O Selvagem/Ao leitor
AO LEITOR

Eu não escrevi este livro, amigo leitor, por ambição de gloria litteraria, e sim com a de ser util, concorrendo com uma pedra para o edificio da grandeza de nossa patria. Como trabalho scientifico, eu sei que elle está cheio de imperfeições e lacunas; como trabalbo pratico, como methodo de ensino de lingua, eu tenho consciencia de que è um bom livro, porque é n’elle que, pela primeira vez, se applica á lingua mais geral dos selvagens do Brazil, o methodo que os modernos philologos europeus hão inventado para vulgarisação das linguas vivas.
O constante testemunho da historia demonstra que por toda parte, e em todos os tempos em que uma raça barbara se poz em contacto com uma raça civilisada, esta se vio forçada ou a exterminal-a, ou a ensinar-lhe sua lingua.
Ora, o ensino de lingua só é possivel, quando discipulo e mestre possuem uma, commum a ambos, na qual se entendam.
Para que os selvagens, que não sabem ler, que não possuem capitaes acumulados, aprendam o portuguez, é necessario que nós, que sabemos ler, os habilitemos a isso por meio de interpretes os quaes, conhecendo a lingua delles, lhes possam ensinar a nossa.
Na memoria, que publico em seguida, vão desenvolvidos esses pontos. Eu chamo no entretanto vossa attenção para a importancia do problema da domesticação de nossos selvagens, resumindo o que ali digo no seguinte:
O territorio do nosso immenso Brazil é de 291 mil leguas quadradas. Quasi duas terças partes d’esse territorio, ou 182,400 leguas quadradas, não pódem ainda hoje ser pacificamente povoadas por familias christãs, porque estão expostas ás correrias sanguinolentas dos selvagens.
Domesticar os selvagens ou fazer com que elles nos entendam, o que é a mesma cousa, equivale a fazermos a conquista pacifica de um territorio quasi do tamanho da Europa, e mais rico do que ella.
Só essa conquista vale milhões; feita ella, porém, não conseguiriamos somente a posse real da maior parte do territorio do imperio; conseguiriamos tambem um milhão de braços aclimados, e os unicos que se prestam ás industrias, que por muitos annos serão as unicas possiveis no interior — as extractivas e pastoris.
Não é só a conquista pacifica de um territorio igual á Europa, e a de um milhão de braços uteis, proprios para desbravar a selvageria do nosso interior; ha serios perigos a evitar, e que o Brazil deve antever. Com uma população selvagem, dez vezes menor do que a nossa, com um paiz de mais faceis communicações, a Republica Argentina tem-se visto em serias difficuldades por haver descurado a questão da domesticação de seus salvagens; n’este mesmo anno os selvagens destruiram alli valores na importancia de mil e quatrocentos contos de nossa moeda, além de vidas humanas, e de despezas colossaes que mister foi fazer com o movimento de verdadeiros corpos de exercito para batel-os. O mesmo tem-se dado no Chile, Perú, Bolivia e Estados-Unidos.
É com o duplo fim, por um lado, de tirar vantagens do solo ainda occupado pelos selvagens, e por outro lado, de prevenir futuras difficuldades, que o governo imperial me tem encarregado mais de uma vez de trabalhos relativos á nossa população indigena, trabalhos de que este livro é uma parte.
No Brazil as cousas não chegaram ao ponto acima mencionado por duas razões: primeiro, porque temos attendido mais a esse assumpto de nossos selvagens do que o fizeram aquelles paizes; segundo, porque nosso territorio é mais vasto e o selvagem aqui está ainda á larga.
Mas se não conjurarmos o mal, elle ha de chegar.
Este livro é um preparatorio para a creação do corpo de interpretes, que, a exemplo do que fizeram nossos maiores os portuguezes, (os quaes em materia de colonisação foram grandes mestres) nós tambem devemos crear aqui, sobretudo porque não importa novas despezas, pode-se aproveitar pessoal ja existente e pago, limitando-se o esforço da administração a organisar e dirigir o serviço.
Encarregado, ha annos, pelo Sr. conselheiro Diogo Velho de organisar o serviço de catechese do Araguaya, eu suggeri o plano que alli se poz em execução, o qual consiste, em resumo, no aproveitamento do interprete indigena para auxiliar o missionario, pela mesma fórma por que procederam os antigos.
Sim — de que serve o missionario, com a santidade das leis da religião, se elle não tem lingua por onde ensine a regeneradora moral do christianismo?
Não foi por ventura o proprio Christo que, com o mandamento de espalhar sua doutrina pelo mundo, disse aos apostolos que, antes de fasel-o, o Espirito Santo desceria sobre elles e lhes daria o dom das linguas?
Não quererá isto diser que o interprete é cousa tão importante entre uma raça christã e uma raça barbara que, sem elle, impossivel será trazer aquella a assimilar-se com esta?
Os antigos portugueses, que forão incontestavelmente grandes mestres, como raça colonisadora, organisaram, com o nome de corpo de linguas os interpretes militares, a cuja acção pacifica devemos hoje mais de ametade da população operaria do Brasil.
Os jesuitas hespanhoes e portuguezes creavão nos seos collegios os interpretes, que não erão outros senão os meninos selvagens a quem davão uma organisação militar, e que depois espalhavão pelo meio das tribus barbaras. O padre Montoya, em instrucções dadas para um dos collegios do Paraguay, dizia: «aquella tribu onde houver um lingua (um interprete) é uma tribu mansa.»
Disem as chronicas que este mesmo padre Montoya, (è o mesmo missionario que melhor fallou o guarani) só por si amansou mais de cem mil indios!
Este unico facto não tornará evidente o immenso poder do homem civilisado, diante do homem barbaro, desde que esse homem civilisado dispõe do interprete para se fazer entender?
Como é que o missionario, pobre estrangeiro que não conhece o portuguez, que vem para cà em idade avançada, hade aprender linguas selvagens?
Não é muito mais facil e economico dar-lhe o interprete?
Este livro é um preparatorio para a realisação dessas aspirações. Foi o respeitavel e honrado Snr. Conselheiro José Agostinho Moreira Guimarães quem sugerio-me a idéa de applicar o methodo de Ollendorf á lingua geral; á elle devo o me haver constantemente animado e insistido na realização de um trabalho por sua natureza arido, e tanto mais difficil para mim quanto eu, vindo dessas longas peregrinações pelo sertão, estava muito longe de tudo quanto era movimento litterario nesse ramo especial de sciencia. Elle deu-me um dos primeiros livros de philologia, que acompanhou-me ao Araguaya, e lá, no meio d’aquellas solidões, servio-me de pharol para me guiar no estudo methodico de uma lingua difficilima, na ausencia absoluta de livros e grammatica que della se ocupassem.
Foi assim que principiei e levei á mais de meio o presente curso.
O meu respeitavel amigo, o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo, deu-me uma das mais preciosas obras que existe a respeito de uma lingua irmã do tupi: uma sobre a lingua guaraní, do padre Montoya.
Em 1874 tendo eu de ir ao Pará, por interesse meu, o Sr. conselheiro Costa Pereira encaregou-me de estudar a estatistica selvagem do valle do Amazonas, e de classificar as populações selvagens pelas linguas que fallavam.[1]
Eu havia sido durante dous annos presidente do Pará, e sabia que a grande riqueza d'aquelle valle, representada pela borracha, salsa, copahiba, castanha, que se exporta já no valor de muitos mil contos, é quasi exclusivamente devida ao braço do tapuio; o que eu ignorava, porém, é que a quantidade dos que são ainda selvagens, excede de muito á dos que são mansos; que existem nações numerosissimas, como a dos Cahiapós e Mundurucús, a primeira das quaes tem uma população de oito mil almas e a segunda a de quatorze mil: que em todas as nações, ainda mesmo nas que não fallam o tupi, esta lingua é entendida, é o francez ou inglez da immensa região amazonica.
Com o auxilio de um lingua que á minha disposição poz o illustre presidente do Pará, o Sr. Dr. Pedro Vicente de Azevedo, e com o de outros línguas que eram marinheiros a bordo de um dos meos vapores, eu trabalhei ardentemente, e assim conclui o curso.
Chegando ao Rio de Janeiro apresentei os trabalhos ao chefe do respectivo serviço, o meu respeitavel collega e amigo Dr. Castro e Silva.
Elle havia então estudado minuciosamente todo o assumpto de nossos aldeamentos, preparara cadernetas especiaes para registrar o que era peculiar a cada um d'elles, e depois d'esses estudos e exame minucioso dos documentos officiaes, chegára ás mesmas conclusões que eu havia chegado na pratica, isto é: a paz e segurança de grande parte de nossas populações do interior, nossas communicações internas, o aproveitamento de regiões fertilissimas, a vida das unicas industrias productivas do interior — a pastoril, extractiva, a de transportes pelo rios que não tem navegação a vapor; são outras tantas razões de ordem social que solicitam os esforços do Brazil em bem do amansamento de nossos selvagens.
Consultando então não só o que os portuguezes e hespanhóes fizerám na America, mas o que fizerám todos os povos civilisados, eu consignei os meios praticos empregados por esses povos n'estas tres instituições: colonia militar, Interprete, missionario.
Temos o primeiro e o terceiro, falta-nos organisar os elementos para ter o segundo.
O meu mencionado collega fez do assumpto um suculento resumo que foi presente ao actual ministro da agricultura o Sr. conselheiro Thomaz J. Coelho de Almeida.
A idéa de utilisar nossas colonias militares, como auxiliares do povoamento dos sertões, para nellas se collocarem interpretes que, fallando as linguas das populações selvagens circumvizinhas lhes facilitariam as relações com os mesmos selvagens, encontrou echo no seio do gabinete e nomeadamente nos dous conspicuos varões, por cujas pastas correm estes negocios: os da Agricultura e o da Guerra.
Eu tive autorisação para auxiliar-me d’aquellas praças do exercito que fallassem linguas selvagens, e assim pude rever todo o trabalho que ora publico.
Oxalá produza elle os fructos que o governo teve em vista.
A organisação do corpo de interpretes, que não custa despeza nova, porque tanto monta guarnecer as colonias militares com praças que não fallem as linguas dos selvagens vizinhos, como com homens que as fallem, os quaes educados com os dous oficios de ferreiro e carpinteiro, educação que é facil dar nos arsenaes, se dessiminariam pelas colonias na vizinhança d’aquellas populações cuja lingua fallassem; a organisação de um tal corpo, repito, é uma das medidas mais economicas e prudentes que podemos agora tomar.
Deus ha de permittir que ella medre para bem e engrandecimento de nossa patria.
Resumindo toda questão em poucas palavras, eu repito aqui o que já disse na epigraphe.
«Conseguir que o selvagem entenda o portuguez, o que é possivel com um corpo de interpretes organisado com praças do exercito e armada que fallem ambas as linguas, e que, educadas nos arsenaes, se dessiminariam depois pelas colonias militares, seria a um tempo:
- Conquistar duas terças partes do nosso territorio, que ainda não pôde ser pacificamente povoado por causa dos selvagens.
- Adquirir mais um milhão de braços aclimados e utilissimos nas industrias pastoris, extractivas e de transportes internos, unicas possiveis por muitos annos no interior; esses braços são tambem os mais proprios para a povoação de nossas remotas fronteiras, os unicos aptos para desbravarem o interior, e serem os predecessores naturaes da raça branca, n’um solo ainda virgem.
- Assegurar nossas communicações interiores para as duas bacias do Prata e do Amazonas.
- Evitar no futuro grande effusão de sangue humano, e talvez despezas colossaes, como as que tem feito outros paizes da America.
Para conseguir estes fins são necessarios esforços. Mas, quaesquer que elles sejão, haverá alguma cousa que nos impeça de tental-o agora em quanto é tempo?
Foi como preparatorio para execução deste pensamento que o governo me encarregou deste trabalho, que eu executei conscienciosamente, na medida de minhas forças, sem outro interesse, como já disse, além de desempenhar-me do dever de prestar ao meo paiz um pequeno serviço.
É o fim pratico, leitor, que eu vos peço que tenhaes em vista, quando julgardes este trabalho.
Rio, 2 de Janeiro de 1876
O autor

- ↑ Como em nosso paiz ha algumas pessoas que tem o máu habito de attribuir a interesse pessoal as opiniões dos outros, seja-me licito declarar que as commissões que eu tenho desempenhado e desempenho, são gratuitas, no que aliás não ha merito porque as viagens necessarias para desempenhal-as, tinham por fim attender a outros assumptos de meu interesse privado.