por aí, não sei porquê, me lembrei de minha mulher morta, cuja lembrança o delírio tinha afastado de minha mente; ganhei mais forças e entrei mais confiante naquela prisão inútil...

Aí, tive três companheiros, dos quais dois eram inteiramente insuportáveis, que, a bem dizer, não me deixaram dormir. Um deles era um velho de cerca de sessenta anos, com umas veneráveis barbas de imagem, alto, a que chamavam os outros por São Pedro; o outro era um português esguio, anguloso, mas sólido de músculos e de pés.

Tinha este a mania de sapatear com força e gesticular como se guiasse animais de carro ou carroça. Soltava, de onde em onde, interjeições, assovios; e fazia outros gestos e sinais usados pelos cocheiros, ao mesmo tempo que imitava com os pés o esforço de tração dos burros, quando se apóiam nas patas a que o chão foge, a fim de arrastar a carroça. Não esquecia de chamar as imaginárias alimárias pelos seus nomes de cocheira:

— Eia, Jupira! Acerta, Corisco!

"São Pedro" ficava, enquanto isto, ficava em outro canto, rezando, à meia voz, litanias, ou a orar em voz alta, tudo acompanhado de persignações rituais.

Em certas ocasiões, o palafreneiro e as invisíveis bestas corria para onde estava aquele, cego inteiramente. "São Pedro" afastava-se, mas prorrompendo em injúrias muito pouco próprias a um santo tão venerável.

Quando não encontrava, de pronto, caminho livre para a sua fuga, atirava-se para qualquer lado. Mais de uma vez, quer um quer outro, quase me pisaram em cima da simples enxerga de capim que, com um travesseiro e uma manta, me haviam dado, para dormir.

De uma feita, fugi de vez para a cama de um deles. Parecia-me que lá ficaria mais sossegado. Foi por aí que interveio o quarto companheiro. Era um preto que tinha toda a aparência de são, simpático, com aqueles belos dentes dos negros, límpidos e alvos, como o marfim daqueles elefantes que as florestas das terras dos seus pais criam. A sua aparência de sanidade era ilusória; soube, mais tarde, que ele era um epiléptico declarado. O crioulo, vendo o meu embaraço e a minha falta de hábito daquela hospedaria, gritou enérgico:

— "São Pedro" vai rezar lá pra porta! E você, cavalgadura (falava ao português), fica dando coices à vontade, mas na cama de você... Deixa o rapaz dormir sossegado!

Agradeci ao negro e ele se pôs a conversar comigo. Respondi-lhe com medo e cautela. Hoje, não me lembro de tudo o que ele me perguntou e do que lhe respondi; mas de uma pergunta me recordo:

— Você não foi aprendiz marinheiro?

Esta pergunta me pôs bem ao par da situação onde tinha caído; era ela tão humilde e plebéia, que só se podia supor de mim, na vida, essa iniciação modestíssima de aprendiz marinheiro. Verifiquei tal fato, mas não me veio — confesso — um desgosto mais ou menos forte. Tive um desdém por todas as minhas presunções e filáucias, e até fiquei satisfeito de me sentir assim. Encheu-me de contentamento tirar a prova provada de que, na vida, não era coisa alguma; estava mais livre, e os ventos e as correntes podiam-me levar de pólo a pólo, das costas da África às ilhas da Polinésia...

No dia seguinte, quando o guarda que nos veio abrir a porta, deu-me uma vassoura e um pano com que eu ajudasse a ele e outros a baldear o quarto-forte e a varanda, não fiz nenhum movimento de repulsa. Tomei os dois objetos e cumpri docilmente o mandato. O que me aborreceu, porém, foi a minha falta de forças e hábito de abaixar-me, para realizar tão útil serviço. Havia-me preparado para todas as eventualidades da vida, menos para aquela, com que não contei nunca. Imaginei-me amarrado para ser fuzilado, esforçando-me para não tremer nem chorar; imaginei-me assaltado por facínoras e ter coragem para enfrentá-los; supus-me reduzido a maior miséria e a mendigar; mas por aquele transe eu jamais pensei ter de passar... Realizei, entretanto, o serviço até o fim, e foi com uma fome honesta que comi pão e tomei café.

A faina não tinha cessado, e fui com outros levado a lavar o banheiro. Depois de lavado o banheiro, intimou-nos o guarda, que era bom espanhol (galego) rústico, a tomar banho. Tínhamos que tirar as roupas e ficarmos, portanto, nus, uns em face dos outros. Quis ver se o guarda me dispensava, não pelo banho em si, mas por aquela nudez desavergonhada, que me repugnava, tanto mais que até de outras dependências me parecia que nos viam. Ele, com os melhores modos, não me dispensou, e não tive remédio: pus-me nu também. Lembrei-me um pouco de Dostoiévski, no célebre banho da Casa dos Mortos; mas não havia nada de parecido. Tudo estava limpo e o espetáculo era inocente, de uma traquinada de colegiais que ajustaram tomar banho em comum. As duchas, principalmente as de chicote, deram-me um prazer imenso e, se fora rico, havia de tê-las em casa. Fazem-me saudades do pavilhão...

O guarda, como já disse, era um galego baixo, forte, olhar medido, sagaz e bom. Era um primitivo, um campônio, mas nunca o vi maltratar um doente.

A sua sagacidade campônia tinha emprego ali no adivinhar as manhas, planos de fuga dos clientes, e mais maroscas deles; mas, pouco habituado às coisas urbanas, diante daquela maluqueira toda, uniformemente vestida, não sabia distinguir em nenhum deles variantes de instrução e educação; para ele, devia ser o seu pensar, e isto sem maldade, todos ali eram iguais e deviam saber baldear varandas.

Teria para si, sem desprezar nenhum, que aqueles homens todos que para ali iam, eram pobres, humildes como ele e habituados aos mesteres mais humildes, senão, iriam diretamente para o hospício. Não deviam, por conseqüência da vexar-se por executá-los.

Desde lá, não o levei a mal, por ter-me conduzido àquelas baldeações. Estava ele no seu papel, tanto mais que eu não era melhor do que outros a que o Destino me nivelara. Sofri, com resignação e, como já disse, às vezes mesmo com orgulho, o que poderia parecer a outrem humilhação. Esqueci-me da minha instrução, da minha educação, para não demonstrar, com uma inútil insubordinação, como que uma injúria aos meus companheiros de Desgraça. Não reclamei; não reclamo e não reclamarei; conto unicamente.

Parece-me que ele gostou da minha obediência, pois deu-me cigarros; e, naquele dia ou no seguinte, escolheu-me para ir varrer os canteiros do jardim, isto é, os que circulavam o edifício da enfermaria.

Por essa ocasião, confesso, vieram-me as lágrimas aos olhos. Já não era mais o varrer, porque, mais de uma vez, varri a minha residência; em menino, minha mãe fazia-me varrer a casa e fazer outros serviços menores, para não ficar em prosa; quando estudante, para poupar dinheiro, vasculhava o meu cômodo. Não era o varrer; era o varrer quase em público, sob o olhar de tanta gente a que não ligava a infelicidade comum.

Veio-me, repentinamente, um horror à sociedade e a vida; uma vontade de absoluto aniquilamento, mais do que aquele que a morte traz; um desejo de perecimento total da minha memória na terra; um desespero por ter sonhado e terem me acenado tanta grandeza, e ver agora, de uma hora para outra, sem ter perdido de fato a minha situação, cair tão, tão baixo, que quase me pus a chorar que nem uma criança.

Senti muito a falta de minha mulher e toda a minha culpa, puramente moral e de consciência, subiu-me à mente... Pensei... Não... Não... Era um crime...

Tomei a vassoura de jardim, e foi com toda a decisão que, calçado com uns chinelos encardidos que haviam sido de outros, com umas calças pelos tornozelos, em mangas de camisa, que fui varrer o jardim, mais mal vestido que um pobre gari.

Não dei, porém, duas vassouradas. Um rapaz de bigode alourado, baixo, vestido com aquele roupão de brim apropriado aos trabalhos de enfermaria, médico ou interno, cujo nome até hoje não sei, aproximou-se de mim, chamou-me e perguntou-me quem tinha determinado fazer eu aquele serviço. Disse-lhe e o médico ou interno determinou que encostasse a vassoura e me fosse embora. Se nesse episódio, houve razão de desesperar, houve também a de não perder a esperança nos homens e na sua bondade.

Disse mais atrás que tinha do pavilhão recordações tristes e dolorosas. Uma delas é a desse episódio e a outra é do pátio, do terreiro em que estávamos encurralados todo o dia, até vir a hora de ir para os dormitórios, pois eu estava num bem asseado.

Habituado a andar por toda a parte, a fantasiar passeios extravagantes, quando não me prendem as obrigações de escrever e de ler, ou então a estar na repartição, enervava-me ficar, bem doze horas por dia, em tão limitado espaço, sob a compassiva sombra de umas paineiras e amendoeiras.

Os cigarros que tinha, fumava-os um sobre o outro, guardando as pontas para fabricar novos, com papel comum de jornal. Fumar assim era um meio de afastar o tédio. Jornais, recebia irregularmente dos meus parentes, dos meus amigos e, uma ou outra vez, do chefe dos enfermeiros, que era muito afável.

Conversar com os colegas era quase impossível. Nós não nos entendíamos. Quando a moléstia não os levava para um mutismo sinistro, o delírio não lhes permitia juntar coisa com coisa.

Um dia, um menino, ou antes, um rapaz dos seus dezessete anos, chegou-se perto de mim e me perguntou:

— O senhor está aqui por causa de algum assassinato?

Estranhei a pergunta, que me encheu de espanto.

Respondi:

— Deus me livre! Estou aqui por causa de bebida — mais nada.

O meu interlocutor acudiu com toda a naturalidade:

— Pois eu estou. O meu advogado arranjou...

Não pôde concluir. O guarda chamou-o com aspereza:

— Narciso (ou outro nome), venha para cá. Já disse que não quero você perto da cerca.

Não pude apurar a verdade do que me dizia esse tal Narciso ou que outro nome tenha. Soube que era fujão e, talvez por causa disso, foi logo transferido para o hospício propriamente.

Vivi assim cerca de uma semana, condenado ao silêncio e ao isolamento mais estúpidos que se podem imaginar, junto a uma quase imobilidade de preso na solitária.

Foram dias atrozes por isso, e só por isso, os que padeci no pavilhão; mas, em breve, depois que um médico moreno, de óculos, um moço, pois o era, em toda a linha, inteligente, simpático e bom, ter-me minuciosamente examinado o estado mental e nervoso, a monotonia do pátio foi quebrada com o fazer eu as refeições no comedouro dos enfermeiros. Deixava um pouco o pátio, aquele curral de malucos vulgares.

Pouco me recordo dos doentes que ali encontrei, a não ser do tal menino, cuja palestra comigo interrompeu-a uma reprimenda do guarda.

Não me lembro se tudo que já narrei, foi tudo o que ele me disse ou perguntou; mas, fosse delírio ou fosse verdade, é à imagem dele que ainda hoje associo a lembrança do pavilhão e a do seu pátio.

Doutra forma não era possível a contasse, à vista de um conhecimento que se trava por intermédio de tão fantástica pergunta:

— O senhor está aqui por causa de algum assassinato?

Criminoso que fosse, ele mesmo, a sua pessoa não me meteu medo, como, em geral, não me assustam os criminosos; mas a candura, a inocência e a naturalidade, em que não senti cinismo, com que ele respondeu — "pois eu estou" — causaram-me não sei que angústia, não sei que tristeza, não sei que mal-estar.

Aquele menino, quase imberbe, falava-me de seu crime, como se fosse a coisa mais trivial desta vida, um simples incidente, uma pândega ou um contratempo sem importância.

Todas as minhas idéias anteriores a tal respeito estavam completamente abaladas; e me veio a pensar, coisa que sempre fiz, no fundo da nossa natureza, na clássica indagação da sua substância ativa, na alma, na parte que ele tomava nos nossos atos e na sua origem.

Até bem pouco, quase nada me preocupava com tais questões; tinha-as por insolúveis, e tomar tempo com o querer resolvê-las era trabalho perdido. Entretanto, os transtornos e as dores da minha vida doméstica tinham-me levado às vezes a pensar nelas. Procurei estabelecer, para meu uso particular, uma teoria que, forçosamente, me saiu por demais simplista, a fim de explicar a nossa existência e a do mundo, assim como as relações entre os dois. Não tinha chegado ao mistério, ao espesso mistério impenetrável, em nós e fora de nós. Isto que escrevo, agora, aqui, não será propriamente muito meu; mas o gérmen que havia em mim não fez mais que se desenvolver mais tarde, com o adubo das idéias dos outros.

Repugnava-me personalizar com este ou aquele nome o desconhecido, o informe, o vago. Dar um apelido seria limitar o ilimitado, definir o indefinido, distinguir o indistinto, fazer perecível o imperecível. Sendo tudo, em face do nada, e nada, em face de tudo, esse ser não devia ter corpo, nem forma, nem extensão, nem movimento, nem outra qualidade qualquer com que nós conhecemos as coisas existentes. O nosso ideal, a nossa felicidade seria ser como ele, e, para alcançá-lo, devíamos procurar a nossa desincorporação, pela imobilidade e pela contemplação. O sábio é não agir. Quando li esta conclusão nos meus manuais baratos de filosofia, assustei-me. Aceitava a concepção, mas a conclusão me repugnava. Se verdade era que, em presença desse tumulto da vida, desse entrechocar de ambições, as mais vis e imundas, desse batalhar sem termo e sem causa, o homem beneficiado pela sabedoria tinha o dever superior de afastar-se disso tudo e tudo isso contemplar com piedade; era verdade também que a ação, julguei assim, seria favorável à nossa reincorporação no indistinto, no imperecível, desde que fosse orientada para o Bem. Como conhecer o Bem? O meu espírito não encontrava, para sinal de seu conhecimento, senão na revelação íntima. Os problemas últimos da nossa natureza moral, nas minhas cogitações, ficaram aí, e dei-me por satisfeito; mas — chega-me esse pequeno criminoso e me põe tudo de pernas para o ar! Por que, pensei eu, se cada consciência fala ao indivíduo de uma maneira, sobre o bem e sobre o mal, como na desse rapazola, que não podia ter sofrido outras influências duradouras que não as dele mesmo; se os homens não se encontram a respeito numa opinião única, como distingui-las — Deus do Céu?

O curto encontro com esse rapazola criminoso, ali, naquele pátio, mergulhado entre malucos a delirar, a fazer esgares, uns; outros, semimortos, aniquilados, anulados, encheram-me de um grande pavor pela vida e de um sentimento profundo da nossa incapacidade para compreender a vida e o universo.

Lembrei-me, então, dos outros tempos em que supus o universo guiado por leis certas e determinadas, em que nenhuma vontade, humana ou não, a elas estranhas, poderia intervir, leis que a ciência humana iria aos poucos desvendando... Não sorri inteiramente; mas achei tal coisa ingênua e que todo o saber humano só seria útil para as suas necessidades elementares de vida e nunca conseguiria explicar a sua origem e o seu destino. Tudo mistério e sempre mistério.

Em tal estado de espírito, penetrado de um profundo niilismo intelectual, foi que penetrei no hospício, pela primeira vez; e o grosso espetáculo doloroso da loucura mais arraigou no espírito essa concepção de um mundo brumoso, quase mergulhado nas trevas, sendo unicamente perceptível o sofrimento, a dor, a miséria, e a tristeza a envolver tudo, tristeza que nada pode espancar ou reduzir. Entretanto, pareceu-me que ver a vida assim era vê-la bela, pois acreditei que só a tristeza, só o sofrimento, só a dor faziam com que nós nos comunicássemos com o Logos, com a Origem das Coisas e de lá trouxéssemos alguma coisa transcendente e divina. Shelley, se bem me recordo, já dizia: "Os nossos mais belos cantos são aqueles que falam de pensamentos tristes"...

Toda a minha vida particular, toda a minha existência doméstica, quer de filho, quer de chefe, tendia para conceber e praticar essa concepção do Universo, só sentido e representado em nós pelos seus aspectos sombrios.

Casado, como já contei, com tantas reservas íntimas, vivi cinco anos com minha mulher, até à sua morte, na mais perfeita paz de decência doméstica. Logo após passar o meu primeiro ano de casamento, aí pelo nascimento do meu primeiro e único filho, sua mãe, a minha sogra, melhorara muito das conseqüências do ataque, ganhara quase todos os movimentos, mas de juízo não me saiu muito sã e o foi perdendo aos poucos, até chegar à mania declarada.

Foi depois da morte de Efigênia que o meu pensamento fez-me viver uma vida desnorteada, que me levou duas vezes ao manicômio.

O meu primeiro ano de casamento correu mansamente, da forma mansa e vulgar de todos os enlaces da espécie do meu. Não tinha por minha mulher grandes extremos de sentimento; dominava em mim, porém, a imagem das minhas responsabilidades de marido, e as cumpri como um dever sagrado. Estimava-a, prezava-a, mais como um companheiro, como um amigo, do que mesmo objeto de uma profunda solicitação da minha total natureza. Reprimia mesmo o mínimo movimento nesse sentido, porque sempre tive vexame, pudor de amar.

Não lhe dizia as coisas mais secretas a mim mesmo. Dos meus planos de vida, dos meus projetos intelectuais, não lhe confidenciava palavra, nem dos meus desânimos, nem dos meus desalentos. Mal lhe noticiava o aparecimento de um trabalho nesta ou naquela pequena revista ou jornal obscuro. Não só motivava isso um certo desdém pela sua inteligência e instrução, como também por temer que ela me desanimasse e censurasse os meus propósitos literários, porque ela sempre teve sobre mim um grande ascendente, senão império moral.

Os nossos sentimentos nunca são lógicos, por isso mesmo não são simples. Eu respeitava muito minha mulher, via-a, às vezes, interessada pelas minhas tentativas; mas não me queria abrir com ela, dizer tudo, temendo que a sua medíocre condição de pequena e modesta burguesa não se assustasse com as minhas ambições intelectuais. Encerrava-me em mim mesmo e sofria. Sem inquietar-me que toda a gente percebesse a minha relação íntima, para a qual não sabiam, até, onde procurar a fonte, fazia, contudo, todos os esforços, para que Efigênia não a percebesse em mim e nos meus escritos.

Veio, porém, um acontecimento, que me obrigou a desvendar-me um tanto. Graças ao meu amigo Chagas, pouco depois do nascimento de meu filho, fiz parte, como colaborador, da redação de uma revista do gênero denominado humorístico, que se acabava de fundar e era dirigida por quem sabia explorar a indústria da publicidade. Tinha eu aí um razoável ordenado mensal, que sempre empreguei honestamente, e a Gatimanhas, tal era o nome da publicação, fez sucesso. Não pude esconder isso à minha mulher e ela pareceu alegrar-se; mas, com o meu espírito sistemático, não quis ver, na sua alegria, senão o contentamento pelo acréscimo da renda do casal.

De há muito tinha abandonado a escola superior que freqüentava; e, embriagado com o sucesso de estima que ia fazendo, na revistinha, esquecia-me dos meus estudos, das minhas leituras, sem, contudo, procurar reputação no gênero que ela representava. Saía da repartição, ia ao escritório da publicação, entregava originais, conversava um pouco, jantava nos freges literários e ficava até à meia-noite nas cervejarias. Quase sempre encontrava minha mulher acordada, costurando, fazendo crochet ou mesmo lendo.

Não chegava muito são, mas minha embriaguez era discreta e pouco evidente. Nunca ela me disse nada; nunca lhe fiz a mínima má-criação. Passava assim durante a semana; e só no domingo ficava em casa ou saía com ela a passeio ou a visitas. Evitava muito estas, pois me aborreciam; eu estava naquele período inicial de literato que só quer ouvir falar de literatura ou coisas literárias. As conversas familiares me entediavam, e não sabia sustentá-las. Enquanto minha sogra não ficou declaradamente doida, era ela as mais das vezes quem acompanhava minha mulher; mas, à proporção que ensandecia, deixou de faze-lo, e eu tive de acompanhá-la.

A minha entrada na Gatimanhas e o hábito de freqüentar chopes, adquiri depois de ter meu filho, Boaventura, um ano. Antes, eu vinha cedo para a casa. Minha sogra, apesar da decadência de seu estado mental, e a preta Ana gostavam muito do pequenote, que havia nascido robusto, forte, mas com um mau feitio de cabeça, que me desgostava.

Não tinha eu, porém, conquanto pai, tanto gasto de ternura com ele; e se o queria animar e acalentar, fazia-o com a mais total falta de jeito de que uma criatura é capaz.

— Arre, Vicente! dizia minha mulher. Você não sabe pegar numa criança.

Não lhe dizia nada ou senão passava-lhe a criança, observando:

— Pega lá, você, que sabe! Isto é mesmo serviço de mulher.

Mais de uma vez, ao lhe dizer isto, minha mulher dizia, meio séria, meio brincando:

— Dá cá, meu caboclinho! Dá cá! Diz pra ele, meu filhinho, diz: deixa estar! Quando você se casar, segunda vez, há de saber também. Diz, meu filhinho.

E se punha a acalentar a criança, cantarolando qualquer coisa adequada. Em outras vezes, o diálogo continuava, desta maneira, após a minha pergunta, cheia de surpresa:

— Como é isto, Efigênia, segunda vez?

— Sim, quando eu morrer; porque eu só me casei com você, para ensinar a você estas coisas.

— Você tem cada uma... Ora, bolas!

— Qual! Eu sei... Você ganha nome, é capaz de formar-se...

— Disse a você, antes de nos casarmos, que não me formava mais, não foi? Quanto a mulher, você sabe muito bem o que vale...

— Enfeita, pelo menos.

— Se é assim, você já está recebendo os enfeites.

— A mim! Você nem ao menos me diz o que escreve...

— Foi. Mas pensei que você se entregasse a estudos altos. Você se enveredou, porém, por essas coisinhas de revistas sem importância...

Por aí, eu olhei minha mulher, espantado com a sua reflexão, e ela, que estava sentada do outro lado da mesa em que eu escrevia, olhava-me muito séria, sem dureza, debruçada, com a mão na cabeça, apoiada no móvel, com um ar misterioso que não pude decifrar.

Tentei dizer alguma coisa:

— Não dou importância a essas tolices, tanto que não as assino...

— É verdade, mas não vejo você pegar mais nos livros. Ainda ontem, vi-os tão cheios de pó, que tratei de limpá-los. Você sabe onde estava o Bouglé?

— Qual?

— La Démocratie devant...

Cada vez me espantava mais minha mulher. Com aquele interesse pelos meus livros, sabendo-lhes os nomes, os títulos... Olhei-a mais e demoradamente para ela, estava ainda na mesma postura de sondagem, de exame, de interrogação misteriosa. Não me contive:

— Efigênia, é você mesmo quem me fala?

— Sou, meu filho. Sou eu, Efigênia, tua mulher.

No momento, eu vi, na censura disfarçada de minha mulher, a manifestação de um pequeno desgosto doméstico, por chegar eu, em casa, geralmente tarde; hoje, porém, a fisionomia e a expressão de minha mulher naquela ocasião me parece totalmente outra, e, no correr da narração, eu tenho bem dito que a senti misteriosa e estranha.

Minha mulher nunca teve para mim uma palavra azeda, uma palavra má; e, conquanto às vezes birrento, mudo, nunca a tratei senão com delicadeza e cordura. Se tenho algum arrependimento das minhas relações com ela, não é por nenhum dos meus atos externos; era pela minha reserva de alma e de pensamento, que sempre mantive em face dela; é da minha incompreensão dela, enquanto viveu, e da grande esperança e do grande desejo que eu realizasse o meu destino.

Fosse pela sua meiga e disfarçada censura, fosse porque fosse, o certo é que deixei um pouco as rodas bulhentas da minha literatice incipiente, fugi aos cafés e pus-me a meditar em um livro. A obra que meditava, assim que travei conhecimento mais íntimo com a cozinha literária, percebi logo que me seria difícil publicá-la, sem que, antes, eu adquirisse um certo nome, uma certa posição que me garantisse o bem-querer dos livreiros. Demais, eu precisava anos para realizá-la, tal qual eu a meditava. Pobre, não me seria possível custear a impressão, e mesmo era preciso que eu fosse criando um núcleo de leitores. Resolvi, portanto, publicar alguma coisa que atraísse atenção sobre mim, que me abrisse as portas, como se diz, que me fizesse conhecido, mas queria pôr nessa obra alguma coisa das minhas meditações, das minhas cogitações, atacar em síntese os inimigos das minhas idéias e ridicularizar as suas superstições e idéias feitas. Pensei em diversas formas, procurei modelos, mas me veio, ao fim dessas cogitações todas, a convicção de que o romance ou a novela seria o gênero literário mais próprio, mais acessível a exprimir o que eu pensava e atrair leitores, amigos e inimigos.

Mas o romance, como a canônica literária do Rio ou do Brasil tinha estabelecido, não me parecia próprio. Seria obra muito fria, teria de tratar de um caso amoroso, ou haver nele alguma coisa de parecido com isso. Eu tinha um grande pudor de tratar de amor. Parecia-me ridículo ter esse sentimento e ainda mais ridículo analisá-lo ou tratá-lo em livro. Todo o amor, parecia isto a mim, me humilhava, e não queria o fato de descrever um qualquer encontrasse em mim prova de fraqueza e rebaixamento de mim mesmo.

Evitando o amor, voltei as minhas vistas para os grandes livros de aventuras; e, por eles, vi bem que os romances que as narram são talvez os que mais resistem ao tempo. Não foi, porém, por isso, nem mesmo pela sua aparente facilidade; foi tão-somente para evitar o escolho do Amor, que comecei a escrever um.

Tínhamos entrado no terceiro ano do casamento; meu filho já tinha dois, já tinha mais aparência de gente e me atraía com mais naturalidade de sentimento. Minha sogra não o deixava, o pequeno; era o seu enlevo, era a sua única preocupação. Tinha questões com a filha, por causa dele; atribuía-lhe a culpa das suas manhas naturais de criança, ensinava-o a andar. A velha Ana, que o era um pouco mais do que minha sogra, também tinha um grande pendor pelo pequeno, embora não demonstrasse grande simpatia por mim.

Não era bem preta e tinha sido cria do pai de minha sogra, senão filha ou parenta próxima dele. As duas velhas se tratavam pelos apelidos e por tu e você. Era você, Aninhas, pra ali; era tu, Clementina, pra lá.

Entre as duas, havia muitos vestígios daqueles singulares costumes existentes entre senhores e escravos, nas pequenas propriedades rurais, antes das agitações abolicionistas. Eram todos parentes e íntimos, mucamas e sinhazinhas. Fingia sempre não perceber a antipatia de Aninhas por mim e sempre, afora o que minha mulher lhe dava, eu lhe oferecia dinheiro, que era aceito com pressa. Tinha um fundo religioso, não era bem este ou aquele credo que a tomava: eram todos. Todo o domingo ia à missa, confessava-se e comungava com freqüência, nos dias próprios levava a benzer palmas, ramos de alecrim e arruda, mas isso não impedia que também freqüentasse sessões espíritas e procurasse feiticeiros quando julgava necessário.

Se conversava com ela, não cessava de dizer-me a todo o propósito:

— No tempo de seu Zuzu, as coisas eram outras... Havia sempre de "um tudo" a fartar em casa... Não era, Clementina?

Esse Zuzu era o falecido marido de minha sogra, que tinha umas propriedades agrícolas no Estado do Rio, mas que, depois da República, liquidara tudo e se fizera tesoureiro ou pagador de uma repartição do Ministério da Viação.

Outras vezes, quando eu estava presente, a velha Aninhas lembrava:

— Clementina, você se lembra daquele São João em que seu pai matou um boi, para receber a visita do deputado?

Minha sogra não gostava dessas rememorações; mas nada objetava, limitando-se a dizer: "Sim, eu me lembro". Minha mulher, porém, era mais franca:

— Ora, Aninhas! Águas passadas não movem moinho...

— Não movem! exclamava a velha cabrocha, tirando o cachimbo da boca. É que naqueles tempos havia "homens ...."

E olhava para mim significativamente. Compreendia que ela queria pôr nos meus olhos a grandeza passada dos parentes de minha mulher, em face da mediania atual, que, se não era eu culpado, demonstrava, por continuar ela, incapaz e indigno de me ter casado com Iaiá Figena. Disse isto a minha mulher e ela me observou:

— É assim, Aninhas: pensa sempre em muito; mas se contenta com pouco e nada exige quando não se tem. Essas lembranças do passado são para ela como os nossos sonhos de futuro.

Tive ocasião de verificar isto nos transes de vida por que vim a passar. Escrevia meu livro, mas não com seguimento e vontade. Interrompia, ora por uma coisa, ora por outra. Continuava a escrever nas minhas revistecas, para ganhar dinheiro e mesmo por gosto; mas via bem que elas não me dariam o que sonhava e estavam abaixo dos meus propósitos e da minha instrução. Procurava campo mais vasto...

Uma tarde, era domingo, estava eu sentado com minha mulher no jardim, quando ela me perguntou:

— Você leu a opinião de F. sobre o livro do teu amigo Oliveira?

— Li.

— Achei justa.

— Você o leu?

— Li. Ele não ofereceu a você? Peguei-o em cima da mesa e li-o... Uma coisa, Vicente?

— Que é?

— Você abandonou a sua obra?

Não tinha dito nunca a minha mulher que fazia uma tentativa literária, mas não escondia nada, nem fechava móvel algum. Espantei-me e indaguei:

— Como é que você sabe disso?

— Muito simplesmente: via você escrever tantas folhas de papel e descobri que você fazia uma obra.

Fiquei envergonhado e arrependido com aquela falta de franqueza com minha mulher e tentei uma desculpa:

— Não disse isso a você porque podia falhar e...

— Mas que mal havia nisso para a sua mulher, Vicente? Você tem vexames, temores, com sua mulher? O que é preciso é acabá-lo... Há quase um mês que você não escreve nele...

— Como é que você sabe disso?

— Antes de São João, você estava na página cento e catorze; ontem, eu vi que você continuava na mesma página, e nós estamos em fins de julho!

Todo esse interesse de minha mulher pelos meus trabalhos, pela minha vida mental, passava-me desapercebido. Eu os não unia, eu os não coordenava, para completar a figura dela, a sua inteligência, o seu amor por mim. Duas coisas levavam-me a isto: a certeza de que não é dado as mulheres brasileiras de seu nascimento se preocuparem com essas coisas, e o meu vexame de fazer confidências a quem quer que fosse do que planejava em letras.

A intervenção dela, porém, não foi em vão. Terminei a obra e, apesar de antemão saber que não arranjaria editor, procurei um, dois, três. Todos eles me diziam: "O senhor já mostrou a F.?" "Não", dizia eu. "Deve mostrar", objetavam; e restituíam-me o manuscrito intacto. Não conhecia nem fulano, nem beltrano, e desconfiava que eles não gostassem da minha literatura, das minhas poucas opiniões existentes no livro, na forma da narração e, sobretudo, a timidez junto ao orgulho impediam-me de pedir-lhes opinião.

Correram tempos e minha mulher, vendo-me uma vez ler o meu manuscrito, ao trazer-me café que lhe pedi, perguntou-me:

— Você por que não publica isto?

— Não há quem o queira imprimir.

— Publique você mesmo. Custa caro?

— Muito.

Ela convenceu-me que devia pedir emprestado o dinheiro necessário sobre os meus vencimentos. Assim fiz, e o livro ia em meio da composição, quando ela adoeceu gravemente. A sua moléstia foi dolorosa e duradoura. Mais de quatro meses, ela esteve acamada, morrendo aos bocados. No fim, só tinha de humano o olhar, aquele seu olhar vivo, penetrante, com expressões indefiníveis. Penou muito e muito me fez penar. No fim, parecia estranha a tudo, até ao filho, até à mãe, e estava já quase assim, quando me fez aquela recomendação:

— Você deve desenvolver aquela história da rapariga num livro...

Já estava morta, quando meu livro apareceu. Vendi toda a edição quase pelo preço de impressão, para pagar dívidas, e ma comprou um daqueles livreiros que me editara. Não pude desagravar os meus ordenados; a minha colaboração rendia pouco. Minha sogra, depois da morte da filha, ficou aluada. Não se movia do lugar, não queria sair, não queria ver ninguém. Os atos e requerimentos para receber a sua pensão de montepio, era uma dificuldade para obter dela a assinatura. Do pequeno, cuidava, mas a seu jeito; enfurecia-se com qualquer repreensão a ele e a todo o instante relembrava-lhe a mãe:

— É isto, a Efigênia não está aí...

O meu consolo era o meu livro. A crítica assinada, a responsável, honrou-o muito, particulares insuspeitos gabaram-mo à queima-roupa. Ele era cochichado, e eu pressentia no ar a emoção e a surpresa que tinha causado.

Devia alegrar-me, mas a alegria que me podia causar era abafada pelas minhas dificuldades de dinheiro e pela doença de minha sogra.

Ela sempre me estimara, eu via bem; ela sempre me quisera, eu percebia; ela mesma fora que nos casara; mas a loucura sua, que ia a passos largos, como sempre, virava-se para os parentes próximos e para as pessoas amigas.

Sem aproveitar o pequeno e restrito sucesso que havia obtido, eu não sabia como haver dinheiro. Não queria tentar o jornal. Muitas coisas me faziam pensar. Repugnava-me aceitar um lugar subalterno, sentia-me capaz de outra coisa; mas, ao mesmo tempo, não me queria hipotecar por gratidão ou dinheiro a pessoas e influências, que fariam sepultar em mim as minhas idéias e abafar a paixão com que elas deviam ser expostas.

Voltou-me o hábito de beber, e, desta vez, sem dinheiro, mal vestido, sentindo a catástrofe próxima da minha vida, fui levado às bebidas fortes e, aparentemente, baratas, as que embriagam mais depressa. Desci do whiskhy, à genebra, ao gin e, daí, até à cachaça.

Tinha recebido um sobrinho para se empregar no Rio, no decorrer desses cinco anos que mediaram entre a morte de minha mulher e a minha primeira entrada no hospício. Era um rapaz simples, bom, de pouca instrução e inteligência. Filho de uma irmã que ficara e se casara no interior, eu não o conhecia; mas foi bom para mim. Ele e a preta Aninhas.

Esta perdera a antipatia por mim, adivinhava-me as dificuldades, não todas, e, das origens, ela só supunha consolar-me da morte de Efigênia:

— Sossega, "seu" Mascarenhas! dizia-me ela em certas manhãs que eu amanhecia terrível. Que se há de fazer? Deus assim quis.

Meu filho crescia sob os cuidados desta pobre rapariga. Ele tinha pouco mais de dois anos, quando a mãe morreu. Pouco depois dos cinco, veio a ter em certas noites umas convulsões, um choro, um tremer que me assustou. Levei-o a um médico, meu amigo.

— Mascarenhas, disse-me ele, toma cuidado com este teu filho... Evita contrariá-lo...

Deu-me uma poção calmante e não me quis dizer mais nada. Foi crescendo e, aos sete anos, tentei ensinar-lhe a ler. Começava "a-e-i-o-u"; quando passei a juntar as letras, ele ia até certo ponto e desandava a chorar. Minha sogra intervinha, às vezes com bons modos, às vezes malcriada:

— Deixem o pequeno! Malvados!

Tentava convencê-la, mas era em vão. Tratei de experimentar o colégio; a professora me disse que era dócil, o meu filho, mas não sabia o que tinha ele. A verdade é que não havia jeito de poder-lhe prender a atenção na cartilha.

Tinha trinta e poucos anos, um filho fatalmente analfabeto, uma sogra louca, eu mesmo com uma fama de bêbedo, tolerado na repartição que me aborrecia, pobre, eu vi a vida fechada. Moço, eu não podia apelar para minha mocidade; ilustrado, não podia fazer valer a minha ilustração; educado, era tomado por um vagabundo por todo o mundo e sofria as maiores humilhações. A vida não me tinha mais sabor e parecia que me abandonava a esperança.

Depois de beber consecutivamente durante unia semana, certa noite, amanheci de tal forma gritando e o dia seguinte passei de tal forma cheio de terrores, que o meu sobrinho André, que já era empregado e muito me auxiliava, não teve outro remédio senão pedir à polícia que me levasse para o hospício.

Foi esta a primeira vez.

III

O espetáculo da loucura, não só no indivíduo isolado, mas, e sobretudo, numa população de manicômio, é dos mais dolorosos e tristes espetáculos que se pode oferecer a quem ligeiramente meditar sobre ele. Dizia Catão que os sábios tiram mais ensinamentos dos loucos que estes deles. Deve ser assim, conforme quem os interpela e o tempo que o faz, mas o certo é que, à primeira vista, o ensinamento não é, como queria o orgulho romano, para melhoramento e progresso dos ajuizados; ao contrário, a primeira impressão é de abjeção para o espírito, pelo enigma que nele se põe, diante de uma misteriosa interrogação sem resposta. Donde vem isto? Que inimigo da nossa espécie é esse que se compraz em nos rebaixar?

No pavilhão, devido ao número exíguo de doentes, não se sente bem essa dor especial, esse tomado de amargura pelo nosso destino, o nosso pensamento não se angustia tanto em querer resolver tão sombrio problema da nossa existência que a loucura provoca; mas na Seção Pinel é de abater, é de esmagar, a contemplação, o contato, o convívio com quase duas centenas de loucos.

Da primeira vez, não saí do pavilhão para essa seção, que é a dos gratuitos, a dos indigentes, mas, na qual, como uma consideração que a bondade da administração pode ter, sem ferir os regulamentos, há muitos que não o eram. De forma que, quando saí do pavilhão, para ela, na segunda vez, foi-me um espetáculo novo, inédito, denso, a que fui obrigado a assistir nela.

Logo após o café, fui chamado à presença de um jovem médico, muito simpático, pouco certo dos seus poderes para curar-me. Fez-me umas perguntas, e senti mesmo que seu desejo era mandar-me embora. Disse-me mais ou menos isso, ou melhor, as suas palavras foram estas, depois de dizer o que eu tinha tido:

— Não há dúvida... Mas o senhor ou você — não me recordo — veio pela polícia, tem que se demorar um pouco.

Concordei e voltei para o pátio. Vestia umas calças que me ficavam pelas canelas, uma camisa que me ficava pela metade do antebraço. Um tal vestuário me aborrecia deveras e não porque eu me julgava mais ínfimo ali com ele do que se outro tivesse. Pouco tempo depois, fui de novo para a varanda, onde me puseram num banco, ao lado de outros companheiros. Estava em uma extremidade, e o doente a meu lado era um preto moço, tipo completo do espécimen mais humilde da nossa sociedade.

Era ocasião da visita do médico-em-chefe, que me conhecia de vista e eu a ele; mas não fez alusão a isso, e também não me dei por achado. Sempre me disseram um excelente rapaz, mas o supunha muito cheio de certeza, por isso embirrava com ele.

Acabada a visita do médico-em-chefe, voltei para o terreiro, à espera da minha alta. Estava certo dela; e, quando o enfermeiro-mor me chamou do alto da varanda que dava para onde eu estava sentado, sorri de alegria.

Esse enfermeiro não me fez mal algum, mas impliquei com ele. Era alto, bem apessoado, tinha uma fisionomia bragantina, papada, bochechas, olhos pequenos... O guarda-civil que me esperava no portão do hospício, chamou-o de doutor e ele se deixou tratar assim. Pareceu-me um pouco pedante; se não me maltratou, tratou-me com desdém e sobranceria... Muitas vezes, rio-me interiormente, quando tal acontece, mas com ele irritei-me.

Veio-me chamar e levantei-me alvissareiro:

— Venha cá!

Olhando para ele, perguntei:

— Eu?

— Sim, você.

Levou-me o bragantino por corredores e pátios até ao hospício propriamente. Aí é para não me ir embora, mas ficar.

— Não vou-me embora?

— Não; você fica.

Ainda esperei que fosse cair na seção dos pensionistas; mas assim não foi. Entrei para a Pinel, para a seção dos pobres, dos sem-ninguém, para aquela em que a imagem do que a Desgraça pode sobre a vida dos homens é mais formidável e mais cortante.

O mobiliário, o vestuário das camas, as camas — tudo é de uma pobreza sem-par. O acúmulo dos doentes, o sombrio da dependência que fica no andar térreo e o pátio interno é quase ocupado pelo pavilhão das latrinas de ambos os andares — tirando-lhe a luz, tudo isso lhe dá má atmosfera de hospital, de emanações de desinfetantes, uma morrinha terrível.

Os loucos são de proveniências as mais diversas; originam-se, em geral, das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São pobres imigrantes italianos, portugueses, espanhóis e outros mais exóticos; são negros roceiros, que levam a sua humildade, teimando em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira ensebada e uma manta sórdida; são copeiros, são cocheiros, cozinheiros, operários, trabalhadores braçais e proletários mais finos: tipógrafos, marceneiros, etc.

No meio desse baralhamento de homens de tão diferentes raças e educação, fazem-se às vezes descobertas. Um dia, um maluco diz a outro:

— Você sabe? Aquele novo é padre.

— Qual?

— Aquele alemão, que veio há dias do pavilhão.

A notícia corre de boca em boca e vai até ao enfermeiro-chefe. Este, então, verifica e procura melhorar o tratamento do pobre náufrago da vida.

Quando lá estive, havia um religioso alemão ou teuto-brasileiro, moço, forte, silencioso, com aquele doce olhar que há em certos alemães, em que a gente vê o mar raso e a areia faiscando no fundo. Parecia um frade concentrado e, sem rezar, parecia rezar, andando de um lado para outro do corredor. Pelo que se entendia do seu português, ele o falava bem, com certo acento, mas correto. Não se o entendia, porque não pronunciava as palavras: balbuciava, ciciava...

Vi também o D. L., meu antigo conhecido, poeta das pequenas coisas, paródias, sonetos satíricos. Era companheiro do T., que foi meu colega de colégio, e agora se fez esquecer; mas foi um grande estróina. D. L. montou um colégio num arrabalde modesto e, segundo notícias, ele prosperou. Deixou de andar em rodas dos literatos, parece que estudou, pois eu o conheci com pouca instrução, e os seus discípulos gabavam-lhe o saber e o método. Veio, porém, a equiparação ao ginásio, ele não tinha dinheiro, para equiparar o seu colégio ao oficial, foi perdendo alunos, endividou-se e enlouqueceu.

Foi o primeiro a me falar e, pelo jeito com que o fez, parecia que me esperava ali desde muito tempo...

Fui de novo à presença de um médico; era também moço, mas não tão cético como o primeiro que me viu no pavilhão, nem tão crente como o chefe deste. Interrogou-me pacientemente, sobre o meu delírio, sobre os meus hábitos e antecedentes. Disse-lhe toda a verdade. Não me desgostou este médico, senão quando ele me perguntou assim, com um pouco de menosprezo:

— O senhor colabora nos jornais?

— Sim, senhor; e já até publiquei um livro.

O doutor, por aí, sorriu desdenhosamente, mas foi um instante. Saí do exame e fiquei pelos corredores. Eu tinha passado bem a noite passada; mas tudo aquilo me parecia mais extravagante. Como é que eu, em vinte e quatro horas, deixava de ser um funcionário do Estado, com ficha na sociedade e lugar no orçamento, para ser um mendigo sem eira nem beira, atirado para ali que nem um desclassificado?

Por que o Estado queria-me gratuito, comendo à sua custa, quando era mais simples tomar-me o ordenado e dar-me pelo menos um paletó?...

Recordei-me um pouco da casa do meu sobrinho, da sua infantil mania de supor que o hospício me curava e de supor que era o álcool e as companhias que me punham a delirar. O meu sofrimento era mais profundo, mais íntimo, mais meu. O que havia no fundo dele, eu não podia dizer, a sua essência era meu segredo; tudo mais: álcool, dificuldades materiais, a loucura de minha sogra. a incapacidade de meu filho, eram conseqüências dele e do desnorteamento em que eu estava na minha vida. Depois de quase dez, ou antes, logo nos primeiros anos da morte de minha mulher, é que eu senti bem a falta dela e que me convenci que ela viera ao meu encontro, para realizar o meu destino e o meu sonho. Perdida ela, perdida nas condições em que foi, parecia-me que eu tinha praticado um crime, uma falta grave, sem remédio e sem resgate. Embora não a tivesse nunca maltratado de nenhuma sorte, eu me sentia culpado por não a ter compreendido em tempo, por não a ter adivinhado.

Vinha-me um desespero íntimo, um aborrecimento de mim mesmo, um sinal da evidência da minha incapacidade para qualquer obra maior, pois — raciocinava eu — quem teve um ente humano a seu lado, com ele viveu na mais total intimidade em que dois entes humanos podem viver, não o compreendeu, não pode absolutamente compreender mais coisa alguma. E eu atirava meus livros para o lado, e eu me punha a beber, e eu não tratava do meu, e eu me queria anular, ficar um desclassificado, uma bola de lama aos pontapés dos polícias...

Não tinha lido o trecho de Plutarco a que aludi, pois o li no próprio hospício; mas, agora, relembrando as minhas impressões, sinto bem que ele tem bastante razão. Eu estava ajuizado e tinha muito que aprender com loucos.

Da primeira vez, não me demorei observando loucos. Revoltei-me, censurei meu sobrinho; mas desta vez, voltava mais capaz de fazê-lo. Eu me tinha esquecido de mim mesmo, tinha adquirido um grande desprezo pela opinião pública, que vê de soslaio, que vê como criminoso um sujeito que passa pelo hospício, eu não tinha mais ambições, nem esperanças de riqueza ou posição: o meu pensamento era para a humanidade toda, para a miséria, para o sofrimento, para os que sofrem, para os que todos amaldiçoam. Eu sofria honestamente por um sofrimento que ninguém podia adivinhar; eu tinha sido humilhado, e estava, a bem dizer, ainda sendo, eu andei sujo e imundo, mas eu sentia que interiormente eu resplandecia de bondade, de sonhos de atingir a verdade, do amor pelos outros, de arrependimento dos meus erros e um desejo imenso de contribuir para que os outros fossem mais felizes do que eu, e procurava e sondava os mistérios da nossa natureza moral, uma vontade de descobrir nos nossos defeitos o seu núcleo primitivo de amor e de bondade.

O hospício me retemperava. Lembrava-me do plano de minha obra, dos grandes trabalhos que ela demandava, dos estudos que pedia; e, de mim para mim, eu me prometia levá-la a cabo, empregando todos os argumentos, tirando-os de toda a parte, não só os lógicos, como os sentimentais; havia de escrevê-la, empregando todos os recursos da dialética e da arte de escrever.

Voltava-me para trás da minha vida e lá via minha sogra louca, às vezes, delirando; às vezes, calada, a olhar tudo com um olhar intraduzível e sobretudo meu filho, seu neto, que passava dos dez anos e não sabia absolutamente nada. Não havia ameaça, não havia afago, não havia promessa que o fizesse dar um pouco de atenção à cartilha. Eu não sabia o que fazer. Deixava o tempo correr; e, quando me vinha a idéia que havia de ter um filho completamente analfabeto, eu amaldiçoava tudo e me arrependia de tê-lo gerado. No hospício, porém, estas duas lembranças dolorosas não me abatiam tanto quanto em casa ou solto em qualquer parte. A conclusão a que chegava era ser preciso transmontá-las, para executar o meu propósito de moço e o meu sonho de menino...

— "Seu" Vicente, venha ver sua cama.

Era o inspetor. Era bom homem, conhecera meu pai e se lembrava dele com amizade. Eu não me recordava dele; havia-o visto menino. Ele, entretanto, fez tudo para suavizar a minha sorte, sem pedido nem rogo meu. Era um mulato escuro, forte, mesmo muito forte, rosto redondo grande, olhos negros brilhantes, com uma pequena jaça de desconfiança.

Deu-me uma cama num dormitório mais razoável, com melhor companhia; e, por sua iniciativa, fez que eu tomasse as minhas refeições com os doentes mais escolhidos.

Entre estes fui encontrar um rapaz português da minha idade, a quem conhecera quando estudante. Travamos relações na pensão da senhora que veio a ser minha sogra. Parece que ele fora daqueles que tinham de voltar pobres. Era um tanto instruído e me foi de um préstimo inesquecível. Não tinha cigarros, ele mos deu; não sabia ir ao refeitório, ele me ensinou; enfim, amaciou as dificuldades do primeiro estabelecimento.

Apesar de não demonstrar vestígio algum de loucura, nem mesmo a alcoólica ou tóxica, Misael era veterano no hospício e me informou muito sobre os loucos, suas manias, seus antecedentes. O meu mergulho naquele mundo estranho foi logo profundo, naqueles quatro dias que nele passei.

Vista assim de longe, a noção do horror que se tem da loucura não parte da verdadeira causa. O que todos julgam, é que a coisa pior de um manicômio é o ruído, são os desatinos dos loucos, o seu delirar em voz alta. É um engano. Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada observação a outra, as associa num quadro geral, o horror misterioso da loucura é o silêncio, são as atitudes, as manias mudas dos doidos.

Há indivíduos que se condenam a um mutismo absoluto, que não conversam com ninguém, não dizem palavra anos e anos. Destes, uns vivem de um lado para outro, outros deitados; ainda outros fazem gestos, e certos outros prorrompem em berreiros.

Alguns, a sua doença atacou-os no aparelho de emissão da palavra. Havia um, mas na outra seção, velho e dizem que de família importante, que falava de onde em onde, mas logo perdia o jeito e emudecia. Tinha delírios terríveis. Corria que em estado de loucura matara uma irmã, na fazenda paterna, com mão-de-pilão.

Alguns não suportam roupa no corpo, às vezes totalmente, outras vezes em parte. Na Seção Pinel, num pátio que ficavam os mais insuportáveis, dez por cento deles andava nu ou seminu. Esse pátio é a coisa mais horrível que se pode imaginar. Devido à pigmentação negra de uma grande parte dos doentes aí recolhidos, a imagem que se fica dele, é que tudo é negro. O negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e contemplando uma porção de corpos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem no nosso pensamento. É uma luz negra sobre as coisas, na suposição de que, sob essa luz, o nosso olhar pudesse ver alguma coisa. Aí é que há os berradores; mas, como em toda a parte, são só os seus gritos que enchem o ambiente. Eles são relativamente poucos.

Há outros que se degradam no sexo, com uma indiferença de amaldiçoados a isso... É um horror silencioso, que nos apavora e faz-nos cobrir a humanidade de piedade, e nos amedronta sobre a nossa vida a vir.

Olham-se os quartos e todos aqueles homens, muitas vezes moços, sem moléstia comum, que não falam, que não se erguem da cama nem para exercer as mais tirânicas e baixas exigências da nossa natureza, que se urinam, que se rebolcariam no próprio excremento, se não fossem os cuidados dos guardas e enfermeiros, pensa-se profundamente, dolorosamente, angustiosamente sobre nós, sobre o que somos; pergunta-se a si mesmo se cada um de nós está reservado aquele destino de sermos nós mesmos, o nosso próprio pensamento, a nossa própria inteligência, que, por um desarranjo funcional qualquer, se há de encarregar de levar-nos àquela depressão de nossa própria pessoa, àquela depreciação da nossa natureza, que as religiões querem semelhante a Deus, àquela quase morte em vida.

Parece tal espetáculo com os célebres cemitérios de vivos, que um diplomata brasileiro, numa narração de viagem, diz ter havido em Cantão, na China.

Nas imediações dessa cidade, um lugar apropriado de domínio público era reservado aos indigentes que se sentiam morrer. Dava-se-lhes comida, roupa e o caixão fúnebre em que se deviam enterrar. Esperavam tranquilamente a Morte.

Assim me pareceu pela primeira vez que deparei com tal quadro, com repugnância, que provoca a pensar mais profundamente sobre ele, e aquelas sombrias vidas sugerem a noção em torno de nós, de nossa existência e a nossa vida, só vemos uma grande abóbada de trevas, de negro absoluto. Não é mais o dia azul-cobalto e o céu ofuscante, não é mais o negror da noite picado de estrelas palpitantes; é a treva absoluta, é toda ausência de luz, é o mistério impenetrável e um não poderás ir além que confessam a nossa própria inteligência e o próprio pensamento.

A loucura se reveste de várias e infinitas formas; é possível que os estudiosos tenham podido reduzi-las em uma classificação, mas ao leigo ela se apresenta como as árvores, arbustos e lianas de uma floresta: é uma porção de coisas diferentes.

Uma generalização sobre o seu fundo pecaria pela base. Choques morais, deficiência de inteligência, educação, instrução, vícios, todas essas causas determinam formas variadas e desencontradas de loucura; e, às vezes, nenhuma delas o é.

Apela-se para a hereditariedade que tanto pode ser causa nestes como naqueles; e que, se ela fosse exercer tão despoticamente o seu poder, não haveria um só homem de juízo, na terra. É bastante pensar que nós somos como herdeiros de milhares de avós, em cada um de nós se vem encontrar o sangue, as taras deles; por força que, em tal multidão, há de haver detraqués, viciosos, etc., portanto a hereditariedade não há de pesar só sobre este e sobre aquele, cujos antecedentes são conhecidos, mas sobre todos nós homens. Por ser remota? Mas as forças da natureza não contam o tempo; e, às vezes mesmo, as mais poderosas só se fazem notar quando se exercem lentamente, durante séculos e séculos.

A explicação por hereditariedade é cômoda, mas talvez seja pouco lógica.

Sem capacidade nem competência para tratar de semelhante assunto, eu me lembrei de fazer estas considerações, por ter observado entre os meus colegas da Pinel um caso singular de mania.

Eu via um português velho, sempre com um gorro e borla, de barba cerrada, enroupado num grande sobretudo marron, passear de um lado para o outro nos corredores. A sua fisionomia tinha um ar de estampa, sorridente, mas orgulhosa. Perguntei certo dia:

— Misael, quem é aquele doente?

— É um português que foi barbeiro. Os fregueses chamavam-no de Francisco I, imperador da Áustria. Ele se parece, convenceu-se e acabou aqui. Há dias, quando embarcaram uma turma para a colônia, ele foi até ao grupo e recomendou: "Olhem, vocês vão para lá. Se forem maltratados, queixem-se a mim, que sou seu imperador".

Que relação teria a sua loucura com a sua fortuita semelhança com o imperador da Áustria? É possível que ela tivesse alguma intervenção?

Parecia pueril uma tal questão, mas eu a pus sempre, de mim para mim, essa pergunta do poder de auto-sugestão na loucura e também da imitação.

Tomei posse do meu dormitório e despertei maravilhosamente. O meu dormitório era no canto da ala direita do pavimento térreo.

O hospício é bem construído e seria adequado, se não tivesse quatro vezes o número de doentes para que foi planejado. É obra de iniciativa individual, e a sua construção, pode-se dizer, foi custeada pela caridade pública. Nas dádivas e doações, como sempre, nas obras, muito concorreram os portugueses que enriqueceram no comércio. Os chãos parece que já eram da Santa Casa, mas o edifício propriamente é resultado de dádivas e doações. É grande de fachada, com fundo proporcional, acabamento e remates cuidadosos, um pouco sombrio no andar térreo, mais devido aos acréscimos, do que ao plano primitivo, que se adivinha. Acabado de construir em 1852, todo ele trai, no aspecto exterior, ao gosto do pseudoclássico da Revolução e do Império Napoleônico. O seu arquiteto, Domingos Monteiro, foi certamente discípulo da antiga Academia de Belas-Artes e certamente do arquiteto Grandjean de Montigny. É de aspecto frio, severo, solene, com pouco movimento nas massas arquiteturais. Custou naquela época cerca de mil e quinhentos contos, e por aí se pode avaliar a tenacidade de José Clemente, que o ideou e o ergueu, no espaço curto de dez anos. Dizem que há, no salão nobre, uma estátua dele, mandada fazer pelo segundo imperador, que também tem a sua, diante da daquele. Este José Clemente parece não ter sido estadista de grandes vistas políticas, mas pelas posições em que passou deixou traços do seu amor a obras de utilidade pública, sobretudo de assistência.

Interiormente é dividido em salões e quartos, maiores e menores, com janelas todas para o exterior, e portas para os corredores, que olham para os pátios internos.

O meu dormitório ficava no extremo da ala esquerda do edifício, como já disse, e as camas ficavam encostadas ao longo das quatro paredes. Tinha três janelas de sacada para a rua, mas eram inteiramente gradeadas. Via-se o jardim, a rua, os bondes, o mar e as montanhas de Niterói e Teresópolis.

Com o ar azul da enseada de Botafogo, para quem olha, devia ser um alegre retiro, tivesse ele outro destino; mas a beleza do local pouco deve consolar, apreciada através das grades, da triste condição em que se está, torvo o ambiente moral em que ali se respira. A beleza da natureza faz mais triste a quem tem consciência do lugar em que está e, olhando-a com os olhos tristes, ao amanhecer, a impressão que se tem é que não se pode mais sonhar felicidade diante das belas paisagens e das belas coisas...

Assim amanheci. Olhei o mar através das grades, com esses sombrios pensamentos, e recebi essa emoção. Demorei-me pouco vendo-o... Pela enseada adentro, entrava uma falua, com velas enfunadas e muito suavemente deslizava sobre o mar levemente encrespado pelo terral fresco... Passavam banhistas de ambos os sexos. As mulheres, envolvidas em roupões ou lençóis, escondiam as pernas e os braços, mais ainda que os calções e as blusas; os homens, porém, ostentavam-nos com garbo. As pernas, embora musculosas, às vezes, eram hediondas.

Todos olhavam para a grade, e logo saí dela vexado com aquela curiosidade malsã. Domingo, eu não amanheci mais nesse dormitório. O inspetor, tinha resolvido, me transferia para um quarto em que havia um outro doente de consideração. Não me agradou, porque se tratava de um estudante e porque, à sua enfatuação (eu a tive também) de estudante, não devia agradar um companheiro que lhe surgia no estado de mendigo. Tratou-me bem e eu não tive queixa dele durante as duas noites que fui seu companheiro de aposento.

Estava há quatro dias no hospital e não havia recebido visita alguma. Misael salvou-me no que toca a cigarros, o inspetor emprestava-me os jornais; mas não me contentava com isso.

Chamaram-me à noite e, de pé, no corredor para onde se abria a porta da seção, falei com meu sobrinho. Não tive aborrecimento algum, eu tinha convicção da minha manifestação de loucura. O que me amedrontava era a seção. Não os loucos propriamente, mas do que o seu aspecto geral me trazia ao pensamento. Trouxe-me cigarros e eu só lhe reclamei a saída da seção, fosse como fosse. De tanto pensar no meu destino, entrelaçado com o daqueles que me eram companheiros, eu me apavorava mais do que se estivesse no Inferno, perseguido por mil diabos.

Perguntei por todos de casa e despedi-me. Voltei ao interior da seção e fizeram-me mudar a roupa. Foi a primeira satisfação que me oferecia o manicômio. Senti mais integrado na minha dignidade, na minha educação, com aquele pijama que me cobria os tornozelos e os braços.

Não pude fumar um cigarro até ao fim. Vieram-me chamar. Era um bom vizinho, negociante dos subúrbios, humano e compassivo. Minha família comprava na sua venda e, a bem dizer, foi dela que saí da segunda vez para o hospício. Deu-me cigarros e jornais. Conversamos dez minutos, e senti bem, naquele homem simples, de pouca cultura, a piedade profunda que lhe inspirava. Foi a segunda satisfação que o hospício me dava. Havia bondade, simpatia de homem para homem, independente de interesse e parentesco.

Pus-me a ler os jornais. A minha sensação já não era de mágoa e de dor de estar ali; era de esperança da minha correção e da melhoria de todos os homens. A afeição, o amor, a simpatia e a piedade haviam de inspirar um dia alguém que curasse aqueles pobres homens...

Naquele instante, conversando com um companheiro, um outro doente delirava de fazer rir. Não me ri, mas prestei-lhe atenção, simulando ler.

Dizia o doente a outro que, no banco em que era empregado, certas vezes dava a fazer a cobrança de que estava encarregado a outro colega. Este lhe pedia a roupa, os sapatos, o chapéu, o relógio, etc. Um dia, porém, pediu-lhe por empréstimo o nariz, os olhos, os bigodes, etc.

Neguei-lhe, afirmava com energia; como havia eu de viver sem nariz, sem olhos, sem bigodes, enfim, sem a minha cabeça?

O outro, que era também delirante, não vi a que propósito, veio a falar em livros, poetas, etc., porque é próprio do delírio, como toda a gente sabe, não ligar nunca as idéias, às vezes só às palavras, outras vezes nem a uma nem a outra coisa, para continuar a sua manifestação, em estilhaços de pensamentos, de uma que arrebentou sob a pressão da loucura:

— Livros! Tive-os muito bons! fez o homem que não queria emprestar os bigodes. Você já ouviu falar em Luís de Camões?

— É o autor dos Lusíadas, português.

— Qual o qu! Sou eu! Era uma obra em que eu há muito tempo trabalhava. Escrevia-o em papel muito bom, com uma excelente caligrafia, quando saía, guardava-o numa escrivaninha à chave. Eu tinha uma criada, uma negra, que era amigada com um português. Certo dia, esqueci-me da chave e, ao voltar para a casa, não encontrei a negra, nem o livro. Ela tinha fugido com o meu trabalho... Passam-se anos e um dia li que, em Lisboa, morrera na miséria um poeta que vivia com uma negra, deixando um poema, intitulado Lusíadas, primoroso... Adivinhei logo a coisa: era o meu trabalho, que a negra tinha roubado e dado ao galego...

— Não reclamou?

— Qual! Não arranjei nada!

O parentesco do delírio do meu companheiro de dormitório com o episódio do jau, da vida de Camões, toda a gente percebe; eu, porém, não intervim na conversa e, até, forcei a atenção para os jornais, a fim de que ela não me arrastasse de novo a pensamentos agoureiros.

Li-os com cuidado, li seções que, normalmente, desprezava, mas não findei a leitura. Misael chamou-me para o jantar.

Nos domingos, era mais cedo, e, como das outras vezes, atravessamos o pátio cheio dos doentes mais incorrigíveis, uns em pé, do lado para outro, outros deitados debaixo daquele sol de dezembro, outros nus e sobre uma esteira, um inteiramente nu, de bruços, com um curativo negro de um cáustico qualquer, que denunciava uma das mais nojentas formas de sodomia. Misael perguntou-me:

— Sabe o que é isso?

— Sei... Há muitos?

— Muitos.

Não quis mais continuar o diálogo, mesmo porque chegávamos ao refeitório.

O domingo, que tinha amanhecido toldado, nevoento, com o correr do dia se tornou claro e luminoso. O calor bastante sensível não era de sufocar, a viração soprou bem cedo, e a tarde se fez uma esplêndida tarde tropical, tépida, embalsamada de azul e de silêncio imaterial das coisas. Do refeitório, nós víamos as montanhas, e até o Corcovado inclinava-se para o hospício. Acabado o jantar, eu e Misael fomos dar um passeio pela chácara. É vasta e, apesar das modificações, mutilações, que tem sofrido, ainda guarda exemplares das grandes fruteiras que deviam povoá-la há quarenta anos passados. Vi nela uma grande horta, sem viço, sem verdura tenra das couves e repolhos, por ser verão; mas, assim mesmo, ela me interessava todo, me recordava sonhos e projetos.

Gostei sempre muito da casa, do lar; e o meu sonho seria nascer, viver e morrer, na mesma casa. A nossa vida é breve, a experiência só vem depois de um certo número de anos vividos, só os depósitos de reminiscências, de relíquias, as narrações caseiras dos pais, dos velhos parentes, dos antigos criados e agregados é que têm o poder de nos encher a alma do passado, de ligar-nos aos que foram e de nos fazer compreender certas peculiaridades do lugar do nosso nascimento. Todos os desastres da minha vida fizeram que nunca eu pudesse manter uma inabalável, minha, a única propriedade que eu admitia, com as lembranças dos meus antecedentes, com relíquias dos meus amigos, para que tudo isso passasse por sua vez aos meus descendentes, papéis, livros, louças, retratos, quadros, a fim de que eles sentissem bem que tinham raízes fortes no tempo e no espaço e não eram só eles a viver um instante, mas o elo de uma cadeia infinita, precedida de outras cadeias de números infinitos de elos.

Uma horta, um pomar com grandes jaqueiras, mangueiras, laranjeiras, abacateiros, sempre foi o meu sonho; e estavam ali aqueles restos de uma grande chácara, com árvores de mais de meio século de existência, maltratadas, abandonadas, talvez, de toda a contemplação sonhadora de olhos humanos, mas que ainda assim davam prazer, consolavam aquele sombrio lugar de dor e de angústia.

Misael tinha não sei que moléstia nos músculos de uma das pernas que o faziam capengar, e nós, sob a luz coada maternalmente pelas árvores, andamos devagar pela chácara afora.

Havia por ela outros pavilhões, além do de observação. Havia o de epilépticos, o de tuberculosos, e neste eu vi um chin, no último grau, deitado numa cama, debaixo de uma árvore frondosa, que me lembrou de novo o Cemitério dos Vivos de Cantão. Ele tinha todas as duas magrezas: a de tuberculoso e a de chin; e, falando a Misael, eu me admirei que não tivesse tido piedade dele. Quis afastar-me logo; e o china nos ofereceu cigarros. Recusei, por temer o contágio. Surpreendi-me com esse motivo que calara, porque nunca temo pegar moléstia alguma. É espontâneo em mim esse destemor, mesmo nas maiores epidemias que tenho atravessado.

Continuamos a nossa peregrinação. A tarde ainda estava alta e clara; a noite ainda se demoraria a vir.

Por baixo das árvores, havia doentes; e deparei ao lado cerradas touceiras de bambus, cujos colmos se entrelaçavam no alto. Não eram as do Jardim Botânico; mas, no momento, tinham a beleza de me lembrar as ogivais dele. Quem as teria plantado? De quem teria sido aquela chácara? Como as coisas têm às vezes o destino ilógico!

Aquelas árvores, aqueles bambus, destinavam-se a uma remansosa estação de recreio, teriam assistido festas de junho, bulhentas de foguetes e outros fogos, e iluminadas por fogueiras de cultos esquecidos. Os anos as fizeram ver a mais triste moléstia da humanidade, aquela que nos faz outro, aquela que parece querer mostrar que não somos verdadeiramente nada, nos aniquilando na nossa força fundamental.

Parecia que bastava esta ali; mas não era assim.

Fomos ver outra pior, a horrorosa morféia, que, junta com a loucura, é para juntar o horror até ao mais alto grau. Uma deforma, degrada o pensamento; a outra, o corpo, o rosto sobretudo.

Não quis olhar onde estavam alojados os lázaros dementes. Era numa barraca de campanha, erguida sobre espeques, e cujas bordas eram presas por pedregulhos respeitáveis.

A sua moradia era provisória; a Morte não tardaria em levá-los...

Era no fundo da chácara. Os automóveis passavam fonfonando. Adivinhava-os cheios de senhoras, moças, rapazes, homens, cheios de satisfação por ir gozar aquele domingo em Copacabana; na frente, era o mesmo movimento dos que se dirigiam a contemplar a baía, a cidade, o mar e as árvores das montanhas, por cima do Pão de Açúcar.

O hospício estava naquele dia de passeio, quase cercado de alegria, e movimento. Ele, porém, continuava tranqüilo, silencioso, só às vezes o silêncio se quebrava, com um grito isolado de alienado lá nos pavilhões da frente; e nós estávamos diante da mais terrível associação de males que uma pessoa humana pode reunir.

Voltamos pelo mesmo caminho. Olhei o céu tranqüilo, doce, de um azul muito fino. Não se via o sol, que descambava pelas nossas costas.

A tarde continuava bela e agradável. Em meio do caminho, encontramos bandos de crianças loucas, de menos de dez anos, que iam brincar, sob a vigilância de uma enfermeira estrangeira, alemã, parecia.

Havia de todas as cores, e todas eram feias, algumas mesmo aleijadas.

Continuamos a volta. Eu olhei o muro que dava para uma das ruas, onde corriam os automóveis, e calculei sua altura pela minha, que eu sabia de cor...

IV

Segunda-feira, logo após o almoço, o superintendente da seção chamou-me e disse-me:

— Senhor Mascarenhas, vamos à presença do diretor. Pus o cigarro fora, ele mesmo ajudou-me a compor o meu vestuário, e lá fui eu. Em caminho, perguntou-me o chefe da enfermaria:

— O senhor conhece o diretor?

— Conheço, respondi.

A segurança da minha resposta pareceu intrigar o meu caridoso pastor. Adivinhei, de mim para mim, que ele se fazia a seguinte pergunta: como é que este rapaz conhece assim o diretor, e logo não reclamou uma melhoria de situação, e deixou que eu espontaneamente o fizesse?

Seria simples a explicação, se ele me conhecesse melhor. A minha consciência, a certeza em que eu estava de que o culpado de estar ali era eu, era a minha fraca vontade, que, entretanto, era forte em outros sentidos, obrigavam-me, para meu decoro moral, a nada pedir aos camaradas que me suavizassem a minha situação. De resto, eu já tinha obtido o razoável para um sujeito que foi recolhido a um hospital público como um va-nu-pieds Longe de acusar os outros, longe de censurar aqueles desconhecidos e semi-desconhecidos com os quais lidei com essa classificação social, eu só tinha que dizer bem deles, pois me julgando assim, em nada me ofenderam ou maltrataram. As pequenas coisas que feriam o meu amor-próprio e que me desgostavam intimamente, eram decorrentes do modo por que eu ia me conduzindo na vida, deixando cair, aniquilando-me. É curioso agora notar que o que mais me impressionava nos loucos era a mania depressiva, eram os efeitos da moléstia, a conduzir o indivíduo para o esquecimento do seu corpo, da sua dignidade de homem, da obliteração, senão apagamento, de todas as manifestações externas de sua alma, de sua vida...

Conhecia perfeitamente o diretor e travei conhecimento com ele espontaneamente. Havia em mim uma atração para ele, e eu me espantava que ele pudesse, sem barulho, mansamente, se fazer até onde estava. Pouco conhecia de sua vida, mas conhecia bem a geral e de outros no seu caso, para achar a dele surpreendente. Ele tinha mesmo qualidades nativas de sedução e despertar simpatias; mas, se isso se dava nele, e se dá em muitos outros, entretanto, não despertava, não provocava antipatias, o que é inevitável, desde que a nossa força na vida venha da capacidade oposta, como acontecia com ele.

Todos gabavam muito o seu talento, a sua ilustração; mas não era bem por isso que eu o amava. Nunca lhe tinha lido um trabalho, só mais tarde me foi dado fazer isso, não tinha nenhuma ilustração no assunto do seu caber para julgar; mas, conquanto sentisse logo um homem superior, eu o amava pela sua exalação de doçura.

Logo que fui à sua presença, estava ele sentado a uma pequena mesa, modesta e sem traduzir nenhuma imponência burocrática, muito semelhante àquela em que escrevo em casa. Deu comigo, fez-me sentar a seu lado e perguntou-me, sem nenhuma censura nas palavras e nem no acento da fala ou no olhar:

— Você, Mascarenhas, quer ficar embaixo ou em cima?

— Em cima, doutor; lá há uma biblioteca...

— Pois bem; vá lá pra cima.

E foi assim que, antes de ter meu sobrinho dado o menor passo para a minha transferência, ela me foi dada, e tive um pequeno alívio na minha sorte de maluco periódico.

A biblioteca era a dependência da seção de que mais me recordava. Quando estive lá pela primeira vez, enchia o tempo lá, lendo. Havia um razoável número de livros, mas, além dos muitos dilacerados, havia obras desfalcadas nos seus volumes. Logo ao entrar, depois de mudar de roupa, tratei de me instalar nela. Tinha mudado de local; era agora logo na entrada, quando antigamente era no fundo. Fui vê-la. Estava pobríssima, não havia mais o Vapereau, dicionário de literatura, tão interessante; não havia mais uns volumes de Dostoiévski, nenhum deles escapara; os segundos românticos nacionais tinham desaparecido; e, dos primeiros, só restava um volume de Gonçalves Dias.

Mesmo da vez passada, a biblioteca do hospício não era um modelo de lógica, não a tinha presidido nenhum espírito; tinha de tudo, mas como a massa dos volumes era de literatura de ficção, não se observava bem o absurdo de certas associações de obras. Agora, não; ele ressaltava francamente. Os livros de ficção eram poucos; entretanto de Bourget, de quem não havia só romance, se encontravam os dois volumes de Essais de psychologie contemporaine, em magnífico estado; a Bohème galante, de Gérard de Nerval, estava conservada, assim como o Romance de Pedro, o Grande tinha os dois volumes em magnífico estado.

Encontravam-se, porém, outros livros, que não se sabia bem como foram ali parar. Por exemplo, eu achei nela livros estreitamente especiais, como estes: L'État civil des nouveau-nés, cujo autor não me recordo; safados relatórios oficiais de vários ministérios, que, entretanto, apesar da sua aridez, eram muito procurados; Études sur Colbert, por Jubleaux, que me pareceu uma bela obra, embora a não pudesse ler; Histoire des classes rurales en France; E. Poirier — Le Chili en 1908; e um La mer rouge, Le darwinisme, em que o doutor F. Jousseaume combatia as opiniões de Darwin sobre a formação dos bancos e recifes calcários, com muito luxo de palavras de má literatura, assim como a teoria do calor central, ou por outra, de um núcleo ígneo no centro da terra, com bastante razão. Pode parecer fatigante, mas não me é possível deixar de citar mais estas três obras exóticas por demais ali: Le chien, Gayot; um tratado de xadrez; Annuaire du crédit public, de 60 a 61. Dois romances dessa curiosa literatura de colégio de irmãs de caridade encontrei também. Eram de uma virtuosa, certamente, dama — Dona Gabrielle Coni e se intitulavam: Vers l'oeuvre douce e Fleur não sei de que. Um estava dilacerado, mas no outro procurei descobrir indícios de quem fosse, não encontrei. Em alguns, havia. O forte, porém, da biblioteca eram duas coleções, com vinte e tantos volumes, da Biblioteca das Obras Célebres.

O salão da biblioteca era mobiliado com pequenas mesas de peroba, em três filas com quatro delas, cadeiras comuns, duas em cada mesa, cadeiras de balanço e duas espécies de divãs com enxergão de arame, próprios à leitura, mas no qual dormiam aqueles que precisavam companheiros, senão bulha, para conciliar o sono.

Tinha três janelas de sacada, mas gradeadas, e via-se bem próximo o Pão de Açúcar, a Urca, surgindo das ondas suavemente, sem luta, nem a interrupção que a denunciasse na transição de uma praia.

Entrando na biblioteca, muito naturalmente, pois já estava acostumado aos costumes da casa, tirei a esmo um volume dos vinte e dois ou quatro das Obras Célebres. Não conhecia essa obra, implicava mesmo com ela; mas, como vão ver, ela tem o dom de sugerir, de encaminhar, pelos excertos que traz, em geral bem escolhidos, à leitura dos autores que recorta.

Deixei mesmo Renan: Dialogues philosophiques e Feuilles détachées, que não me causaram surpresa achá-los ali, embora não me lembrasse de tê-los visto da outra vez em que estive.

Os doentes continuavam a passar ao corredor, a entrar e a sair no salão, a tirar livros e consultá-los durante minutos, e, depois, desandavam a delirar. Um ou outro de fato lia, mas as obras mais vulgares que lá existiam.

Não tinha até então falado com nenhum. Tanto nesta como na outra seção, eu me surpreendi de topar com tanta fisionomia conhecida vagamente. Umas me pareciam de antigos colegas do colégio ou de escola superior; outras, de cafés, de festas, de vizinhança, de conduções públicas. Conquanto isso, não me atrevia a dirigir-lhes a palavra e perguntar-lhes:

— O senhor não me conhece? Eu me lembro do senhor.

Era preciso travar conhecimento com os meus tristes companheiros de isolamento e de segregação social. Deixei para depois e dispus-me a ler. Procurei no índice e encontrei este artigo: Lewis — "Abelardo e Heloísa."

O autor do artigo que precedia uma ou duas cartas de Heloísa era o muito conhecido autor inglês, autor de uma famosa vida de Goethe, e cujas relações com George Eliot ficaram famosas. Trabalho muito curioso o seu artigo sobre o famoso filósofo do Medievo, mas que, em resumo, censura em Abelardo o que se pode censurar em todo o grande homem: um amor muito maior à sua obra, ou talvez aos seus projetos, do que às pessoas que o amam. Ele vai a ponto de dizer que no forte amor que ele inspirou a Heloísa, entrou cálculo de aproveitar as deficiências de sua instrução com as sobras da de sua amada, fugindo ao casamento público, para obter grandes posições na clericatura.

Não me sobra conhecimento para contrariar esse julgamento; mas, conquanto achasse justo na primeira leitura, hoje partilho a opinião de Heloísa, que mais o queria glorioso, do que exemplar chefe de família, porquanto a sua glória, que unicamente ele a podia realizar, precisava da sua dedicação e do sacrifício de outros muitos, para ser útil a todos.

Quando pensei nisso, compreendi melhor minha mulher. O que me assoberbavam eram dificuldades de toda a ordem, especialmente de dinheiro, coisas caseiras e triviais; e eu, que nunca lhe tinha confiado meus projetos e escrevera coisas vulgares e pouco acima do médio, merecia que Efigênia nunca me atormentasse com as coisas triviais da casa. O que me roía, era o silêncio, era calar, esconder o que eu tinha de mais eu mesmo na minha vida. Nunca confiei e não sei como, talvez lendo uma nota ou outra, ela veio a compreender, como só muito mais tarde vim a inferir pelas suas frases isoladas, pelos seus conselhos, pelos seus olhares.

Essa descoberta não só me trouxe um grande desgosto e arrependimento, como uma convicção íntima da fraqueza da minha inteligência.

Vieram-me essas e outras considerações menores, à leitura daqueles extraordinários fragmentos, e eu chegava a este período de uma carta de Heloísa: "Se é verdade que os pesares comunicados a quem deveras nos ama, se dividem e partem ao meio, vós, meu caro Abelardo, vos vereis por este modo (escrevendo a ela) aliviado de metade do peso que vos oprime".

Mal tinha acabado a leitura, quando uma voz forte, jovial e atraente, falou a meu lado:

— O senhor não é o Vicente Mascarenhas?

— Sou.

— Conheço-o de vista e de nome. Não escreveu na Lux, do Ribeiro Botelho?

De fato, eu havia escrito nessa pequena revista uma coisa sem valor algum; e aquele rapaz que me falava a tinha lido, por ser amigo do editor da publicação.

Deu-se a conhecer. Era irmão do Samuel Cavalcanti, jornalista, amigo do Tibério de Belém, também poeta e homem de jornal, e chamava-se Godofredo Cavalcanti. O todo do rapaz não era do maluco comum, ele falava com desembaraço e siso, e obedecia em tudo as regras da conveniência e polidez. Achei estranho que, ali, afinal dentro de casa, ele vivesse sobraçando um maço de jornais, assim como quem está fora e vai levá-los para a sua residência.

Godofredo apresentou-me logo a diversos doentes e eles me cercaram a mesa. A um ele me apresentou como o Capitão do Exército Carvalho Nascimento, a outro como o doutor Rufino Bezerra, e assim por diante. Por fim, ficamos nós ambos sós, e Godofredo começava a contar-me uma história, quando se aproximou um rapaz de menos de trinta anos, magro, de uma boniteza feminina, pele fina, com a cabeça coberta com um lenço úmido. O meu introdutor interrompeu o que dizia e, de mau humor exclamou:

— Já vem você, Ribeiro! Não se pode conversar uma coisa que você não venha se meter! Que falta de educação!

— Já sei, fez o outro, que você, Godofredo, é o homem mais polido do hospício.

— Sou, sim. Meu pai, que não tinha título algum, que não era bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, como meu irmão Samuel, foi convidado pelo doutor João Barbalho Uchoa Cavalcanti para representar o Brasil nos Estados Unidos.

— Isto foi o pai de você, comentou o outro.

— E eu também, que já tenho três preparatórios e sou o ai-jesus! de meu pai.

Eu não tive tempo de acabar o meu pensamento, estranho o orgulho daquele trintão de ter quatro preparatórios, veio interrompê-lo uma forte pancada de uma cadeira contra o assoalho e uns berros incompreensíveis, que, acompanhando o gesto violento, soltava o Capitão Carvalho Nascimento.

Pelo correr da minha estadia no estabelecimento, fui me habituando a essa manifestação da loucura desse oficial do Exército. Ele andava de um lado para o outro, gritava coisas desconexas, repentinamente soltava um forte berro, agarrava uma cadeira com toda a força contra o solo, batia com estrondo uma porta.

E que magníficas e fortes portas eram aquelas do hospício! De canela com fechos e guarnições destes de cobre!

Cavalcanti, sem se despedir de mim, lá se foi, e eu fiquei sentado ali, sentindo bem que aquela biblioteca podia se destinar a tudo, menos à leitura.

O chefe da enfermaria tinha estado fora e voltava, quando deu comigo. Não houve espanto em encontrar-me segunda vez e, creio mesmo, ele já tinha notícias da minha segunda entrada.

— Oh! Vicente! Você aqui?

— É isto, Seu Carneiro. Cá estou.

— Bem.

Olhou-me a roupa, o cabelo, a barba e perguntou-me:

— Já te deram cama?

— Ainda não, senhor.

— Vou tratar disso, disse-me ele.

Foi-se agitando os braços, com a cabeça inclinada para o chão. Este Carneiro, que devia orçar pelos sessenta ou sessenta e poucos anos, há quase quarenta lidava com doidos.

Ele era empregado do hospício, desde o tempo em que a superintendência da sua administração estava a cargo da Santa Casa de Misericórdia. Fora enfermeiro-mor das colônias da ilha do Governador e voltara ao hospício.

Aí as suas funções eram quase de supremo comando, pois a colônia de que ele era enfermeiro-mor, ficava distante da outra que era sede da diretoria, cerca de três quilômetros, e ele por si tinha que decidir toda a matéria de urgência.

Eu conheço o local dessa colônia. Fica numa ponta de terra, que faz um canal de pequena largura com uma outra ilha, a do Fundão, que lhe fica fronteira. As suas terras são de um campo arenoso e extenso, que margina o braço de mar que separa a ilha do Governador do litoral da Penha. O campo é em grande parte coberto de dois quadriláteros inscritos de mangueiras, anosas, solenes, e silenciosas. Dizem que a casa o foi de campo do rei Dom João VI e as mangueiras ele já as conheceu taludas. O lugar é propício a melancolia e o pensar vagabundo dos que sonham despertos... É de imaginar como esse pobre Carneiro sonhava a sua terra de Portugal, a vida de sua aldeia minhota, como se recordaria do odor e do sabor do vinho de lá, naquela ponta de ilha, com aquela guarda negra de mangueiras centenárias, olhando as serras solenes e graves do Rio de Janeiro... Ele nunca me falou nisso e talvez mesmo não soubesse dizer o que aquela singular paisagem de grandeza e tristeza grave lhe sugeriu ao pensamento e retirou de dentro do fundo d'alma. Só ele sabia, e só dele para ele ela lhe podia falar. Muitas das grandiosas mangueiras tinham sido feridas pelo raio e muitas outras, feridas pela Morte, secavam em pé, como se vivas fossem...

Quarenta anos de pajear doidos deve ser uma das missões mais árduas e tristes ofícios desta vida; e, então, ele, que convivia com eles, com eles a modos que comia e dormia, pois poucas vezes saía dos manicômios em que foi empregado, devia ter desta nossa existência uma idéia bastante atroz e curiosa. Havia de ter-lhe sido preciso uma resignação de santo, para aturar-lhes os insultos e muitas vezes as agressões; e, além disto, uma abdicação de fruir e gozar daquilo tudo que faz o encanto e o motivo de nossa vida. Era quase uma vida de cenóbio, pois eram verdadeiramente rápidos os instantes em que passeava e via a mulher e os filhos, assim mesmo a longos intervalos. A insânia cria complicações, dores e sofrimentos que não ficam só naqueles que são atingidos, mas vão se refletir nos outros, talvez mais profundamente, deste ou daquele modo.

Ouvir durante o dia, senão à noite, disparates e tolices, receber as reclamações mais pueris e desarrazoadas, adivinhar manhas perigosas que a insânia engendra, todo esse ambiente moral e intelectual da loucura, tão complicado como a própria vida, mas sem um acordo qualquer entre as suas partes, deve ser, durante quarenta anos, uma razão para tristeza, para renunciamento de si, para sonhar com a ventura da Morte, que é o sossego.

O mister desses humildes guardas fez-me pensar e entristecer; mas naqueles exemplos de renúncia e abnegação, tão-somente movidos pela dura necessidade de ganhar o pão de cada dia, retemperei-me eu, para imitá-los, a fim de chegar são, sem o afluxo de aquisições, externas aonde o destino me levasse, fosse como fosse.

Mais de uma vez estive no hospício; e quer me tratassem como doente vulgar e sem recomendação, quer me tratassem com recomendação, afora este ou aquele movimento de mau humor e impaciência, eu só posso dizer bem desses pobres homens, humildes camponeses portugueses, rudes decerto, às vezes mesmo chucros que eram eles, no seu penoso e árduo ofício.

Imaginar que homens mal saídos da gleba do Minho e alguns nacionais de condição modesta pudessem ter certa delicadeza, resignação, paciência, para suportar os loucos e as suas manias!

A maioria é de obedientes e dóceis; mas uma pequena parte é de rebeldes, de insuportáveis, já pelos gestos, já pelos atos,. já pelas conseqüências passivas de sua moléstia mental.

Alguns, quando lhes vem a mania, sem provocação, nem causa, os descompõem de galegos, de gringos, de negros, etc.; outros vão até à agressão; outros se recusam a comer, rasgam a roupa, emporcalham-se de fezes e urina...

De todos guardo boas recordações. A vida, em geral, entre os doentes e guardas, é da mais estreita familiaridade. Os malucos tratam as suas sentinelas de você e estes da mesma forma aos dementados. Só abrem exceções, os guardas, para os formados nisto ou naquilo e para os que têm honras militares. Não quer dizer, porém, que um ou outro não seja chamado por "seu" fulano; mas são poucos, os mais velhos, os mais graves de atitudes e gestos. Há também apelidos, como em todas as prisões, internatos e quartéis. O Gato era até famoso.

Todos os doentes se habituavam a serem tratados assim e não demonstravam nenhum mau humor. Os empregados pedem cigarros aos doentes e os doentes a eles. Só não jogam pontos, cartas, bilhar, xadrez. Muitos auxiliam os empregados na sua tarefa de baldeação e outros serviços. Se alguns destes, pela sua profissão, podem facilmente sujeitar-se a tais tarefas, outros há que parecia nunca se poderem adaptar a tais misteres.

Os corredores, salões e quartos são encerados e, de manhã, antes e depois do café, de parceria, empregados e doentes dão cera ao assoalho e esfregam-no com escovas presas a grandes tocos de madeira pesada ou aos pés, por atilhos.

Os atritos entre guardas e doentes são raros, mas os há, porque muitos destes são deveras insuportáveis, e alguns guardas são impacientes, por fadiga ou por gênio; mas, em geral, as relações são amistosas.

Nesta minha última estadia, só impliquei com dois empregados. Um, no pavilhão, foi o inspetor de pessoal menor. Ele tinha uma fisionomia real da casa de Bragança e um ar de quem tratava com subalternos. Feriu-me um pouco a vaidade semelhante atrevimento do sujeito, esquecido, entretanto, que o soldado de polícia mais comum também tem esse ar, quando trata com qualquer pessoa, sem que, entretanto, se esteja doido.

Essa implicância passou-me logo, não porque me viesse ele tratar de outra forma mais tarde; sempre me convenci de que não devia guardar o mínimo rancor por semelhante tolice.

O outro guarda com quem impliquei, foi na Seção Pinel. O chefe dos enfermeiros tinha determinado que eu passasse do dormitório geral em que estava, para um quarto separado, como já contei. Estava eu sentado à borda da cama, quando apareceu na porta um guarda e gritou:

— Quem é Vicente Mascarenhas, aí?

— Sou eu, respondi.

— "Seu" Orestes, o enfermeiro-mor, disse para você levar a cama e tudo para o quarto de dentro.

E ficou encostado no umbral da porta, com as chaves na mão. Olhei-o um pouco. Era um rapaz encurvado, baixo, com cabelos em desordem propositada; tinha um ar de seresteiro, de cantor de modinhas. Esperei um pouco que ele me viesse a ajudar a carregar a cama, mas tal não fez. Foi preciso que um outro doente se apressasse em fazê-lo, para cumprir a ordem.

Esse guarda era brasileiro e está se vendo no seu ato essa malsã vaidade nossa de mandar, de querer fugir à verdadeira situação do seu emprego e ter de qualquer modo uma importância, por mínima que seja. Não há nenhum de nós que não tenha passado por isso, e a explicação do ato desse servente ou guarda pode ser mostrada na frase de um que, admitido hoje, se despediu amanhã, "porque não queria ser criado de maluco", ou de um outro, também brasileiro, que, estando na sala de banho, não conhecendo um interno que estava presente, desandou uma descompostura do mais baixo calão num doente, porque este não ouvira uma "ordem" dele para lhe trazer o sabão, e, por não a ter ouvido, não a atendera.

Não se infira daí que todos os brasileiros são assim. Lá encontrei mais de uns nacionais, que tinham as boas qualidades dos estrangeiros. O que se revela aí é esse lado mau do nosso caráter nacional, de exibição de mando e autoridade, de executar a tarefa a que conscientemente nos obrigamos a executar.

Desse último guarda que assim me tratou, se não guardei rancor, nunca mais lhe falei nem o cumprimentei; e, ao que me parece, ele percebeu perfeitamente a queixa que eu tinha dele.

Um dos horrores de qualquer reclusão é nunca se poder estar só. No meio daquela multidão, há sempre um que nos vem falar isto ou aquilo. No hospício, eu ressenti esse incômodo que só pode ser compreendido por quem já se viu recolhido a qualquer prisão; lá, porém, é pior do que em outra qualquer, sobretudo quando se está perfeitamente lúcido, como eu estava, e não pode, por piedade, tratar com mau humor os outros companheiros, que são doentes.

Logo, no primeiro dia, travei eu conhecimento com esse agudo e miúdo suplício, próprio ao meu estado. O chefe Carneiro tinha-me informado onde era a minha cama e o meu dormitório. Sentia-me fatigado de espírito, desejoso de interrogar-me a mim mesmo, de pensar nos meus problemas íntimos, de fugir um instante daquele brouhaha, hospitalar. Deitei-me na cama e quis recordar-me dos episódios da minha entrada, das tolices que fizera. Sempre fiz esse exercício de memória, que julgava conveniente para conservá-la sempre fiel e pronta para o que apelasse para ela. Não tinha bem começado, quando um menino, que até ali não tinha visto, veio para junto de mim:

— O senhor me dá um cigarro?

Dei-lhe o cigarro e esperava que, após acendê-lo, se fosse, mas assim não foi. Continuou:

— O senhor sofre de ataques?

Disse-lhe que não e olhei bem a criança. Não devia ter dezessete anos; era forte e simpático. Lembrei-me logo de meu filho e uma mágoa imensa me invadiu, pensando no destino dele. Vi-o ali, daqui a anos, talvez. Perguntei ao rapazola:

— Por quê? Você sofre?

Ele me disse que sim, que tinha uns ataques; mas não eram epilépticos, e emendou a confissão de vícios seus, que me encheram de desgosto e tristeza. Não era só por ele; era também pela minha descendência que eu sofria particularmente. Que culpa oculta haveria em mim no tenebroso destino que eu augurava para o meu pequeno? A tal hereditariedade dos sábios... E me repontaram todas as dúvidas, que eu e tanta gente tinha trocado essa antiga crendice popular, agora transformada em artigo de fé; e me lembrei também da salutar regra do mestre de não admitir como verdade senão o que, sem prevenção e precipitação, não contivesse nada de mais; senão o que se apresentasse tão claramente e distintamente no meu espírito, de forma que não tivesse nunca ocasião de pôr em dúvida.

Pensei tudo isto muito rapidamente, porquanto o rapaz doente não me deixava, fazendo perguntas sobre perguntas.

Levantei-me, fui para o corredor, esperando que ele me deixasse. O menino, porém, não me abandonava. Tinha vontade de romper com ele, de falar-lhe com a energia; mas a lembrança do meu filho...

Eu o via forte e robusto, como era, mesmo brutal, toda a vida encarcerado ali pelo maldito ataque, cujo aparecimento não se pode prever...

Bateram palmas; era hora do jantar. O menino me deixou afinal, e eu segui no meio da multidão de loucos para o refeitório.

Era, como já disse, este o mesmo em que tomava as minhas refeições, quando estive na outra seção, do pavilhão moderno, amplo, claro, mas, pela tarde, à hora do jantar, o sol espadanava por ele afora, que era um regalo. Superintendia esse serviço uma velha portuguesa, ajudada por outra mais moça, além dos copeiros e guardas.

Mudaram-me de local; passei a sentar-me com outros mais bem classificados. Preferia ter ficado ao pé dos antigos companheiros, sobretudo do rapaz português, pois com ele me havia relacionado intimamente, ou melhor, reatado relações antigas.

A comida, isto é, o seu sabor ou quantidade não me faziam nenhuma mossa; apesar de estar quase oito dias no manicômio, a minha fome era escassa; mas não era pelo seu sabor que eu; não ingeria, era pelo mau estado do estômago, e talvez mesmo angústia espiritual.

Contudo, eu sentia muito prazer quando soava as horas das refeições. É que, nesses instantes, a vida ali, dentro variava um pouco, eu me sentia mais livre, o olhar abarcava mais horizonte do que aquele que se via pelas janelas gradeadas da seção.

A mudança de lugar no refeitório não a recebi bem, não só pela falta do companheiro que me conhecia desde menino, e me era por isso muito simpático, mas também porque me deram uma posição de cabeceira, tendo ao lado dois doentes que eu não suportava.

É incrível que se possa simpatizar ou antipatizar com malucos e com a maluqueira deles; no correr desta narração, terei de confessar isso, que me vexa, mas é verdade.

O doente da esquerda era um engenheiro, Bernardes, que, num acesso de loucura, no Norte, matara, segundo me informaram mais tarde, a mulher e um filho. Era arrogante, lia o dia inteiro o jornal e toda a manhã pedia papel e envelope ao chefe Carneiro, para escrever a sua correspondência ao presidente da República, no gabinete do médico. Vivia na biblioteca, lendo o jornal e fazendo em voz alta, de quando em quando, uma reflexão sobre a leitura. Comia ovos cozidos e frutas, e do comer comum só se servia de carne. Assim, vinham para ele diversos pratos e, desde que se servia de um deles e esvaziava o conteúdo sobre aquele em que comia, arredava o outro muito senhorialmente para o meu lado, com um gesto de pouco caso. Certo dia, sem dizer uma palavra, quando ele isso fez, de novo eu arredei o prato para o seu lado.

O do lado direito era um teuto-brasileiro, antigo empregado de banco, alto, membrudo, era simplesmente epiléptico; mas, apesar de falar mal dos alemães, sentia-se a sua primeira educação no orgulho alemão.

Ambos me desgostavam por comer ali contrafeito; vim a sair dali, mas contarei como, mais tarde.

A refeição durava muito pouco, cerca de meia hora; e, após ela, vinha o tormento do pedido de cigarros. Nisso ainda, eu não era vítima dele; mas, ao depois, foi uma das minhas quizílias com o hospício.

Aborrecido, tristonho, sem ter o meu amigo português, para trocar umas lembranças, desejoso de fugir da convivência dos meus companheiros, eu corri logo ao dormitório, deitei-me e acendi um cigarro. Para mim, eram as mais tristes horas que passei no hospital, aquelas que vão da refeição até à hora do sono. Durante as outras, há sempre uma esperança para nos animar e sustentar o espírito: são as das refeições. Marca-se a vida daquelas horas vazias de que fazer, de ócio obrigado, mas cheias de tédio, por elas, mas, depois do jantar, não há mais nenhum marco no tempo que vai correr, senão o duvidoso do instante em que se concilie o sono. Vem então uma melancolia, que a luz da tarde faz mais sombria, mais física, mais dolorosa; e o nosso pensamento, quando pára em alguma coisa, é para os tristes episódios da nossa vida. Eu ali, naquele hospício, no meio da vida, com tantas dores na vida, as que me vieram sem culpa minha, inclusive a minha organização, as que eu mesmo engendrei, cheio de vida e de bondade, não era bem a morte que eu queria, não era o aniquilamento da minha pessoa, a sua fragmentação até ao infinito, nas coisas e nos seres, era outra vida, mais cheia de amor, de crença, de ilusão, sem nenhum poder de análise e isenta de toda e qualquer capacidade de exame sobre mim mesmo.

Via todos os meus tropeços, todas as tolices que tinha feito, o tempo perdido nela, as minhas hesitações, os meus pavores, que não deviam existir e que só me faziam sofrer. Eu devia ser reto como uma seta e rápido como um raio; mas vinha a pensar na minha vida atribulada, na saudade da minha mulher, no arrependimento que eu tinha de não tê-la compreendido em tempo... no meu filho... na minha sogra... na minha embriaguez.

Então, quando esta surgia à tona do meu pensamento, lá vinham recordações dos meus companheiros de pândega mortos, quase todos bons, quase todos amigos mesmo meus, sobre cuja amizade durante muito tempo as minhas torturas repousaram e as deles também. E fulano? E sicrano? E este? E aquela ronda de mortos lá surgiam aos meus olhos, sem álcool, bons, quase todos inteligentes e cavalheiros. E os episódios também vinham, e os fantásticos passeios por todo o Rio eram relembrados por mim. Nessa primeira tarde, na Seção Calmeil, deitado só, apesar da bulha que os loucos faziam nos corredores e nos salões, me recordei, sem saber como, de um fato que se deu comigo e um outro companheiro.

Já morreu; e nós fomos buscá-lo ao necrotério. Todas as tardes éramos vistos juntos. Toda a tarde, ao sair do serviço, o procurava, e ficávamos parados, de pé, nas ruas centrais a ver passar as moças bem vestidas. Tinha a mania de não entrar cedo em casa, com a luz do sol, porque me aborrecia aquele dever de cumprimentar os vizinhos; porque, em casa, em face de toda a sua tristeza, logo me vinha a imagem cruel da catástrofe doméstica, da subversão da minha vida, da sua impotência, do seu não valor.

Aborrecia-me de não dar uma satisfação aos que me instruíram generosamente e procurava distrair-me na cidade...

Esse meu amigo era meu inevitável companheiro. Certo dia, bebemos muito, e todas as casas já se fechavam, quando lhe disse:

— Sousa, você me leva até o bonde.

Eu o tomava na rua XXX, e para ela nos dirigimos. Encostei-me ao poste de parada, balouçando. Era mais de uma hora da noite. A rua, naquele trecho, não tinha nem uma casa aberta. Passava um transeunte ou outro. Automóvel não me lembro de ter visto passar um. Não falava quase. Num dado momento, caí e estendi-me no asfalto da rua. O meu companheiro, que era mais forte do que eu, e, naquele momento, o era excessivamente mais, ergueu-me do chão e encostou-me à parede. De repente, segundo me contou o amigo, veio uma rapariga preta, surgida de qualquer parte, e, dirigindo-se à patroa, falou ao meu camarada nestes termos:

— A patroa manda perguntar o que tem o doutor Vicente.

Meu amigo respondeu:

— O doutor Vicente está um pouco incomodado, devido a ter se excedido um pouco. Não é nada, ele vai para casa...

A rapariga foi-se e logo após voltou:

— A patroa manda este remédio para o senhor fazer o doutor Vicente cheirar.

Ele fez o que lhe era recomendado e quis restituir o vidro à rapariga. Tinha eu melhorado um pouco, já via alguma coisa, mas não ouvi o que ela recomendou nestas palavras que me foram narradas dias depois pelo meu amigo:

— Não, não; o senhor deve. A patroa disse que o senhor acompanhasse o doutor até em casa e fizesse ele cheirar durante o caminho todo.

O vidro continha amônia, e eu ainda o conservo vazio entre outras coisas curiosas da minha vida. Quem foi que o mandou?

Esforcei-me por descobrir, andei a rua várias vezes, de. alto abaixo, vasculhando os sobrados, a todas as horas dó dia, nas horas da noite que me era dado passar por ela; e, até hoje, não sei quem foi...

V

Desde o pavilhão que eu vinha conhecendo médicos. Na seção anterior em que eu estive, conheci dois. Logo à entrada, um moço ao qual já me referi; e, no dia seguinte, um outro mais graduado. Conhecia-o e ele a mim; mas, simplesmente, de vista. Não se dando ele a conhecer, não me competia a mim fazê-lo, no estado de humilhação em que estava. Suportei-o diante dele, com toda a dignidade, e fiquei contente comigo mesmo. Sem ter motivo algum para isso, eu não queria ficar aos seus cuidados. Eu o tinha por muito amante de novidades, de experiências, e o meu temor é que ele viesse a cismar que eu era um magnífico campo para algumas delas.

Faziam-me perguntas de confessor, e eu as respondia com toda a veracidade de catecúmeno obediente; mas, no meu íntimo, eu tinha para mim que tudo aquilo era inútil. Há uma classificação, segundo este ou aquele; há uma terminologia sábia; há descrições argutas de tais e quais casos, revelando pacientes observações; mas uma explicação da loucura, mecânica, científica, atribuída a falta ou desarranjo de tal ou qual elemento ou órgão da nossa natureza, parece que só há para raros casos, se há.

Procuram os antecedentes, para determinar a origem do paciente que está ali, como herdeiro de taras ancestrais; mas não há homem que não as tenha, e se elas determinam loucura, a humanidade toda seria de loucos. Cada homem representa a herança de um número infinito de homens, resume uma população, e é de crer que nessa houvesse fatalmente, pelo menos, um degenerado, um alcoólico, etc. etc.

De resto, os filhos de loucos são gerados por pais que estão loucos, mas tarde é que a sandice aparece; como é então que ele herdou? Tinha a loucura incubada, em gérmen, etc.?

A explicação é acomodada, mas não é leal, antes traduz o desejo de não invalidar uma sentença. Há homens que, durante uma existência inteira, não demonstram o mínimo sinal de loucura e, ao fim da vida, perdem o juízo. As maravilhas que a ciência tem conseguido realizar, por intermédio das artes técnicas, no campo da mecânica e da indústria, têm dado aos homens uma crença de que é possível realizá-las iguais nos outros departamentos da atividade intelectual; daí, o orgulho médico, que, não contente de se exercer no âmbito da medicina propriamente, se estende a esse vago e nebuloso céu da loucura humana.

Eu tinha muito medo do meu médico da Seção Pinel; ele tinha o orgulho e a fé na sua atividade intelectual, e os pontos de dúvida que deviam tirar do seu espírito o sentimento de sua evidência, pareciam que antes reforçavam-no.

Há um grande mal em querer os nossos estudiosos de hoje desprezar as observações dos leigos; muitas vezes é preciso estar livre de construções lógicas, erguidas a priori, para se chegar à verdade, e não há como levar em linha de conta aquelas.

Isis, como todos os Deuses e Deusas, gosta muitas vezes de abrir uma frestazinha no seu véu impenetrável aos simples e aos néscios...

A minha transferência para outra seção, onde ia ficar aos cuidados de outro médico, deu-me muita satisfação, entre outras, por isso mesmo.

O terrível nessa coisa de hospital é ter-se de receber um médico que nos é imposto e muitas vezes não é da nossa confiança. Além disso, o médico que tem em sua frente um doente, de que a polícia é tutor e a impersonalidade da lei, curador, por melhor que seja, não o tem mais na conta de gente, é um náufrago, um rebotalho da sociedade, a sua infelicidade e desgraça podem ainda ser úteis à salvação dos outros, e a sua teima em não querer prestar esse serviço aparece aos olhos do facultativo, como a revolta de um detento, em nome da Constituição, aos olhos de um delegado de polícia. A Constituição é lá pra você?

Não presenciei nada disso, mas e um sentimento geral que ninguém, nem os próprios médicos, de boa fé negarão.

Eu passei, desde a minha entrada no pavilhão, nas mãos de cinco médicos. Os daquela primeira dependência, já falei; os da Seção Pinel, já aludi. Principalmente ao adjunto ou que outro nome tenha. Não falei do chefe do serviço. Era um moço de minha idade, conhecido da rua, mas, conforme meu hábito, já que ele não se deu a conhecer, eu não me dei também. Em rigor, ali, doente indigente, pária social, a mais elementar dignidade fazia eu não o fizesse e, por estar em tal estado, temia-o muito. Sentia, não sei porquê, nesse rapaz, um grande amor à novidade, uma pressa e açodamento, muito pouco científicos, em experimentar o "remédio novo". Percebia-se pelo seu ar abstrato, distraído, que era homem de leituras, de estudos; mas também, por não sei que ar de fisionomia ou de olhar, que era inquieto e sôfrego. Faltavam-lhe a capacidade de meditação demorada, da paciência de examinar durante muito tempo o pró e contra de uma questão; não havia nele a necessidade da reflexão sua, de repensar o pensamento dos outros até admitir como sua a evidência, tida por um outro como tal. Essa sua falta de método, junto a minha condição de desgraçado, davam-me o temor de que ele quisesse experimentar em mim um processo novo de curar alcoolismo em que se empregasse uma operação melindrosa e perigosa. Pela primeira vez, fundamentalmente, eu senti a desgraça e o desgraçado. Tinha perdido toda a proteção social, todo o direito sobre o meu próprio corpo, era assim como um cadáver de anfiteatro de anatomia. Felizmente, fui logo transferido, mas não sem passar dolorosos minutos à espera de ser vítima desse vício mental dos nossos métodos. Pouco lógicos, por isso demasiadamente objetivos; impacientes, por isso aceitando em globo a "autoridade", arriscam-se a de boa fé cometer os erros mais grosseiros e funestos no exercício de sua profissão. Falta-lhes crítica, não só a mais comum, mas também a necessária do grau de certeza da experiência e dos instrumentos em que as refazem.

Transferido de seção, eu fui parar nas mãos de um médico de outro feitio mental, cuja inteligência, solicitada e atraída para outros campos de atividade, dava-lhe mais dúvida, mais necessidade de reexame, no que propusessem os seus colegas, de modo a não se permitir liberdades com a vida dos outros.

Também era muito conhecido meu, desde menino, eu tive grande surpresa em ficar encantado com ele e um imenso prazer em julgá-lo de outro modo.

Tinha-o por dandy, por fútil, algo pedante e, mais do que os outros, que éramos francamente conhecidos e ele podia com certa razão ter motivos de queixa de mim, eu fui à sua presença com certo temor e sem nenhuma segurança da minha atitude. Recebeu-me prazenteiramente, falou-me, examinou-me com cuidado, viu bem os estragos que o álcool podia ter realizado no meu organismo e ficou admirado. Eram mínimos. Foi aí que eu vi bem o mal da "bebida". Ela não me matava, ela não me estragava de vez, não me arruinava. De quando em quando, provocava-me alucinações, eu incomodava os outros, metiam-me em casas de saúde ou no hospício, eu renascia, voltava, e assim levava uma vida insegura, desgostosa, e desgostando os outros, sem poder realizar plenamento o meu destino, que as coisas obscuras queriam dizer não ser o de um simples bêbedo. Era preciso reagir. Tive mesmo desgosto que não tivesse profundamente crença numa vida futura para pedir a minha mulher morta que me iluminasse com seu espírito, que me tirasse daquela degradação, que me desviasse com preocupações quaisquer daquele infame e imundo caminho de bebedeira.

A administração do hospício é feita segundo seções e pavilhões, à testa das quais tem um alienista e mais médicos. Segundo depreendi, as seções principais do hospício propriamente são quatro: Pinel e Calmeil, para homens; e Morel e Esquirol, para mulheres. Além destas, há outras especiais, para epilépticos, para crianças retardadas, rígidas e epilépticas, para tuberculosos, etc., cada qual com um nome de sumidade nacional ou estrangeira. O pavilhão, por excelência, é o de observação, que tem uma organização sui generis, depende do hospício, da polícia e da Faculdade de Medicina, cujo lente de Psiquiatria é o seu diretor, sem nenhuma dependência ou subordinação ao do hospício, dependendo, entretanto, o resto do pessoal subalterno e fornecendo este estabelecimento tudo o mais. Para ser um anfiteatro a seu jeito em uma enfermaria da Santa Casa, só lhe falta a insolência, a multidão de estudantes a querer fazer espírito e outras criançadas com os doentes e defuntos.

Estive nele, como já disse, e, conquanto as minhas queixas sejam mínimas, é, das dependências da Praia Vermelha, a que pior impressão me deixou. Todas as demais, com todos os defeitos, mesmo aparentemente mais defeituosas que aquela, não nos machucam tanto como ela. É possível que eu não tenha razão; e que lá estivesse mais maluco, por isso...

Do pavilhão, como já contei, fui para a Seção Pinel; é a de indigentes, daqueles sem eira nem beira, nem ramo de figueira. Houve nisso um grande erro e muito grave para as finanças governamentais. Sujeitos assim classificados lá existem, que recebem do governo pensões sob vários títulos. Isto tudo é sabido, consta de papéis oficiais. O Estado, recebendo-os como loucos, por mais mínima que fosse, o seu primeiro cuidado devia ser apoderar-se dessa pensão para o seu tratamento. Evitava que eles fossem tratados abaixo de sua condição, aumentava a renda do estabelecimento e dava enchanças para melhorar o tratamento dos verdadeiramente pobres.

Essa narração, porém, não tem por fim indicar medidas de administração; quero contar simplesmente as impressões da minha sociedade com os loucos, as minhas conversas com eles, e o que esse transitório comércio me provocou pensar.

Entrando na Seção Calmeil, lá em cima, como é ela conhecida no hospício, não encontrei logo o respectivo enfermeiro-mor ou inspetor. É um tipo curioso esse de pajeador de loucos. Talvez isso faça há trinta ou mais anos. É um português baixo, todo ele curto, pernas, tronco, pescoço, testa, mas de grandes olhos sequiosos de entender alguma coisa, o único traço grande de sua fisionomia. Tem abundante barba, bigode caído e fala por estos; não há na sua voz modulações, passagens: é um tom único, peremptório, e decisivo: não tem, não há, senhor; não há; pois não, tire. Ele quer ser meigo, doce, mas não pode; há de parecer brutal; entretanto, é um homem paciente, resignado, sofrendo, e eu o vi sofrer, injúrias e até sevícias dos loucos.

Depois que mudei de roupa, para uma minha que meu sobrinho me trouxe de casa, como não soubesse onde era o meu alojamento, eu fiquei no corredor à espera do inspetor Malone, que mo designasse, a fim de descansar um pouco na cama até à hora do jantar.

Nisto, um doente, trajando com certo aplomb uma roupa caseira, tendo até ao peito uma flor vulgar, uma flor do mato, como diz o povo, chegou-se a mim e me perguntou cerimoniosamente:

— O Senhor não é o Senhor Vicente Mascarenhas?

Respondi com a delicadeza requerida e estive a reparar aquele rapaz, que catava maneiras e trazia dentro daquele casarão um livro debaixo do braço.

Reparei melhor naquele rapaz e a sua fisionomia não me pareceu estranha. Eu já a havia visto. Ele era claro, membrudo, barrigudo; tinha uns olhos salientes, muito fora das órbitas, inquietos; papagueava ao falar com os lábios moles e úmidos.

— Eu já li, continuou ele, alguma coisa do senhor... Foi na revista do Samuel... Conhece o Samuel Belo?

— Conheço.

— Pois foi na revista dele. Não se lembra?

— É verdade, escrevi lá.

Notava eu que, à proporção que ele falava, considerava-me com desconfiança, não só a mim, como aos arredores.

— Pois li. Meu irmão — Eduardo Alves — conhece?

— Conheço.

— É muito amigo do Samuel e escreveu lá também. É bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, sabia?

— Sabia.

— Tenho outro irmão que é também bacharel e o mais velho é médico. O meu futuro cunhado está a se formar em odontologia, eu já tenho quatro preparatórios.

Tive uma grande vontade de rir-me, quando aquele respeitável disse-me com tanto orgulho isso. Nos meses que lá passei, não pude nunca deixar de me admirar do cândido entusiasmo que aquele rapaz tinha pelos títulos chamados acadêmicos. Quando os tinham, os amigos a que se referia, ele não cessava de pô-los à mostra; mas se os não tinha, observava insistentemente: não era formado, mas dava surra em muita gente formada.

O hospício tem uma particular admiração pelos títulos doutorais, patentes, e um culto pelas nobiliarquias familiares.

— Eu, dizia-me esse José Alves, descendo de Frei Caneca, em quinta geração. Meu pai falava quatro línguas e foi convidado pelo barão de Lucena, para representar o Brasil em Londres.

Nunca cansava de repetir estas palavras por qualquer que fosse o motivo que se lhe apresentasse. Além disto, gabava-se extraordinariamente de sua força e de sua bravura.

— Não sou carioca, gente mole. Olhe aqui minha musculatura... Sou pernambucano e descendo de frei Caneca.

A minha conversa, logo na entrada, não pôde ir mais longe. Acercou-se de nós um outro doente. Era um rapaz fraco, delgado, fino de fisionomia, mas insignificante de olhar e modos. Trazia na cabeça um lenço umedecido, que depois me explicou os serviços que lhe prestava.

Alves tinha entrado no terreno das confidências, dos motivos que tinham feito a sua família interná-lo ali. O outro chegou-se justamente nesse ponto preciso, e o meu amável interlocutor virou-se zangado e peremptório para o companheiro:

— Você, Azevedo, parece que não tem educação. Estamos falando em particular e você...

— Eu já sei, Zé Alves, que você é o moço mais educado da seção...

— Sou sim; minha mãe me educou muito bem. Tocava o Guarani a quatro mãos e fez um grande sucesso, num concerto no Teatro Santa Isabel.

O outro observou:

— Você já me tinha dito isto; mas não vim ouvir o que estava dizendo.

— Então, o que é que você veio fazer aqui?

— Vim conhecer o novo colega e pedir fogo.

Os dois continuaram a altercar dessa maneira, e eu não via saída alguma para harmonizá-los. Parecia-me que a coisa ia acabar em briga, em pugilato; mas tal não se deu. Repentinamente Alves se foi para um canto, e aquele a quem ele tratara de Azevedo se foi para outro. Fiquei eu só no vão da janela.