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O Sonho da Raça

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Imagem com o texto da reimpressão n'O Correio Paulistano em 31/10/1937.

O sonho da raça

(Para o "Correio Paulistano")
ALARICO SILVEIRA

Terra tupi não é apenas o Brasil.

Transpondo as fronteiras da Republica a Norte, Sul e Oeste, invade as Guaianas, absorve todo o Uruguay, um trato da Argentina, a totalidade do Paraguay, adentrando-se no Perú, Venezula e Colombia e colloca uma sentinella perdida em Guaiakiri, no Pacífico.

O império tupi é uma das construções mais surpreendentes da história. A minguada gente que o realizou era de uma só estirpe: - o nheengatú do Uiapokú é, sem duvida alguma, o abanheenga do Iguassú (rio da Prata); e, como a raça e como a lingua, o homem do Surinaan (Amazonas) é o Guaianá de S. Paulo.

Tradições e costumes identicos, e dentro dessa gigantesca Tupiretama, que desconcerta e maravilha o ethnologo mais arguto, a mesma sympathia e o mesmo apoio fraternal á gente amiga, "que fala bem", e a mesma ancestral hostilidade ao vencido nheengaiba, "que fala mal".

A invasão tupi foi das mais avassaladora a julgar pelos resultados que a linguística apurou.

O idioma dos vencedores absorveu até a lembrança do idioma dos vencidos. Estes, para poderem sobreviver, foram coagidos, nas reducções jesuíticas, a aprender a lingua dos triumphadores, que, assim, se tornou "geral" e ficou sendo como que o latim da America do Sul.

Como espirito aggresivo e capacidade de conquista, o tupi não tem segundo.

E tão forte é esse espirito e tão vincado ficou em toda nação esse temperamento bellacissimo e andejo, que veio contaminar o branco europeu de 1500, aggravando e aguçando nelle o instincto guerreiro e imperialista. A bandeira tupi-lusitana de 1600 veio construir, desse modo, o mais formidavel apparelho de expansão que o continente jamais conheceu.

Donde provinha essa familia destemerosa, que devia baptizar com os seus nomes totemicos e domesticados a metade da America?

Do mar das Caraibas (mar das Antilhas)?

Certo é que um dos flancos do exercito invasor guardou até hoje integralmente, as etapas da conquista, desde as florestas peruanas pelo Surinaan (Solimões, Amazonas), até o oceano de Oeste. Nesse corredor longuissimo a nomenclatura geographica é limpa e escoimada.

Houve, possivelmente, um surto invasor norte-sul. O litoral foi varrido de nheengaibas e o idioma gentil sôou, desde logo, até a fóz do Prata, levado pelo tapé atrevido. De uma arrancada Oeste-Leste, parallela á que irrompeu e absorveu o valle amazonico, foram batedores e pioneiros gloriosos os guaianás, que transportaram das margens predestinadas do Anhembi os avós de Tibiriça-guassú. Essa, a tribu de escól da grande raça, os eleitos, os mais apurados e os mais ciosos da grandeza tupi.

Cabia-lhes tarefa colossal. Da Caaguassú perú-boliviana deviam alcançar para além do Anhembi, o grande mar oriental, juntando-se a gente irmã que, certamente, já se haveria estabelecido na costa. E, quando o caraíba branco veio, o tupi de São Paulo, esperou organizado, na planicie piratiningana, o choque decisivo que não se deu.

E, se se desse, redundaria em fracasso, pois a linha de invasão estava inçada de posições fortes guaianás, de Geribatiba e Guirapiranga até aos Guarús, de um lado; de Ibirapuera, Carapecuíba e Ibituruna de outro. A diplomacia conseguiu, em Piratininga, o que as armas difficilmente lograriam. Ramalho, a principio alliado aos cheges guianás; Anchieta, mais tarde, guia e instructor delles, tornaram possivel a fusão sympathica e incruenta das duas estirpes.

Cincoenta annos depois, a terceira geração estava prompta para marchar... Para onde, porém? Tudo, aconselhava e impunha o roteiro de Oeste, o refluxo à Caaguassú, á matta grande da altiplanície boliviana. Para ali, reconduzidos seguramente por instincto atavico, os tupis, através de tribus amigas retomariam o dominio dos seus maiores, agora em poder do detestado aimará.

Mas o espirito dirigente da bandeira assim não entendeu e, ao invés de assegurar para o povo paulista a occupaçã pacifica de todo o territorio até quasi aos Andres, preferiu, no interesse immediato da prata e do escravo, o itinerario do Sul. Era assim, a luta fatricida. Lançaram-se as tribus do Anhembi (Tieté) contra os tupis do Paranapané e dos dois Iguassús. Erro dos maiores. Se o chefe da bandeira tivesse escutado a voz da raça, teria realizado, desde 1600, a posse pacifica do Oeste.

Reinstallados na Bolivia e no Perú, os homens de São Paulo, enquadrados e commandados pelos lusitanos, desceriam logo depois, através dos grandes rios, para a bacia do Prata, substituindo os chefes castelhanos do Paraguai e de Buenos Aires. E, pois que a gente tupi do Norte, Centro, Oeste e parte do Sul continuava compacta e unida aos lusitanos, veriamos hoje realizado o sonho da raça: Brasil egual Tupiretama. A bandeira scindiu o tronco abanheenga. Cem annos depois, dissipada a illusão do Sul, pretendeu ella iniciar o caminho de Oéste, occupando Guaiás e Cuiabá. Era muito tarde.

A trezentos annos de distancia, porque de novo, essa Voz de Oéste? Já não há tupis nem Tupiretama.

E todavia estamos, os de São Paulo, outra vez, face a Oéste. Como ha trezentos annos, de lá, alguem, alguma coisa nos chama. Já agora em paz e como a irmãos. Um appello, um anseio, por que, conservados, embora, os marcos que nos estão, artificialmente, dividindo, façamos nós, a gente paulista, que parou em Corumbá, algo maior e melhor que as mesquinhas contendas sul-americanas...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1930 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.