O Guarani/III/I
Na segunda-feira, eram seis horas da manhã, quando D. Antônio de Mariz chamou seu filho.
O velho fidalgo velara uma boa parte da noite; ou escrevendo ou refletindo sobre os perigos que ameaçavam sua família.
Peri lhe havia contado todas as particularidades de seu encontro com os Aimorés; e o cavalheiro, que conhecia a ferocidade e o espírito vingativo dessa raça selvagem, esperava a cada momento ser atacado.
Por isso, de acordo com Álvaro, D. Diogo e seu escudeiro Aires Gomes, tinha tomado todas as medidas de precaução que as circunstâncias e sua longa experiência lhe aconselhavam.
Quando seu filho entrou, o velho fidalgo acabava de selar duas cartas que escrevera na véspera.
— Meu filho, disse ele com uma ligeira emoção, refleti esta noite sobre o que nos pode acontecer, e assentei que deveis partir hoje mesmo para São Sebastião.
— Não é possível, senhor!... Afastais-me de vós justamente quando correis um perigo?
— Sim! É justamente quando um grande perigo nos ameaça, que eu, chefe da casa, entendo ser do meu dever salvar o representante do meu nome e meu herdeiro legitimo, o protetor de minha família órfã.
— Confio em Deus, meu pai, que vossos receios serão infundados; mas se ele nos quiser submeter a tal provança, o único lagar que compete a vosso filho e herdeiro de vosso nome é nesta casa ameaçada, ao vosso lado, para defender-vos e partilhar a vossa sorte, qualquer que ela seja.
D. Antônio apertou seu filho ao peito.
— Eu te reconheço; tu és meu filho; é o meu sangue juvenil que gira em tuas veias, e o meu coração de moço que fala pelos teus lábios. Deixa porém que os cinqüenta anos de experiência que desde então passaram sobre minha cabeça encanecida te ensinem o que vai da mocidade à velhice, o que vai do ardente cavalheiro ao pai de uma família.
— Eu vos escuto, senhor; mas pelo amor que vos consagro poupai-me a dor e a vergonha de deixar-vos no momento em que mais precisais de um servidor fiel e dedicado.
O fidalgo prosseguiu já calmo:
— Não é uma espada, D. Diogo, que nos dará a vitória, fosse ela valente e forte como a vossa: entre quarenta combatentes que vão se medir talvez contra centenas e centenas de inimigos, um de mais ou de menos não importa ao resultado.
— Que assim seja, respondeu o cavalheiro com energia; reclamo o meu posto de honra e a minha parte do perigo; não vos ajudarei a vencer, porém morrerei junto dos meus.
— E é por esse nobre mas estéril orgulho que quereis sacrificar o único meio de salvação que talvez nos reste, se, como temo, as minhas previsões se realizarem?
— Que dizeis, senhor?
— Qualquer que seja a força e o número dos inimigos, conto que o valor português e a posição desta casa me ajudarão a resistir-lhe por algum tempo, por vinte dias, mesmo por um mês; mas por fim teremos de sucumbir.
— Então?... exclamou D. Diogo pálido.
— Então se meu filho D. Diogo, em vez de ficar nesta casa por uma obstinação imprudente, tiver ido ao Rio de Janeiro, e pedido o auxilio que fidalgos portugueses não lhe recusarão decerto, poderá voar em socorro de seu pai, e chegar com tempo para defender sua família. Então verá que esta glória de ser o salvador de sua casa vale bem a honra de um perigo inútil.
D. Diogo deitou o joelho em terra, e beijou com ternura a mão do fidalgo:
— Perdão, meu pai, por não vos ter compreendido. Eu devia adivinhar que D. Antônio de Mariz não pode querer para o filho senão o que é digno do pai.
— Vamos, D. Diogo, não há tempo a perder. Lembrai-vos que uma hora, um minuto de tardança talvez tenha de ser contado ansiosamente por aqueles que vão esperar-vos.
— Parto neste instante, disse o cavalheiro dirigindo-se à porta.
— Tomai; esta carta é para Martim de Sá, governador desta capitania; esta outra é para meu cunhado e vosso tio Crispim Tenreiro, valente fidalgo que vos poupará o trabalho de procurardes defensores para vossa família. Ide despedir-vos de vossa mãe, e vossas irmãs; eu farei tudo preparar para a partida.
O fidalgo, reprimindo a sua emoção, saiu do gabinete onde se passava esta cena, e foi ter com Álvaro que o procurava.
— Álvaro, escolhei quatro homens que acompanhem D. Diogo ao Rio de Janeiro.
— D. Diogo parte?... perguntou o moço admirado.
— Sim, depois vos direi as razões. Por agora dai-vos pressa em que tudo esteja pronto dentro de uma hora.
Álvaro dirigiu-se imediatamente ao fundo da casa onde habitavam os aventureiros.
Havia ai grande agitação; uns falavam em tom de queixa, outros murmuravam apenas palavras entrecortadas; e alguns finalmente riam e motejavam do descontentamento de seus companheiros.
Aires Gomes com todo o seu arreganho militar passeava no meio do terreiro, a mão no punho da espada, a cabeça alta e o bigode retorcido. Quando o escudeiro passava, a voz dos aventureiros descia dois tons; mas à medida que ele se afastava, cada um dava livre desabafo ao seu mau humor.
Entre os mais inquietos e turbulentos distinguiam-se três grupos presididos por personagens de nosso conhecimento: Loredano, Rui Soeiro e Bento Simões.
A causa desse descontentamento quase geral era a seguinte:
Por volta de seis horas da manhã, Rui, em virtude do emprazamento da véspera, dirigiu-se o primeiro à escada para ganhar o mato.
Chegando ao fim da esplanada admirou-se de ver aí Vasco Afonso e Martim Vaz de vigia, o que era extraordinário, pois só à noite se usava de uma tal precaução, e esta cessava apenas amanhecia.
Ainda mais admirado porém ficou quando os dois aventureiros cruzando as espadas, proferiram quase ao mesmo tempo estas palavras:
— Não se passa.
— E por que razão?
— É a ordem, respondeu Martim Vaz.
Rui empalideceu, e voltou apressadamente; a primeira idéia que lhe acudiu foi que os tinham denunciado, e cuidou em prevenir a Loredano.
Aires Gomes porém embargou-lhe o passo, e dirigiuse com ele para o terreiro: ai o digno escudeiro desempenando o corpo, e levando a mão à boca em forma de buzina, gritou.
— Olá! À frente toda a banda!
Os aventureiros chegaram-se formando um círculo ao redor de Aires Gomes; Rui já tinha tido ocasião de lançar uma palavra ao ouvido do italiano; e ambos, um pouco pálidos mas resolutos, esperavam o desfecho daquela cena.
— O Sr. D. Antônio de Mariz, disse o escudeiro, por meu intermédio vos faz saber a sua vontade: e manda que ninguém se afaste um passo da casa sem sua ordem. Quem o contrário fizer, pereça morte natural.
Um silêncio morno acolheu a enunciação desta ordem. Loredano trocou uma vista rápida com os seus dois cúmplices.
— Estais entendidos? disse Aires Gomes.
— O que nem eu, nem meus companheiros entendemos e a razão disto, retrucou o italiano avançando um passo.
— Sim; a razão? exclamou em coro a maioria dos aventureiros.
— As ordens cumprem-se, e não se discutem, respondeu o escudeiro com uma certa solenidade.
— Contudo nós... ia dizendo Loredano.
— Toca a debandar! gritou Aires Gomes. Aquele que não estiver contente, que o diga ao Sr. D. Antônio de Mariz.
E o escudeiro com uma fleuma imperturbável rompeu o circulo e começou a passear pelo terreiro olhando de traves os aventureiros e rindo à sorrelfa do seu desapontamento.
Quase todos estavam contrariados; sem falar dos conspiradores que se haviam emprazado para concertarem seu plano de campanha, os outros, cujo divertimento era caçar e bater os matos, não recebiam a ordem com prazer. Apenas alguns de gênio mais bonachão e jovial tinham tomado a coisa à boa parte, e zombavam da contrariedade que sofriam seus companheiros.
Quando Álvaro se aproximou todos os olhos se voltaram para ele, esperando a explicação do que se passava.
— Sr. cavalheiro, disse Aires Gomes, acabo de transmitir a ordem para que ninguém arrede pé da casa.
— Bem, respondeu o moço, e continuou dirigindo-se aos aventureiros: assim é preciso, meus amigos, estamos ameaçados de um ataque dos selvagens, e toda a prudência é pouca nestas ocasiões. Não é só a nossa vida que temos a defender, e essa pouco vale para cada um de nós; é sim a pessoa daquele que confia em nosso zelo e coragem, e mais ainda o sossego de uma família honrada que todos prezamos.
As nobres palavras do cavalheiro, e a afabilidade do gesto que suavizava a firmeza de sua voz, serenaram completamente os ânimos; todos os descontentes mostraram-se satisfeitos.
Apenas Loredano estava desesperado por ser obrigado a retardar a combinação do seu plano; pois era arriscado tentá-lo em casa, onde o menor gesto o podia trair.
Álvaro trocou poucas palavras com Aires Gomes, e voltou-se para os aventureiros:
— D. Antônio de Mariz precisa de quatro homens dedicados para acompanharem seu filho D. Diogo à cidade de São Sebastião. É uma missão perigosa; quatro homens nestes desertos marcham de perigo em perigo. Quem de vós se oferece para desempenhá-la?
Vinte homens se adiantaram; o cavalheiro escolheu três entre eles.
— Vós sereis o quarto, Loredano.
O italiano que se tinha escondido entre os seus companheiros, ficou como fulminado por estas palavras; sair naquela ocasião da casa era perder para sempre a sua mais ardente esperança; durante a ausência tudo podia se descobrir.
— Pesa-me ser obrigado a negar-me ao serviço que exigis de mim; mas sinto-me doente, e sem forças para uma viagem.
O cavalheiro sorriu.
— Não há enfermidade que prive um homem de cumprir o seu dever; sobretudo quando é um homem valente e leal como vós, Loredano.
Depois abaixou a voz para não ser ouvido pelos outros aventureiros:
— Se não partis, sereis arcabuzado em uma hora. Esqueceis que tenho a vossa vida em minha mão e vos faço esmola mandando-vos sair desta casa?
O italiano compreendeu que não tinha remédio senão partir; bastava que o moço o acusasse de ter atirado sobre ele, bastava a palavra de Álvaro para fazê-lo condenar pelo chefe e pelos seus próprios companheiros.
— Aviai-vos, disse o cavalheiro aos quatro aventureiros escolhidos por ele; partis em meia hora.
Álvaro retirou-se.
Loredano ficou um momento abatido pela fatalidade que pesava sobre ele; mas a pouco e pouco foi recobrando a calma, animando-se; por fim sorriu. Para que sorrisse era necessário que alguma inspiração infernal tivesse subido do centro da terra a essa inteligência votada ao crime. Fez um aceno a Rui Soeiro, e os dois encaminharam-se para um cubículo que o italiano ocupava no fim da esplanada. Aí conversaram algum tempo, rapidamente e em voz baixa.
Foram interrompidos por Aires Gomes, que bateu com a espada na porta:
— Eh! lá! Loredano. A cavalo, homem; e boa viagem.
O italiano abriu a porta, e ia sair; mas voltou-se para dizer a Rui Soeiro:
— Olhai os homens da guarda; é o principal.
— Ide tranqüilo.
Alguns minutos depois, D. Diogo com o coração cerrado e as lágrimas nos olhos, apertava nos braços sua mãe querida, Cecília que ele adorava, e Isabel que já amava também como irmã.
Depois desprendendo-se com um esforço, encaminhou-se apressadamente para a escada e desceu ao vale; ai recebeu a bênção de seu pai e abraçando a Álvaro saltou na sela do cavalo, que Aires Gomes tinha pela rédea.
A pequena cavalgata partiu; com pouco sumia-se na volta do caminho.