O Inferno (Auguste Callet)/II/II

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CAPITULO SEGUNDO

Opinião dos pagãos sobre a situação e vista interior do inferno
 

Os antigos situavam o inferno no centro da terra que habitamos, e pretendiam ter a este respeito pormenores muito satisfatorios. Os gregos e os romanos possuiam um mappa minucioso d'estas regiões subterraneas, a ponto de lhes conhecerem os rios, taes como o lodoso Cocyto, o ardente Phlegeton, e o invadiavel Acheronte; sabiam até que havia lá fetidas lagôas, em uma das quaes estava Tantalo atascado até aos queixos sem poder apagar a sêde; sabiam d'uns bosques medonhos em que certas almas se lamuriavam, debalde anciando o alvor do dia; conheciam montanhas, que outros condemnados, perseguidos pelas furias, em vão se esfalfavam por galgar. Contavam a historia de alguns desgraçados assim, e as particularidades do seu supplicio. Comtudo, apezar da indole inteiramente physica d'aquelles diversos castigos, diziam que os pacientes não tinham corpo, que os mortos eram apenas sombras intangiveis, bem que animadas, e que o seu maximo tormento era não poderem jámais viver vida carnal á luz do nosso sol. Isto contavam-no elles com toda a certeza, fiados em pessoas que tinham descido ao Tartaro, e de lá tinham voltado. Era conhecida a estrada por onde essas pessoas tinham viajado; havia cavernas que os pastores conheciam, poços d'onde sahiam vapores lethiferos e por onde se descia ao inferno.

Não eram menos instruidos os egypcios. Em assumpto de horrores visiveis, o Amenthi havia emprestado ao Tartaro pavorosos quadros. N'este Amenthi, que, segundo consta, quer dizer paiz da noite, estão o cão de sete cabeças e outros deuses de feitios monstruosos. Ahi se encontra o Acheronte e o seu batel, os marneis e as aridas gándaras, e todas as figurações do mundo devastado.

Tem setenta e cinco circulos, e á entrada de cada circulo um genio armado. Giram as almas d'um circulo n'outro, algumas em fórma humana, outras com fórmas immundas, com cabeças de aves de rapina, pellagem de fera, e garras de reptil. O pavimento é sangue. Estrondeiam os gemidos. Pendem os condemnados dos ganchos á maneira de carneiros no açougue, ao passo que outros, ainda palpitantes, são mergulhados em caldeirões ferventes. Uns vão fugindo, com os braços estendidos, e a cabeça quasi separada do tronco, outros levam nas proprias mãos o coração que lhes arrancaram do peito que mostram lanhado.

Conforme nos vamos aproximando das primitivas civilisações, e, por consequencia, do primitivo barbarismo, mais o genero humano parece deliciar-se no repasto espectaculoso de seus proprios soffrimentos, e o mundo invisivel é para elle um espelho de augmento das miserias e torturas do mundo visivel.

Cada povo se espelha na imagem que nos deixou de seu inferno, com as suas idêas moraes, leis, necessidades, com seus costumes, temperamento e clima.

Nas serranias do Thibet, onde rapidamente se passa do mais rigoroso frio ao mais suffocante calor, ensinam os lamas que o inferno, situado em determinado logar da Asia umas tantas legoas da superficie da terra, é formado de dezeseis circulos: oito onde se arde, oito onde se gela.

Nas esplanadas da India, onde não ha inverno, e onde as populações, languidas de calor, corruptas pelas liberalidades da terra, apenas tem phantasia para inventar prazeres e supplicios, dizem os brahmanes que certos sitios do Naraka estão cheios de mosquitos, de serpentes venenosas, de escorpiões horriveis, de tigres, de abutres e de todos os flagellos proprios d'aquellas regiões ardentes; e que os outros circulos são o theatro das mais requintadas torturas que ainda póde conceber a malicia d'um rajah arrojado. Ahi os glotões são condemnados a comer calháos asperrimos de puas agudas; os luxuriosos são apertados nos braços de estatuas de ferro em braza.

Contam pelo miudo todas as circumstancias d'estes infinitos martyrios, e taes narrativas fariam impallidecer Ixion sobre a sua roda, Sizipho debaixo do seu penedo. Sabem os hindostanicos pelos livros e pela tradição em que ponto da sua terra está situado o Naraka e a que profundeza se encontra. Mas não podem os mortos encerrados ahi achar os limites e as portas d'aquelle inferno.

No inferno dos scandinavos, chamado Nifleim, não ha fogo. Essas antigas nações do norte gostam tanto de calor, que não poderam consideral-o um supplicio; pelo que o seu inferno é de neve, onde ha o tiritar, a fome, a febre, a velhice tremente, as torrentes glaciaes, as tempestades, o uivar dos lobos, o pavor que estaleja os dentes, e os cobardes, unicos condemnados que ahi vão.

Concluamos esta historia, que daria assumpto para um livro. As reflexões moraes que ella suscita vão breve ser applicadas na descripção do nosso proprio inferno, que na essencia não se distingue dos infernos pagãos. Porém, sendo elle procedente do inferno judaico, paremos diante d'este.