O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro/Capítulo 1/1.3.2./1.3.2.1

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1.3.2. Fundamentos para o domínio público

 

1.3.2.1. Razões sociais

O ser humano sempre criou. Desde as “Vênus Esteatopígias”, que datam de 40.000 a.C., até o último tweet, o ser humano sempre sentiu uma irrefreável vontade de se expressar[1]. É evidente, entretanto, que a criação do ser humano não é fruto de geração espontânea: toda a cultura, de todos os lugares e épocas, é reflexo das circunstâncias. Assim é que “pode-se dizer que a cultura é algo sempre inacabado, assim como é sempre inconcluso um software aberto. Em outras palavras: a cultura consiste em um estar-se-fazendo eterno. Mutatis mutandis, é possível parafrasear a máxima de Lavoisier: na cultura, nada se perde, tudo se transforma. (...) Portanto, todo criador intelectual age ‘refazendo tudo’, como escreveu Gilberto Gil, em 1975, em sua obra lítero-musical Refazenda. Toda criação é, de certo modo, uma derivação”[2].

Durante muitos séculos, a criação a partir de obras alheias não causou maiores especulações sociais ou jurídicas. Era um fato. Até a invenção da prensa mecânica por Guttemberg, no século XV, todas as obras literárias eram copiadas e anotadas manualmente – e a cópia e os comentários a elas apostos eram vistos como uma forma de difundir o conhecimento. Além disso, Shakespeare escreveu Medida por Medida sem se preocupar com violação dos direitos à peça Elizabetana Promos e Cassandra, escrita cerca de vinte e cinco anos antes de sua própria obra e na qual se inspira. Nem tampouco Milton se indagou se estaria violando direitos autorais do Velho Testamento ao escrever sua obra-prima Paraíso Perdido[3].

No entanto, sempre que o ser humano atravessou uma revolução tecnológica (o advento da imprensa no século XV, a revolução industrial dos séculos XVIII e XIX e a revolução da internet que agora vivemos), uma das consequências diretas foi a tentativa de proteger os direitos autorais. A cada ato de proteção, retira-se da sociedade, por outro lado, a liberdade de uso de determinadas obras. A experiência ao longo do último século foi no sentido de que quanto mais o tempo passa, menos ampla (juridicamente) se torna a possibilidade de acesso e de uso de obras alheias.

A questão do acesso e da criação a partir de trabalhos intelectuais de terceiros e dos elementos culturais disponíveis tem se prestado cada vez mais a calorosos debates[4]. De um lado, há autores que defendem maior acesso às obras intelectuais de modo a se permitir liberdades mais expressivas de criação. De outro, autores propõem maior proteção aos direitos autorais, limitando-se dessa forma o acesso e reaproveitamento das obras por parte da sociedade. Algo, entretanto, é certo: quanto mais extenso o domínio público, maior o manancial para a (re)criação livre.

A discussão acerca da proteção conferida aos direitos autorais abrange inevitavelmente tratar da estrutura e da função jurídica do domínio público. Adicionalmente, podemos encarar o domínio público como elemento importante na construção da educação e do acesso ao conhecimento.

De modo simplificado, e apenas por ora – já que a questão será retomada com mais profundidade adiante, o domínio público pode ser inicialmente definido como o conjunto de obras cujo prazo de proteção por direitos autorais já tenha expirado.

O principal efeito da entrada de determinada obra no domínio público é a possibilidade de sua utilização independentemente de autorização do autor ou do titular dos direitos autorais. Por isso, obras em domínio público podem ser copiadas, reeditadas, transformadas, traduzidas, adaptadas etc., sem que seja necessário pagar por esse uso. Além disso – e ao contrário da regra geral que deve ser observada enquanto vigentes os direitos autorais sobre a obra –, é possível fazer uso comercial desta, auferindo lucros com seu uso, independentemente de autorização de terceiros.

É fácil, portanto, perceber o impacto social do domínio público. Ao se devolver à sociedade aquilo que a própria sociedade propiciou (por conta das múltiplas influências culturais que sofre, individualmente, cada um dos artistas criadores de obras intelectuais), permite-se, de fato, que as pessoas possam desfrutar, independentemente das limitações legais ou de licença, da obra anteriormente protegida. Da mesma forma, permite-se que a obra original sirva de matéria-prima direta para novos trabalhos.

Dessa maneira, fazer a obra ingressar em domínio público é consentir que siga seu curso natural, autorizando sua reapropriação pela sociedade e admitindo seu aproveitamento por parte de todos.

Passamos a seguir a abordar o segundo aspecto: a utilização de obra alheia que tenha ingressado em domínio público e as suas consequências econômicas[5].

Este material foi publicado por seu autor/tradutor, Sérgio Branco (ou por sua vontade) em Domínio público. Para locais que isto não seja legalmente possível, o autor garante a qualquer um o direito de utilizar este trabalho para qualquer propósito, sem nenhuma condição, a menos ques estas condições sejam requeridas pela lei.

 
  1. Nesse sentido, retomamos a célebre afirmação de Fernando Pessoa, que disse: “a literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”.
  2. MORAES, Rodrigo. Por que obras Protegidas pelo Direito Autoral Devem Cair em Domínio Público? Direitos Autorais – Estudos em Homenagem a Otávio Afonso dos Santos. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 305. O autor comenta ainda dois outros exemplos loquazes. No primeiro, cita Roland Barthes que, em seu ensaio “A Morte do Autor”, teria afirmado que “o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura” e que “o escritor não pode deixar de imitar um gesto sempre anterior, nunca original; o seu único poder é o de misturar as escritas”. No segundo exemplo, certamente mais lírico, apresenta a ideia de intertextualidade da poeta Adélia Prado: “[p]orque tudo que invento já foi dito nos dois livros que eu li: as escrituras de Deus, as escrituras de João. Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão”.
  3. Exemplos apresentados por LANDES, William M. e POSNER, Richard A. The Economic Structure of Intellectual Property Law. Harvard University Press, 2003; pp. 66-67.
  4. Entre outros exemplos de autores que vêm se dedicando à análise da questão, podemos citar: BOYLE, James. The Public Domain. Cit.; LESSIG, Lawrence. Free Culture – How Big Media Uses Technology and the Law to Lock Down Culture and Control Creativity. New York: The Penguin Press, 2004, Remix. New York: The Penguin Press, 2008; TAPSCOTT, Don e WILLIAMS, Anthony D. Wikinomics – How Mass Collaboration Changes Everything. New York: Portfolio, 2007. E em sentido oposto ao defendido pelos demais autores: KEEN, Andrew. O Culto do Amador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
  5. Uma síntese das razões sócio-econômicas para a construção do domínio público são apontadas pela professora Pamela Samuelson, da Universidade da Califórnia. SAMUELSON, Pamela. The Future of the Public Domain: Identifying the Commons in the Information Law. Kluwer Law International, 2006; p. 22. Entre outros motivos para a existência do domínio público, com relação aos direitos autorais e às patentes, podemos citar: servir como base para criação de novos trabalhos; permitir a competição; permitir inovação; permitir acesso a informação a custo mais baixo; dar acesso à herança cultural; promover a educação; promover a saúde pública e a segurança; promover valores e processos democráticos.