O Subterrâneo do Morro do Castelo/Quarta-feira, 10 de maio de 1905
Os Subterrâneos do Rio de Janeiro[editar]
O Tesouro dos Jesuítas[editar]
D. Garça[editar]
I (continuação)[editar]
O padre seguiu-a com os olhos. E logo que ela voltou, encheu os dois copos, provou o seu, dizendo:
— Esse miserável já veio?
— Não, respondeu Alda.
— Tem dado um imenso trabalho, esse tal teu marido...
Alda sorriu e baixou um tanto a cabela enigmaticamente.
— Como? indagou complacente.
— Há dias, o governador queixou-se dele ao reitor. Não guarda as conveniências; freqüentemente se embriaga; anda amancebado com negras. Disse o mesmo governador que a dignidade do serviço de S.M. não pode tolerar tais desmandos. Hoje, para a tarefa extraordinária da chegada da frota, foi preciso ir buscá-lo a um batuque, lá para as bandas do Valongo. Até agora têmo-lo salvo, mas não sei...
O padre calou-se, e depois de alguns instantes, perguntou, despedindo um olhar diabólico:
— E se tu enviuvasses?
— Oh! Não, Jean. Não! deixa-o viver...
— Não sei se sempre poderei fazer isso. Ele tem segredos que talvez não os guarde sempre. Amanhã, despedido do serviço real, errará na miséria, e o desespero...
Ajudá-lo não nos será possível... Todos saberão que auxiliamos um incontinente ímpio... Até aqui temos dito que é ímpio nos atos, mas nos sentimentos não. E eu não sei, Alda, até quando a nossa casuística lhe valerá.
— Deixa-o viver, Jean, deixa-o. É desgraçado, merece piedade.
— Quem sabe que não o amas? perguntou gracejando o clérigo.
— Eu! oh! fez com um muxoxo a moça.
O que sinto por ele, continuou, é dó, pena, unicamente; pena de o ver perseguido pelo mau fado. Sabes que ele começou alto. Dava grandes esperanças em Coimbra; mas, de uma hora para outra, transformou-se; e, esquecido dos livros, foi viver indignamente pelas sarjetas de Lisboa, até que...
— Eu sei, Alda, sei; mas a população murmura, e não tarda que os seus murmúrios cheguem aos ouvidos da Corte.
Os dois misturaram o francês e o italiano, e uma frase portuguesa que repontava, sonorizava mais o diálogo.
— Sabes que temos novas do Reino? perguntou o padre.
— Boas? inquiriu a moça.
— Boas e más.
— Quais são?
— El-Rei foi aclamado.
— É velho. E da guerra?
— Que guerra? espantou-se o religioso.
— A da coroa da Espanha, ora!
— Em que te interessa ela?
— Muito.
— Pretendes?
— Não pretendo, mas...
— Ouve, Alda. Tu me inquietas; enches-me de zelos.. Ah! Se algum dia... fez com raiva o clérigo, levantando-se da cadeira.
— Mas o que é, Jean? perguntou com meiguice a moça. Que é?
— Olha...
— Mas que olhar, Jean. Que coisa! Tu nem pareces o mesmo. Metes-me medo. Que é que tens?
— Eu te explico com vagar, disse o padre sentando-se. Olha, na frota que chegou hoje veio para nós um aviso. Sire, Luís XIV, vai proteger uma expedição que se arma contra esta cidade. Será forte e trará grande cópia de homens para o desembarque.
— Já estava armada? indagou com curiosidade a moça. O jesuíta, como estranhando a pergunta, esteve algum tempo analisando a fisionomia da mulher. Ela tinha um ar ingênuo, e respirava uma enorme franqueza. O padre, desesperado do esforço que fizera para penetrar-lhe no íntimo, respondeu:
— Ainda não, mas se aprestava. Os capitães já estavam levantados e o Intendente das Finanças tratava com o Ministro da Frota os navios reais a ceder.
— É certo que se dirija p’r aqui, Jean?
— É seguro o aviso, respondeu sem refletir o padre.
Sentindo que o segredo, pouco a pouco, se lhe escapava arrancado pela dama dos seus pensamentos, o padre resolveu falar pouco, tomando precauções.
— Alda! Toma tenência! Eu te vou transmitir um sagrado depósito do meu voto, e embora seja de pequena importância a sua revelação, convém que fique oculto, para que não se suspeite até onde vai o poder da Companhia.
Ouve-te e cala-te, senão, nem o meu amor te salvará, disse com ardor o jesuíta.
— Acaso, alguma vez, revelei o que confidencias? Tenho amizades na cidade, para que o possa fazer?
— Bem. Ouve, retrucou mais seguro o clérigo.
— Ouço e... perinde ac cadaver, fez com galanteria D. Alda.
O padre então prosseguiu:
— A expedição é contra S. Sebastião. Os nossos irmãos da França sabem-no com firmeza. Está rica a cidade, e a riqueza das minas fazem-na cobiçada. É presa certa e farta e em breve ela aportará. Comanda-a...
— Quem?
— Oh! Alda! Que pressa!
— Não há admirar. É do teu saber que tenho grandes conhecimentos em França, e por isso convinha que soubesse quem era o comandante, para evitar encontrá-lo. Isso em meu bem, e no teu... Assim não crês, Marquês de Fressenec?
O jesuíta, assim chamado pelo seu antigo nome do século, estremeceu na cadeira. Bem depressa recobrando a primitiva calma, foi ao chamado da pergunta:
— Bofé! Que tens razão, Condessa Alda de Lambertini. Tens razão... Quem a comanda, Condessa, é François Duclerc, da Guadalupe.