O Livro de Esopo/A viuva e o alcaide

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XXXIV. [A viuva e o alcaide]

[Fl. 24-v.][P]om ho poeta este emxemplo e diz que hũa molher tijnha hũu sseu marido, o quall ella dizia que amaua ssobre todalas cousas do mumdo.

Aueo per caso que lhe morreo este marido e ffoy ssoterrado em hũa ermida, pouco fora da villa, quassy mea[1] leguoa. Aquesta ssua molher tomou gram nojo e foy-sse a esta ssepultura com gram chanto, e sobr’ esta ssepultura dizia que queria viuer e morrer[2], e nom ffazia ssenom chorar; padre nem madre nem paremte nom a podiam d’aly tirar.

Acomteçeo que hũu ladrom, homem de gramdes paremtes, ffoy em aquell dia emforcado açerqua d’aquella jrmida, e ffoy dado em guarda ao alcayde porque o nom ffurtassem de noyte sseus paremtes da forca, porque ell ffosse emxemplo aos outros mall fectores[3]; e o senhor disse ao alcayde que sse lh’o furtassem per ssua maa guarda, que emforcariam[4] ell.

E estando este a o guardar, ouue grande ssede e mandou aos sseus que o guardassem bem, ca ell queria hir beber aaquella hermida hy açerqua, omde pareçia hũu pouco de foguo. E em mentres que ell ueo aaquella hirmida, os sseus sse adormemtarom, e ffoy furtado o emforcado, nom ssabemdo o alcayde parte d’ello. Quando o alcaide chegou aa hirmida, derom-lhe da augua a beber. Depoys que bebeo, pregumtou porque choraua aquela molher. E foy-lhe dicto: porque lhe / [Fl. 25-r.] morreo ora aquy hũu sseu ma[ri]do[5] que ella amava mays que o sseu cor[açom][6]. O alcayde lhe disse que ella nom tom[asse][7] nojo por aquella cousa que ella nom podia cobrar por nhehũa rrem do mundo; ella disse que auia muy gram rrazom de chorar, ca ela nom poderia ja nunca achar homem que a tamto amasse como sseu marido fazia; ho alcayde lhe disse que era homem que a amaria e seruyria tamto e mays que ell, e que era tam rico e tam de proll como ell. E tanto lhe ssoube dizer com doçes palauras, que já nom choraua, e namorou-sse do alcayde, e rrecebe’-o[8] por sseu marido. Depoys tornou ell aa forca e achou que lhe furtarom o emforcado, e sseus homẽes eram fugidos, e ele tornou loguo aaquella molher e disse-lhe como lhe furtarom o emforcado e que sse temia que o senhor o faria emforcar. A dona, que ja d’ell era namorada muito, lhe disse:

— Amiguo, nom tomedes nojo nem percades por emde a terra; mas nós tomemos este meu marido e ponhamo-lo na forca e eu vollo ajudarey a enforcar: e a gemte cuydaria que he o que furtarom.

E assy o fezerom, e viuerom anbos casados em ssuas vidas.




[Fl. 25-v.] Pom o poeta este emxemplo ssuso dicto pera [d]ar[9] emssynamento a nós, e diz que nom de[u]emos[10] creer nem ssiguyr[11] aa voomtade da molher, porque o sseu emtendimento nom he estauyll, mas muda-sse muytas vezes no dia. e Ssalamam diz: ffemyna nula bona, quya ter mutatur im ora. Diz ajmda: poucas uezes acaba cousa que compeçe; a molher he uaso de demonio que traz em ssy hũa doçe peçonha; a molher foy aquella que emganou Adam com outros gramdes ssabedores; a molher he hũu armuzello do demonio, e assy como o pescador pesca os peixes com o armuzello, assy a molher pesca os homẽes e manda-os ao Inferno breuemente; passa de ssabedor aquelle que sse d’ela pode guardar; a Virgem Maria ffoy aquella ssolamente que foy comprida de todas bondades e foy coroa de todalas boas molheres.

Notas[editar]

  1. No ms. . Cfr. meo «meio» na fab. III.
  2. Isto é: dizia que queria viver e morrer sobre esta sepultura.
  3. No ms. fccores ou fctores, com til sobre a primeira metade da palavra.
  4. No ms. enforcariã. Poderia parecer que o til seria engano, e que enforcaria teria por sujeito grammatival o alcaide; enforcariã ell corresponde a «o enforcariam» = «seria enforcado».
  5. O ms. está roto nos logares onde ponho colchetes.
  6. O ms. está roto nos logares onde ponho colchetes.
  7. O ms. está roto nos logares onde ponho colchetes.
  8. No ms. reçebeo = rrecebeo-o (Tambem poderia transcrever-se assim: rrecebeo-’)
  9. Onde ponho colchetes o ms. está roto.
  10. Onde ponho colchetes o ms. está roto.
  11. No ms. ssiguyra, estando riscado o a.