O Piolho Viajante/XLVIII

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Ainda não era o sol fora e já o meu estalajadeiro estava montado na mula que dava coices por tantas formas e por tantos motivos que era impossível que fizesse aquela dança sem ter gasto muito tempo em aprendê-la. Mas nunca botou o dono no chão porque este sabia-lhe as manhas e tinha-as e já as esperava, seguro como um prego.

Gastámos no caminho bastante tempo porque encontrámos na estrada para cima de quinhentos amigos e todos aqueles que encontrávamos em povoado, nos obrigavam a apear-nos para provar das águas.

Cada vez que montávamos na alímária era certa uma grosa de coices, de forma que eu andei em bolandas muitas vezes e muitas vezes fui obrigado a agarrar-me com unhas e dentes. Chegámos, enfim, à estalagem e veio logo a mulher abraçar o marido, com duas filhas que já tinha capazes de darem estalajadeirozinhos e um filho de cinco anos que era o lume dos olhos da mãe, travesso e malcriado como mil demónios. Vieram também duas criadas, uma que se chamava Páscoa e outra Quaresma, com a galantaria de que uma tinha a cara da outra. Quero dizer, a Quaresma tinha a cara de Páscoa e a Páscoa a cara da Quaresma. Vieram também três moços que pareciam três galgos. Veio um cão aos saltos a ele e um burro que havia em casa zurrou tanto que não parou enquanto o dono não foi à estrebaria afagá-lo. E aí lhe disse não sei o quê, porque eu, à língua de burro, não me tenho aplicado nada. Mas é certo que ambos ficaram satisfeitos porque o burro calou-se e o dono saiu a rir.

Isto já era bastante tarde. Perguntou o que havia de cear, ao que a mulher lhe disse que nada tinha capaz de lhe dar, porquanto ela já tinha ceado, mais a família. Que os ovos que havia, todos eram chocos; que a carne era de um burrinho pequeno que tinha morrido; que sim, havia um pouco de peixe frito, mas que bem sabia ele que era frito em azeite de peixe e que tinha medo de lho dar não lhe fizesse mal ao estômago. Que o melhor que tinha era um gato de molho de vilão, mas já havia cinco dias que estava feito. Ao tempo que a mulher dizia estas últimas palavras, ouviu-se um estalo, assim de como quem fechava uma porta. Ao que o marido disse muito contente: — Aquilo foi rato que caiu na ratoeira. Vão ver se é. Se for, vai-mo assar num bocadinho de manteiga e, com uma canada de vinho, está a ceia feita. Com efeito, foi-se ver e era rato. Ficaram todos contentes por estar suprida a falta e haver comer à vontade do estalajadeiro. Veio a ceia para a mesa e, enquanto ceava, perguntou o marido à mulher se tinha havido algum ganho dos extraordinários da casa ao que ela lhe respondeu que sim, que a Marioleta (que era uma das filhas), tinha furtado uma espora de prata a um passageiro que ali ficara a noite passada e pôs a culpa num criado que trazia consigo, no qual tinha dado meia dúzia de bofetões. Quanto mais o criado se esconjurava, mais o amo lhe dava de enraivecido. A Catarina, num troco, (esta era a outra filha), furtou dezoito vinténs e eu, a todos os que comeram, pedi o dobro do valor. A Páscoa, a um dos passageiros que trazia lençóis, pela manhã, ao levantar da cama, embutiu-lhe na mala dois dos nossos que já não tinham por onde se lhe pegar, e ficaram os dele que são dois lençóis novos de quatro ramos. Por ora é o que há, mas esperamos amanhã uma boa remessa porque esteve aqui um passageiro que levava a bolsa bem provida e nós avisámos o teu amigo Capitão, que lá foi atrás dele com os seus companheiros, pedir-lhe para a borracha. Creio que o homem lhe dará tudo porque é muito brioso e o nosso capitão Tomás não é para lhe aceitar menos nem os seus companheiros são para estas graças. Tu bem sabes que ele, tudo quanto traz é gente escolhida. E como nós temos o terço desta negociação, sempre nos cairão, pelas minhas contas, as nossas dez moedas. É o que se tem feito por cá. Se não adiantei mais os ganhos, não foi falta de diligência minha. Foi o que pôde ser.

Eu estava admirado de ouvir tal e dizia comigo: — Pois é crível que uma casa que se inventou para cômodo dos viajantes, para bem do público, seja desta qualidade? Quando eu pensava nisto, batem à porta. Eram dois Cavaleiros que perguntavam se havia cómodo para quatro. Acudiu logo todo o mundo: os moços a pegarem no estribo e a conduzirem as bestas para a cavalariça; as criadas a perguntarem-lhes se queriam camas; a dona da casa, o que queriam cear; o estalajadeiro indagando quem eram e para onde iam, para dar parte ao juiz; as duas filhas defronte, com os olhos nas algibeiras dos passageiros e com uma humildade tão estudada que pareciam duas donzelas da era de quinhentos. Os Cavaleiros eram daqueles que, em vendo mulher, ficam agarrados pelo beiço e ficaram embasbacados nas moças, que não eram muito boas mas das melhores que havia na terra. Os pais, tanto que viram os pássaros próximos do visco, safaram-se deixando a esparrela armada. Houve seus colóquios de parte a parte, mas com tanta modéstia que aos meus patetas pareceu-lhes que tinham que arrostar com duas Lucrécias. Elas, que os perceberam tolos, porque isso não tem nada que perceber, pediram licença para se retirar porque se avizinhava a ceia, no que eles não consentiram. Veio ceia maior, dobrou-se a dose do vinho, houve saúdes, perguntaram-se nomes, indagou-se se eram casadas, ao que o pai, mãe e elas responderam com uma voz: — Donzelas! De novo se renovaram as saúdes, tocaram-se os copos e os pés ao mesmo tempo, os olhos não ficaram ociosos nesta ocasião e os corações, se falassem, diriam mil destemperos. Nestes transportes de amor e bebedeira gastaram-se bons tostões, até que o pai, fazendo um focinho de palmo e meio, levantou-se e disse às filhas: — Para dentro! Basta de palrar! E vossas mercês, meus senhores, vão-se deitar. As raparigas fizeram uma cortesia muito descortês, a mãe foi atrás delas sem dizer palavra e o estalajadeiro levou os amigos a um quarto e despediu-se deles em latim.

Passado bastante tempo veio uma criada pé ante pé, como quem vinha às escondidas (não me lembro se era a Páscoa, se era a Quaresma, mas era uma delas porque ali não havia mais que duas; seria, talvez, a Quaresma, porque eles ficaram jejuando). E perguntou muito devagarinho: — Vossas mercês precisam de alguma coisa que eu lhes faça? — Anda cá, rapariga, lhe disse um dos hóspedes. Quem te mandou cá?

— Minhas amas pequenas é que me disseram que viesse eu saber se os senhores estavam bem acomodados ou precisavam alguma coisa? — E porque não vêm elas?

— Olha lá! Elas? Estão fechadas a sete chaves. Para me dizerem isto, disseram-me da janela que dá para o pátio e, por sinal, a senhora Maria estava a chorar.

— E quem é a senhora Maria?

— É aquela dos olhos pretos e nariz arrebitado. - Bem sei. E porque chorava ela?

— Porque o pai deu-lhe dois murros por ver um de vossas mercês a rir para ela.

— Pois ele viu isso?

— Sim senhor. E ainda a pobre menina dizia, não importa, dou tudo por muito bem empregado, porque gosto muito dele. Há muito tempo que não vejo moço tão gentil.

— Oh, rapariga! Não digas mais nada, que estou chorando por instantes. Ora dize-me: não lhe posso eu falar?

— Isso é um impossível. Seria preciso comprar meio mundo.

— Comprarei quanto for preciso. Dou-te quanto tu quiseres, se me consegues isso.

— Olhe, meu senhor, é preciso comprar a minha companheira, que é um diabo, os três moços e mais alguém.

— Pois olha, pega lá dinheiro e dispõe as coisas de forma que eu consiga esta ventura.

Saiu a criada como uma lebre e o cão do amo logo a apanhou de encruzilhada, porque, por sua ordem, é que se lhe tinha feito toda esta pantomina. E por isso é que eu sei quanto tenho contado. No fim de tudo, cada um se foi deitar na sua cama mas, os tolos, sem pregar olho à espera da criada. Cada rato que roía parecia-lhes os pés da moça que chegava, até que, de cansados, se deixaram dormir. Pela manhã foram acordados pelo dono da casa e postos na rua com toda a pressa porque estava, dizia ele, a estalagem embargada para uma pouca de tropa que chegava daí a uma hora e era preciso pôr tudo pronto. Pagaram à risca e nunca mais viram nem Maria, nem Marioleta, nem Páscoa, nem Quaresma. Foram quase tão aliviados da bolsa, quanto o eram da cabeça e isto numa só noite. Porque se dura duas o passatempo, tornavam para trás falidos. Daí a bocado chegou o tal capitão de ladrões que tinha ido receber aquele dinheiro em que a mulher tinha falado ao marido. E, com efeito, trazia a terça parte do adquirido. Houve almoço e bebedeira. Sem esta segunda, poucas ou nenhumas vezes se passava. Ali se contaram as várias fortunas que tinha havido daquele mesmo género e que não conto só por não ser fastidioso e não porque não sejam interessantes. Mas são um tanto tristes e menos próprias numa obra cujo fim é divertir instruindo, e não instruir com aflições.

Eu quis também indagar que tal era a vida de ladrão, para o que passei para a cabeça do tal capitão e é a carapuça XLIX.