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O Selvagem/Exercicios/XXII

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XXII

Auto de baptismo de S. A. I. o principe do Grão-Pará.

Eu revia as provas deste trabalho quando foi publicado o auto de baptismo de S. A. I. o principe do Grão-Pará, que eu traduzi, publiqueí na Reforma de 10 de Dezembro, e assentei de incluir aqui como uma recordação da época de elaboração deste livro, e como um exercicio de lingua.

Na traducção de documentos de um povo civilisado na lingua de um povo barbaro é necessario fazer as alterações exigidas pela differença de civilisação. Conservar-se fiel ao pensamento é tudo quanto póde fazer o traductor. Ponho de um lado a traducção e do outro o texto, que eu alterei ligeiramente para accommodal-o á indole de uma lingua fallada por um povo barbaro. O leitor confrontará uma cousa com outra.

Portuguez

No anno de 1875, depois que Nosso Senhor Jesus Christo nasceu,

na imperial capella de S. Sebastião do Rio de Janeiro,

reinando o Sr. D. Pedro II e sua esposa a Sra. D. Theresa Christina Maria;

Nhehengatú

Iané Tára Jesus Christo ocẽma riré, 1875 acaiú ramé,

quahá S. Sebastião do Rio de Janeiro imperial Tupãróka mirĩ upé,

Jára D. Pedro 2º Muruxáua rẹtẹ́ ramé, iuíri xẹmirẹcó iára D. Theresa Christina Maria;

estando o bispo em seu lugar;

na presença dos chefes e homens do governo da nossa patria,

e na presença dos homens do governo de outras patrias, e na dos homens principaes que foram convidados;

como o outro baptismo, em artigo de morte, podia não estar regular,

o bispo agora de novo baptisou e pôs os santos oleos em S. A. I. o Sr. D. Pedro de Alcantara Luiz Filippe Maria Gastão Miguel Raphael Gabriel Gonzaga,

o qual nasceu ás 4 horas e 50 minutos da madrugada de 4 de outubro;

filho da princeza Sra D. Isabel Chritina Lepoldina Augusta Michaela Rafaela Gonzaga,

e de seu esposo S. A. R. o Sr. D. Luiz Philippe Maria Fernando Gastão de Orleans, conde d’Eu;

neto, pelo lado materno, do Sr. D. Pedro II imperador do Brazil, e de sua esposa a Sra. D. Theresa Christina Maria;

abaré uaçú cẹndá pé;

tuixauaruçú-itá, iúíri muakáraitá ianẹ́ rẹtãmauára cuápe;

muakáraitá amú tẹtãmauára çuápe; opaĩ auá-ẹtẹ́-itá catú, ocenoĩ uahá, cuápe;

mai amú cẹrucaçáua intí ipọ́ catú, tai̙na omanõ quáu ramé,

auaré-uaçú kui̙re oçarúcaãna, oenũ karíua-iandi̙ S. A. I. iára D. Pedro de Alcantara Luiz Philippe Maria Gastão Miguel Raphael, Gabriel Gonzaga rẹcẹ́,

ocẽma uahá 15 ára outubro-iaci̙ coi̙ma pirãnga ramé upé,

Muruxáua retẹ́ rai̙íra, iára D. Isabel Christina Leopoldina Augusta Michaela Rafaela Gonzaga mẽbi̙ra,

iú ri i mẽna cuí, S. A. R. iára D. Luiz Philippe Maria Fernando Gastão de Orleans, conde d’Eu;

tẹmiárerú, i ci̙ rupí, Iára D. Pedro II çuí, Brazil Muruxáua rẹtẹ́, xẹmirẹcó çuí, iára D. Theresa Christina Maria:

neto, pelo lado paterno, de S. A. R. o Sr. Luiz Carlos Philippe de Orleans, duque de Nemours, e de sua esposa a finada Sra. duqueza Victoria Augusta de Saxe Coburgo Gotha.

Foi padrinho S. M. I. o Sr. D. Pedro II, e madrinha S. M. I. a Sra. D. Theresa Christina Maria.

Para os povos saberem-no em todo tempo, eu, José Bento da Cunha Figueiredo, chefe nesta minha patria,

mandei fazer dous autos, como o outro,

O Imperador e sua esposa puzeram seu nome no fim, aquelle como padrinho e esta como madrinha;

um auto para ser posto na capella imperial; o outro para ser depositado no archivo de nossa patria.

Eu puz o meu nome no fim. D: Pedro II, Theresa Christina, sua esposa. José Bento da Cuha Figueiredo. †Pedro, bispo.

temiárẹrú, túba rupi, S. A. R. — iára Luiz Carlos Philippe de Orleans çuí, duque de Nemours, iúi̙ri xẹmirẹcó amíra — iára duqueza Victoria Augusta de Saxe Coburgo Gotha.

Tub’ angáua S. M. I. iára D. Pedro II, ci̙ angáua S. M. I. iára D. Theresa Christina Maria.

Míra itá oquáu arãma, opaĩ ára upé, ixẹ́ José Bento da Cunha Figueiredo, tuixáua quahá cẹ rẹtāma upé,

xamunhã kári mokóĩ autos, iepé amũ iaué:

Muruxáua rẹtẹ́ iúíri xẹmirecó oenũ cẹ́ra opaucápe, túba-angáua iaué, ci̙ angáua iaué;

oiepé auto ombúri ãrãma imperial Tupãróka mirĩ upé; amũ ombúri arãma ce rẹtâma archivo pupé.

Ixẹ́ xa muapi̙ca ãna cẹ rẹ́ra opauçápe. D. Pedro II. Theresa Christina i xemirẹ́có. José Bento da Cunha Figueiredo. †Pedro, auaré-uaçú.

 

 
Alguns jornaes fizeram reflexões a esta traducção, das quaes passo a tomar em consideração duas, por interessarem ao assumpto deste livro.

Na Nação estranharam que eu não traduzisse litteralmente a expressão — corpo diplomatico. Effectivamente eu não a traduzi litteralmente, assim como não traduzi litteralmente as palavras: conselheiros de estado, deputados, senadores, e servi-me das expressões: homens de governo da nossa patria, e homens de governo de outras patrias; traduzindo em uma lingua viva me não era licito o uso de expressões que nella não são intelligiveis.

O espirituoso folhetinista do Jornal do Commercio, que se assigna com o pseudonimo de Caipyra, perguntou-me se eu, usando do vocabulo portuguez baptismo, julgava que o selvagem me entendesse.

Eu não usei do termo portuguez e sim da expressão tupí cẹrúcaçáua, que indica a ceremonia da imposição do nome ao recemnascido. Certamente que o verbo cẹrúca, pelo qual os jesuitas traduziram a palavra baptisar, e o substantivo cẹrúcaçáua, baptismo, não indicam, entre os verdadeiros selvagens, a ceremonia christă. Tambem os mahometanos, budhistas, os antigos romanos não tinham o casamento christão, e nem por isso a palavra casamento é intraductivel em arabe, chinez, ou latim.

A reflexão recorda-me que em geral nós, os brazileiros da costa, pensamos que a lingua tupí só é fallada por pagãos. Ha engano nisso; temos milhares de compatriotas christãos que a fallam, e que não fallam o portuguez, os quaes concorrem já com muitos milhões para a riqueza publica, pagam todos os impostos, inclusive o imposto de sangue. Na hora em que escrevo isto, tenho como auxiliar do trabalho das lendas, que vai adiante, um soldado do 2° regimento de artilharia, que quasi não falla o portuguez, e me diz que desde seus bisavós a sua familia é christã. Asseverou-me um medico do exercito que, aqui na côrte, morreu este anno de nostalgia um soldado que não fallava o portuguez, e chamava-se Patrocinio, do 2° regimento de artilharia. Em Mato-Grosso, Goyaz, Pará e Amazonas estes exemplos são numerosos. A raça indigena concorre para nossa riqueza, tem derramado o seu sangue em nossa defeza. Como raça civilisada e christã não devemos perder de vista estes factos, para podermos retribuir o serviço desses desherdados com educação, que gradualmente os eleve todos até o ponto do ora et labóra, a que tantos delles hão chegado com tanto proveito nosso.

 

 

Como commentario linguistico, a proposito do vocabulo cẹrúca, ajuntarei o seguinte:

Compõe-se a palavra de duas raizes: tẹ́ra, que significa nome em absoluto, e que, por ser vocabulo começado por t, faz rẹ́ra quando se refere a primeira ou a segunda pessoa, assim: meu nome, cẹ rẹ́ra; e cẹ́ra quando se refere a terceira pessoa, assim: nome delle, cẹ́ra. (Regra exposta na pag. 41.) A raiz uc no Amazonas, oc no tupí da costa, og em guaraní antigo, significa tirar uma cousa que é parte do corpo ou do todo de uma outra; as raizes, pois, significam: tirar o nome delle.

A razão desta singular etymologia prende-se ás idéas religiosas dos antigos tupís, os quaes pensavam que a alma do pai se passava para o filho, e que o pai era quem adquiria tantas vezes uma alma nova quantos filhos tinha, e, como o nome era o característico do indivíduo, o pai o transmittia ao filho e tomava um outro nome. Não era, pois, o filho quem adquiria um nome; elle continuava o de seu pai, assim como era supposto continuar-lhe a existencia; seu pai é que perdia o nome e d’ahi a razão da etymologia da palavra ''cẹ́rúcaçáua, tiragem, perda de nome.

Na recentissima obra do Sr. Bancroft (The native races of the Pacific States) vejo que a ceremonia do baptismo era para muitas tribus do norte da America o mesmo que era para nossos tupís, isto é: a perda do nome do pai, que continuava na pessoa do filho.

 

 

Perguntaram-me algumas pessoas se não havia arbitrio de minha parte em traduzir a palavra imperador pelo vocabulo muruxáua rẹtẹ́.

Não houve arbitrio; os indios civilisados, quando querem exprimir a idéa de chefe, empregam a palavra tuixáua; velhas tradicções no Amazonas relativas aos Incas do Perú, verdadeiros imperadores, referem que elles eram designados pelos tupís e guaranís com a expressão Muruxáua rẹtẹ́ (tupí) Mburubixá (fórma guaraní da mesma palavra).

O padre Antonio Ruiz de Montoya, a mais competente autoridade neste assumpto, diz, a pag. 217 do Tesoro de la lengua guaraní, o seguinte:

«Mburubixá — compuesto de — po continens, y tubixá grande; el que contiene en si grandeza — principe, senhor. Mburubixáb ẹtẹ́, Rey.»