O Gaúcho/IV/IV

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Era domingo. O sino da matriz de Piratinim tocara a primeira vez chamando para a missa.

Já pronta, com seu vestido escarlate e mantilha preta, Catita esperava impaciente que a pachorrenta Maria dos Prazeres se acabasse de enfeitar. A menina ia da porta do quarto de sua mãe à porta da rua, donde lançava um olhar para o largo.

Passou a Missé.

— Não vem?

— Mamãe não acaba de se aprontar.

— Ele já deve estar lá! disse a rapariga com um riso malicioso.

Catita corando fugiu para dentro e achou a mãe ainda de anágua, mas já com o enorme pente de tartaruga pregado no cocó, à semelhança do tejadilho de uma antiga traquitanda. A moça voltou desesperada; lágrimas de despeito lhe saltaram dos lindos olhos.

— Não tarde muito, olhe lá! tornou a Missé com o mesmo riso brejeiro. Tantas que morrem por ele!...

— Eu não sei o que tem mamãe hoje! Nem de propósito!

— Quem sabe se já percebeu?

A menina deu um muxoxo.

Finalmente Maria dos Prazeres concluiu a obra monumental de seu penteado, e partiu para a missa com a filha.

A igreja estava cheia quando chegaram. Atravessando por meio do povo, Catita passou roçando com D. Romero. O chileno aproveitou o momento para apertar a mãozinha mimosa que refugava os folhos da saia, e murmurar uma palavra.

— À meia-noite na rótula?... Sim?...

Catita esquivou-se trêmula e foi sentar-se distante. Nesse momento teve um remorso; e pediu perdão a Deus, invocando a lembrança de Manuel.

Debalde procurou ela refugiar-se na oração e nas reminiscências de seu amor. Sentia fascinação irresistível que a atraía. A vaidade de cativar o bonito chileno, que tantas outras lhe disputavam, o prazer de triunfar de suas rivais, sopitava o remorso que a pungia.

Se ainda amasse Manuel com os extremos de outrora, estaria preservada de semelhante fraqueza. Mas aquela paixão, como todas as explosões violentas, foi súbita. A exuberância de sua alma bastava para nutrir durante a vida inteira um afeto ardente e profundo; porém ela a despendera durante alguns dias nas expansões do amor insano que rojara aos pés do gaúcho. Seu coração devia ficar fatigado, senão exausto; a vaidade embebeu-se nessa esponja seca.

Catita sofrera uma desilusão. O homem por quem ela se estremecia era o gaúcho terrível; o caráter indômito que afrontava o céu e desdenhava do perigo; o filho do pampa, que avassalava o deserto e calcava o mundo com a pata de seu corcel.

Esse herói de seus belos sonhos, esse rei de sua alma, ela o admirava com um entusiasmo ardente. Para merecer-lhe um olhar, o que não fez? Para ser por ele amada, não hesitou em sacrificar-lhe em tudo. Ela, tão altiva e sempre adorada, suportou sem queixar-se o desprezo; e sujeitou-se às maiores humilhações para merecer desse homem um sobejo que fosse de afeição.

Manuel, que uma repugnância invencível afastava dessa moça, apesar da fascinação de seu olhar, Manuel afinal a amou; e então, rompido o óbice que por tanto tempo contivera seu afeto, este se despenhou, como uma catarata, arrojado e impetuoso. O coração, durante tantos anos sopitado, sentiu ao despertar uma sede insaciável de amor.

Nos dias que se seguiram ao encontro na coroa de mato, e ao primeiro beijo trocado entre os sibilos das balas, Canho não se fartava de olhar e admirar Catita, de beber-lhe o sorriso dos lábios, a graça e perfume de sua formosura. Abandonando a luta da revolução recente, recolheu-se a Piratinim para estar perto da mulher querida e não perder um instante de adoração.

Catita viu o rei de seu coração, o senhor de sua existência, transformar-se de repente em um servo humilde e cativo, submisso a seus menores desejos. Libado o primeiro prazer desse triunfo, a moça foi insensivelmente subtraindo-se à poderosa influência que sobre ela exercia o gaúcho.

Manuel tinha o garbo natural do talhe e das maneiras; agora, que amava, sua fisionomia se embebera de uma expressão meiga e terna. Para quem não o conhecesse antes, era um taful quando vestia o seu chiripá de seda escarlate e sua jaqueta de merinó verde; ou quando dançava a tirana, requebrando o corpo e arrastando a asa.

Mas para quem o vira outrora, aquela excessiva ternura embotava seu enérgico semblante; o sorriso namorado parecia hóspede nos lábios de ordinário cerrados pela contensão de uma vontade firme e rígida. Juca, o selvagem corcel, o livre bagual, filho dos páramos, já não reconhecia naquele mancebo guapo o seu amigo e irmão, o intrépido ginete, como ele fero e indômito.

A alma que uma vez subtrai-se ao domínio de outra, reage com um impulso irresistível. Na há pior déspota do que seja o cativo submisso, quando se revolta.

O amor de Catita, de escravo que era, tornou-se verdadeiro tirano. Submeter essa alma que a tinha dominado outrora aos mínimos caprichos; fazer do gaúcho terrível, que os mais bravos temiam, um brinco de moça faceira, e folgar com as paixões violentas daquele coração como uma criança imprudente com as lavas de um vulcão, foram os deleites dessa afeição.

Depois que Manuel partira, sentiu a Catita um vácuo em sua existência; os galanteios de D. Romero a divertiram a princípio, depois lisonjearam sua vaidade de moça bonita. A Missé desenvolveu então uma arte admirável para perder sua rival; não lhe escapava ocasião de excitar o orgulho da amiga e de facilitar ao chileno os meios de aproximar-se dela.

D. Romero conseguiu por duas ou três vezes falar à Catita na rótula; mas de longe em longe. A moça lembrava-se às vezes dos protestos que fizera a Manuel, e mostrava-se então esquiva e receosa.

Quando o chileno na igreja lhe pedira em voz baixa uma entrevista alta noite, a moça estremecendo procurou expelir de seu coração a imagem daquele homem; mas não o conseguiu. Momentos depois seus olhos o procuravam.

D. Romero com um gesto desdenhoso parecia tê-la esquecido; e sorria a alguém do lado oposto. Catita reparou: era uma rival. Seu olhar súplice pediu perdão.

Acabada a missa, quando ela passava corando perto do chileno, este murmurou de novo, mas com um tom breve e imperativo:

— Espera?

— Sim, balbuciou a moça.

Nesse momento ouviu um riso sardônico; voltando-se, avistou Félix que fitava nela a pupila sinistra, isolada naquele rosto sempre coberto da máscara hedionda. Teria ele escutado?

Catita afastou-se com uma aperto de coração.

Sua suspeita era real. Félix ouvira as palavras trocadas, e adivinhara o resto. Com o faro da vingança ele pressentira o namoro do chileno desde a noite da partida de Manuel; e por isso abandonara, ao menos por enquanto, seu primeiro plano. Ferir o coração de seu inimigo, fazendo da amante um horror, era cruel; mas torturá-lo com a perfídia da mulher amada, seria atroz.