Saltar para o conteúdo

O Selvagem/Mythologia zoologica

Wikisource, a biblioteca livre

MYTHOLOGIA ZOOLOGICA NA FAMILIA TUPI-GUARANI.[1]

considerações preliminares

Por muito incompleta que seja ainda a presente collecção, ella encerra o monumento mais authentico e curioso que se tenha até hoje publicado a respeito do elemento intellectual dos selvagens do Brazil, pelo que eu supponho que ella attingirá ao futuro mais remoto.

Diante das narrações, ainda mesmo dos viajantes mais graves, é licita a duvida porque ninguem ignora quão profundamente os factos podem ser alterados por elementos provenientes do juizo daquelle que nol-os narra, e de seus meios de informação, sempre tão difficeis quando se trata de saber d’aquillo que pensavam povos cuja lingua o historiador não conhecia.

Diante de textos originaes d’esses povos a duvida desapparece, e seu obscuro mundo moral se revela tal qual é ás investigações da sciencia.

D’ahi o ardor com que a positiva e energica raça anglosaxonica tem investigado e colligido os textos originaes das raças primitivas do centro e interior da Africa, da Asia e da America.

Eu tive a ambição de ser o colleccionador das lendas aborigenes do Brazil, e venho trazer a esta associação os primeiros fructos d’esse trabalho.

A historia natural do homem, que faz o objecto especial da anthropologia, divide-se naturalmente em duas secções:

1.ª Aquella que trata das qualidades physicas das differentes raças.

2.ª Aquella que trata das mais fundamentaes manifestações moraes.

Entre as manifestações moraes, tem merecido particular attenção dos sabios as idéas religiosas e a mythologia das differentes raças. O anno atrazado tive eu a honra de ler, perante esta respeitavel associação, as primeiras investigações respeito á theogonia da mais numerosa familia selvagem sul-americana.

Depois disso tive necessidade de fazer uma viagem ao Pará, e d’alli á foz do Amazonas, e assentei de aproveitar a opportunidade para estudar novos factos.

Como eu houvesse empregado quasi todo o anno de 1873 em estudar a fórma amasonica da lingua tupi, com a qual consegui familiarisar-me, achei-me preparado com o principal e mais indispensavel instrumento para observação de mythos que, entendendo com aquillo que cada povo tem de mais intimo, escapam quasi completamente á observação dos viajantes, emquanto não poderem fallar a lingua do selvagem. Pude assim conseguir parte da preciosa mythologia zoologica da familia tupi. Confrontando depois essas lendas com outras que eu ouvira em Matto-Grosso, como direi adiante, firmei o juizo de que ellas eram communs á familia tupí-guaraní, e além de conter um codigo de moral, são preciosos documentos para investigar-se o que constituia o fundo geral do pensamento humano, quando o homem atravessava o periodo da idade de pedra.

O que venho, pois, trazer ao conhecimento desta associação, são curiosas paginas de uma litteratura que d’aqui a alguns annos terá desapparecido, porque ella não se conserva em monumentos escriptos, e sim na tradicção dessa pobre raça aborigene, que, pela inflexivel lei da selecção natural, ha de estar dentro em alguns annos perdida e confundida dentro da nacionali-dade brazileira.

Esta primeira collecção é ainda muito incompleta; o trabalho de colleccionar estas eousas é muito difficil: todo aquelle que tem lidado com homens selvagens, terá conhecido For propria experiencia o quão pouco communicativos são elles em tudo quanto diz respeito às suas idéas religiosas, suas tradições, e suas lendas didacticas. Elles têm medo que o branco, o cariua, se ria delles, e, entre os selvagens, assim como entre nós que nos julgamos tão superiores a elles, o amor proprio é a força moral preponderante.

mythologia zoologica

O Sr. Angelo de Gubernatis, professor de sanscrito no Instituto superior de Florença, publicou em Londres uma obra, hoje tradusida em francez, na qual demonstra que as tradições populares entre os povos da Europa decorrem todas dos Vedas, e são explicações symbolicas d’aquelles phenomenos astronomicos que mais impressionaram a humanidade primitiva.

Antes de ler essa curiosa confrontação eu estava muito longe de suppor que a Maria Borralheira dos contos populares do Brazil, e que perde o seo chinello, é o écho remoto, conservado pela tradição oral do povo por mais de seis ou sete mil annos, da deusa. Aurora do Rig Veda, a qual era tão veloz que um dos hymnos vedicos a denomina apãd, a donzella sem pés ou sem calçado.

Assim como muitos dos mythos populares do Brazil são mythos vedicos, assim tambem muitos são mythos tupís.

Quem viaja o interior das provincias de S. Paulo, Minas, Goyaz e Matto Grosso ouve constantemente historias em que o Saci Cererê, o Boitatá, o Curupira, como nos o chamamos, ou o Curupim, como o chamam paraguayos e cuyabanos, representão importante papel na vida do homem. Esses mythos tupís confundem-se aqui nas tradições populares com os mythos vedicos de que acima fallei. E isto mostra que:

Neste immenso cadinho da America, ao passo que se fundem e se amalgamão os sangues dos grandes troncos da humanidade, fundem-se e amalgamão-se tambem suas idéas moraes, por uma lei de conservação confiada a esse operario inconsciente e tenaz, a memoria e a tradição do povo illitterato.

Ao passo que as pesquizas dos sabios se vão alargando sobre o animal homem, vai-se descobrindo uma lei que conserva por assim dizer a unidade do typo nas producções do espirito, assim como conserva a unidade de typo physico apezar da variedade das raças. As idéas moraes fizeram sempre o seu caminho pelos mesmos processos, e si notamos entre os povos tão grandes differenças, é porque raros coexistiram no mesmo gráo de civilisação.

Na raça aryanna e suas derivadas os mythos são a explicação symbolica e poetica daquelles phenomenos metereologicos que mais impressionavam a humanidade, e são, ao mesmo tempo, poemetos didacticos onde, sob a fórma de um episodio quasi sempre vestido de dialogos singelos, se ensina uma verdade moral. É corrente hoje a explicação de todos os mythos pela theoria chamada solar.

Aos que quizerem investigar esse assumpto remettemos á obra do citado Sr. Gubernatis — Mythologie Zoologique, Pariz 1874.

Eu estava muito longe de suppôr que existisse nos selvagens do Brazil, que attingiram a tão pequeno gráo de cultura intellectual, um systema mythologico identico em substancia ao systema dos Vedas.

Coma eu espero que este assumpto ha de ser largamente discutido no futuro, seja me licito narrar as circumstancias em que ouvi taes mythos e a fonte de onde os colhi. Durante a guerra do Paraguay eu viajava uma noite no rio Paraguay a bordo do vapor Antonio João, e conservava-me no passadiço, debaixo do qual um grupo de marinheiros, que não estavam de quarto, distrahia-se em contar historias; um delles, apellidado Para tudo, descendente dos indios cadeuéus, contou uma serie dellas, em que o jabuti representava o principal papel; de quando em vez elle repetía em lingua geral algum aphorismo que não podia traduzir em portuguez por fórma tão laconica como a em que elle o fazia na propria lingua. Foi esta a primeira vez que minha attencção foi despertada sobre mythos nacionaes.

As circumstancias desses tempos não eram taes que eu dispuzesse da calma necessaria para estudar esses mythos. Notei no entretanto que entre as taes historias havia um thema singular, o qual consistia em mostrar o jabuti, que aliás é um dos animaes mais fracos de nossa fauna, vencendo aos mais fortes quadrupedes, a custa de astucia e intelligencia.

Apezar de ter notado isso, é muito provavel que taes impressões se tivessem apagado de uma vez no meu espirito, a não ter sido a viagem que fiz á fóz do Amazonas de que acima fallei.

Em dias do mez de setembro do anno de 1874, tendo eu de fiscalisar o serviço de navegação a vapor em ilhas da fóz do Amazonas, parei no Afuá, logar onde se abrigam todos os barcos que navegam para o Amapá e Guyana, e onde havia n’esse dia um consideravel ajuntamento de tripulações.

Ahi ouvi pela segunda vez as lendas do jabuti, e ouvindo-as em logar tão distante do Paraguay, veiu-me pela primeira vez esta idéa: não serão estas lendas fragmentos da velha litteratura tupí, que, como a dos gregos, egypcios e hebraicos, foi muitos annos conservada pela tradição, visto que por outro meio era impossivel, pois não tinham a arte de escrever?

Posteriormente, voltando ao Pará, eu repeti uma das lendas a um indio mundurucú que era marinheiro. a bordo de um dos meus vapores, o Aruãn, o qual por sua vez narrou-me algumas das que aqui estão colleccionadas.

Chegando ao Rio de Janeiro, eu communiquei o facto ao Sr. professor Carlos Frederico Hartt, e soube com vivo prazer que elle havia encontrado as mesmas lendas no Tapajós, que as julgava velhas tradições astronomicas da familia tupí, motivo pelo qual elle tambem colligira algumas; ainda não vi a collecção do illustre professor; sei porém que é em outro diallecto, o que tem o grande merito de offerecer algumas das mesmas historias em texto differente d’aquelle em que eu as encontrei, e de assim fixar, não só sua authenticidade, como seu caracter de generalidade.

O Sr. Professor Carlos Frederico Hartt publicou recentemente um folheto com o titulo: The Amasoniam Tortoise mythes, mythos do jabuti no Amasonas.

Apoiado na theoria chamada solar elle interpreta alguns desses mythos, mostrando que elles são theorias astronomicas dos antigos selvagens americanos, onde o jabuti representa de sol, e o homem de lua. Eu dei ao Snr. professor um resumo em portuguez das minhas lendas do jabuti, e eis aqui por suas proprias palavras a enterpretação que elle dá a um dos mythos, a pagina 17 do seo folheto diz elle:

Dr. Couto de Magalhães gives me the following story, wich I will entitle the — Jabuty that cheated the man — Segue o resume do mytho — concluindo elle accrescenta: — So that we have here, once more repetead, the story ot the race between the slowe tortoise or sun, and the swifth moon or nan

Eu não estou habilitado para acompanhar o illustre professor nestas investigações; não conheço os mythos zoologicos dos Vedas senão pela exposição que d’elles faz o Sr. Angelo de Gubernatis.

Por esse motivo eu me limitarei a encara-los debaixo do ponto de vista linguistico e didactico. Ninguem ainda publicou estes mythos em original tupí, e pois eu creio que presto não pequeno serviço a philologia patria e á anthropologia, dando-os agora á lume, embora o meo trabalho não passe do de simples colleccionador.

elementos para a historia do pensamento primitivo

Além do interessse que a seguinte collecção offerece como monumento linguistico, ella é o testemunho do que pensava a humanidade em certos assumptos, quando atravessava o periodo da idade de pedra, em que se acha ainda o nosso selvagem.

Se a collecção não houvesse sido feita em tempo como o presente, em que a lingua tupí ainda é commum no nosso povo, sobretudo na bacia do Amazonas, estas lendas havião de despertar no futuro tanta discussão como a que despertou os poemas de Homero, os Niebelungen, os poemas de Ossian, porque: si, como poesia, são incomparavelmente inferiores á aquellas obras debaixo do ponto de vista anthropologico são mais importantes, por serem os vestigios da litteratura espontanea de um povo antes que qualquer genero de convenção, interesse ou espirito de seita e partido, houvesse modificado as producções espontaneas do espirito humano.

E si é verdadeira a theoria de que o homem pensou da mesma fórma, qualquer que fosse a sua raça, emquanto esteve no periodo de barbarismo que termina-se com a fundição dos primeiros metaes, a historia do pensamento da raça americana, n’esse periodo, não è só a de uma porção da humanidade; é a de toda a humanidade, em periodo identico.[2]

Não pode haver a menor duvida para o brasileiro comtemporaneo de que estas lendas formão o fundo das tradições dos indigenas, visto que ellas constituem o actual fundo dos contos populares do interior; o povo não pode ter outras tradições que não sejão as que recebeo da Europa, as que lhe vierão da Africa, ou as que lhes vierão dos indigenas. Ora as lendas em questão não são africanas nem europeas pois os animaes que nellas figurão são animaes sul americanos, assim como americanas são as arvores, as circumstancias, os habitos e costumes que ahi se descrevem, com tão admiravel singelesa e propriedade.

Em materia de contos populares, é essa talvez a mais rica mina que, logo abaixo do mytho, se pode explorar para escrever a historia do pensamento primitivo da humanidade: não ha talvez no mundo inteiro, paiz que offereça melhor opportunidade para se colherem tão grandes riquesas, como o Brazil, justamente porque, assim como aqui, no immenso cadinho de nossa patria, se fundem actualmente os sangues dos grandes troncos branco, negro, amarello e vermelho, assim tambem se fundem as tradições e crenças primitivas, o pensamento espontaneo de todos esses troncos. Ah! que immenso e rico museo não temos aqui nos quarteis do nosso exercito, onde os soldados são mestiços vindos de todas as provincias! Que immenso museo vivo não possuimos para preparar a historia do pensamento primitivo da humanidade! Cumpre não desprezar essa mina riquissima que possuimos em nosso paiz, e, explorando e estudando a qual, podemos concorrer para o mais bello monumento intellectual do seculo 19, que é, na opinião convencida do Snr. Beaudry, refaser a historia do pensamento espontaneo da humanidade, que se encontra hoje somente em duas formas: na do mytho, e na do conto popular.

Cumpre porém não confundir estes dous vestigios antiquissimos do pensamento humano, e eu, para distinguil-os, peço permissão para transcrever as palavras. do autor, que ha pouco citei, palavras que vem na introducção á mytollogia zoologica dos Vedas.

«Entre o conto popular e o mytho, diz elle, existe apenas uma simples defferença de epoca e dignidade. O mytho é o resultado directo e primitivo da transformação dos elementos mythicos em fabulas. É a obra do espirito collectivo espontaneo, expressado pelos poetas. O conto popular é o ultimo echo, com as gradações que a transmissão lhe impoz.

Não é mais esta producção poetica na qual tomou parte a humanidade superior; mas sim um residuo, si nos podemos assim exprimir, refeito por pessoas mais simplices, como as avós e as amas de leite.»

«Ainda assim, diz o Sr. Reinhold Kœller, o conto popular é tão importante ou talvez mais do que as inscripções cuneiformes, porque é elle, abaixo do my tho, vestigio mais antigo do pensamento humano.»

Nesta collecção de mythos existe um que o Sr. professor Hartt em sua obra Notes on the Tupi language diz que foi encontrado identico na Africa, e em Sião, e que dessa proveniencia figura já nas collecções mythologicas; eis aqui suas palavras: I have, for instance, found among the Indians of the Amazonas a story of a tortoyse that outran a dear by posting its relations at short distance apart along the rod, over wich the race was to be run — a fable found also in Africa and Siam!

Veja-se por ahi a grande luz, veja-se quantas paginas da primitiva historia do pensamento da humanidade, que se julgavam irremissivelmente sepultadas no abysmo insondavel dos periodos prehistoricos, não podem ser reconstituidas neste seculo, graças à memoria rude mas fiel do nosso selvagem, que conserva tradições muito mais antigas talvez do que as dos Vedas.

São como fosseis que se vão desenterrando, e, assim como aquelles nos deram a historia do nosso planeta muitos milhões de annos antes do homem, assim estes nos reconstituirão a historia das gerações que se sepultaram no passado, antes que dellas podesse haver noticia por falta da escripta.

Como disse acima, eu colligi tambem essa lenda do jabuti que venceu o veado na carreira; tenho-a em dous dialectos, ambos diversos dos em que a colligio o Sr. professor Hartt; ouvia-a desde pequeno nos contos populares de Minas, e ahi a publico em dialecto do Rio Negro.

É redigida com a mesma singeleza das outras, e com perfeito conhecimento dos habitos e localidades frequentadas pelos animaes que nella figuraram, como ó leitor verificará ao examinal-a.

 
as lendas encaradas como methodo de educação intellectual
 

Na collecção que se segue, além do sentido simbolico que as lendas possam ter, assumpto esse que eu não trato de investigar, porque me faltam ainda estudos de comparação, é muito claro o pensamento de educar a intelligencia do selvagem por meio da fabula ou parabola, methodo geralmente seguido por todos os povos primitivos.

A collecção das lendas do jabuti, que não sei ainda se è completa, compõe-se de dez pequenos episodios.

Todos elles foram imaginados com o fim de fazer entrar no pensamento do selvagem a crença na supremacia da intelligencia sobre a força physica.

Cada um dos episodios é o desenvolvimento ou d’esse pensamento geral, ou de algum que lhe é subordinado.

Com a leitura da collecção o leitor verá isso claramente; sem querer antecipar o juizo do leitor, direi geralmente que:

Como é sabido, o jabutí não tem força; a custa de paciencia elle vence e consegue matar a anta na primeira lenda a maxima pois que o bardo selvagem quiz com ella plantar em seu povo foi esta: a constancia vale mais que a força.

Como é sabido tambem, o jabuti è dos animaes de nossa fauna, o mais vagaroso; os proprios tupis tem este proloquio: Ipucúi aúti maiaué, vagaroso como um jabuti; no entretanto, no terceiro episodio, o jabuti, a custa de astucia, vence o veado na carreira; quiseram pois ensinar, mesmo pelo contraste, entre a vagaresa do jabutí e aceleridade do veado, que a astucia e a manha podem mais do que outros elementos para vencer-se a um adversario.

No quinto episodio a onça quer comer o Jabuti; elle consegue matal-a, ainda por astucia. É o desenvolvimento do mesmo pensamento, isto é: a intelligencia e o savoir faire valem mais do que a força e a valentia.

No nono espisodio, o Jabutí é apanhado pelo homem, que o prende dentro de uma caixa, ou de um patuȧ, como diz a lenda; prezo, elle ouve dentro da caixa o homem ordenar aos filhos que não se esqueção de pôr agua no fogo para tirar o casco ao jabuti, que devia figurar na ceia; elle não perde o sangue frio; tão depressa o homem sae de casa, elle, para excitar a curiozidade das crianças, filhos do homem, pôe-se a cantar os meninos aproximão-se; elle cala-se: os meninos pedem-lhe que cante mais um pouco para elles ouvirem: elle lhes responde — ah! si vocês estão adimirados de me verem cantar, o que não seria se me vissem dansar no meio da casa?

Era muito natural que os meninos abrissem a caixa; que crianças haveria tão pouco curiosas que quisessem deixar de ver o jabuti dansar? Ha nisto uma força de verosimilhança cuja belleza não seria excedida por Lafontaine. Abrem a caixa, e elle escapa-se.

Esta lenda ensina que não ha tão desesperado passo na vida, do qual o homem se não possa tirar com sangue frio, intelligencia, e aproveitando-se das circumstancias.

O que principalmente distingue um povo barbaro, é a crença de que a força physica vale mais do que a força intellectual.

Napoleão I, por exemplo, nos refere, que os arabes no Egypto muito custaram a acreditar que fosse elle o chefe do exercito, por ser um dos generaes de mais mesquinha apparencia physica.

Ensinar a um povo barbaro que não é a força physica que predomina, e sim a força intellectual, equivale a infundir-lhe o desejo de cultivar e augmentar sua intelligencia.

Cada vez que reflicto na singularidade do poeta indigena de escolher o prudente e tardo jabuti para vencer aos mais adiantados animaes de nossa fauna, fica-me evidente que o fim dessas lendas era altamente civilisador, embora a moral n’ellas ensinada divirja em muitos pontos da moral christãa.

Não será evidente, por exemplo, que a concepção apparentemente singular de fazer um jabuti apostar uma carreira com o veado, é muito engenhosa para gravar em cabeças rudes esta maxima: que a intelligencia e prudencia são mais importantes na lucta da vida do que a força e as vantagens physicas?

Qual seria o selvagem que depois de comprehender, a vista da lenda, que um jabuti pôde por astucia alcançar victoria apostando uma carreira com o veado, qual seria o selvagem, perguntamos, que não ficaria antevendo a superioridade da intelligencia sobre a materia?

 
sentido symbolico
 

Ja citei a opinião do Sr. Hartt relativa ao sentido symbolico de uma das lendas: a do jabuti e do homem.

A theoria, que prevalece hoje, entre os que estudam anthropologia e linguistica, é a de que todas as lendas são a discripção symbolica dos diversos phenomenos methereologicos que occorrem com o sol, com a lua, com outros astros, como já disse acima.

Inhabilitado, como por ora me reconheço, para entrar n’essa investigação, comtudo me parece que a theoria está confirmada não só na lenda citada pelo Sr. Hartt, mas tambem em todas, ou em quasi todas as outras. É assim que a primeira lenda, explicada pelo systema solar, me parece offerecer no jabutí o symbolo do sol, e na anta o symbolo do planeta Venus.

Na primeira parte do mytho o jabotí é enterrado pela anta. A explicação parece natural desde que, se sabe que, em certa quadra do anno, Venus apparece justamente quando o sol se esconde no occidente.

Chegado o tempo do inverno o jaboti sae, e, no encalço da anta, vae successivamente encontrando-se com diversos rastos, mas chega sempre depois que a anta tem passado.

Assim acontece realmente com o sol e Venus que quando apparece de manhã, apenas o sol fulgura, ella desapparece.

O jabuti mata finalmente a anta.

Isto é, pelo facto de estar o orbita do planeta entre nós e o sol, ha uma quadra no anno em que elle não apparece mais de madrugada para só apparecer de tarde. O primeiro enterro do jabutí é a primeira conjunção, aquella em que o sol se some no occidente para deixar Venus luzir. A morte da anta pelo jabuti, é a segunda conjunção, aquella em que Venus desapparece para deixar luzir o sol. Quer debaixo do ponto de vista da theoria solar, quer como ensinamento didactico, quer como elemento linguistico, estes mythos originaes são, a meu ver, de inextimavel valor.

 
as lendas encaradas como elemento linguistico
 

Se estas fabulas são curiosas como especimens de methodos de educação primitiva, e como elemento para julgar-se de uma civilização que pouco a pouco se vae apagando diante da nossa, como elemento philologico são de um valor inextimavel.

Seria impossivel julgar da lingua de Virgilio e Cicero pelos escriptos em latim dos padres da idade media.

Muito mais difficil ainda seria julgar da lingua tupi pelos textos escriptos pela maior parte dos jesuitas, apezar do muito que elles sabem.

Ha uma infinidade de delicadesas que se percebem em frente de um texto original, mas que são inimitaveis pelo estrangeiro.

Nestas mesmas lendas, de principio a fim, existem cousas que jamais poderião ter sido escriptas por um homem que não houvesse bebido a lingua com o leite materno, como eu o mostrarei quando fiser a sua leitura.

Uma das cousas nimiamente curiosas, e que indicão a differença das duas raças, e que jamais podiam haver sido inventadas por quem lhe não pertencesse, são as sentenças.

Nos povos que adoptaram o christianismo, por exemplo, quando, ao homem que persiste em uma resolução desesperada, se observa alguma cousa, elle responde: que leve tudo o diabo! Na primeira das lendas nós vemos que a phrase correspondente a esta, entre os tupis, era a seguinte: o fogo disem devora tudo! — tatta, pahá oçapi opãin rupi!

Um outro exemplo: — quando entre nós se objecta a um homem que elle se expôe a uma morte provavel, e que este homem quer indicar a sua resignação, nós povos aryanos, disemos: eu não estou no mundo para semente. A phrase correspondente no tupi, para este caso, nós a encontramos ainda na primeira lenda, onde o jabuti, ameaçado pelo rasto de ser uma segunda vez enterrado pela anta, lhe responde; — eu não estou neste mundo para ser pedra — Ixé intimahã xa ikó ce ára uirpe ita ãrãma.

Pelo lado dos anexins populares, dessas maximas que constituem por assim dizer toda a philosophia pratica de um povo, impossivel seria conhecel-os no tupi a não serem os textos originaes de suas lendas. Foi por meio de uma dellas que eu fiquei sabendo que muitos dos dictados populares do Brazil nos vierão do Tupi.

Entre outros, citarei o seguinte, que é muito vulgar em todo o Brazil: quando se quer dizer que é muito difficil illudir e enganar ao homem experiente, diz-se no interior: macaco velho não mette a mão na cumbuca: é um anexim tupi; eu o encontrei até rimado, e diz assim: macáca tuiué inti omumdéo i pó cuiambúca opé, anexim que é, verbum ad verbum, o mesmo de que nos servimos em portuguez.

Quanto ao estylo das lendas, ha ahi alguma cousa de tão singello e infantil que é impossivel lel-as sem reconhecer que ha nisso verdadeira poesia selvagem.

  1. Esta introducção foi lida nas sessões do Instituto Historico o anno passado, e se bem que ella se não refira ao estudo da lingua me parece que seu assumpto interessaria ao estudante da lingua aborigene por tratar da authenticidade e valor dos textos que elle passa a examinar.
  2. Para evitar qualquer duvida no futuro, devo dizer que aqui mesmo no Rio de Janeiro ha diversas pessoas que conhecem a lingua. a saber: Sua Magestade o Imperador que conhece o tupí da costa antigo; o Sr. Dr. Baptista Caetano, que conhece o guarany antigo e moderno; o Sr. professor Carlos Frederico Hartt que conhece o tupí antigo, e falla o tupí do Amazonas; o Sr. General Beaurepaire que conhece o tupi da costa; devem haver outros. Existem aqui nos corpos da corte nada menos de 40 a 50 praças que fallam o tupi e, como são indigenas, todos sabem de cór alguma das lendas que figuram n’esta collecção; temos talvez mais de 100, entre marinheiros e soldados, que fallam tupí ou guaraní.