Saltar para o conteúdo

O Selvagem/Lendas/I

Wikisource, a biblioteca livre

momẹucáua cọọitá rẹcẹ́uara
mythologia zoologica
 

Dr. Couto de Magalhães oçãnhạ́na quahá momẹuçáua itá, Brazil mọrọri̙ma opaĩ rupí, omuapi̙ca ãna papẹ́ra upé maiaué ahé océnõ Tapi̙aitá omomẹú.

O Dr. Couto de Magalhães colligio estas lendas pelos sertões do Brazil, e reduzio-as a escripto na mesma fórma pela qual ouvio os tapuios narral-as.

 

I

MAI PITUNA OIUQUAU ÃNA
Como a noite appareceu
 
Esta lenda é provavelmente um fragmento do Genesis dos antigos selvagens sul-americanos. E’ talvez o éco degradado e corrompido das crenças que elles tinham, do como se formou esta ordem de cousas no meio da qual nós vivemos, e, despida das fórmas grosseiras com que provavelmente a vestiram as avós e as amas de leite, ella mostra que por toda a parte o homem se propôz resolver este problema — de onde é que nôs viemos? Aqui, como nos Vedas, como no Genesis, a questão é no fundo resolvida pela mesma fórma, isto é: no principio todos eram felizes; uma desobediencia n’um episodio de amor, uma fruta prohibida, trouxe a degradação. A lenda é em resumo a seguinte: no principio não havia distincção entre animaes, o homem e as plantas; tudo fallava. Tambem não havia trevas. Tendo a filha da Cobra Grande se casado, não quiz cohabitar com o seu marido emquanto não houvesse noite sobre o mundo, assim como havia no fundo das aguas. O marido mandou buscar a noite, que lhe foi remettida encerrada dentro de um caroço de tucumã, bem cerrado, com prohibição expressa aos conductores de que o aabrissem, pena de perderem-se a si e a seus descendentes, e a todas as cousas. A principio resistem á tentação, mas depois, a curiosidade de saber o que havia dentro da fruta os fez violar a prohibição, e assim se perderam. Substituindo a fruta de tucumã pela arvore prohibida, a curiosidade de saber pela tentação do espirito maligno, parece-me haver no fundo do episodio tanta semelhança com o pensamento asiatico que vacillo e pergunto se não será um éco degradado e transformado desse pensamento?
 

 
Iupirungáua
O principio
ramé
durante
intimahã
não havia
pitúna;
noite;
ára
dia
anhũ
somente
opaĩ
todo
ára
tempo
opé.
em.
Pitúna
A noite
okẹ́ri
adormecida
oikọ́
está

da agua
ri̙pi̙pe.
no fundo.
Intimahã
Não havia
cọọ́tá;
animaes;
opaĩ
todas
mahã
as cousas
onhehẽ.
fallavam.
Boia-Uaçú
Da Cobra Grande
menbi̙ra,
a filha,
ipahá,
contam,
oiumendári
casara-se
iepé
um
kurumĩ-uaçú
joven
irúmo.
com.
Quahá
Este
kurumĩ-uaçú
joven
orekọ́
tinha
muçapíra
tres
miaçúa
vassallos
catú rẹtẹ́.
fieis.
Oiepé
Um
ára
dia
upé
em
ocenoĩ
chamou
muçapi̙ra
os tres
miaçúa
vassallos
onhehẽ aitá cupé:
disse-lhes:
— Pecõĩ
— Ide
peuatá;
passear;
cẹrẹmirẹcó
minha mulher
intí
não
okẹ́ri
dormir
putári
quer
cẹ
eu
irúmo.
com.
Miaçúa
Os vassallos
oçọ-ãna.
foram-se.
Aramé
Então
ahé
elle
ocẹnõĩ
chamou
xẹmirẹcó
sua mulher
okéri
dormir
arãma
para
ahé
elle
irúmo.
com.
Xẹmirẹcó
Sua mulher
oçuaxára:
respondeu:
— Intí raĩ
— Ainda não è
pitúna.
noite.
— Intimahã
Não ha
pitúna;
noite;
ára
dia ha
ãnhũ.
somente.
— Cẹ
Meu
rúba
pai
orekọ́
tem
pitúna.
noite.
Rẹkẹ́ri
Dormir
putári
queres
ramé
se
cẹ
eu
irúmo
com
remundú
tu mandes
piạ́mo
buscar
ahé,
ella,
paraná
rio
rupí.
pelo.
Ahé
Elle
ocenõĩ
chamou
muçapi̙ra
os tres
miaçúa;
vassallos;
xẹmirẹcó
sua mulher
omundú aitá
mandou-os
i
de seu
rúba
pai
ọ́ca
casa
píri,
á
oçọ́
irem
opiámo
buscar
arãma
para
iepé
um
tucumã[1]
de tucumã
rainha.
caroço.
Aitá
Elles
oci̙ka
chegaram
ramé
quando
Boia-Uaçú
da Cobra Grande
ọ́ca
casa
upé,
em,
quahá
esta
omehẽ
deu
aitá çupé
lhes
oiepé
um
tucumã
de tucumã
rainha,
caroço,
oiucikináu
fechado
rẹtẹ́,
perfeitamente,
onhehe:
e disse:
— Kuçukúi ãna;
— Aqui está;
rẹraçọ́;
levai;
tenhẽ,
eia
curi pe
não o
pirári!
abrais!
Pepirári
Abrirdes
ramé
se o,
pecanhima curí.
vos perdereis.
Miaçúa
Os vassallos
oçọ́ ãna,
foram-se,
ocenõ
ouviram
teapú
barulho
tucumã
de tucumã
raínha
do caroço
pupé:
dentro:
ten, ten, ten; ten, ten, ten.
ten, ten, ten; ten, ten, ten.
Tucúra itá
Dos grilos era,
reapú,
o barulho
iúí itá
e dos sapinhos
irúmo,
com elles,
onhengári
cantam
uahá
os quaes
pitána
noite
ramé.
durante.
Miaçúa
Vassallos
oikọ́
estavam
ramé
quando
ãna
apecatú
longe
oiepé
um
çuíuára
delles
onhehẽ
disse
i irumoára itá
seus companheiros
çupé:
aos:
— Mãháta
— O que é
quahá
este
teapú?
barulho?
Iaçọ́
Vamos
iamahã?
vêr?
Iacumãi̙ua
O piloto
onhehẽ:
disse:
— Intimahã;
— Não;
curumũ tahá
do contrario
iacanhi̙ma curí.
nos perderemos.
Peapucúi,
Remai,
iaçọ́
vamos
ãna.
embora.
Aitá
Elles
oçọ́ ãna.
se foram.
Aitá
Elles
ocenõ
ouvindo
oikọ́
estavam
teapú;
o barulho;
intí
não
oquáu
sabiam
mahã
o que era
nhahã
aquelle
teapú
barulho
uahá.
que.
Aitá
Elles
oikọ́
estavam
apecatú
longe
rẹtẹ́
muitissimo
ãna
ramé
quando
aitá
elles
oiúmuatíri
ajuntaram-se
i̙gára
da canôa
pitẹ́ra
meio

em
opirári
abrir
arãma
para
tucumã
do tucumã
raínha,
o caroço,
omahã
vêr
arãma
para
mahã
o que
oikọ́
estava
i
delle
pupé.
dentro.
Oiepé
Um
omũdi̙ca
acendeu
tatá;
fogo;
aitá
elles
omuiuti̙cú
derreteram
iraitĩ
o breu
oci̙kináu
fechando
oikọ́
estava
uahá
que
tucumā
de tucumã
raínha
do caroço
okẹ́na.
a porta.
Aitá
Elles
opirári
abriram
ramé,
quando,
curutẽuára
repentinamente
pitúna
noite
uaçú
densa
ãna!
já!
Aramé
Então
iacumãi̙ua
o piloto
onhehẽ:
disse:
— Iacanhi̙mo!...
— Nos perdemos!...
Cunhã-mucũ,
A moça,
çọ́ca
sua casa
upé,
em,
oquáu
sabe
ãna
ianẹ́
que nós
iapirári
abrimos
quahá
este
tucumã
de tucumã
raínha.
caroço.
Aitá
Elles
oçọ́ ãna.
seguiram viagem
Cunhã-mucú,
A moça,
çóca
sua casa
upé,
em,
onhehẽ
dise
i
seu
mẹ́na
marido
çupé:
a:
— Aitá
— Elles
opirári
soltaram
pitúna.
a noite.
Cuhi̙re
Agora
iaçọ́
vamos
iáçarú
esperar
coẽma.
a manhã.
Aramé
Então
opaĩ
todas
mahã,
as cousas
oçạ́in
espalhadas
oikọ́
estavam
uahá
que
cahá
bosque
rupí,
pelo
ocẹrẹ́o
metamorphosearam-se
çọọ́
animaes
arãma,
em,
ui̙rá
passaros
arãma.
em.
Opãĩ
Todos
mahã
as cousas,
oçạ́in
espalhadas
oikọ́
estavam
paraná
rio
rupí,
pelo,
oierẹ́o
metamorphosearam-se
ipẹ́ca
patos
arãma,
em,
pirá
peixes
arãma;
em;
uruçakạ́nga
o paneiro
oierẹ́o
virou-se
iáuaraẹtẹ́
onça
arãma.
em.
Pirakaçára
O pescador
oierẹ́o,
virou-se,
i
sua
igára
canôa
irúmo,
com,
ipẹ́ca
pato
arãma;
em;
i
sua
akãnga
cabeca
ipẹ́ca-akãnga
de pato cabeça
arãma;
em;
i
seu
apucuitáua
remo
oiẹ́rẹ́o
virou
ipeca
de pato
rẹtimã
pernas
arãma;
em;
i̙gára
a canôa
ipẹ́ca
pato
cẹtẹ́
corpo
arãma.
em.
Boia-Uaçú
de Cobra Grande
menbi̙ra
a filha
omahã
vio
ramé
quando
Iaci̙tatá-uaçú,
a estrella Venus,
onhehẽ
disse
i
seu
ména
marido
çupé:
à:
— Coẽma
— Manhã
oúri
vindo
oikọ́;
está;
xa
eu
çọ́
vou
xa muĩn
dividir
ára
dia
pitúna
noite
çuí.
da.
Aramé
Então
ahé
ella
omamãna
enrolou
inimũ,
fio
onhehẽ:
e disse:
— Indẹ
— Tu
cujubí[2]
cujubim
curí,
seras,
onhehengári
cantar
arãma
para
coẽma
manhã
oúri
vier
ramé curí
quando.
Quaí
assim
omunhã
fez
cujubim,
o cujubim,
omutinga
branquejou
i
delle
akã́nga
a cabeça
tauátínga
tabatinga
irúmo,
com,
omupiránga
avermelhou
cẹtimã
suas pernas
urucú
urucu
irúmo,
com,
onhehẽ
disse
ixupé:
elle a:
— Rẹnheengári curí,
— Cantarás
opaĩ
para
ára
todo
opé,
sempre,
coẽma
manhã
oúri
vier
ramé.
quando.
Ariré
Depois
ahé
ella
omamãna
enrolou
inimũ,
fio,
onhehẽ:
disse:
— Indẹ́
— Tu
inanbú
inanbú
curi.[3]
serás.
Opi̙ci̙ca
Tomou
tanimúca
cinza
ombúri
pôz
cẹcẹ́,
sobre elle,
onhehẽ
disse
ixupé:
a ele:
— Inẹ
— Tu
inambú
inambú
curí,
serás,
onhehẽngári
cantar
arãma
para
caarúca
tarde
ramé
em,
pitúna
de noite
ramé
em,
pi̙çaié
meia noite
ramé
em,
pitúna
noite
pucú
alta
ramé
em,
coẽma piranga
madrugada
ramé.
em.[4]
Aá çuí
De então para cà
uiráitá
os passaros
onhehẽngári
cantaram
ára
tempos
catú
proprios
upé,
em,
coẽma
manhã
oúri
vem
ramé,
quando,
omurọ́rí
alegrar
arãma
para
ára.
o dia.
Muçapi̙ra
Tres
miaçúa
vassallos
oci̙ka
chegaram
ramé
quando
curumi-uaçú
o moço
onhehẽ
disse
aitá
eles
çupé:
a:
— Penhẽ
— Vós
intí
não
peçupí uãna!
fostes fieis!
Penhẽ
Vós
pepirári
soltastes
pitúna!
a noite!
Penhẽ
Vós
pemunhã
fizestes
uãna
opãĩ
todas
mahã
as cousas
ocãi̙ma;
perderem-se;
aarẹcé
por isso
peiẹ́reo
virareis
macacaí
macaquinhos
arãma
em
opaĩ
para
ára opé;
todo sempre;
reuatá
andareis
mi̙rá
das arvores
rakã́nga
galhos
rupí
sobre
eatíre.
atrepados.

Traducção portugueza da lenda antecedente.[5]

 

No principio não havia noite — dia sómente havia em todo tempo. A noite estava adormecida no fundo das aguas. Não havia animaes; todas as cousas fallavam.

A filha da Cobra Grande, contam, casara-se com um moço.

Este moço tinha tres famulos fieis. Um dia elle chamou os tres famulos e lhes disse: — ide passear por que minha mulher não quer dormir comigo.

Os famulos foram-se, e então elle chamou sua mulher para dormir com elle. A filha da Cobra Grande respondeu-lhe:

— Ainda não é noite.

O moço disse-lhe: — Não ha noite; somente ha dia.

A moça fallou: — Meu pai tem noite. Se queres dormir comigo manda buscal-a lá, pelo grande rio.

O moço chamou os tres famulos; a moça mandou-os a casa de seu pai para trazerem um caroço de tucumã.

Os famulos foram, chegaram em casa da Cobra Grande, esta lhes entregou um caroço de tucumã muito bem fechado, e disse-lhes: — Aqui está; levai-o.

Eia! não o abraes, senão todas as cousas se perderão.

Os famulos foram-se, e estavam ouvindo barulho dentro do coco de tucuman, assim: tem, ten, ten...(texto ilegível)...[6] era o barulho dos grillos e dos sapinhos que cantam de noite.

Quando já estavam longe, um dos famulos disse a seus companheiros: — Vamos ver que barulho será este?

O piloto disse: — Não do contrario nos perderemos. Vamos embora, eia, rema!

Elles foram-se e continuaram a ouvir aquelle barulho dentro do coco de tucuma, e não sabiam que barulho era.

Quando já estavam muito longe, ajuntaram-se no meio da canôa, acenderam fogo, derreteram o breu que fechava o coco e o abriram. De repente tudo escureceu.

O piloto então disse: — Nós estamos perdidos; e a moça, em sua casa, já sabe que nós abrimos o coco de, tucuman! Elles seguiram viagem.

A moça, em sua casa, disse então a seu marido: — Elles soltaram a noite; vamos esperar a manhã.

Então todas as cousas que estavam espalhadas pelo bosque se transformaram em animaes e em passaros.

As cousas que estavam espalhadas pelo rio se transformaram em patos, e em peixes. Do paneiro gerou-se a onça; o pescador e sua canôa se transformarão em pato; de sua cabeça nascerão a cabeça e bico do pato; da canôa o corpo do pato; dos remos as pernas do pato.

A filha da Cobra Grande, quando vio a estrella d’alva, disse a seu marido:

— A madrugada vem rompendo. Vou dividir o dia da noite.

Então ella enrolou um fio, e disse-lhe: — Tú serás cujubin.» Assim ella fez o cujubim; pintou a cabeça do cujubin de branco, com tabatinga; pintou-lhe as pernas de vermelho com urucú, e então disse-lhe: — Cantarás para todo sempre quando a manhã vier raiando.

Ella enrolou o fio, sacudio cinza em riba delle, e disse: tú seras inambú, para cantar nos diversos tempos da noite, e de madrugada.

De então para cá todos os passaros cantaram em seus tempos, e de madrugada para alegrar o principio do dia.

Quando os tres famulos chegaram o moço disse-lhes: — Não fostes fiéis — abriram o caroço de tucumã, soltaram a noite e todas as cousas se perderam, e vos tambem que vos metamorphoseastes em macacos, andareis para todo sempre pelos galhos dos páos.

(A bocca preta, e a risca amarella que elles têm no braço dizem que é ainda o signal do breu que fechava o caroço de tucumã que escorreu sobre elles quando o derreteram.)


  1. O tucumã é uma linda palmeira espinhosa que cresce nos valles do Amazonas e Prata. Seu côco, de um vermelho côr de laranja brilhantissimo, serve de alimento aos selvagens, que com a sua pôlpa preparam um succulento mingão, de sabor agradavel, mas indigesto.
  2. Uma especie de jacú, de cabeça branca, pernas vermelhas, que canta de madrugada, conhecido na sciencia sob o nome de: penelope cumanensis.
  3. Pezus Niambu (Spix), uma especie de perdiz dos bosques do Brazil, que canta a horas certas da noite.
  4. Dissemos na pag. 78 a que horas correspondem cada um destes nomes.
  5. Não é minha intenção dar em geral outra traducção além da litteral que já ficou atraz, porque o principal objecto deste livro é o estudo da lingua e não o das lendas. Comtudo, n’uma ou n’outra em que as transposições forem muito numerosas eu seguirei a traducção litteral de uma traducção portugueza, como faço aqui.
  6. Quando os selvagens narram esta parte imitam zumbido dos insectos que cantam á noite.