O Reino de Kiato/Capítulo 10

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CAPITULO X
REORGANIZAÇÃO DO REINO


A reorganização politica de Kiato fel-a Pantaleão I, tempos depois de seu dominio absoluto.

A população do Reino era de dez milhões de habitantes, como provava o ultimo recenseamento, feito com a maior exactidão. No tempo da decadencia nunca fora possivel sabel-a ao certo.

Logo que o povo começou a regenerar-se, a cumprir os seus deveres, estatuiu-se que, na segunda quinzena do mez de Janeiro, compareceria á presença do chefe da communa o pai de familia ou quem suas vezes fizesse, a inscrever no registro de recenseamento o nome, edade, estado, profissão de cada um dos membros de sua familia. Quando se encerrou o serviço, podia-se dizer que estavam alistados todos os habitantes do Reino. Não se fez despeza. Uma só commissão não foi nomeada. Avisado o cidadão, que devia em tal tempo comparecer ao serviço do censo, não faltava ao dever.

Pantaleão I dividiu o Reino em circumscripções que chamou «kiatisito», cada uma com população não excedente a cem mil almas.

O kiatisito era governado por uma junta composta de tres membros, nomeados pelo rei. O suffragio universal havia sido supprimido. A junta governava por tres annos. Ao findar o mandato, tres mezes antes, enviava ao rei uma lista dos homens, maiores de cincoenta annos, de cada kiatisito. A escolha se fazia á sorte, porque eram todos iguaes. O cargo não era remunerado. Limitava-se a acção do poder publico a gerir as finanças da localidade, receber as esportulas que davam a titulo de imposto, e vigiar as fronteiras do Reino.

Ver um kiatisito era ver em miniatura uma photographia da capital.

Os governadores cuidavam, com excessos de zelo, das relações com estrangeiros dos centros visinhos. Para um cidadão sahir temporariamente do paiz, eram feitas tantas exigencias, o processo tão longo e complicado que era preferivel sahir de vez. O estrangeiro que entrava pelas fronteiras era, ao chegar, interrogado por um dos membros da junta e espiado noite e dia — serviço este feito por todos.

Tinham horror ao homem de outras terras por julgarem-no um animal empestado, prevenção semelhante á do homem branco dos Estados Unidos da America do Norte pelo negro. Desde a escola primaria á universidade ouviam prelecções, narrativas de factos, no sentido unico de lhes prevenir o animo contra os habitantes das outras regiões da terra, em que eram cultivados os grandes vicios e amados os pervertedores da humanidade — alcool, syphilis e fumo — de modo que não podiam deixar de sentir essa repugnancia.

A sua superioridade era incontestavel: Tinham a certeza d’ella, todas as vezes que se comparavam com os estrangeiros que aportavam ao Reino. Nunca tinham visto uma das mais fortes e sadias creaturas de outro clima, que, comparada a elles, não fosse um tarado, um poço de diatheses, as mais horriveis! Physicamente, um aleijão; moralmente, bebado, devasso!...

O kiatense tinha consciencia do seu valor, de que a differença entre elle e outros homens dos mais civilisados do mundo era a mesma que entre o hotenttote e o homem culto da Europa. Mesmo assim, escudado em sua superioridade, o Poder Publico vigiava o estrangeiro.

E essa vigilancia devia continuar sem esmorecimentos. A propaganda contra os inimigos do homem proseguiria dia e noite, por todos os meios, empregando-se nella o melhor do esforço e da intelligencia. O cidadão do Kiato estava purificado, mas podia ser de novo empestado. Devia olhar para a creatura de outra terra como para um animal, o macaco por exemplo.

Puros eram os primeiros homens quando sahiram das mãos de Deus. Tempos depois perverteram-se. A degeneração começou em Noé. O anathema lançado pelo patriarcha no filho Cham, por ter zombado delle quando bebado, é um symbolo. Cham representava o alcool. Condemnados ficariam, até a quinta geração, a todas as desgraças, os que delle fizessem uso. E o homem foi se empestando, depravando-se até cahir apodrecido nos muros de Sodoma e de Gomorrha.

A putrefacção era physica e moral. Para sanear aquelle ambiente corrompido por toda a casta de doenças e vicios, desceu o fogo do céo, o masculo purificador, e instantes depois, da esterqueira humana só restava um montão de cinzas e uma estatua de mulher. As cinzas do incendio não se tornaram inocuas; levavam o germen do mal: mais tarde, invadia Roma, contagiada pelo vicio em suas diversas etapas...

A organisação politica do Reino garantia a cada aggremiação autonomia e liberdade, obedecidas as leis basicas impostas pela Nação, que se resumiam nestes dois artigos:

«Cumpre o teu dever e respeita os direitos de teus semelhantes».

O kiatense, depois que entrou em convalescença, tomou na mais alta consideração a hygiene. As molestias que reinavam endemicamente foram supprimidas depois de observados os preceitos hygienicos. Uma d’ellas, das que maior numero de victimas fazia, era a «ankilostomiasi». Como o ankilostomo não havia de morrer, si os focos, o seu habitat, a sentina, a agua aseptica, haviam sido destruidos por completo?

No tempo da decadencia, em sua maioria atacada de miseria organica, não parecia a mesma aquella gente. Nada d’aquelle ar de vencida, cançada, estropeada; nada d’aquelles gemidos ao menor esforço. De uma agilidade pasmosa, caminhava agora leguas e leguas sem fadiga, o sangne parecendo espoucar-lhe pelos poros. Até os sevandijas, as pragas haviam sido exterminadas pelo rigoroso aceio.

A extincção dos parasitas do homem não admira tanto como a dos animaes. E’ verdade que a veterinaria chegara em Kiato á perfeição, como todos os ramos do conhecimento humano. Tão bôa a saude dos animaes quanto a dos homens.

Diversas epizootias grassavam, fazendo grandes estragos nos rebanhos, mas foram desapparecendo com o saneamento do paiz. A mosca, o mosquito, o carrapato, a pulga, o gafanhoto, o percevejo, eram especies desapparecidas. Os germens pathogenos existiam, mas inoffensivos, não vencendo a resistencia dos phagocythos creados em organismos completamente sãos e, portanto, vigorosos tambem.

Em começo, devia ter sido assim. O infinitamente pequeno formou o primeiro elo das cadeias animal e vegetal. Elle habitou primeiro a terra, inoffenssivo, porque as suas aggressões ao homem eram repellidas sem que elle as percebesse. Não foi a civilisação que degradou o homem, foi o alcool, a syphilis e o tabaco que o estropearam. A perversão dos costumes acompanhou, passo a passo, as sociedades civilisadas, porque o virus da degeneração as havia contaminado.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.