O Jesuíta (José de Alencar)/IV

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Sacristia do Colégio dos Jesuítas, esclarecida por uma lâmpada. Ainda ouve-se o toque da alvorada, dado pelas cometas.


CENA I[editar]

FR. PEDRO e JOSÉ BASÍLIO.

FR. PEDRO – Que se passa fora, José Basílio?

JOSÉ BASÍLIO – Nada, padre Reitor; tudo está em silêncio. O convento continua cercado de tropa.

FR. PEDRO (indo à janela.) – Aquele vulto que ali passeia no jardim, não é o governador?

JOSÉ BASÍLIO – Assim me parece. Há duas horas seguras que percorre o mesmo espaço.

FR. PEDRO – Samuel terá razão? O Conde deixará de cumprir a ordem do marquês de Pombal?

JOSÉ BASÍLIO – O caso é, que depois da conferência que tiveram, o governador retirou-se; e notei, padre Reitor, que ia demudado.

FR. PEDRO – Parece com efeito que recuou; mas não creio nesse poder misterioso capaz de suspender a ordem de El-rei.

JOSÉ BASÍLIO – O vigário-geral da companhia de Jesus deve saber segredos importantes. Não se lembra, padre Reitor, do grito que ouviu-se?

FR. PEDRO – De quem seria? Pareceu-me de uma mulher.

JOSÉ BASÍLIO – De uma mulher? Como podia estar no convento? Por onde entrou?

FR. PEDRO – Há recantos nesta casa, José Basílio, que eu mesmo ignoro, embora viva há dez anos nela. Sabeis da tradição que fala de uma comunicação subterrânea entre este convento e um outro edifício abaixo do morro?

JOSÉ BASÍLIO – Todos repetem esse boato; mas ninguém o afirma!

FR. PEDRO – Talvez que tais segredos sejam conhecidos por esse homem incompreensível, que, depois de passar dezoito anos disfarçado em médico italiano, acaba de revelar-se de repente como a segunda autoridade da ordem.

JOSÉ BASÍLIO – E com todo esse poder veio esconder-se neste canto do mundo?

FR. PEDRO – Quem sabe que planos eram os seus!


CENA II[editar]

OS MESMOS e ESTÊVÃO.

JOSÉ BASÍLIO – Como estás?

ESTÊVÃO – Estou melhor; estou resignado!

FR. PEDRO – Sentis alguma aflição, Estêvão?

ESTÊVÃO – Agora nada sinto; há dores profundas que devastam o coração, e matam a alma, e fazem daquilo que foi um homem uma pouca de lama ou d’argila. Agora nada sinto! (Afasta-se.)

JOSÉ BASÍLIO – Toda a noite teve delírios horríveis; receei que enlouquecesse.

FR. PEDRO – O que lhe sucedeu?

JOSÉ BASÍLIO – Compreendi das suas palavras soltas e sem nexo, que sofrera uma grande decepção; amava uma menina; creio que ela o traiu.

FR. PEDRO (indo a Estêvão.) – Não vos deixeis sucumbir, Estêvão! A desgraça é uma prova que Deus nos envia para experimentar a nossa coragem. Devemos lutar e vencê-la pela resignação.

ESTÊVÃO – Não é possível, padre Reitor; depois do que sofri não se vive.

JOSÉ BASÍLIO – Não digas isso, meu amigo.

ESTÊVÃO – Não sabes, José Basílio, que estado é este d'alma que perdeu todas as crenças, e duvida de tudo!

FR. PEDRO – Crede na misericórdia de Deus, filho!.... Ele vos salvará da desesperação.

ESTÊVÃO – A santidade de vossa vida, frei Pedro, não conhece esses infortúnios para os quais não há consolo nem alívio.

FR. PEDRO – É um engano vosso; também tive uma mocidade; depois que extinguiu-se não há dia em que eu não veja na consciência dos outros os estragos que aí deixaram as paixões.

ESTÊVÃO – Mas nunca viste o que eu senti!... Amar uma menina pura e casta, respeitá-la como a Deus, ter, medo de mim mesmo, quando a via tão bela!... E no momento em que lhe suplicava que me aceitasse por seu esposo...

FR. PEDRO – Recusou?

JOSÉ BASÍLIO – Traiu-te?... Esqueceu o seu juramento?

ESTÊVÃO – Antes isso mil vezes!... Antes a visse morta a meus pés, antes me repelisse! Não sofreria como sofri, ouvindo-a propor-me um amor infame!

JOSÉ BASÍLIO – Que dizes? Constança...

ESTÊVÃO – Recusou ser minha esposa para ser... Adivinha! Eu não tenho ânimo de dizê-lo!

FR. PEDRO – Essa mulher não merecia vossa afeição, Estêvão; guardai-a para outra mais digna.

ESTÊVÃO – Não se ama duas vezes assim; depois daquela tortura só me resta uma esperança: a morte que traz o repouso e o esquecimento.

FR. PEDRO – Quereis tentar contra vossa existência?

ESTÊVÃO – Não; tive um momento essa fraqueza, mas passou.

FR. PEDRO – Ainda bem.

ESTÊVÃO – Tenho porém uma graça que pedir-vos, padre Reitor.

FR. PEDRO – Dizei qual, filho!

ESTÊVÃO – Aceitai em nome de Deus este sopro de vida que ainda me anima; dai-me o santo hábito que vos cobre, para que eu ao menos tenha o direito de morrer como um cristão.

FR. PEDRO – Desejais professar?

JOSÉ BASÍLIO – Estêvão, meu amigo!... (Entra Samuel)

ESTÊVÃO – Já não sirvo para coisa alguma neste mundo, senão para regar com meu sangue a cruz que vossos irmãos plantaram nesta terra.

FR. PEDRO – Fazeis bem; achareis no seio da religião a paz e a tranquilidade.


CENA III[editar]

FR. PEDRO, JOSÉ BASÍLIO, ESTÊVÃO e SAMUEL.

SAMUEL – Acharás a glória e o poder!

ESTÊVÃO (surpreso.) – Senhor!

FR. PEDRO – Samuel!...

SAMUEL – Serei eu mesmo que aceitarei os teus votos, meu filho! (Fr. Pedro e José Basílio remontam.)

ESTÊVÃO – Nunca! De vós nada mais quero! Nem mesmo a compaixão.

SAMUEL – Estêvão!... Não me reconheces?

ESTÊVÃO – Reconheço-vos agora! Infelizmente é tarde! Despedaçastes a minha existência; sacrificastes aos vossos planos insensatos a minha felicidade! Deixai-me o direito ao menos de esquecer-vos e morrer tranquilo!

SAMUEL – Tu não morrerás, meu filho; a tua vida começa apenas; o teu destino ainda não se cumpriu. Não lamentes a perda desses prazeres mesquinhos, que o homem superior não se abaixa para colher. A felicidade vem de Deus; não é no sorriso de uma mulher, flor de um dia, que tu a podes encontrar; procura-a na inteligência, que é imortal.

ESTÊVÃO – Esqueceis que matastes-me a alma.

SAMUEL – Eu, Estêvão?

ESTÊVÃO – Vós mesmo! A princípio não refleti! Depois compreendi tudo! Falastes a Constança antes que eu chegasse; pervertestes o seu coração! Fizestes dela, da virgem que amava-me, uma mulher perdida, um ente vil e abjeto; e de mim um homem que descrê da virtude, da honra, do amor; que duvidaria de sua mãe se a tivesse. Contemplai a vossa obra, e escarnecei de Deus e do mundo!...

SAMUEL – Não fui eu, humilde criatura, Estêvão; foi a Providência que iluminou essa menina, e lhe deu a coragem para o sacrifício que ela fazia à tua felicidade. Recusaste; porque não compreendeste a sublimidade do seu amor e a virtude de sua alma!

ESTÊVÃO – A virtude?... Não profaneis esse nome.

SAMUEL – A virtude não é um hábito, nem a simples abstinência de um prazer; é a força e o heroísmo necessário para o cumprimento de um dever. Constança cometeria um crime, aceitando a partilha de tua existência, e condenando-te à vida obscura da família. Imolou sua honra à tua glória! Cumpriu um dever!

ESTÊVÃO – Ah! foi essa moral sacrílega que a perdeu!... Sacerdote da prostituição, corrompestes com as vossas palavras sua inocência!

SAMUEL – Tu me acusas, meu filho!... Não sabes que o meu único pensamento é a tua ventura, e a realização dessa grande ideia de que serás o herdeiro! Não sabes o que eu sou?

ESTÊVÃO – Sois um louco!

SAMUEL – Estêvão!...

ESTÊVÃO – Um louco, sim! Já o confessastes, e eu quero acreditá-lo para não julgar-vos antes um demônio que se deleita com o sofrimento de suas vítimas! Concebestes um projeto extravagante, e para realizá-lo todos os meios são bons! A desgraça de um filho a quem educastes, a desonra de uma menina que não vos fez mal, o desespero de ambos; tudo vos parece virtude, tudo vos parece inspirado por Deus!...

SAMUEL – Duvidas de mim, Estêvão?...

ESTÊVÃO – E vós mesmo não duvidais?... Estás bem certo que a vossa razão gasta pelos anos, não delira?... que essa grande ideia não seja apenas uma alucinação de vossa inteligência enferma?!...

SAMUEL – Confesso, Estêvão. Às vezes interrogo a minha consciência, e pergunto-me a mim mesmo se a destruição de um obstáculo, se a morte de um homem, é um crime ou uma triste necessidade?... Mas a consciência me responde: — “Prossegue; as ideias não se governam como os homens; elas não param em sua marcha; abatem os que se opõe à sua passagem; são os rios que se precipitam para o oceano.”

ESTÊVÃO – Basta! Não quero mais ouvir-vos; porque se me convencêsseis que não sois um louco...

SAMUEL (com ansiedade.) – Me acompanharias?

ESTÊVÃO – Vos desprezaria como um assassino.

SAMUEL – Meu filho?

ESTÊVÃO – Mas não tendes consciência do que praticais. Só mereceis a compaixão!

SAMUEL – Não me condenes, Estêvão! Ouve-me!... Não vês que eu choro, meu filho!...

ESTÊVÃO – Chorais!... Ainda bem!... Vou pedir a Deus que tenha piedade de vossa alma; e vos restitua a razão que perdestes, para um dia remirdes os erros de vossa vida. (sai pelo fundo.)


CENA IV[editar]

SAMUEL (só.) – Meu Deus!... Meu Deus!... Dirá ele a verdade?... Esta grande obra, construída dia por dia, instante por instante, será apenas um sonho da imaginação, uma demência do espírito?!... Serei eu um louco?... Não. A luz da razão me esclarece; a mão da Providência me guia!... Eu vejo!... A um aceno meu, um povo se ergue como um gigante e reclama o seu lugar entre as nações ilustres!... A um aceno meu... Sim! Sou apenas um homem, uma criatura fraca e mortal... Mas não foi um homem que descobriu o novo mundo?... Ele só com a sua vontade e o seu gênio?... Não foi um homem que deu asas ao pensamento e o fez rei e senhor do universo?... Oh! não!... Não sou um louco!... Estêvão há de compreender-me, e perdoar-me! É preciso!... Ainda que destrua metade do que tenho feito!... (cogita)


CENA V[editar]

SAMUEL e FR. PEDRO.

FR. PEDRO (para dentro a José Basílio.) – Não o deixeis; no estado em que está pode praticar um ato de desespero. (José Basílio recolhe-se.)

SAMUEL (erguendo a cabeça.) – Que horas serão, frei Pedro?

FR. PEDRO – Devem ser mais de três. (chegando-se à janela.) O oriente começa a empalidecer.

SAMUEL (sombrio.) – É a aurora do dia 14 de novembro que vem anunciar a proscrição da companhia de Jesus. O sol que vai raiar verá nossa ruína.

FR. PEDRO – Como?... Perdestes a esperança?... Não me havíeis dito que estávamos salvos?

SAMUEL – Enganei-me, frei Pedro. Julguei que setenta e cinco anos de existência tinham reduzido a cinzas este coração, e que nada mais o podia estremecer! Enganei-me!... Eu que sorria das paixões humanas, eu que jogava com a vida de milhares de homens, eu que vi impassível morrerem um a um todos os que me amaram na terra, achei enfim uma lágrima!... O grito de dor daquele menino despertou esta alma surda às procelas do mundo!

FR. PEDRO – Mas que tem isso com a salvação que nos prometestes?

SAMUEL – Esta salvação seria comprada com a sua felicidade, e eu não quero, não posso vê-lo sofrer. Amo-o como meu filho!

FR. PEDRO – Assim, sacrificais a religião a uma afeição pessoal?

SAMUEL – Sacrifico mais ainda!

FR. PEDRO – Desconheço-vos neste momento, Samuel!

SAMUEL – Eu mesmo não me reconheço! Uma força mais poderosa do que minha vontade domina-me! (Pausa) O que é o homem, frei Pedro? Uma parcela de essência divina fechada em um vaso de argila. Que importa que o gênio se eleve e plaine sobre a terra, se basta um sopro para quebrar o vaso que o encerra?... Consumir cinquenta anos de existência a criar e realizar uma ideia; gastar toda a sua inteligência a preparar os elementos de uma revolução, conseguir à força de perseverança dirigir a marcha dos acontecimentos; e afinal ver tudo destruído pelo olhar de uma mulher!... Depois disto credes que haja verdade neste mundo? A ciência, a religião, a justiça, o que são? Uma mentira!... Uma ilusão que se desvanece com um sorriso de amor!... Homem, misto de orgulho e de baixeza, humilha-te!... Tu és um escárnio da Providência, que te criou para divertir-se em contemplar a tua miséria, luta insana do espírito com a matéria.

FR. PEDRO – Acalmai-vos, meu amigo. Sem querer, soltastes uma blasfêmia.

SAMUEL – Senhor, perdoai-me!... (à frei Pedro) Tendes razão; preciso de toda calma: resta-nos uma hora apenas.

FR. PEDRO – Então decididamente estamos perdidos?

SAMUEL – Resignemo-nos à vontade de Deus, e preparemo-nos para morrer como mártires, se assim for preciso.

FR. PEDRO – O governador vos respeitará.

SAMUEL – Por que motivo?

FR. PEDRO – O vosso caráter sagrado! Sois o vigário-geral da companhia de Jesus, que embora expulsa de Portugal, ainda pode muito na Europa?

SAMUEL – Isso de nada vale. O conde de Bobadela sabe que a minha existência é um obstáculo ao engrandecimento da monarquia portuguesa, e há de procurar remover esse obstáculo; mas estou tranquilo; aguardo a minha sorte.


CENA VI[editar]

FR. PEDRO, DANIEL, UM FRADE E UM HOMEM DE OLHOS VENDADOS.

FR. PEDRO (ao frade.) – Chamai nossos irmãos à oração; poucos momentos nos concede o Senhor para purificarmos a alma que talvez em uma hora tenha de comparecer ante o seu trono. (O frade sai.)

DANIEL (a meia voz.) – Quereis fazer uma obra de misericórdia, padre Reitor?

FR. PEDRO – Não é cousa a que se recuse um servo de Deus. Que desejais?

DANIEL – Podeis absolver aquele homem? (apontando.)

FR. PEDRO – Absolvê-lo? Por quê?

DANIEL – Porque vai morrer.

FR. PEDRO – Como?

DANIEL – Tenho ordem de aviá-lo.

FR. PEDRO – Quem vos deu semelhante ordem?

DANIEL – Aquele que a podia dar.

FR. PEDRO – O governador?

DANIEL – O governador manda nos seus soldados; não manda nesta casa.

FR. PEDRO – Samuel?

DANIEL – Sim.

FR. PEDRO – Não é possível! Que fez este homem?

DANIEL – Sabe um segredo importante.

FR. PEDRO – Mas isso não é um crime!

DANIEL – É uma desgraça, que é pior.

FR. PEDRO – Não consentirei.

DANIEL – É desnecessário o vosso consentimento.

FR. PEDRO – Não vedes que é um assassinato?

DANIEL – É o meu dever; o doutor Samuel ordenou, eu obedeço.

FR. PEDRO (consigo.) – Que fanatismo, meu Deus!... Como aquela inteligência superior pode assim dominar esta consciência a ponto de fazer dela um instrumento cego da sua vontade!

DANIEL – Quereis absolver o homem?

FR. PEDRO – Nunca! Não serei cúmplice desse homicídio.

DANIEL – Pois bem ele morrerá impenitente, e carregareis com as suas culpas.

FR. PEDRO – Escuta; quero falar a Samuel.

DANIEL – Não posso esperar; a menor demora é um risco; este homem pode cair nas mãos do governador.

FR. PEDRO – Que mal resultaria daí?

DANIEL – Revelaria o segredo de que é sabedor.

FR. PEDRO – Mas que segredo é esse?... Quem é este desgraçado?

DANIEL – É um pedreiro.

FR. PEDRO – Que veio fazer aqui?

DANIEL – Veio levantar um muro.

FR. PEDRO – Em que lugar? Nada vi!

DANIEL – Não sei, ninguém viu; ele mesmo não o sabe.

FR. PEDRO – Que quer dizer este enigma?

DANIEL – Há oito dias que este homem foi trazido aqui com os olhos vendados; deixei-o naquela cela onde há pouco o fui encontrar. Diz que trabalhou sem descanso em uma cava onde não penetrava a luz do sol; uma lâmpada o esclarecia.

FR. PEDRO – Ah! já compreendo o mistério. Samuel quis prevenir uma traição.

DANIEL – Bem vedes que tenho razão.

FR. PEDRO – Ainda assim, não deves matar este infeliz.

DANIEL – Ei-lo aí; perguntai-lhe.


CENA VII[editar]

SAMUEL, FR. PEDRO e DANIEL.

FR. PEDRO – É verdade, meu amigo?

SAMUEL – O quê, frei Pedro?

FR. PEDRO – Destes a Daniel uma ordem severa!

SAMUEL – Sim!... Dei-a há uma hora. Felizmente ainda é tempo!... Começo a crer que não há necessidade que justifique um crime. A vida da criatura é sagrada; só a pode tirar aquele que a deu. Todo o ouro da terra não paga uma gota de sangue derramado.

FR. PEDRO (a Daniel.) – Ouves?

SAMUEL – Daniel, há algum meio de fazer aquele homem sair são e salvo do convento?

DANIEL – Nenhum; todas as portas estão guardadas.

SAMUEL – Pois então vesti-vos ambos de irmãos leigos e esperai que amanheça; logo que tiverem presos todos os jesuítas professos, vos deixarão partir livremente. Acompanhai-o, e persuadi-o a que deixe o Brasil.

DANIEL – Correis um perigo, senhor; não devo abandonar-vos.

SAMUEL – Obrigado, Daniel; ide! (Daniel sai.) Ordenai que preparem aquele altar, frei Pedro, e mandai-me Estêvão.

FR. PEDRO – Ele não vos quer ver, meu amigo.

SAMUEL – Não lhe faleis, em meu nome; dizei-lhe que Constança o chama. (Entra Garcia com Constança adormecida e a deita em um confessionário)

FR. PEDRO – Esta menina!... Aquela que ele amava?

SAMUEL – E que ainda ama!...


CENA VIII[editar]

GARCIA e SAMUEL.

SAMUEL – Garcia!

GARCIA – Senhor!

SAMUEL – A desgraça pesa sobre esta casa; mas espero que não vos tocará. Voltai ao Paraguai; e dizei a vossos irmãos que ainda não chegou o momento de reconquistarem a sua independência.

GARCIA – Por que não partis comigo? Nós vos defenderemos contra os vossos inimigos.

SAMUEL – Tenho outro dever a cumprir.

GARCIA – Posso salvar-vos ainda!

SAMUEL – É inútil, Garcia.

GARCIA – Duvidais?

SAMUEL – Não; conheço a vossa coragem; mas ela é desnecessária.

GARCIA – Quando devo partir?

SAMUEL – Logo que vos deixem passar. Aproveitai o pouco tempo que tendes para preparar-vos.

GARCIA – Não vos verei mais?

SAMUEL – Talvez no céu.


CENA IX[editar]

Samuel ficando só contempla Constança por alguns instantes, e ergue os olhos para o altar.

SAMUEL – Só tu és grande, meu Deus!... E a tua humilde criatura só consegue elevar-se do pó em que rasteja quando contempla e admira a tua grandeza!... Sublime é o teu poder!... O raio que escala as nuvens, a tormenta que revolve o oceano, os cataclismos que mudam a face da terra, não são a mais bela expressão de tua força. É no estame delicado da flor, no grão de areia, no átomo imperceptível, que tu opões com uma barreira invencível à louca vaidade do homem que eu reconheço a tua onipotência! Quem diria que um velho encanecido no trabalho, que a razão exercida no estudo e reflexão, se curvaria diante dessa menina adormecida, revelação grandiosa de tua majestade? Um minuto acaba de riscar do passado quase um século! A alma rebelde e orgulhosa que ousava ler no futuro, prostra-se a teus pés, Senhor, e adora o seu Criador. (Ajoelha aos pés do altar; ouve-se o coro dos frades acompanhado pelo som do órgão.)


CENA X[editar]

SAMUEL, ESTÊVÃO e CONSTANÇA, adormecida.

ESTÊVÃO – De joelhos!... Ele!...

SAMUEL (erguendo-se.) – Meu filho!

ESTÊVÃO – Eu me retiro; não está aqui quem eu procurava. Fr. Pedro enganou-me.

SAMUEL – Não te enganou, não, Estêvão. Tua esposa te espera; ela te sorri. (Mostra-a)

ESTÊVÃO – Ah! Mas que tem ela?

SAMUEL – Está adormecida; daqui a um instante acordará.

ESTÊVÃO – Antes não acordasse... Para falar-me como me falou! Morta, eu ainda a amaria; viva... é impossível!

SAMUEL – Constança é pura e inocente; aceitava o amor ilegítimo como um martírio, porque eu lho ordenei em nome de Deus.

ESTÊVÃO – Devia ter repelido semelhante infâmia.

SAMUEL – Depois de a convencer que a sua afeição te roubava a glória e te fazia desgraçado? Era preciso que não te amasse. Uma mulher, Estêvão, sacrifica tudo, menos o seu coração. Mas esquece o passado, e perdoa-me.

(Constança desperta surpresa e ajoelha-se aos pés do altar.)

ESTÊVÃO – Quem me assegura que não me iludis ainda? Que a vossa moral jesuítica não escarnece de mim? Lembrai-vos que há quinze dias consentistes que eu a amasse; e entretanto ontem...

SAMUEL – Ontem eu não sabia que te queria mais do que a um filho! Ignorava esta paternidade d'alma, mais forte e mais violenta do que a paternidade do sangue! A tua dor ma revelou! Hoje sou outro homem; o coração dominou a razão; o revolucionário tornou-se pai!

ESTÊVÃO – Se fôsseis sincero! Mas como acreditar-vos?

SAMUEL – Ali está um altar. (vendo Constança) Tua noiva já despertou; ei-la de joelhos; vem; quero abençoar a vossa união.

ESTÊVÃO – Constança!

CONSTANÇA – Já não me foge, Estêvão?

ESTÊVÃO – Não; tu és minha esposa, Constança.

(Ajoelham-se aos pés do altar. Samuel une as mãos de ambos e os abençoa murmurando rapidamente as palavras do ritual: Ego conjungo vos in matrimonio. In nomine Patris, et Filii et Spiritus Sancti. Amen.)

ESTÊVÃO – Meu pai! (abraça a Samuel.)

SAMUEL – Meu filho! Queria dar-te a glória, preferiste a felicidade.

ESTÊVÃO – Se eu não a amasse!

SAMUEL – Vamos separar-nos, talvez para sempre, meu filho. Quero levar ao menos o consolo de tua afeição.

ESTÊVÃO – Ah! Eu vos amo e admiro! Esquecei um transporte de desespero!

SAMUEL – Esquecê-lo, quando foi ele que restituiu-me a razão? (à Constança) Minha filha, os instantes correm; e eu não sei o que Deus em sua sabedoria terá feito de mim antes de uma hora. Ide render-lhe graças aos pés do altar, enquanto falo a Estêvão. Com pouco o restituirei à vossa ternura. Tendes uma existência inteira para amá-lo! (abraça-a.)

CONSTANÇA – E para venerar o nome daquele a quem devo o meu Estêvão! (ajoelha.)

SAMUEL – Fui um grande pecador, Estêvão; mas quero revelar-te o mistério desta existência que está próxima de seu termo. Vais ler no fundo desta alma, onde até agora só penetrou o olhar de Deus.

ESTÊVÃO – Oh! sim; desejo conhecer a vossa história; ela me ensinará a amar-vos ainda mais.

SAMUEL – Como tu, Estêvão, ignoro de quem sou filho; não tive família; não conheci meus pais; porém nasci no seio desta terra virgem, que me nutriu como mãe; o meu berço embalou-se ao sopro das brisas americanas; os meus olhos abriram-se para contemplar este céu puro e azul. Não sei que perfume de liberdade respiram as flores destes campos; que voz solene tem o eco destas florestas; que sentimento de independência excita a grandeza deste continente e a amplidão do oceano que o cinge!... Não sei!... Mas a primeira ideia que germinou em meu espírito de quinze anos foi a emancipação de minha pátria; a primeira palavra que balbuciou a minha razão foi o nome do Brasil, que resumia para mim os nomes de pai, de mãe, de irmãos, de todos esses ternos afetos que a Providência me negara!

ESTÊVÃO – Oh! eu também sentia a mesma cousa, quando contemplava esta natureza esplêndida!

SAMUEL – Não é verdade? Este sol brilhante ilumina a inteligência e dá voos ao pensamento. Aquela inspiração da mocidade tornou-se uma ideia; a razão apoderou-se dela; e eu, só, sem recursos, sem auxílios, concebi esse plano ousado e gigantesco, que às vezes me fazia duvidar de mim, e que tu chamaste uma loucura!

ESTÊVÃO – Que dizeis, senhor?... Essa revolução...

SAMUEL – Era a independência de nossa pátria!

ESTÊVÃO – Como podíeis realizar semelhante projeto? Era um impossível!

SAMUEL – Houve tempo em que julguei não haver impossíveis para o homem. Era jesuíta professo nos quatro graus; conhecia o imenso poder dessa vasta associação que se estendia pelo universo, prendendo-o por uma teia de vinte mil apóstolos, como um corpo à cabeça que estava em Roma. Podia dirigi-la, se eu quisesse, e fazer dela uma alavanca para abalar o mundo. Precisava porém de estar aqui. O geral Miguel Ângelo Tamburini, a quem confiei a minha ideia, nomeou-me vigário da ordem, nomeação secreta que foi confirmada por seus sucessores. Com essa autoridade, voltei ao Brasil e continuei a trabalhar.

ESTÊVÃO – E desde então o que fizestes?

SAMUEL – Ides ver. Esta região rica e fecunda era e ainda é hoje um deserto; para fazer dela um grande império, como eu sonhei, era necessária uma população. De que maneira criá-la? Os homens não pululam como as plantas; a reprodução natural demanda séculos. Lembrei-me que havia na Europa raças vagabundas que não tinham onde assentar a sua tenda; lembrei-me também que no fundo das florestas ainda havia restos de povos selvagens. Ofereci á aqueles uma pátria; civilizei estes pela religião. Daniel, o cigano, era o elo dessa imigração que em dez anos traria ao Brasil duzentos mil boêmios; Garcia, o índio, era o representante das nações selvagens que só esperavam um sinal para declararem de novo a sua independência. Mas isto ainda não bastava; os judeus, família imensa e proscrita, corriam a abrigar-se aqui da perseguição dos cristãos; Portugal e Espanha pela intolerância, a Inglaterra pelo protestantismo, a Franca pelo catolicismo, lançariam metade de sua população nesta terra de liberdade e tolerância, onde toda a religião poderia erguer o seu templo, onde nenhum homem seria estrangeiro.

ESTÊVÃO – Oh! Eu vos admiro!

SAMUEL – Todos os elementos estavam dispostos; prosseguia na minha obra certo de que, se me faltasse o tempo, tu a continuarias. Em menos de vinte anos o Brasil deixaria de ser uma colônia de Portugal. Eis a missão que te destinava. Deixaste-me só, e estou velho!

ESTÊVÃO – Oh! Eu vos seguirei!

SAMUEL (apontando para Constança.) – E ela?

(Frei Pedro à frente da comunidade tem entrado pelo fundo e tomado posição no coro.)


CENA XI[editar]

SAMUEL, ESTÊVÃO, CONDE DE BOBADELA, CONSTANÇA, FRADES com tochas, e SOLDADOS, etc.

(Dobram os sinos.)

ESTÊVÃO (voltando-se.) – O governador!

CONDE (à Samuel.) – Bem vedes que sou pontual.

SAMUEL – Eu vos esperava!

CONDE – Esperastes o pai; mas quem veio foi o juiz. Podeis consumar o vosso último crime; o algoz se prepara para punir-vos.

SAMUEL – Antes de resolverdes o sacrifício do vosso amor paternal tinha eu restituído a Estêvão sua esposa, como agora vos restituo vossa filha.

CONDE (vendo Constança.) – Ah! (recobra-se) Não; aqui só fala o dever.

SAMUEL – Cumpri-o. Quem vos impede?

CONDE – Miguel Correia?

(Aparece o oficial; e a cena enche-se de soldados.)

SAMUEL – Adeus, conde de Bobadela.

CONDE – Onde ides?

SAMUEL – Vou a Roma.

CONDE – Estais zombando!

SAMUEL – Vou a Roma, onde não chega nem o braço de vosso rei, nem a cólera de vosso ministro.

CONDE – Esperais escapar-me, rebelde, depois de terdes ousado conspirar contra o vosso rei? Esperais que vos deixe continuar livremente a forjar nas trevas o vosso plano. Oficial, apoderai-vos deste homem!

(Estêvão quer proteger Samuel com o seu corpo quando Miguel Correia avança. Samuel porém sobe o degrau do altar.)

SAMUEL – Tranquilizai-vos, meu filho; o poder de Deus me defende! (Ao conde) Que quereis de mim?... O frade, o jesuíta?... (Tira o hábito e lança-lho aos pés) Ei-lo; é um hábito? Podeis rasgá-lo; mas a ideia não morrerá, não! Ela fica plantada no solo americano; cada homem que surgir do seio desta terra livre será um novo apóstolo da independência do Brasil!

CONDE – Impostor!

SAMUEL – Conde de Bobadela, governador do rei de Portugal, eu te emprazo para daqui a um século. À voz possante de um povo saudando a sua liberdade, a tua sombra se erguerá do túmulo para admirar esse império que a Providência reserva a altos destinos. Não vês que o gigante se ergue e quebra as cadeias que o prendem? Não vês que o velho tronco de reis-heróis, carcomido pela corrupção e pelos séculos, há de florescer de novo nesta terra virgem, e aos raios deste sol criador?... Oh! Deus me ilumina!... Eu vejo!... Além... no futuro... Ei-lo!... Brasil! Minha pátria!...

CONDE – Soldados!... Prendei-o!

CORREIA – A quem?

(Quando o Conde volta as costas e vai chamar os soldados, Estêvão e Constança correm a impedi-lo; neste momento abre-se uma porta falsa no altar e Samuel desaparece.)

CONDE – À ele. Onde está?

FR. PEDRO – Deus o sabe!


NOTA