O Gaúcho/II/II

Wikisource, a biblioteca livre

Que anomalia era a fibra cardíaca desse homem?

Coração para uma raça bruta, músculo apenas para sua própria espécie e até para sua família.

Quanto se expandia em amor e dedicação com os animais, seus prediletos, tanto se retraía com frieza e indiferença ante as mais doces afeições de sangue que o cercavam.

Não se explica semelhante aberração. Talvez que algumas particularidades da infância de Manuel aventem a razão desse teor d’alma tão avesso da natureza.

Eis o que referiam sobre a família e a infância do gaúcho.

João Canho, pai de Manuel, era o primeiro amansador ou peão de toda aquela campanha; à sua destreza em montar e governar o animal com qualquer das mãos deveu ele o apelido que adotou por nome.

Servira o amansador com Bento Gonçalves na campanha da Cisplatina; pelejara corajosamente em vários combates; e depois de feita a paz, viera estabelecer-se com sua mulher e dois filhos em Ponche-Verde, onde vivia pobremente de sua arte, à qual juntava a perícia de ferrador e alveitar.

Aos oito anos já sentia-se Manuel orgulhoso das proezas do pai. Quando ouvia o antigo soldado recordar suas campanhas e contar as valentia que praticara com um camarada de nome Lucas, do qual sempre se lembrava com saudades; quando sobretudo via o potro mais terrível subjugado em um momento pelo destemido peão, o gauchito enchia-se de admiração.

Não fossem falar de façanhas de heróis, que ele as desdenharia por certo. Não havia para o menino outra glória senão aquela; nada no mundo se podia comparar, no espírito do filho, à fama do pai.

A alma do menino foi-se moldando naturalmente pelo que admirava. A vida de peão inspirava-lhe entusiasmo. O baguá era para ele o símbolo da força e da fereza; domar o cavalo selvagem, o filho indômito dos pampas, significava o maior triunfo a que podia aspirar o homem. O amansador era o rei do deserto.

Ao mesmo tempo, sempre em contato com a raça eqüina, revelava-se a seu espírito infantil as grandes qualidades desse animal de paixões nobres e generosas, capaz das maiores dedicações, intrépido, sóbrio, leal, paciente na ocasião do sacrifício, impetuoso no momento do perigo.

O menino sentia em si essa mesma natureza, o germe daquelas virtudes, e assim gradualmente ia-se operando em seu caráter uma espécie de identificação entre o cavalo e o cavaleiro. Era a misteriosa formação do centauro.

No meio dessa existência tranqüila, a asa negra da desgraça roçou pela casa de João Canho.

Foi em maio de 1820.

Estava o amansador uma tarde pitando no alpendre, enquanto a mulher ninava ao colo o Juquinha, o último filho. Viu João aproximar-se um cavaleiro à disparada, e pouco depois esbarrar no terreiro. apeou-se rápido e correu para o gaúcho.

— Não me conhece, amigo?

O Canho surpreso respondeu:

— Pode ser; mas não me recordo.

— Sou o Loureiro, de Alegrete. Venho do Salto; os castelhanos juraram empalar-me, e me vêm no encalço. Estou perdido se o amigo não me der um abrigo.

— Entre, senhor; esta casa está a seu dispor.

— Mas se eles souberem que eu me refugiei aqui, não lhes poderei escapar.

— Fique descansado.

Entrou o Loureiro, a quem Francisca, pela recomendação do marido, agasalhou o melhor que pôde. Entretanto João Canho, em pé no alpendre, olhava o horizonte onde aparecia ao longe um ponto que vinha crescendo. Eram sem dúvida os castelhanos.

Pouco depois apearam-se quatro gaúchos orientais. Um deles, mais apressado, tomou a mão:

— Está em sua casa, amigo, um homem de Alegrete, que chegou neste instante. Queremos falar-lhe!

João hesitou um momento, se devia negar a presença do Loureiro em sua casa. Repugnava-lhe mentir; tanto mais quanto essa mentira era inútil. Os castelhanos tinham naturalmente visto na poeira o rasto fresco do animal.

— O homem está aí dentro, senhores. Agora o falar-lhe, é outra coisa. A que respeito?

— Sobre um negócio urgente.

— Mas qual é?

— Ele sabe.

— Ah! é o negócio que ele sabe? disse o Canho sorrindo.

— Justo!

Pois esse pediu-me ele que o tratasse em seu nome.

— E o amigo aceitou?

— Por que não? Estou pronto sempre a servir um patrício.

— Pois olhe, desta feita não andou bem, asseguro-lhe.

— Veremos.

Os castelhanos se impacientavam, cruzando entre si olhares suspeitos.

— Vamos ter com o homem.

Atravessou-se na frente o João Canho com ar resoluto.

— Senhores, o homem está descansando. Se querem fazer outro tanto, ali está o rancho.

— Falemos claro, amigo. Viemos à caça do sujeito, e por força que o havemos de levar.

— Daqui desta casa, não; salvo se ele mesmo quiser ir.

— Veja que somos quatro, e estamos disposto a ir às do cabo.

— Ainda que fossem vinte. Nesta casa ninguém entra sem licença de seu dono, e este sou eu para os servir, senhores.

Manuel que de dentro ouvira a altercação, saiu fora no alpendre movido por infantil curiosidade. Seu pai, de pé nos degraus da escada, aproveitando um instante em que os castelhanos se consultavam entre si, voltou-se para o gauchito:

— Corre; diz ao homem que fuja para a estância! Um cavalo selado, no quintal, já!... Tua mãe que feche a porta; eu os entretenho por cá; ele que se musque!

Estas palavras, rápidas e impetuosas, foram lançadas à meia voz no ouvido do menino, que de seu próprio impulso, e empurrado pela mão sôfrega do pai, ganhou de um salto a porta.

Era o tempo em que os castelhanos havendo tomado partido, caminhavam para o alpendre em atitude ameaçadora. O Canho recuou, mas para alcançar de um pulo o canto onde estavam seus arreios. Travando das correias das bolas, que tangidas pelo braço robusto, giraram como um remoinho em volta da cabeça, caiu sobre os adversários.

Os orientais, já senhores do alpendre, fugiram para o terreiro com medo de serem esmagados pela arma terrível. Em pé sobre a escada, o Canho os dominava outra vez, e repelia com vantagem os repetidos ataques.

Um dos orientais, armado de uma lança, no momento de subir ao alpendre, correra à janela com o intuito de penetrar na casa. Quando Canho voltou-se armado com as bolas, atento ao movimento dos outros adversários, não viu aquele que lhe ficava de esguelha e se havia encolhido.

Por algum tempo, durante a luta dos outros, ele forcejou para arrombar a janela; vendo, porém, que João Canho levava de vencida diante de si pela ladeira abaixo os outros já bem maltratados, mudou de plano. Agachou-se por detrás do parapeito, com a lança pronta.

Desejara Manuel depois que deu o recado voltar para junto do pai; porém, não consentiu a mãe, que fechou a porta, tirando a chave. Espreitavam ambos pelo olho da fechadura o que se passava fora, quando o menino avistou o oriental agachado.

— Ele vai atacar o pai! exclamou o menino.

A mesma idéia da emboscada atravessou o espírito da mulher, que abriu de repente a porta. Manuel precipitou-se armado com uma faca imensa, e chegando defronte o oriental, disse-lhe com raiva:

— Eu te mato!

Não se mexeu o oriental; ficou na mesma posição; apenas fez um gesto breve ameaçando o menino com a lança; porém este, longe de fugir, encarou com o sujeito, receando que se sumisse, antes de o pai chegar.

João Canho voltava da coça que dera nos castelhanos, os quais ainda o seguiam de longe, mas para apanharem os animais e safarem-se. Nisto Francisca, debruçada no alpendre e trêmula de susto, soltou um grande brado para advertir o marido do perigo dela e do filho, ameaçados pelo sujeito agachado.

— Corre, João!

Vendo o oriental frustrado seu intento de surpreender o adversário, ergueu-se para ganhar o terreiro e escamar-se. Mas João Canho, pensando que o grito da mulher era para adverti-lo da volta dos castelhanos por ele repelidos, voltara-se rapidamente e pusera-se em defesa, espreitando onde poderiam estar os assaltantes.

Aproveitou-se o oriental desse engano; de um salto caiu no terreiro e cravou a lança nas costas de João Canho. Ferido, o amansador soltou um rugido medonho, e voltou-se com tal sanha, que o oriental espavorido pulou no cavalo e desapareceu.

Quando ele sumia-se com os companheiros, o amansador expirava nos braços da mulher.

Manuel em pé, ao lado daquele grupo fúnebre, segurava maquinalmente a lança assassina, que tinham acabado de arrancar da ferida. Foi nessa posição, com os dentes rangidos e os lábios crespos de cólera, que ele recebeu a extrema bênção do pai.