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O Selvagem/Introducção/II

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II

o selvagem como elemento economico

Um dos sabios que mais estuda e ama o Brazil, Mr. Ferdinand Denis, que sempre nos defende na Europa, encarecendo as nossas virtudes e attenuando os defeitos que necessariamente existem em um povo, que ainda não venceu o periodo de elaboração para constituir-se como nação homogenea, escrevia-me de Paris o anno atrazado, as seguintes palavras, a proposito do meu escripto — região e raças selvagens: — «Eu estou convencido de que a grandeza futura de vosso paiz depende do espirito de raça bem comprehendido.»

É assim.

Este grande colosso, que se fórma ainda com o nome de Brazil, é um immenso cadinho onde o sangue europeo se veio fundir com o sangue americano.

A futura população — operaria — do Brazil não será uma, nem outra cousa.

Como na America do norte o anglo-saxonio, fundindo-se com o pelle vermelha, produzio o Yank, representante de uma nova civilisação; assim o latino, fundindo-se com o tupí, produzio essa raça energica que constitue a quasi totalidade da população de S. Paulo e Rio Grande, e a maioria do povo do imperio.

Grande parte de nossos compatriotas ainda não quer acreditar que o problema da população só será satisfactoriamente resolvido quando attendermos aos dous elementos: o europeo e o americano.

A grande França, pela voz eloquente do Sr. de Catrefages, nos está a bradar que, como elemento de trabalho, nenhuma raça nos é tão proveitosa como a do branco aclimado pelo sangue do indigena.

E, ao passo que importamos o branco, que nos é aliás essencial, me parece que devemos attender tambem a um milhão de braços indigenas não menos preciosos, porque é a este, mesmo por causa de sua pouca civilisação, que está reservada a missão de ser o precursor do branco nos climas intertropicaes, desbravando as terras virgens, desbravagem que o branco não supporta.

Não queremos isso, porque nós os brazileiros temos tanto que fazer no presente, que difficilmente podemos olhar para as questões do futuro, ainda as mais importantes.

Para aquelles, porém, que hão estudado o paiz real sem preoccupações, o problema de seu povoamento só tem uma solução complexa.

Povoar o Brazil, não quer dizer sómente importar colonos da Europa.

Povoar o Brazil quer dizer:

1.º Importar colonos da Europa para cultivar as terras já desbravadas nos centros, ou proximas aos centros povoados.

2.º Aproveitar para a população nacional as terras ainda virgens, onde o selvagem é um obstaculo; estas terras representam quasi dous terços do territorio do imperio. Tornar productiva uma população, hoje improductiva, é, pelo menos, tão importante como trazer novos braços.

3.º Utilisar cerca de um milhão de selvagens que possuimos, os quaes são os que melhores serviços podem prestar nessas duas terças partes do nosso territorio, porque as industrias extractivas, unicas possiveis nessas regiões (emquanto não houverem estradas) só tem sido, e só podem ser exploradas pelo selvagem.

Que proveito temos nós tirado dos selvagens? perguntam muitos.

Tiramos nada menos do que metade da população actual do Brazil, não da população que occupa os altos cargos, as funcções publicas, os salões, os theatros, as cidades; mas da população que extrahe da terra milhares de productos que exportamos ou consumimos; da população quasi unica que exerce a industria pastoril; da população sobre quem mais tem pezado até hoje o imposto de sangue, pois é o descendente do indio, o mestiço do indio, do branco e do preto o que quasi exclusivamente ministra a praça de pret, ou o marinheiro.

S. A. Real, presidente dessa commissão, commandando o nosso exercito na guerra do Paraguay, vio nos homens de côr, de que se compunha a quasi totalidade das praças de pret, um transumpto da população operaria do Brazil.

Se mais tarde elle viajar todo o paiz encontrará nelle o mesmo que vio no exercito, e que já tem visto nas provincias de Minas, Rio de Janeiro, S. Paulo e Rio-Grande.

Do prestimo e do valor desses homens como soldados, ninguém melhor está no caso de julgar do que o presidente dessa commissão.

E para recordar um só argumento, seja-me licito ponderar o seguinte:

Quando elle assumio o commando de nossas forças, a guerra ameaçava entrar nesse perigoso periodo em que se acha actualmente a lucta civil da Hespanha.

Si o exercito fosse composto de homens habituados a vida europea, não seria possivel alcançar Pirábebuy senão um mez depois; os recursos que alli foram esmagados, graças à rapidez das marchas, teriam se acautellado com o dictador nas margens do Aquidaban. Si S. A, prevalescendo-se da qualidade de seo exercito, perfeitamente proprio para a prompta mobilisação, justamente por ser composto desses mestiços descendentes de troncos a longos seculos aclimados ao solo e ás privações de uma vida semi-selvagem, não houvesse podido alcançar o inimigo naquelle ponto; si não tivesse podido fazer avançar suas testas de columnas de modò a esmagar a guerra nas margens remotas do Aquidaban, quem nos diz, si a guerra, conseguindo converter-se em guerrilha, no centro daquella região entre o Paraná e o Paraguay, não duraria até hoje?

Assim como os homens aclimados ao solo, e habituados á vida semi-barbara, foram condições essenciaes á victoria, assim tambem esses homens, e n’essas condições, são elementos indispensaveis de successo na luta mais pacifica, porém não menos tenaz, da elaboração da riqueza de um povo.

Seja-me licito proval-o, não á essa commissão que conhece o paiz, mas á aquelles de nossos patricios que estudam mais a Europa do que a terra a que tem o dever de consagrar sua actividade e energia para engrandecel-a, quando é certo que é só a consciencia d’esse dever que dá a qualidade de brazileiro.

O primeiro facto que prova a utilidade das raças crioulas nas circumstancias do nosso paiz, ainda barbaro em cerca de duas terças partes de seu solo, é o seguinte:

O valle do Amazonas é por si só um territorio maior do que o dos grandes estados europeus.

A sua população, que é pequena, exporta cerca de 20 mil contos.

E esses vinte mil contos resultam da borracha, salsa, castanha, cacão, copahyba, pelles de animaes selvagens e em geral de productos colhidos da natureza pelos tapuios do Brazil e das republicas vizinhas.

Como essa colheita depende de estar exposto ás mattas, sem casas, sem commodo, nem os brancos se entregam a essas industrias, e nem poderiam fazel-o sem succumbir.

A consequencia é:

Se o valle do Amazonas não possuisse o tapuio, seria actualmente uma das mais pobres regiões do paiz, quando, com elle, e justamente porque elle é semi-barbaro e se póde entregar a essas industrias, a região è uma das mais productivas que possuimos.

Tomemos um outro facto:

O Brazil é um dos paizes que exporta maior numero de pelles de boi para a Europa.

É pois um dos paizes mais productores de gado vaccum.

Liebig demonstrou o quanto a civilisação e os aperfeiçoamentos da raça aryanna dependeram d’esse producto.

Se não fora a raça aborigene ou não seriamos productores d’esse artigo, ou sel-o-hiamos em escala diminuta.

N’esta industria, como na da extracção dos productos naturaes, o homem proprio para sua exploração é aquelle que, pelo atrazo de sua civilisação, ainda possue os habitos quasi nomades que ella exige.

Nas provincias creadoras o principal instrumento d’este trabalho ou é o indigena civilisado, ou é o seu descendente.

Esse facto vai desenvolvido adiante, e, o que fica dito, è quanto basta para provar esta verdade:

Assim como os habitos de uma vida ainda isempta dos commodos da civilisação foram qualidades muito uteis no nosso exercito, sem as quaes não teria sido possivel movel-o, se não com uma lentidão que teria feito talvez escapar a victoria, assim tambem essa mesma falta de civilisação, é condição indispensavel de successo na elaboração da riqueza nacional, que, si exige uma lucta menos sanguinolenta do que a da guerra, com tudo n’ella não se alcança a victoria se não quando se a solicita pelos meios adequados.

Não é só uma questão de utilidade; é tambem uma questão de segurança no presente e no futuro. Consintam-me que eu insista sobre estes pontos, reprodusindo factos de propria observação. Tendo eu ocupado durante cerca de seis annos as presidencias das provincias em que existe maior numero de selvagens, Goyaz, Pará e Matto Grosso, n’ellas minha attenção foi chamada sobre a seguinte questão:

Sendo a superficie do Brazil de 291 mil leguas quadradas, só o territorio das tres supra mencionadas provincias e da do Amazonas representão mais de metade, quasi dous terços do territorio do imperio, isto é: 182:400 leguas quadradas, onde as populações christãs e a civilisação não podem pacificamente penetrar por causa do obstaculo que lhes oppõe cerca de um milhão de selvagens aguerridos e tenazes, que não entendem a nossa lingua, e nós não temos meios de ensinal-a por que ignoramos a d’elles.

Na presidencia de Goyaz e Matto Grosso eu vi experimentalmente que o principal instrumento de trabalho. na industria do interior — a creação do gado — é o indio antigamente catechisado pelo jesuita, ou o mestiço seo descendente. Mais tarde, viajando pela republica do Paraguay, Corrientes, Santa fé e outras provincias argentinas, eu vi que allí, como no interior do Brazil, e provincias do Rio Grande, Paraná, S. Paulo — o principal instrumento da riquesa publica, o vaqueiro por excellencia, não era nem o branco e nem o preto, e sim o gaucho, o caipira, o caburé, o caboclo, o mameluco o tapuio, nomes estes que todos indição a mesma cousa, a saber: — o antigo indio catechisado pelo jesuita, ou pelos corpos de linguas e interpretes tão sabiamente organisados pelos antigos portugueses e hespanhoes.

Em todo o valle do Amazonas e seos grandes afluentes, quer no territorio do Brazil, quer nos da Bolivia, Perú, Nova Granada, Venesuela, etc, o instrumento principal de riqueza não é nem a raça branca, nem a raça preta. A raça branca representa os misteres intellectuaes; mas o trabalho, a elaboração da riquesa que alli depende em tudo de industrias extractivas, è exclusivamente filha do antigo indio amansado naquelle valle pelos corpos de interpretes auxiliares indispensaveis da civilisação, e do missionario.

Não foi só isso tendo sido forçado a viajar muitas veses do Rio de Janeiro a Matto Grosso, isto é a atravessar todo o Brazil de leste a oéste; e a viajar de Montividéo ao Pará pelo interior, isto é, a atravessar todo Brazil de sul a norte, eu vi que todas as nossas communicações pelo interior estavão a mercê dos selvagens, por que nós, população christã, possuimos apenas a circumferencia desta enorme área chamada Brazil: o centro está em poder do selvagem, que possue. tambem as regiões mais ferteis, assim como os cursos dos grandes rios navegaveis, cada uma de cujas bacias cobre um territorio tão grande como o das maiores monarchias europeas, como Javary, Juruȧ, Purus, Madeira, Tapajós, Xingú, Araguaya, Tocantins, Japurȧ, Rio Negro, Rio Branco, só na bacia do Amazonas, sem fallar nos da do Paraná.

O facto da existencia desse milhão de braços, ocupando e dominando a maior parte do territorio do Brazil, podendo irromper para qualquer lado contra as populações christãs, é um embaraço para os progressos do povoamento do interior, e é um perigo que crescerá na proporção em que elles forem ficando mais apertados: a questão pois não versa só sobre a utilidade que podemos tirar do selvagem; versa tambem sobre os perigos e despesas que faremos, se não cuidarmos agora de amansal-os.

Não estará longe o dia em que seremos forçados, como é a Republica Argentina, o Chile, os Estados Unidos a mantermos verdadeiros corpos de exercito para conter nossos selvagens, si abandonarmos essa questão ao seo natural desenvolvimento.

Em Janeiro d'este anno ainda os jornaes deram noticia dos estragos que elles fizeram na Republica Argentina, estragos que montaram, além da perda de vidas, em mais de mil e quatrocentos contos de nossa moeda!

Como estes assumptos em geral despertam muito pouca attenção da nossa sociedade, por que, ocupados como nos achamos com muitas questões presentes, falta-nos tempo para nos ocuparmos do futuro, eu peço a attenção da commissão para esse facto, e aqui reproduso a parte da correspondencia de Buenos Ayres, publicada no Globo de 10 de Janeiro preterito:

«São ainda confusas, mas, em todo caso, assustadoras as noticias da invasão dos indios, na provincia de Buenos-Ayres.

Por desorganisação das forças da fronteira ou por insufficiencia d'ellas, o certo é que os indios ainda não foram detidos na sua marcha devastadora, e, além de varios prisioneiros ja feitos por elles, avalia-se que já internaram no deserto mais de 60,000 cabeças de gado cavallar; não incluindo o gado bovino, cujo numero é ainda mais consideravel.»

São por tanto cento e vinte mil animaes que, ao pre ço de 12$000 cada um, representam pelo menos um prejuizo de mil quatrocentos e quarenta contos só em um anno, afóra as vidas!

Estes prejuizos, as despezas que serão necessarias com movimento de forças, as perturbações sociaes que provirão de conflictos sanguinolentos no interior, mostram que quaesquer despezas, que fizermos agora para assimilar os selvagens na nossa sociedade, serão incomparavelmente menores do que as que teremos de fazer, si, por não prestar attenção ao assumpto, formos forçados a exterminal-os.

E nem se diga que não estamos expostos aos mesmos perigos que os argentinos, chilenos e norte-americanos.

Si o perigo ainda se não manifestou entre nós, é porque aqui no Brazil temos sido mais previdentes, e porque a população christã está por assim dizer confinada na costa. Aquella que é limitrophe dos selvagens tem com elles constantes conflictos, e não ha quasi um só mez em que os jornaes nos não dêem noticias de taes conflictos.

Não só estaremos (desde que a população se alargue) expostos aos mesmos perigos que os argentinos, como estaremos expostos a maiores, e para assim julgar basta ter presente ao espirito os seguintes factos:

A população selvagem da Republica Argentina é avaliada em cem mil indios; a nossa é avaliada em um milhão, ou dez vezes mais. O territorio da Republica Argentina é quasi todo accessivel por meio da grande linha navegavel do Paraná; alli o movimento de forças é mais facil ao christão do que ao gentio, dispondo aquelle de vapores no rio, e em terra de immensa cavalhada. Nosso interior, muito mais remoto da parte que possue população densa, não é accessivel ao vapor; possuimos menos cavalhada, e por tanto o movimento de forças aqui seria mais facil ao gentio do que a nós.

Muitos de nós brazileiros tem a respeito do interior não pequena cópia de idéas falsas; a idéa que muitos formam do interior, é que possuimos um paiz de florestas, quando, a excepção das da costa ou das que margeam os rios, todo o territorio é, quasi sem excepção, de eternas campinas. Uma outra idéa falsa que muitos formam do interior é que a população selvagem do Brazil compõe-se de pequenas tribus; assim é pelo que respeita as que estão logo em seguida à população christa. Mas no interior, isto é, além da linha occupada pelos selvagens, que estão em contacto comnosco, existem poderosas nacionalidades que não despertam a nossa attenção porque é ainda immenso o sertão do interior que não é de fórma alguma viajado ou conhecido. Só a bacia do Xingú é maior do que a França. Não ha noticia de um só christão que a tenha tocado até hoje. Não conhecemos nosso interior, ninguem o conhece senão os mesmos selvagens; é disso que vem a crença de que as tribus são pelo commum de 100 a 200 individuos. Para citar só dous factos eu direi que a nação que com os nomes de Gradahús, Gorotirés, Cahiapós, Carahós, (fallam todos a mesma lingua) habita entre o Xingú e o Araguaya não deve ter menos de oito a doze mil individuos. Na bacia immediata (a do Tapajós) conhecem-se tambem duas grandes nações: a dos Mundurucús e a dos Maués; a respeito destas publicou o Jornal do Commercio em Novembro do anno passado a seguinte estatistica:

« Indios do Tapajós — Lê-se no Diario do Grão-Para:

Existem no rio Tapajós, entre as cachoeiras e esparsos pelas campinas, dentro dos limites desta provincia com a de Matto-Grosso, diversas raças de gentios, d’entre as quaes duas nações — a Mundurucú e a Maués — , que se assignalam pelo contacto em que se acham com a população civilisada e em mutuas relações, e por conseguinte bem conhecidos. Estas duas nações se dividem, a Mundurucú em 21 tribus, formando cada tribu a sua aldêa ou taba, e a Maués em 51 tribus, além de 5 que estão no districto de Villa Bella, da provincia do Amazonas.

«As 21 aldêas ou tabas dos Mundurucus contêm 13, 910 almas, e as 51 dos Mauės 775.»

Portanto, nem pelo numero nem pela posição, os perigos á que as populações christãs ficarão expostas desde que os selvagens se virem mais apertados, não são inferiores, pelo contrario são maiores do que os á que actualmente está exposta a Republica Argentina; e si alli ainda este anno os selvagens, que são dez vezes menos numerosos do que os nossos, poderam destruir só em uma incursão valores equivalentes a mil quatrocentos e muitos contos, — que esforços não devemos nós empregar para fugir de identica situação, com selvagens mais numerosos e com um paiz de muito mais difficil communicação, sobretudo quando esse selvagem nos póde ser tão util?