O Retrato de Dorian Gray (João do Rio)/Prefácio

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Um artista é um criador de belas coisas.

Revelar a Arte ocultando o artista é o fim da Arte.

Crítico é aquele que pode traduzir d'outra forma ou com processos novos a impressão deixada pelas belas coisas.

A autobiografia é ao mesmo tempo a mais alta e a mais baixa das formas da crítica.

Aqueles que encontram intenções feias nas belas coisas são corrompidos sem sedução. E isso é um crime.

Os que acham belas intenções nas belas coisas são cultivados. Esses têm esperança.

Para os eleitos é que as belas coisas significam simplesmente a Beleza.

Um livro não é moral ou imoral. É bem ou mal escrito. Eis tudo.

O desdém do século xix pelo realismo parece a raiva de Caliban vendo a própria face num espelho.

O desdém do século xix pelo romantismo parece a raiva de Caliban não vendo a própria face num espelho.

A vida moral do homem forma uma parte do assunto do Artista, mas a moralidade da Arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito.

O Artista não deseja provar nada. Mesmo as coisas verdadeiras podem ser provadas.

O Artista não tem simpatias éticas. A simpatia moral num artista traz o maneirismo imperdoável do estilo.

O Artista vê e pode exprimir tudo.

Para o Artista pensamento e linguagem são instrumentos de uma arte.

O vício e a virtude são materiais. No ponto de vista da forma, a música é o tipo das artes. No ponto de vista da sensação é a profissão do comediante.

Toda Arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Aqueles que procuram ver por baixo da superfície, fazem-no por conta e risco.

O mesmo acontece aos que tentam penetrar o símbolo.

É o espectador e não a vida que a Arte realmente reflete.

A diversidade de opiniões a respeito de uma obra de arte mostra que essa obra é nova, complexa e viável.

Quando os críticos diferem, o Artista está de acordo consigo mesmo.

Podemos perdoar a um homem ter feito uma coisa útil enquanto ele não a admira. A única desculpa de ter feito uma coisa inútil é admirá-la intensamente.

A Arte é completamente inútil.

Oscar Wilde

NOTA[editar]

O retrato de Dorian Gray apareceu no Lippuicott′s Magazine em 1890. Foi de súbito o maior escândalo literário de que há memória. Os jornais, numa crise de furor inaudito, diziam do romance os maiores horrores. E consequentemente diziam também do autor.

Oscar Wilde escreveu várias cartas aos jornais em resposta aos ataques. O romance apareceu em volume com maior número de capítulos e com muitos cortes. Asseguram que Pater, o grande espírito dos Retratos imaginários, que escreveu um artigo de louvor ao romance, corrigiu com Wilde as provas do livro.

Os pormenores da história da vida de O retrato de Dorian Gray, artigos, ataques, respostas, foram publicados pelo editor Mason sob o título Arte e moralidade.

O livro deu uma exasperante fama a Oscar Wilde. O admirável altista teve de escrever para outra edição o Prefácio, que é sua teoria da arte e uma resposta em epígrafes à obtusidade da crítica.

Em 1895, no seu processo, Dorian Gray voltou ao escândalo. Leram no tribunal vários trechos da edição do Lippuicott′s, interrogando Wilde a respeito. Ele foi quase sempre esplendidamente impertinente. Apenas foi suficientemente menos para que Dorian Gray pudesse parecer uma confissão.

Essa confissão seria, em todo caso, uma antecipação. Quando o pai de lorde Alfredo Douglas deixou no clube um bilhete dizendo que Wilde posava de vicioso e comprometia o filho; quando lorde Alfredo Douglas, belo, tão belo que parecia ter 16 anos tendo vinte e tantos, exigiu que Wilde processasse o pai, para pregar uma peça ao pai que se divorciara da esposa, quando rebentou o desastre que levou Wilde à prisão, o romance O retrato de Dorian Gray já estava escrito havia cinco anos. E é público que lorde Alfredo Douglas conheceu Oscar Wilde muito tempo depois de aparecer o romance.

De resto, tudo quanto Wilde escreveu era a história do que se iria dar. E ninguém sabe dos três personagens principais do romance Dorian, lorde Harry e Basil quem é Wilde. São os três decerto...

Os horrores contra esse livro fascinador nada adiantaram, porém. O retrato de Dorian Gray é há trinta anos o livro de ficção mais sensacional da Terra. A sua sedução persiste, é cada vez maior. Hoje passou a ser o credo de uma estética nova na Terra inteira. Porque Dorian Gray foi traduzido como Salomé em todas as línguas.

Achei necessário traduzir a esplêndida obra em português. A tradução por circunstâncias independentes da minha vontade esteve oito ou nove anos em provas. Ao revê-la, senti ainda útil publicá-la. Dorian Gray é um dos mais belos livros. E integralmente belo.

Traduzir é servir. Consequentemente, trabalho de inferiores. Nunca um homem de espírito traduz senão quando a sua admiração é culminante. Ainda assim traduz mal. Sempre mal. A tradução tem o perdão de ser uma dádiva generosa, apenas. Traduzi Oscar Wilde como um presente a quantos só podem ler na nossa língua. Esses, através dos defeitos da tradução, serão tocados do inebriante clarão da Beleza.

Não é quanto basta à generosidade do trabalho?

João do Rio
(Londres, 1919)