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O Livro de Esopo/Estudo litterario

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ESTUDO LITTERARIO


SUMMARIO

Elementos para o conhecimento das fontes das nossas fabulas: Romulus vulgaris; Anonymo de Nevelet (= Gualterius Anglicus ou Walter inglês), sec. XII, e sua importancia; acordo d-O Livro de Esopo, no numero e assunto das fabulas, com o Fabulario de Walter; differenças avulsas que apresenta O Livro de Esopo; conclusão.— Quadro genealogico dos fabularios medievaes.— Caracter d-O Livro de Esopo.— Monumento unico na nossa litteratura antiga.— Obra desconhecida dos que se tem occupado da historia das litteraturas romanicas.

No prologo do nosso Fabulario, ou O LIVRO DE ESOPO, lê-se: Exopo .. fez este liuro em greguo, e depois foy trelladado de greguo em latino de hũu ssabedor chamado Rromulo. Se tal indicação fosse exacta, não haveria nada mais facil do que determinar as fontes do Fabulario: elle proviria de Esopo, por intermedio da traducção latina de Romulo. Mas isso não se passou com tanta simplicidade, como vamos ver.

Effectivamente ha uma collecção latino-medieval de fabulas em prosa, cujo autor diz, de acordo com o citado texto do Fabulario: Esopus quidam homo grecus et ingeniosus famulos suos docet quid homines observare debeant .. Id ego Romulus transtuli de greco in latinum. A esta collecção de fabulas chama Hervieux, na sua preciosa e monumental obra Les Fabulistes Latins, vol. I, p. 330, e vol. II, p. 195, Romulus vulgaris ou ordinarius, e reprodu-la na mesma obra, vol. II, p. 195 sqq., d’onde extrahi o trecho transcrito[1]. O Romulus vulgaris provém, com outras collecções, de um texto em prosa, hoje perdido, que o precitado autor intitula Romulus primitivus, texto que, por intermedio de uma antiga collecção denominada Aesopus ad Rufum, deriva das Fabulas de Phedro[2].

Comparando as fabulas portuguesas com as do Romulus vulgaris, nota-se que dos quatro livros de que consta a collecção latina os tres primeiros contém muitas das nossas fabulas, mas que as fabulas 45.ª, 61.ª, 62.ª e 63.ª da collecção portuguesa não tem correspondentes na collecção latina, e que pelo contrário as fabulas 8.ª e 20.ª do livro III d’esta collecção, e todo o livro IV, não tem correspondentes na nossa, — o que tudo resulta da seguinte tabella:

Romulus O Livro
vulgaris de Esopo
I 1—12 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1—12
13—16 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14—17
18—19 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47—48
II 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49—50[3]
2—7 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51—56
8 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
9—12 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57—60
13—21 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18—26
III 1—7 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27—33
8 . . . . . . . . . . . . . . . . . .
9—19 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34—44
20 . . . . . . . . . . . . . . . . . .
IV . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Logo, o prologo da collecção portuguesa não diz rigorosamente a verdade, embora haja certa concordancia entre as duas collecções, quer nas fabulas em si, quer nos grupos. Isto porém tem a sua explicação, como vamos ver.

Dos tres primeiros livros da collecção de Romulo fez-se no sec. XII, na Inglaterra, uma paraphrase, tambem latina, em disticos, cujo autor, conhecido geralmente pelo Anonymus Vetus Neveleti, parece ser um certo Walter (Gualterius Anglicus)[4]. Estas fabulas são em numero de 62 ou de 63, conforme se contarem como uma ou como duas as dos Athenienses e das rãs[5]; outros philologos contam só 60, porgue duas d’ellas, n.os 61 e 62, não apparecem em todos os manuscritos. Para o meu estudo sirvo-me da edição feita por Hervieux (obra citada, vol. II, p. 316 sqq.) segundo o cod. n.º 14:381 da Bibliotheca Nacional de Paris[6], o qual contém o numero maximo, isto é, 63 fabulas. As fabulas gualterianas coincidem com as de Romulo, excepto duas, n.os 59 e 60, que não vem no Romulus vulgaris, e que o poeta colheu noutras fontes: o n.º 59, conto dos grous de Ibyco, que promana da Disciplina Clericalis do judeu hespanhol Pedro Alfonso (sec. XII); e o n.º 60, duello do cavalleiro com o camponio, cuja fonte se desconhece[7].

O fabulario de Walter gozou de grande acceitação nos fins da idade-media e começos do renascimento[8]: d’elle restam mais de cem manuscritos em muitas bibliothecas da Europa, — França, Allemanha, Inglaterra, Austria, Belgica, Hespanha, Hollanda, Italia e Suiça[9]; d’elle se fizeram muitas edições, desde o sec. XV[10]; d’elle, finalmente, ha numerosas traducções, imitações ou paraphrases, em prosa e verso, em varios idiomas, umas já impressas, outras ainda ineditas[11]. O texto foi tambem muitas vezes glosado e commentado[12]. Entre as traducções contam-se: o Ysopet I de Paris ou Ysopet-Avionnet, publicado em Paris em 1825 por A. Robert[13]; o Yzopet de Lião, publicado em 1882 por W. Förster[14]; o Libro de Ysopete ystoriado, em hespanhol, Çaragoça 1489[15]; e varias italianas[16].

Pela comparação que estabeleci d-O Livro de Esopo com o fabulario de Walter, adquiri a convicção de que existe absoluta conformidade entre as duas collecções, tanto no numero das fabulas, como nos assuntos. Isso se mostra na tabella que se segue:


Anonymus Neveleti Fabulario Português
ou ou
Gualterius Anglicus O Livro de Esopo
Prologo Prologo
1—17 . . . . . . . . . . . 1—17
18—20 . . . . . . . . . . . 46—48
21 . . . . . . . . . . . 49
i. é: 18—31 21—A . . . . . . . . . . . 50 (= 49—A)[17] i. é: 46—60 (59)
22—31 . . . . . . . . . . . 51—60 (= 50—59)
32—59 . . . . . . . . . . . 18—45
60—62 . . . . . . . . . . . 61—63 (= 60—62)


Excluindo os prologos, temos pois quatro grupos de fabulas em cada uma das collecções; chamando A (1—17), B (18—31), C (32—59) e D (60—62) aos grupos da collecção latina, e A’ (1—17), B’ (18-45), C’ (46—6o = 46—59) e D’ (61—63 = 60—62) aos da collecção portuguesa, verificamos que existe apenas differença na ordem das fabulas de dois grupos: a B com quinze fabulas (porque ha duas com o n.º 21) corresponde C’ com igual numero d’ellas. É vulgar nos fabularios medievaes encontrar-se alteração na ordem das fabulas, o que tem varias causas[18].

A essa concordancia absoluta da collecção portuguesa com a latina, no numero e nos assuntos das fabulas, juntam-se outras. A comparação que no prologo d-0 Livro de Esopo se faz d’este com um pomar ajardinado, e com os frutos de casca dura, encontra-se tambem em Walter, e é-lhe especial, pois não vem no Romulo ordinario: Ortulus iste parit fructum cum flore; nucleum celat arida testa[19] bonum. Na fab. XLIV lê-se Arguu, a que corresponde em Walter, fab. 58, Argus; esta palavra tambem não vem no Romulo vulgar (I, XIX), e é especial a Walter.

Mas, apesar de tamanhas coincidencias, é O livro de Esopo traducção pura e simples do Fabulario gualteriano?

Da comparação que estabeleci, uma a uma, das fabulas portuguesas com as latinas, apurei o seguinte.

De modo geral, póde dizer-se que as nossas fabulas estão para com as de Walter na relação, ora de parafrase, ora de simplificação, ora de imitação, e raramente na de versão litteral. A concisão, por vezes sêca e quasi enigmatica, do original corresponde o nosso texto aqui e alem com mais claro e amplo desenvolvimento. Por ex., a fab. 9.ª de Walter, que é apenas narrativa, é n-O livro de Esopo artisticamente dialogada. Tambem succede que no português apparcce mudada de quando em quando a ordem das ideias do fabulario latino, como na fab. XVI. Os trocadilhos e ambiguidades do poeta inglês estão por vezes vertidos com elegancia na compilação portuguesa; aquelle tem na fab. 30.ª:


Non ero securus, dum sit tibi tanta securis[20];


neste, fab. LIX, diz-se: «ja com tiguo nom viueria ssegura». Pelo contrário um verso, como este de Walter, fab. 59.ª,


Regis concilium consiliumque sedet,


reprodu-lo fielmente o texto português, fab. XLV: [o rei] «ouue consselho com sseus comsselheyros». — Os epimythios ou moralidades são quasi sempre mais desenvolvidos no nosso fabulario, pois elles contém frases latinas, adagios portugueses, conceitos moraes, e mesmo trechos que no texto latino faziam parte da fabula propriamente dita. — Alterações semelhantes se encontram noutros fabularios medievaes, como no que serviu de modelo a Marie de France[21], nos italianos[22], e no Ysopet de Lião[23].

Passemos agora a algumas minudencias.

O prologo compõe-se, como vimos, de duas partes: uma, com a biographia de Esopo, extrahida do Liber de vita et moribus philosophorum de Burley ou Burleigh; outra, com o plano do livro, analoga ao prologo de Walter.

Na fab. I diz o gallo á pedra preciosa: eu sseria mays ledo sse achasse hũa pouca de hisca pera comer. Walter tem: plus amo cara minus, isto é «prefiro cousas menos caras». No Yzopet de Lião os vv. 49-50,


Muez[24] ainz[25] grains de fromant ou d’orge,
Quar miez[26] me font ourir[27] la gorge…


correspondem melhor ao texto português. Mas Phedro, Fabul., III, XII, tem: ego .. potior cui multo est cibus.

Na fab. III a expressão e o rrato rrespondeu .. que lh’o agradeçia muyto falta em Walter. No Yzopet de Lião corresponde-lhe:

E de ce formant li mercie, v. 148.

Na fab. IV o carneiro vende a lã e morre de frio, pelo que depois o cão e as testemunhas o devoram. Em Walter faltam as duas ultimas circunstancias, pois se diz que a ovelha, ovis, vende o seu vestuario e fica exposta á acção do tempo. O Isopo Riccardiano procede como Walter; mas ha outros dois volgarizzamenti italianos em que succede como n-O Livro de Esopo: «la pecora .. si fa proprio morire, e per giunta mangiare»[28].

Na fab. V o cão, depois de furtar a carne, passa uma ponte. A circunstancia da ponte falta em Walter e em Phedro (nas fabulas de ambos o cão vai nadando), mas encontra-se na collecção intitulada Romuli Anglici cunctis exortae fabulae por Hervieux, Fabulistes, t. II, p. 567: canis per pontem transivit. A mesma circunstancia apparece no Isopo Riccardiano: «andava una volta uno cane con uno pezzo di carne in bocca sopra uno ponte»[29], e nas Fabulas de Marie de France:


passot uns chiens desur un pont[30].


Na fab. X o villão acha a serpente ao pé de um ribeiro, circunstancia que não está bem expressa em Walter. No Isopo Riccardiano, pelo contrario, lê-se: «uno serpente aghiacciato nella via infra l’acqua»[31]. Walter diz que o homem levou a serpente para casa. O nosso texto, como o de Phedro, IV, XVIII, e o citado cod. Riccardiano, dizem que a recolheu no seio. Romulo, I, X, diz que o homem sub latera sua habuit.

Na fab. XII o cozinheiro bate no rato, o que não acontece no texto de Walter, nem noutros derivados seus que consultei (Isopet I de Paris, Izopet de Lião, Isopo Riccardiano, Ysopo hystoriado hespanhol).

Na fab. XVIII o calvo está ao sol. Em Walter, n.º 52, bem como em alguns dos seus derivados que consultei (Ysopet I, Lyoner Yzopet, Riccardiano, Ysopo hystoriado), e no Esopus moralizatus (commentario em prosa)[32], não apparece a circunstancia do sol. Esta porém nota-se num fabulario português do começo do sec. XVII, a que mais adeante tornarei a referir-me, — Fabulas de Manoel Mendes, da Vidigueira, n.º 54: «repousava á soalheira hum Velho calvo, com a cabeça descoberta, e huma mosca naõ fazia senaõ picar-lhe na calva».

Na fab. XIX a raposa põe de comer á cegonha em um vaxelo muy largo, como em Phedro, I, XXVI, in patina. A menção da vasilha falta em Walter, fab. 33. Alem d’isso, em Walter, a raposa bebe; no nosso texto, lambe.

Na fab. XXI, são muitos pavões que, como em Romulo, II, XVI, e Phedro, I, III, despem das pennas falsas o corvo. Em Walter, n.º 35, é um só pavão quem faz isso; o mesmo succede no fragmento de um fabulario provençal publicado na Romania, III; vid. p. 292, nota. Neste ponto O Livro de Esopo está mais proximo de Phedro-Romulo do que de Walter. Alem d’esta differença entre o nosso texto e o de Walter, nota-se que o lat. graculus foi traduzido por corvo, o que tambem se observa no mencionado fragmento provençal e noutros fabularios medievaes: vid. Romania, loc. cit.

Na fab. XXIV o lobo accusa de divida a raposa perante o bogio. Em Walter, n.º 38, como noutros fabularíos (Isopet I, Izopet de Lião), a raposa é accusada de furto.

Na fab. XXV a dóninha promette ao homem, em troco de este lhe conceder a vida, guardar de ratos a casa no futuro. Em Walter, fab. 39.ª, a dóninha diz ao homem que lhe guardou de ratos a casa, e pede-lhe, em compensação, que a poupe. No latim a resposta do homem contrapõe-se ao pedido, pois é: guardaste-me a casa de ratos, mas foi no teu interesse, pois os comias, e tambem comias o que era meu. No português a resposta é como se o pedido fosse formulado (do mesmo modo que no latim) quanto ao passado, e não quanto ao futuro.

Na fab. XXVI o boi pisa a rã, e esta assanha-se para se bater com elle, dialogando depois com a filha. Em Walter, como em Phedro, I, XXIV, a rã tenta bater-se com o boi por inveja, e o dialogo é com um filho. Mas em Horacio, Satirae II, III, 313, um bezerro pisa os filhos da rã:


Absentis ranae pullis vituli pede pressis


Na fab. XXVII ha uma abreviatura, Sors., que interpretei por «senadores», aventando porém, em nota, que tambem alguem poderia entender «senhores». Curioso é notar gue no Yzopet de Lião, v. 2186, se diz: Li senatour et li proudome. No Isopo Riccardiano: «lo signore di Roma»[33].

Na fab. XXVIII ha um dialogo preliminar entre o cavallo e o leão, em que aquelle diz que é muito doente. Este dialogo falta em Walter.

Na fab. XXXII o lobo furta um bode e come-o num silvado; a raposa diz ao pastor que o lobo lhe havia furtado o bode. Em Walter, fab. 46.ª, não se menciona expressamente «bode», só praeda e cibus, e o lobo está num antro.

Na fab. XXXIV a viuva chora a morte do marido em uma ermida onde elle fôra sepultado. Em Walter, fab. 48.ª, falta a menção da ermida, e pelo contrário o A. dá a entender que a sepultura era ao ar livre, pois que diz que, entre outras circunstancias, a saraiva não podia afastar de lá a mulher: nequit hac de sede reuelli grandine. No mais os dois textos são semelhantes; só na compilação portuguesa se adaptaram os termos latinos aos usos nacionaes, traduzindo-se eques por «alcaide», e rex por «senhor».

Na fab. XLVIII é curiosa a coincidencia que se nota entre a frase ca este villãao quer fazer d’aqueste linho rredes e laços pera nos tomar e esta do exemplo 6.º do Libro de Patronio de D. Juan Manuel (sec. XIV): podrian facer redes et lazos para tomar las aves; no mais a fabula e o exemplo não concordam.

Na fab. LX entra um cabram, ao passo que em Walter, fab. 31.ª, entra uma ovis. No português falla-se de um moyo de trijguo, o que corresponde ao modium tritici do Romulo vulgar, II, 12. Em Walter a tal expressão corresponde vas tritici.

D’esta breve discussão se vê que o nosso texto mantem com o latino, a par de concordancias flagrantes, tambem algumas differenças ponderaveis. Notarei ainda outras particularidades d-O Livro de Esopo, quanto á fórma.

Cada fabula começa ahi invariavelmente por uma d’estas expressões, com pequenas variantes: [c]onta-se que, [f]oy hũa vez, [p]om este doutor (poeta, etc.) enxemplo e diz, [e]m este enxemplo o poeta diz, [c]onta este poeta enxemplo, [d]iz que foy, [e]m aquesta estoria. Os epimythios ou moralidades começam tambem por fórmulas estereotypadas, como: per aquesta hestoria, em aquesta estoria, per este enxemplo, pom este poeta este enxemplo, diz este poeta per este enxemplo, conta-nos o poeta, e semelhantes. Em Walter não acontece isto, porque ahi as fabulas são apresentadas como lições dadas pelo proprio autor dos versos latinos. Já no commentario á fabula XVIII, p. 129, me referi ao pom; aqui accrescentarei que as demais formulas são vulgares noutros textos. Em fabulas italianas lêem-se as seguintes, particularmente semelhantes ás nossas: iniciaes das fabulas, chonta l’assemplo, chonta l’Isopo, dice che, pone l’autore, una volta; iniciaes dos epimythios, dimostra l’autore sotto questa favola, per questo assempro, e outras[34]. Nas fabulas de Marie de France: ci dit, c’est essamples, par ceste fable[35]. Em fabulas hespanholas: esta fabula nos enseña, esta fabula muestra, prueva esta fabula, aqui se recuenta una fabula[36]. Em Phedro lê-se tambem: Aesopus nobis hoc exemplum prodidit, I , III; testatur haec fabella, I, V; Aesopus .. narrare incipit, I, VI; quondam, I, VI, XXIV, XXVIII; dicitur, I, XXVI; exemplum egregium, II, I; praecepto III, VIII; olim, III, XVII; hoc argumento, IV, VIII. Foi evidentemente Phedro que serviu aqui de primeiro modelo parao formulario.

Como notei, quando tratei do estylo das fabulas, p. 119, estas encerram algumas vezes adagios, com os quaes, pela sua fórma breve e incisiva, o compilador pretende incutir melhor no animo dos leitores o sentido moral das narrações que lhes faz. Ora ha uma obra hespanhola do sec. XIV, que já acima citei, o Libro de Patronio, ou Conde de Lucanor, de D. Juan Manuel[37], onde os exemplos contidos na 1.ª parte terminam tambem com um proberbio ou sentença (em verso); todavia não ha mais nenhuma relação do nosso fabulario com esse Libro, como nenhuma ha com o Libro de los gatos (sec. XIV)[38], ou com o Isopete hystoriado (1.ª ed., 1489), posto que este provenha do Romulus ordinarius, por intermedio do Aesop latino de Steinhöwel[39]. A conclusão ultima a que chego é que O Livro de Esopo, com quanto effectivamente se relacione de modo íntimo com o Fabulario do Anonymus de Nevelet (Walter), não provém directamente d’este, mesmo com alterações, mas provém de algum texto em prosa, latino ou romanico, derivado do Fabulario gualteriano.

Póde muito bem o nosso texto ser traducção modificada de um dos commentarios latinos medievaes que acompanhavam com frequencia os versos do Anonymo de Nevelet, e aos quaes me referi a cima, p. 145. Hervieux cita, por exemplo, manuscritos commentados existentes em bibliothecas de Paris, Marselha, Tréveros, Munich, Ferrara, dos secc. XV e XIV[40].

Da natureza d’estes e semelhantes commentarios, que eram destinados ás aulas, dará ideia o Esopus moralisatus, Antuerpia 1504, de que encontrei um exemplar na Bibliotheca Nacional de Lisboa[41]. Existem notaveis parallelismos entre esse Esopus e o nosso, quanto ao formulario. O Esupus começa de ordinario assim: hic auctor ponit documentum, hic auctor ponit aliam fabulam cuius documentum est, hic ponit documentum, hic ponitur una hystoria; como o leitor se lembrará, pois ha pouco lhe chamei a attenção para isso, O Livro de Esopo começa tambem frequentemente: [p]om este poeta enxemplo. A não ser, porém, nisto, e num ou noutro caso avulso, não vae mais longe a concordancia entre o texto latino e o português. Como caso avulso citarei a moralidade da nossa fabula XXXIV, onde se diz que o entendimento da mulher não é estavel, e que esta poucas vezes acaba (ou acaba bem?) cousa que comece; o Esopus moralisatus, tem aqui: patet ergo quod mulieres raro aliquid bene terminant, eo quod ex natura sunt instabiles[42]. Os epimythios do Esopus são quasi sempre introduzidos por adverbios: allegorice, moraliter, ou ambos; o uso de allegorice confirma a interpretação que a p. 140 dei da expressão cum allegoriis, isto é, «com moralidades», que se lê no final d-O Livro de Esopo. — Para amostra do methodo adoptado pelo commentador, reproduzo uma das suas diluições prosaicas dos versos do Anonymus:


36.ª — DE MULA ET MUSCA

Mula capit cursum; nam mulam mulio cogit.
Mule musca nocet verbere siue minis:
«Cur pede sopito currum te tempusque moraris?
»Te premo, te pungo, pessima, curre levis».
Mula refert: «Quia magis tonas, vis magna videri;
»Nec tua verba nocent, nec tua facta mihi,
»Nec te sustineo, sed cum quem sustinet axis,
»Qui mea frena tenet, qui mea terga ferit».

Audet in audacem timidus fortisque minatur
Debilis, audendi dum videt esse locum[43].


Commentario em prosa:


Hic ponit documentum, quod homines naturaliter timidi, videntis aliorum miseriam, nocendo sepe sunt peiores his quam (sic) qui ex natura sunt audaces. Quod declaratur nobis sic.

Quodam enim tempore mula trahens currum percutiebatur duris verberibus ab auriga eo quod veloci motu currum non trahebat, quod videns musca cepit morsibus torquere mulam dicens: «O mula, curre velociter, quia ego pungo te». Audiens hoc mula respondit: «O musca, quia vides me castigari, dicis mihi obprobriosa verba et tamen nec verba nec facta tua nocent mihi, sed solum auriga qui verberibus me premit».

¶ Concludit ergo quod homines timidi, quando vident alios diffortunatos pati miseriam, magis eis nocent quam potentes. Includitur enim quod timidi audent inuadere audaces dum viderint auxilium, alias non.

N-O Livro de Esopo corresponde a estes textos a fab. XXII.

Ao parallelismo que assinalei entre o Esopo português e o Esopus moralisatus corresponde outro, e talvez maior, entre aquelle e o Isopo Riccardiano. Com effeito ha fabulas no Isopo Riccardiano que começam d’este modo: dicie il detto savio che[44], conta il savio che[45]; os epimythios: per questo essempro ci amoniscie il savio che[46], amaestraci qui el savio che[47], pone il nostro libro che[48]. No nosso texto sabemos nós que são frequentes as expressões [c]onta o doutor, [p]om este poeta, per este enxemplo nos amoesta, querendo-nos amaestrar. Vejamos outros parallelismos, alem dos meros formularios iniciaes:


O Livro de Esopo

.. assemelha este sseu ljuro a hũu orto no quall estam flores e fruytos.

Prologo.

Isopo Riccardiano

.. assomigliando questo suo libro a uno giardino nel quale sono molti belli fiori e frutti..

Ghivizzani, II, 1.

Abstrahindo dos adjectivos molti belli, devidos á imaginação italiana, a concordancia dos dois textos é completa. Ambos elles distam do texto latino do Anonymo: Ortulus iste parit fructum cum flore. E tambem não distam menos do Esopus moralisatus, que diz: in isto libello est flos cum fructu.


O Livro de Esopo

[C]onta-sse que hũa vez hũu asno encontrou com hũu porco montês, e ssaudamdo-o disse com boo coraçom:

— Deus te ssalue, senhor porco..

E o porco rreçebeo as doçes palauras por emjuria, e ameaçando com a cabeça, disse:

—.. Se não fosse porque nom quero luxar o meu fremoso dente..

Fab. XI.

Isopo Riccardiano

Conta il savio che andando uno asino per la selva trovó uno porco salvatico e salutollo e disse:

— Fratello, Dio ti salvi..

Lo porco minacciando, disse:

— Se non fosse ch’io non voglio lerciare li miei denti..

Ghivizzani, pp. 30-31 (tambem fab. 11.ª).

Quão longe os dois textos estão do do Anonymo, se verá da transcrição d’este:


Audet asellus aprum risu temptare proteruo,
Audet inhers forti dicere: Frater, aue!
Vibrat aper pro uoce caput..
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Sus tamen ista mouet: Vilem dens nobilis escam
Spernit..
Hervieux II (fab. 11.ª)

O Esopus moralisatus está a igual distancia.

Curiosissimo do mesmo modo é notar que, se na fabula do pastor e do lobo, que fecha a nossa collecção, se diz comta-nos ho poeta esta hultima estoria, frase semelhante se lê na correspondente fabula do Isopo Riccardiano, tambem ahi a derradeira: per questo ultimo essempro ci amoniscie il savio.

Mas, assim como entre o nosso Esopo e o Esopus moralisatus as semelhanças se limitam ás formulas e a casos avulsos, assim a relação que existe entre aquelle e o Riccardiano não são maiores do que isso.

Por um lado, estas analogias d-O Livro de Esopo com o Isopo Riccardiano e o Esopus moralisatus, e por outro lado as divergencias que ha entre aquelle e o texto gualteriano, fazem de facto crer que, como acima aventei, houve uma dissolução latina, em prosa, dos versos do Anonymus de Nevelet, d’onde provém directamente as nossas fabulas, — dissolução que o compilador português, ainda assim, modificou mais ou menos, pois enriqueceu de adagios nacionaes e de reflexões moralisticas os epimythios[49]. Este compilador, que infelizmente não revelou o seu nome[50], seria ecclesiastico, a julgar de alguns dos epimythios, especialmente dos das fabulas XXXIV e XLV, tão cheios de uncção religiosa. A referida dissolução prosaica devia conter os factos que a pp. 148-151 citei como proprios do nosso Esopo, e não existentes em Walter. Fica implicitamente estabelecida a probabilidade de que o Isopo Riccardiano, e por ventura outros fabularios medievaes, assentarão do mesmo modo em redacções ou dissoluções prosaicas dos versos do poeta inglês, e não immediatamente nestes; taes redacções eram, como sabemos, muito numerosas, e deviam andar com frequencia nas mãos dos escolares. Ainda que a minha hypothese, não obstante explicar o accôrdo de certas particularidades d-O Livro de Esopo com as dos fabularios medievaes, e o desaccordo d’elle, nesse ponto, com o texto gualteriano, venha a ser rejeitada pelos philologos, e substituida pela de que o compilador português, em logar de utilizar um texto em prosa, traduziu livremente o poeta inglês, não se poderá negar que ao menos teve presente ao acto da traducção outros fabularios.

Reportando-nos outra vez, e por fim, ao prologo das nossas fabulas, do qual fiz proceder este estudo, verificamos que o compilador, quando affirmava que ellas provinham de Esopo, seguia uma tradição litteraria muito em voga na idade-media, embora, enunciada assim em absoluto, fosse inexacta. Digo assim em absoluto, porque, se muitas fabulas ascendem de facto a Esopo, por intermedio de Walter, Romulo e Phedro[51], outras tem diversa origem, e mesmo as que ascendem, modificaram-se na longa viagem.



Para que o leitor possa num relance ver a relação em que estão entre si os fabularios que mais tenho citado até aqui, apresento-lhe o seguinte quadro genealogico:

1. Fabulae antiquae (desfiguramento em prosa, verso a verso, de Phedro), ms. de Leiden, dos secc. X-XI, publicado por Nilant em 1709; vid. Hervieux, I, 242-266, e II, 131.
a) ms. (sec. X, em prosa) de Weissenburg, hoje em Wolfenbüttel; vid. Hervieux, I, 268 sqq., e II, 157.
Derivados de Phedro edições de Steinhöwel, em Ulm (sec. XV), base de todas as edd. posteriores. D'ahi provém as traducções e edd. hespanholas (Isopete historiado, 1.ª ed. 1489).
2. Aesopus ad Rufum representado por A) Romulus ordinarius ou vulgaris (Hervieux, I, 330, 3 II 195). prosa; Romulus de Beauvais; R. de Munich; etc., — em latim.
derivados latinos verso: Anonymo de Nevelet, ou Walter, em latim (sec. XII). Com tradd. e derivados: Ysopet I de Paris, Yzopet de Lião (sec. XIII-XIV); varios fabularios italianos (Per uno da Siena, Riccardiano, Accio Zuccho, Apologhi Verseggiati, Tuppo; vid. sobre isto Brush, The Isopo Laurenziano, p. 31-34); O LIVRO DE ESOPO, em português.
b) Romulus primitivus, prosa, hoje perdido (Hervieux, I, 306); d'elle resta verso: Alexander Necklam, em latim, sec. XII (Hervieux, I, 668), d'onde provém o Ysopet II de Paris e o Ysopet de Chartres (vid. G. Paris, Litt. Fr., 3.ª ed., § 80).
B) Romulus de Vienna.
C) Romulus de Florença.
D) Romulus de Nilant. D'aqui provém, em parte, as Fabulas de Marie de France (sec. XII), e d'estas provém muitos fabularios italianos (Isopo Laurenziano I e II, Palatino I e II, Rigoli; vid. Brush, The Isopo Laurenziano, p. 46).
Etc.)

O Livro de Esopo destinava-se evidentemente á edificação moral dos leitores, como o provam a 2.ª parte do prologo e os epimythios, ás vezes muito desenvolvidos. De fabulas de origem pagã, — tão vária E tão remota —, pretendia tirar-se ensinamento christão para a vida usual.

Não foi esta a unica vez que obras antigas se adaptaram a intuitos novos, — obras pertencentes de mais a mais a civilizações que a propria Igreja combatia. Sem sair da nossa propria litteratura, lembrarei o Orto do Esposo, manuscrito alcobacence do sec. XIV[52], onde ha contos que correspondem a contos indianos. Particularmente notavel a este respeito é a lenda de Barlaam e Joasaph, tambem relacionada com o Oriente, e de que temos em português uma redacção do mesmo seculo com o titulo de Vida do honrrado iffante Josaphat[53]. A Historia do cavalleiro Tungullo e o Conto de Amaro, ambos igualmente do sec. XIV[54], desenvolvem themas que na origem são extranhos ás crenças do christianismo. Assim como as superstições pagãs se transformavam de modo insensivel em práticas piedosas, tambem as lendas experimentavam incessantes metamorphoses.

Afasta-se, porém, O Livro de Esopo das obras religiosas que mencionei agora, e de muitas mais que poderia mencionar, sobretudo vidas de santos, meditações, traducções biblicas[55], porque, se é certo que em alguns epimythios ha ideias mysticas, as fabulas propriamente ditas mantém a sua independencia artistica, e formam como que um oasis em meio da aridez e insipidez da litteratura do tempo, absorventemente devota.

O Fabulario vem preencher uma lacuna na nossa litteratura dos secc. XIV—XV, e fazer que Portugal se relacione neste sentido com as litteraturas medievaes, visto que ellas possuiam Isopetes, e na portuguesa não se sabia da existencia de nenhum. De Esopo, isto é, Esope, tiraram os franceses o deminutivo Ysopet (Isopet, Esopet), que umas vezes significa o nome do fabulista, outras uma collecção de fabulas. Fallando do Ysopet I e do Ysopet Avionnet[56], diz Robert: «J’ai conservé à ces fables le nom d’Ysopet, où l’on retrouve celui du père de l’apologue, et que l’on donnoit, dans ces anciens temps, à toutes les collections de fables traduites en françois, parce que l’on en regardoit tous les sujets comme fournis par le Phrygien: c’est ainsi que Marie de France avoit nommé le Dit ou le Livre d’Ysopet, le recueil qui contenoit les siennes»[57]. Tambem G. Tardif, traductor das Facecias de Pogge (sec. XIV—XV), diz a proposito da facecia 79.ª (o gallo e a raposa): «En la facétie ensuyvante, aulcuns ont attribué à Ysopet et avecques la translation des fables de Ysopet l’ont mise»[58]. Da França passou a palavra Isopet para a Peninsula Iberica, onde tomou a fórma Isopete ou Ysopete em hespanhol, e Isopete em português. Em 1489 publicou-se em Çaragoça o Isopete historiado; e em 1496 em Burgos o Libro del ysopo famoso, cujo explicit sôa assim: «libro del ysopete ystoriado»[59]. Pelo que toca ao português, lê·se em João de Barros, Ropica Pnefma: «leyxarás Luciano, Homero, Isopete. Quando eu cuido em tanta fabula..»[60], onde Isopete significa o nome do fabulador; em Camões, no comêço da Comedia del rey Seleuco, lê-se tambem: «porém diz o Autor que usou nesta obra da maneira de Isopete». D’aqui se vê que eu podia dar an nosso Fabulario o nome de Isopete Português, no que ia de acordo com usos medievaes; mas não ousei isso, por tal expressão não constar claramente do texto.

A essas e analogas allusões ás fabulas esopicas, e a um ou outro apologo intercalado em obras de caracter geral, se limita o que a antiga litteratura portuguesa nos deixou sobre o assunto[61]. É preciso chegarmos ao comêço do sec. XVII para encontrarmos um fabulario completo[62]; d’ahi em deante ha mais, que todavia não importa agora ao meu assunto especificar.

Apesar de o nosso Fabulario constituir, como acabo de dizer, certa novidade na litteratura portuguesa dos secc. XIV-XV, parece que foi pouco divulgado, pois não me consta que haja allusões a elle em obras portuguesas contemporaneas ou posteriores, nem que exista outra cópia manuscrita, senão a de Vienna.

Quanto a esta, a primeira menção, que eu saiba, é estrangeira, e do sec. XIX: encontra-se no Catalogo da respectiva Bibliotheca, ou Tabulae codicum manu scriptorum praeter Graecos et Orientales in Bibliotheca Palatina Vindobonensi asservatorum, publicação feita pela Academia Caesarea Vindobonensis, vol. II, Vindobonnae («Vienna») 1868, p. 247. Essa menção é assim concebida: «3270 (Philol. 291) ch. XV, 46, 4.º Aesopus, Fabulae in linguam Lusitanam versae. Incip.: Segumdo diz o liuro.. Expl.: empeeçem mays que peçonha. Explicit liber Exopy cum alegorijs»[63]. Foi por este Catalogo que tomei conhecimento do manuscrito, quando, em 1900, estive na Bibliotheca de Vienna.

Em 20 de Março de 1902 dei noticia d’elle ao público português, em sessão da segunda classe da Academia Real das Sciencias de Lisboa: vid. o respectivo Boletim, I (1903), 235. Depois d’isso tornei a referir-me a elle, em 1904, em um artigo inserido na Revista Pedagogica, I (n.º 25, de 22 de Maio), pp. 388-390.

Até á publicação que faço agora, o manuscrito jazeu enterrado, e, por assim dizer, esquecido na rica Bibliotheca de Vienna de Austria. Apesar da indicação já ministrada pelas Tabulae em 1868, ninguem, tanto quanto pude averiguar, o utilizou ou compulsou; nem F. Wolf, que era viennense, e foi funccionario da propria Bibliotheca, e a quem tamanho carinho mereceu a nossa litteratura[64]; nem Reinhardstoettner, que ahi copiou outro precioso monumento, a Demanda do santo graall[65]; nem O. Klob, que tirou nova copia do mesmo monumento[66]; nem Hervieux, que buscou por toda a parte, e lá mesmo, elementos para a sua obra[67]; nem finalmente Keidel, no seu recente artigo Notes on Æsopic Fable Literature in Spain and Portugal during the Middle Ages[68]. Mas, como pondera o autor do Espelho de Casados, 2.ª ed., fl. VIII-v, traduzindo um texto biblico, tambem aproveitado n-O Livro de Esopo, fab. XLV: nam ha cousa tam secreta, que se nam descubra.

Ao concluir aqui o meu trabalho, não me despeço ainda d’elle, pois em occasião mais opportuna, que talvez não se demore muito, tenciono refundi-lo e publicá-lo de novo.


Notas

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  1. A respeito da obra de Hervieux, vid. a importante noticia que deu d’ella Gaston Paris no Journal des savants, 1884, 1895 e 1899. Cfr. tambem Romania, XV, 629-631. — Esta obra consta até o presente, que eu saiba, de 5 volumes. Quando citar os vols. I e II, entenda-se que cito sempre a 2.ª edição.
  2. Hervieux, ob. cit., I, 666.
  3. A fabula dos Athenienses que elegem um rei e a das rãs que pedem um senhor a Juppiter são tratadas como uma só na collecção de Romulo.
  4. Hervieux, ob. cit., I, 475-499. — A denominação de Anonymus Vetus Neveleti, ou simplesmente Anonymus Neveleti, provém de Isaac Nevelet, natural de Basileia, que incluiu esta collecção de fabulas na sua Mythologia Aesopica, publicada em Francfort em 1610.
  5. Vid. supra, p. 90, nota 1.
  6. Cfr. Hervieux, I, 511-514 e II, 316.
  7. Vid. sobre este assunto: Hervieux, I, 496, II, 347; Gaston Paris, La littérature française au moyen âge, 3.ª ed., § 80; Grundriss der romam. Philologie, II-1, p. 409. — Sobre o conto dos grous de Ibyco em especial, vid. Mélusine, IX (indice); Zs. des Vereins für Volkskunde, VI, 115; cfr. tamhem Bédier, Les Fabliaux, 2.ª ed., p. 152. A designação de grous de Ibyco provém de que a respectiva aventura se attribuia na antiguidade a Ibyco, poeta grego do sec. VI a. C.; e tornou-se proverbial. Diz o nosso Bento Pereira (sec. XVII), Thesouro da lingoa portugueza, 2.ª parte, p. 226 (append. á Prosodia, ed. de 1723): «Juizo de Deus: Ibyci grues».
  8. Cfr. Hervieux, I, 475
  9. Vid. Hervieux, I, 503-602. — Depois de impresso o livro de Hervieux, descobriu-se mais um ms. {fragmentario) na bibliotheca de Reims: vid. Modern language notes, 1904, p. 198-199 (artigo de P. J. Frein).
  10. Vid. Hervieux, I, 602-635.
  11. Vid. Hervieux, I, 635-668.
  12. Vid. Hervieux, I, 503-606. — Adeante voltarei ao assunto.
  13. Vid. as suas Fables inédites des XIIe, XIIIe et XIVe siècles, 2 vols.; cfr. vol II, p. 585-587.
  14. Lyoner Yzopet, Heilbronn 1882. — A p. 96 sqq. publica Förster tambem um texto critico do Anonymus Neveleti ou Walter
  15. Sobre o Isopo castelhano vid. Morel-Fatio in Romania, XXIII (1894), 561 sqq.
  16. Sobre as collecções medievaes das fabulas italianas em geral, vid. Gaetano Ghivizzani, Il vogarizzamento delle favole di Galfredo dette di Esopo, parte I e II, Bologna 1866 (onde se reproduz um ms., do sec. XIV, da Bibliotheca Riccardiana de Florença, ou Isopo Riccardiano); e Peabody Brush, The Isopo Laurenziano, Columbus (Ohio) 1899, p. 1 e sqq. — As fabulas italianas tem varias origens: Walter, Marie do France, o Libre delle Virtú, etc.
  17. Á fabula das rãs que pedem um senhor a Juppiter dei o n.º 50.º; podia ter-lhe dado o n.º 49.º—A, de harmonia com o n.º 21-A de Walter
  18. Cfr. K. Warnke, Die Fabeln der Marie de France, Halle, 1898, p. XII—XIII.
  19. Aqui arida testa está no sentido de «casca», o que se deduz da ordem das ideias expressas antes. O Ysopet I de Paris assim o entendeu (Robert, Fables inédites, II, 448): Sus saiche cruse est bonne noiz, onde saiche cruse quer dizer «casca sêca». E tambem o Ysopet de Lião (Förster, Der Lyoner Yzopet, p. 1): . . con la cruise qu’est soiche ǀǀ Lo bon noeillon danz soi quoiche, «como a casca que está sêca esconde em si o bom grão». E o Ysopo ystoriado hespanhol (Sevilha 1533, fol XVI-r): «como la cáscara seca cubre muchas vezes el meollo».
  20. securis aqui «machadinha».
  21. K. Warnke, Die Quellen der Esope der Marie de France, Halle 1900, p. 4.
  22. Peabody Brush, The Isopo Laurenziano, Columbo (Ohio) 1899, p. 75.
  23. W. Förster, Lyoner Yzopet, Heilbronn 1882, p. IV.
  24. Lat. melius.
  25. Lat. amo.
  26. Lat. melius.
  27. = fr. ouvrir.
  28. Codd. Laurenziano, Mocenigo e Farsetti: vid. Ghivizzani, parte I, p. CXV.
  29. Ghivizzani, Favole di Galfredo, parte II, Bologna 1866, p. 12.
  30. Die Fabeln der Marie de France, ed. de Warnke, Halle 1898, p. 21. — O mesmo A., no seu livro Die Quellen der Esope der Marie de France, Halle 1900, p. 10, cita outros textos (fabularios, etc.), onde tambem se diz que o cão passa uma ponte.
  31. Ghivizzani, parte II, p. 28.
  32. A respeito d’este Esopus vid. adeante, p. 153.
  33. Ghivizzani, parte II, p. 102.
  34. Peabody Brush, The Isopo Laurenziano já cit., passim.
  35. Die Fabeln já cit., passim.
  36. Libro del sabio y clarissimo fabulador Ysopo, historiado y annotado, 1533 (Sevilha), passim. Ha um exemplar na Bibliotheca Nacional de Lisboa. — Da fonte d’esta obra fallo infra, nesta mesma pagina.
  37. A actividade litteraria de D. Juan Manuel exerceu-se de 1320 a 1335; vid. G. Baist in Grundriss der roman. Philologie, t. II-2, p. 418. As fontes do Livro de Lucanor são varias (orientaes, etc.). — Esta obra foi publicada diversas vezes. Tenho presentes as edd. de Gayangos, Escritores en prosa anteriores al siglo XV, e de Krapf, El Libro de Patronio, Vigo 1902.
  38. O Libro de los gatos (ed. de Gayangos, Escritores en prosa anteriores al siglo XV) é traduzido de Odo de Cheriton (sec. XIII); vid. P. Meyer in Romania, XIV, 393, nota 5. Sobre Odo de Cheriton vid.: P. Meyer, Les Contes moralisés de N. Bozon, Paris 1889 (Soc. des Anc. Textes), p. XII-XIII; B. Herlet, Beitr. zur Geschichte der äsopischen Fabel im Mittelatler, Bamberg 1892, p. 5 sqq. (resumo das fontes: p. 44). As Fabulas e Parabolas de Odo de Cheriton foram publicadas por Hervieux, Les Fabulistes, t. IV, 1896, que as acompanha de um estudo litterario, e falla do Libro de los gatos a p. 106 sqq.
  39. Vid. Hervieux, I, 421, e Morel Fatio, Romania, XXIII, sqq. — No nosso Fabulario não encontro vestigios linguisticos de que alguma obra hespanhola influisse nelle; branchete (vid. Vocabulario), com quanto eu não conheça esta palavra noutro texto português, e se encontre, por ex., no Arcipreste de Fita, Libro de buen amor, ed. de Ducamin, Tolosa 1901, estr. 1401-1404, numa fabula correspondente á nossa, não é prova sufficiente, tanto mais que a nossa palavra tem br-. — O Livro da vida e dos costumes dos philosophos, que se cita no prologo do Fabulario, corresponde, como provei a p. 122-126, não á obra hespanhola do mesmo titulo, mas a uma latina, fonte d’esta.
  40. Fabulistes, I, 504-598. — Os mss. latinos do Anonymus que Hervieux, I, 583-585, cita como existentes em Hespanha são desprovidos de commentario (refiro-me aqui á Hespanha, porque, attentas as relações litterarias que em tempos antigos houve entre esse país e o nosso, podia o leitor pensar nelle); talvez porém existam outros manuscritos que escapassem a Hervieux.
  41. O titulo completo é: Esopus mora- || lisatus cũ bono || cõmento Iterũ textus de nouo emendatus cum || glosa interliniali. ||. No frontispicio ha uma gravura que representa o interior de um edificio em que está Christo, de pé vestido de tunica, nimbado, com o cabello caido para os lados, um globo crucifero na mão esquerda, e a direita erguida com os dedos dispostos em acto de abençoar. Tem ao todo 76 paginas não numeradas. No fim lê-se: ¶ Esopus fabulator preclarissimus cum suis mo- || ralisationibus ad nostri instructionẽ pulcherrime || appositis. Impressus Antwerpie per me Henricũ || eckert. Anno dñi. M. ccccc. iiij. In profesto sancte || Katherine virginis. ||. Altura das paginas 0m,195; largura 0m,148. A uma breve introducção sobre Esopo, sobre Romulo e o rex anglie Afferus segue-se o prologo do Anonymo de Nevelet e as fabulas em numero de sessenta, sendo a ultima a do duello do soldado com o camponio. Os versos estão intermeados de glossas. A cada poesia succede o commento em prosa.
  42. Fol. 29.
  43. Sigo, já se vê, o texto do Esopus moralisatus, que differe, aqui e alem, dos que Hervieux e Förster (vid. supra, p. 146, nota 1) publicaram. Supprimo, porém, por ser inutil reproduzi-las, as glossas interliniares.
  44. Ghivizzani, II, 17.
  45. Idem, II, 20.
  46. Idem, II, 21.
  47. Idem, II, 24.
  48. Idem, II, 24.
  49. É sabido que os traductores medievaes não costumam ser fieis: ora ampliavam, ora resumiam, ora supprimiam.
  50. Os escritores medievaes occultavam muitas vezes o nome por modestia christã. Contentavam-se com trabalhar para o que elles suppunham ser o bem commum, e, em vez de gloria, só queriam a satisfação d’esse impulso da consciencia. Por tal motivo eram ás vezes as obras de uns postas a saque por outros; e ninguem se suppunha plagiario ou plagiado.
  51. Lê-se neste poeta, liv. I, prologo:
    Aesopus auctor quam materiam reperit,
    Hanc ego polivi versibus senariis.
  52. Isto é, originario da Livraria do Real Mosteiro de Alcobaça. Está contido no cod. n.º 266, que existe hoje na Biblioteca Nacional de Lisboa. — Deu extractos d’elle Th. Braga nos Contos tradicionaes do povo port., II (1883), 38 sqq.; cfr. as notas de p. 132 sqq. O Sr. J. Cornu, hoje professor da Universidade de Graz, fez uma copia do ms., e o Sr. F. M. Esteves Pereira, a quem a Revista Lusitana deve já a publicação de importantes textos portugueses antigos, está fazendo outra.
  53. Vid. supra, p. 120.
  54. Vid. supra, p. 120.
  55. Vid.: Th. Braga, Curso de hist. da litterat. port. (1885), p. 112-116; D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Geschichte der portug. Litterat. (no Grundriss der rom. Philol., II-2, p. 212).
  56. Avionnet é deminuitivo correspondente a Avianus, nome de um fabulista romano do sec. IV ou V, tambem muito lido na idade-média. Formou-se como Ysopet.
  57. Vid. Fables inédites des XIIe, XIIIe et XIVe siècles, vol. I, p. clxiv, nota.
  58. Apud Robert, ob. cit. na nota antecedente, vol. I, p. lxxxiv. Esta traducção de Tardif é posterior a 1483.
  59. O povo castelhano tambem pronunciava Guisopete: vid. Morel-Fatio, in Romania, XXIII (1894), p. 563, n.º 2.
  60. Pag. 289, da ed. do Visconde de Azevedo, Porto 1869.
  61. Com relação ao sec XV, cita a Sr.ª D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, na sua Geschichte der portugiesischen Litterattur (no Grundriss der roman. Philol., II-b), p. 229, entre as obras que então se liam em Portugal, como provenientes da França, o Isop (não sei onde ella colheu esta noticia; talvez em algum passo de escritor antigo). Com relação ao sec. XVI, lê-se isto, por exemplo, em João de Barros: «.. segues a ignorancia do cão do fabulador», Ropica Pnefma, ed. de 1869, p. 112; «o povo ch[r]ristão foy como a gralha de Isopo fabulador, vestiu-se das penas de todalas fermosas aves: mas o pavam, vendo que o precedia em fermosura, ouvelhe enveja, e fez com as aves que cada hũa pedisse sua pena, por ficar em pior estado», Ropica Pnefma, p. 185-186; «outros, como Isopo, querendo chegar a cousas materiaes e fameliares a nós, composeram fabulas», Dialogo com dous filhos, ed. de 1869, p. 314. Foi a Sr.ª D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos que me chamou a attenção para estes tres passos. — A mesma illustre Senhora, na sua ed. das Obras de Sá de Miranda, Halle 1885, a proposito de uma fabula d’este, allude a Diogo Bernardes: ob. cit., p. 772. — Cfr. tambem Jorge Ferreira, Eufrosina, ed. de 1786, p. 14. — Num raro opusculo, Collecção de algumas fabulas em verso e prosa, Coimbra 1823, que possuo por dádiva do meu erudito amigo o dr. Sousa Viterbo, transcrevem-se trechos de Sá de Miranda, etc.: vid. o que Sousa Viterbo escreveu sobre o assunto n-A Tradição, V, 130-132, onde reproduz alem d’isso um trecho de Fernão López (fabula da raposa e do corvo). — Da fabula da bilha de azeite, que vem em Gil Vicente, tratou o Dr. Vasconcellos Abreu no seu opusculo Os contos, apologos e fabulas da India, Lisboa 1902. — Nenhuma das fabulas referidas tem porém nada com O Livro de Esopo. — Vê-se do que fica dito que as fabulas esopicas eram muito apreciadas pelos nossos quinhentistas. Este aprêço manifestava-se mesmo fóra do ambito da litteratura, no da arte propriamente dita. Nas misericordias, ou pequenos apoios, do côro da igreja de Santa Cruz de Coimbra, o esculptor figurou «facecias anecdoticas», algumas tiradas das fabulas de Esopo»: vid. Arte e Natureza em Portugal, n.º 28; e cfr. o cit. artigo de Sousa Viterbo (n-A Tradição). O distincto artista o Sr. A. Gonçalves informou-me de que entre as anecdotas figuradas no côro de Santa Cruz está a fabula da raposa e da cegonha (os dois episodios) e a da raposa e das uvas. Incidentemente notarei que o gôsto de representar fabulas esopicas em obras de arte ascende já á antiguidade classica.
  62. Vida e fabulas do insigne fabulador grego Esopo, por Manoel Mendes, da Vidigueira, Evora 1603. Cfr. Dicc. Bibl. de Innocencio da Silva, VI, 59. — Esta obra nada tem tambem com O Livro de Esopo (nem com o Ysopete hespanhol de 1489, reproduzido em edd. posteriores, como se disse a p. 98 e 106). — Espero publicar ulteriormente, o que não faço agora aqui em appendice, por falta de tempo, uma nota sobre o fabulario de Manoel Mendes.
  63. O explicit consta de mais alguma cousa, como se viu supra, p. 57.
  64. Cfr. os meus Ensaios Ethnographicos, II, 297-300.
  65. Começado a publicar em 1887 (Berlim); ainda não acabado.
  66. Vid. Rev. Lusitana, VI, 332 sqq.
  67. Les fabulistes latins, que tantas vezes tenho citado.
  68. Na Zeitschrift für roman. Philologie, XXV (1901), 721—730. O que porém diz a respeito de Portugal é pouco mais de nada.