O Selvagem/Introducção/III
III
A experiencia de todos os povos, e a nossa propria, ensinam que no momento em que se consegue que uma nacionalidade barbara entenda a lingua da nacionalidade christã que lhe está em contacto, aquella se assimila á esta.
A lei da perfectibilidade humana é tão inflexivel como a lei physica da gravitação dos corpos.
Desde que o selvagem possue, com a intelligencia da lingua, a possibilidade de comprehender o que é civilisação, elle a absorve tão necessariamente como uma esponja absorve o liquido que se lhe põe em contacto. Esses homens ferozes, e temiveis em quanto não entendem a nossa lingua, são de uma docilidade quasi infantil, desde que entendem o que lhes fallamos.
Não são só elles.
Quem estudar o que os Inglezes fiserão na India — os Russos na Azia e America, os portuguezes e hespanhoes na Africa, Azia e America, verá a mesma cousa. Por toda parte onde quer que uma raça civilisada se pôz em contacto com uma raça barbara vio-se forçada: ou a exterminal-a, ou a aprender a sua lingua para com ella transmittir suas idéas.
É esse o alcance d’aquellas palavras de Christo quando, dando aos apostolos a missão de levar a religião de paz e caridade atravez das trevas do mundo Esse corpo, desde que tivesse a organisação e a disciplina militar, seria um auxiliar prestimoso para nossas colonias militares, para nossas populações das fronteiras, para as expedições que quizessemos mandar ao interior, e para proteger nossas communicações interiores, as quaes, repito, para as duas grandes bacias do Prata e do Amazonas que estão a mercê do selvagem, e que nos seriam preciosas, desde que nos fosse trancado o caminho do oceano, ou a fóz do Rio da Prata ou do Amazonas; este ultimo facto póde dar-se não só diante de uma guerra externa como diante de uma revolução.
Antigamente, quando se queria fundir uma população em outra, o meio que logo occorria era a força.
A Inglaterra na Asia, a França na Africa, a Russia na Asia e na America, nos demonstraram que os corpos de interpretes são, não só mais economicos, como muito mais efficazes.
Felizmente nós os brazileiros nos temos aproveitado e havemos de nos aproveitar da lição dos povos mais cultos do mundo.
Digo que nos havemos de aproveitar porque, felizmente, como já o referi no prologo, o governo se occupa seriamente da questão; oxalá não desanime.
O estudo das grandes linguas indigenas do Brazil é assumpto de consideravel interesse, não só debaixo do ponto de vista pratico, como debaixo do ponto de vista scientifico.
Quanto a seu interesse scientifico, eu transcreverei aqui as palavras que vem na introducção da obra — Alphabeto phonetico — de um dos mais notaveis linguistas dos tempos modernos, o Sr. R. L. Lepsius, de Berlim; diz elle:
«Um dos maiores anhelos da sciencia moderna, e ao qual só ultimamente se achou em circumstancias de attender, é o conhecimento acurado de todas as linguas da terra. O conhecimento das linguas é o mais seguro guia para a comprehensão intima das nações, não só porque a lingua é o meio de toda communicação intellectual, como tambem porque é a mais copiosa, rica e fiel expressão do deposito intellectual de uma nacionalidade.»
Nenhuma lingua primitiva do mundo, nem mesmo o sanskrito, occupou tão grande extensão geographica como o tupí e seus dialectos; com effeito, desde o Amapá até o rio da Prata pela costa oriental da America meridional, em uma extensão de mais de mil leguas, rumo de norte a sul; desde o cabo de S. Roque até a parte mais occidental de nossa fronteira com o Perú no Javary, em uma extensão de mais de oitocentas leguas, estão, nos nomes dos lugares, das plantas, dos riòs e das tribus indigenas, que ainda erram por muitas dessas regiões, os imperecedores vestigios dessa lingua.
Confrontando-se as regiões occupadas pelas grandes linguas antigas, antes que ellas fossem linguas sabias e litterarias, nenhuma encontramos no velho mundo, Asia, Africa, ou Europa, que tivesse occupado uma região igual á da área occupada pela lingua tupí. De modo que ella póde ser classificada, em relação á região geographica em que dominou, como uma das maiores linguas da terra, se não a maior.
Pelo lado da perfeição ella é admiravel; suas fórmas grammaticaes, embora em mais de um ponto embrionarias, são comtudo tão engenhosas que, na opinião de quantos a estudaram, póde ser comparada ás mais celebres. Esta proposição parecerá estranha a muita gente; mas o curso que começo agora a publicar, e que, com o favor de Deos, espero levar ao cabo de um modo completo, o deixará demonstrado. Muitas questões hoje obscuras em philologia e linguistica encontrarão no estudo desta, que constitue uma nova familia, a sua decifração.
Estas duas palavras tupi e guarani não significavam entre os selvagens que dellas usavam senão tribus ou familias que assim se denominavam.
Estas duas expressões: lingua tupí, ou lingua guarani, seriam como se nós dissessemos: a lingua dos mineiros, ou a lingua dos paulistas.
Se no Paraguay qualquer disser: guarani nhehen, para traduzir a expressão— lingua guarani—ninguem o entenderá, porque para elles o nome da lingua é: ava nhehen, litteral: lingua de gente.
Desde que o homem falle duas linguas, comprehende que aquelles que não fallam a sua se possam exprimir tão bem quanto elle o faz na propria.
Mas entre povos primitivos, que não tinham a arte de escrever, e para quem as linguas estrangeiras eram tão inintelligiveis como o canto dos passaros ou os gritos dos animaes, muito natural era que elles só considerassem como lingua de gente a sua propria.
A expressão avá nhehen, para exprimir a lingua fallada por elles, mostra-nos que a idéa que tinham das outras é que ellas não eram lingua de gente.
Observa o Sr. Max Müller, com muita verdade, que nós os homens do seculo XIX difficilmente podemos comprehender toda influencia que exerceu sobre sociedades barbaras este admiravel instrumento chamado lingua.
Para o selvagem, aquelle que falla a sua lingua, é um seu parente, portanto seu amigo, e é natural.
Elle não tem idéa alguma da arte de escrever; não comprehende nenhum methodo de aprender uma lingua senão aquelle pelo qual adquirio a propria, isto é: pelo ensino materno; por isso, quando um branco falla a sua lingua, elle julga que esse branco é seu parente, e que entre a gente da sua tribu e na infancia é que tal branco aprendeu a fallar.
Em uma das vezes em que os gradahús appareceram á margem do Araguaya, eu acompanhei-os sosinho em uma longa excursão, levado pela curiosidade de observar grandes aldeamentos inteiramente selvagens; esses gradahús achavam-se em numero superior a mil, eram havidos por ferozes, e meus companheiros julgavam temeridade visital-os. Eu, porém, o fiz sem coragem alguma, porque, fallando um pouco da lingua delles, tinha plena e absoluta certeza não só de que minha vida não corria o menor risco, como que elles me procurariam obsequiar por todos os modos, e assim succedeu.
Assim como para o selvagem, aquelle que falla a sua lingua elle reputa de seu sangue, e, como tal, seu amigo, assim tambem julga que é inimigo aquelle que a não falla.
O citado Sr. Max Müller nota: que entre todos os povos europeus a palavra que traduz a idéa de inimigo significa primitivamente: aquelle que não falla a nossa lingua; que muito é que o mesmo se désse entre os nossos selvagens?
Foi partindo deste importante facto que os jesuitas, em menos de cincoenta annos, tinham amansado quasi todos os selvagens da costa do Brazil.
Seu segredo unico foi assentar a sua catechese na base do interprete, base esquecida pelos catechistas modernos, que por isso tão pouco hão conseguido.
Assim, pois, diziamos que a palavra guarani não é o nome de uma lingua, e que a lingua que nós designamos por essa expressão, elles designam com a de—lingua de gente ou ava nhehen.
O mesmo diremos a proposito de lingua tupí.
Tupi era o nome de uma tribu que, ao tempo da descoberta, dominava grande parte da costa.
Se dissermos a qualquer indio civilisado do Amazonas: falle em lingua tupi—elle não entende o que lhe queremos dizer; para que elle entenda que queremos que elle se expresse na sua propria lingua, mister é dizer-lhe: Renhehen nhehengatú rupí, litt.: falle lingua boa pela, isto é: falle pela lingua boa.